ART AND NEUROEDUCATION: REFLECTIONS ON TEACHING AND LEARNING DANCE IN CHILDHOOD
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202501281255
Izabella Martins Heker 1
Rafaela Lisboa Nogueira 2
Andréa Lúcia Sério Bertoldi 3
Resumo
Este estudo tem por objetivo discutir o processo de ensino-aprendizagem da dança na infância a partir da aproximação das áreas da Dança e da Neuroeducação. Trata-se de um estudo bibliográfico, de natureza qualitativa, que adota uma abordagem sistêmica da temática, fundamentada nas abordagens sistêmicas de Edgard Morin e de Jorge de Albuquerque Vieira, em articulação com a noção de interdependência entre razão-emoção, conforme proposto por António Damásio. No campo pedagógico, estabelece diálogo com Izabel Marques, Paulo Freire e Virgínia Kastrup. Os resultados do estudo indicam que, apesar da cultura de resistência a mudanças observada nos sistemas educacionais vigentes, há o reconhecimento da necessidade da adoção de estratégias pedagógicas que considerem a multiplicidade dos tipos de conhecimento, incluindo o conhecimento artístico, para atender a demandas da Educação na atualidade. Indicam ainda a relevância das experiências vivenciadas no corpo, particularmente durante a infância, para o estímulo ao potencial de produção de conhecimento humano.
Palavras-chave: Dança; Neuroeducação; Ensino-Aprendizagem; Infância.
1 INTRODUÇÃO
As demandas da Educação no século XXI têm sido discutidas em diferentes países e, apesar das diferenças de cada contexto, há consenso sobre a relevância da reflexão sobre a defasagem dos diferentes sistemas de ensino para o atendimento às demandas de um mundo em transformação. Entre as questões que merecem aprofundamento destacamos, neste estudo, a discussão sobre a importância da Arte, particularmente a Dança praticada com crianças no ambiente escolar, para o estímulo ao potencial de produção de conhecimento humano.
A herança histórica de hipervalorização de algumas áreas e tipos de conhecimento em detrimento de outros, pautou o modelo modernista dos sistemas educacionais e marcou a supremacia do conhecimento científico, predominante no século XX (Saviani, 2008). Este modelo gerou fragmentação do pensamento e desvinculação dos processos de ensino-aprendizagem com os contextos individuais e coletivos (Morin, 2000; Scherer; Alves; Pereira, 2021), tornando-se um modo de pensar a Educação, incompatível com as demandas da atualidade, tanto no que se refere ao desenvolvimento humano e social, quanto ao atendimento da formação de profissionais capazes de lidar com a incerteza, considerada uma condição para as mudanças do presente, com tendência de ocorrer em velocidades cada vez maiores e espaços temporais cada vez menores.
O tema foi abordado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, que apresentou reflexões sobre as demandas para uma Educação do futuro, no início deste século, visando contemplar as necessidades das pessoas em relação ao exercício da cidadania e de parâmetros e lógicas integradoras da Educação ao longo de toda a vida. Essa reflexão tornou-se referência para o relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI (Delors, 1996; Rodrigues, 2021).
De acordo com Delors (1996), a área da Educação deve garantir modos de aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser, considerando uma visão relacional, sistêmica e não hierarquizada das áreas de conhecimento que a compõem. Com a preocupação de encontrar caminhos para a crise na Educação, especialistas em Pedagogia afirmam que as escolas deveriam convergir os esforços para o ensino de competências como pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade (Davidson, 2017; Santos et, al., 2023).
A necessidade de encontrar estratégias de ensino-aprendizagem compatíveis com uma visão sistêmica do pensamento humano, aliada aos avanços teóricos e empíricos nas áreas da Psicologia e Neurociência, fizeram surgir o campo de estudo da Neuroeducação (Damásio, 2011; Costa 2023). Esse campo de estudos investiga os diferentes processos que integram a cognição humana com uma perspectiva colaborativa entre os diferentes tipos de conhecimento, fundamentando processo de ensino-aprendizagem em múltiplas áreas do conhecimento.
Entre as possibilidades de interesse para a área da Dança, a Neuroeducação tem fortalecido a importância do corpo e dos modos de conhecimento que nele se manifestam, estabelecendo a noção de corpo vivido que se concretiza no conceito de corporeidade, desenvolvido ao longo de toda a vida, porém, com grande potencial de desenvolvimento durante a infância (Noronha; Zanetti, 2024).
O avanço tecnológico permitiu que estudos em Neurociência Cognitiva consolidassem, no campo experimental, teorias acerca da centralidade do corpo na relação entre razão e emoção, demonstrando a não dissociação desses fenômenos para a constituição da mente e da consciência humana (Damásio, 2012; 2020). Além disso, o aprofundamento da compreensão sobre os processos de percepção humana, confirma a coexistência de estabilidade e instabilidade na organização dos subsistemas corporais em interação dinâmica com o ambiente e a cultura (Damásio, 2011; 2018).
Essas investigações reafirmam fundamentos da Teoria da Complexidade (Morin, 2000), ao reiterarem a importância das relações que ocorrem no corpo, principalmente durante o processo de desenvolvimento da criança, para a elaboração da percepção de si e do ambiente. O corpo, em sua incompletude, imprevisibilidade e complexidade, é considerado, ele próprio, um campo de produção de conhecimento humano (Damásio, 2018).
Essa visão sobre o corpo reacende discussões sobre a interdependência dos processos de ensino-aprendizagem e criação em Dança, considerando a potência dessa Arte como experiência educacional na infância. Entretanto, apesar do reconhecimento do potencial da Dança como prática pedagógica alinhada a demandas educacionais atuais, são inúmeros os desafios dos contextos nos quais ela é praticada, particularmente com crianças no ambiente escolar.
Dentre as inúmeras questões implicadas, importa questionar como podemos promover práticas de Dança com crianças, capazes de oportunizar o melhor potencial de desenvolvimento nessa fase da vida, considerando a complexidade e interdependência dos diferentes tipos de conhecimento humano (Vieira, 2007) . Nesse contexto, interessa-nos pensar particularmente os aspectos envolvidos na mediação entre ensino-aprendizagem e criação em Dança com crianças no ambiente da escola pública. Essa questão é relevante no Brasil pela histórica falta de oportunidades de acesso de jovens ao desenvolvimento educacional na Arte da Dança na escola, tanto pelas imensas desigualdades sociais do país e a elitização de muitos dos processos de ensino desta Arte, como pela carência de investimentos em recursos que garantam a qualidade do ensino-aprendizagem da Dança nesse ambiente. Dessa forma, importa refletir sobre estratégias que colaborem para a formação de cultura de valorização dos diferentes tipos de conhecimento no ambiente escolar, incluindo o conhecimento em Arte/Dança.
2 DIÁLOGOS ENTRE NEUROEDUCAÇÃO E O CORPO QUE DANÇA NA INFÂNCIA
A Neuroeducação é uma área de atuação e pesquisa que busca usar os conhecimentos das Neurociências Cognitivas e da Psicologia, a fim de pontuar estratégias de ensino-aprendizagem para a área da Educação (Damásio, 2011; Oliveira, 2011; Lent, 2019; Costa, 2023). O aprofundamento da compreensão dos mecanismos de aprendizagem e produção de conhecimento por meio da Neuroeducação indica que a Educação no século XXI deve abarcar as demandas de adaptabilidade para a permanência das espécies vivas (Santos; Sousa, 2016; Santos et. al. 2023), não apenas no que se refere aos modos de lidar com a quantidade e velocidade de mudanças informacionais e tecnológicas, mas também, para identificar movimentos de transformação da consciência, que têm gerado demandas globais por novas práticas socioambientais no atual momento da humanidade (Marins, 2019).
As demandas globais atuais nos obrigam a olhar para o movimento de transformação que surge em diferentes países do mundo, a partir da percepção de que a sobrevivência dos seres vivos e do planeta depende de uma Educação capaz de gerar mudanças rápidas de atitude na direção de práticas solidárias, integradas e sustentáveis (Morin, 2003; Scherer; Alves; Pereira, 2021). Assume-se assim, uma posição semelhante à defendida pelo relatório da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, como descrito por Delors (1996) e Werthein (2000).
Portanto, é urgente o desenvolvimento de estratégias que consolidem práticas educacionais pautadas na complexidade humana, nas singularidades dos indivíduos e dos contextos, sem fragmentar o pensamento. É importante, portanto, criar relações entre a Educação e os saberes inerentes às culturas e à Arte em sua diversidade, gerando conexões, mais que categorizações e hierarquizações de saberes (Morin, 2003).
Como afirma o autor, a mudança no sistema educacional é mais profunda e complexa que as reformas concernentes a cargas horárias, disposições de carteiras em salas de aula ou inclusão de recursos e aparatos tecnológicos nas suas práticas. É uma transformação de paradigma, de desenho de pensamento, de estratégias capazes de refletir uma visão transdisciplinar em todos os ambientes educacionais para promover a multiplicidade de tipos de conhecimento e modos de aprender particularmente entre as crianças.
Em meio a essas necessidades, a Neuroeducação reafirma atualmente, o que artistas e teóricos da Dança têm defendido ao longo do tempo, sobre a importância do corpo para a aprendizagem e a construção de conhecimento, considerando o pressuposto de que é no corpo que esse fenômeno ocorre, na interação entre seus subsistemas orgânicos e o ambiente, o que permite a elaboração dos fenômenos percebidos para a construção da realidade (Morin, 2003).
De acordo com Damásio (2011), há um conjunto de sistemas no cérebro humano dedicado ao processo de pensamento e orientado para um determinado fim, ao qual chamamos de raciocínio. O sistema dedicado à seleção de uma resposta é chamado de tomada de decisão, com uma ênfase especial no domínio pessoal e social. Esse mesmo conjunto de sistemas está envolvido nas emoções e nos sentimentos processados no corpo, particularmente sensíveis às múltiplas conexões neurais que se estabelecem durante a infância.
A característica não fragmentada do pensamento e do sentimento humano, indica que sistemas corporais não trabalham separadamente, ou em momentos distintos, mas estão em funcionamento simultâneo para produzirem inferências sobre si e o mundo por meio de memórias e previsões sensoriais que caracterizam a reciprocidade entre percepção e ação do corpo. Portanto, a complexidade das interconexões neurocerebrais necessita da dinamicidade intrínseca aos ajustes, em tempo real, na organização dos subsistemas do corpo para atender às demandas do que é percebido no ambiente Damásio, (2011). Não é possível, dessa forma, reduzir qualquer evento de mudança de comportamento corporal a um acontecimento linear que dicotomiza ou hierarquiza processos de aprendizagem, modos de aprender ou tipos de conhecimento.
Esse entendimento é coincidente com a noção de que a aprendizagem é um fenômeno de adaptabilidade a mudanças, no qual a instabilidade e a incerteza fazem parte de seu processo (Machado; Sidler, 2012). Ainda em consonância com esse pensamento, destaca-se que a aprendizagem ocorre por meio de encontros de diferenciação mútua, nos quais assume-se a relevância da invenção (Kastrup, 2001). É um processo contínuo que demanda criação e auto-organização, instaurado pela instabilidade, estranhamento e problematização ao longo da vida, com especial potencial de desenvolvimento na infância.
Sob essa perspectiva, o filósofo e mestre da Educação, Paulo Freire (1996), assumiu em sua obra a importância de uma Educação problematizadora, conceituando o ato de problematizar como a ação de pensar junto . Para o autor, uma Educação emancipatória só seria possível por meio do desenvolvimento da capacidade de problematizar as relações entre as pessoas e suas singularidades, assim como de criticar a realidade. Corroborando essa abordagem, a artista-docente da Dança, Izabel Marques (2014), que atuou na equipe de Paulo Freire na estruturação de currículos da área da Dança para o estado de São Paulo, destaca que uma das lições do educador está na importância dada em sua obra às relações humanas e políticas, como promotoras de vínculo, significado e sentido à Educação.
Corroborando este pensamento, a Neurociência Cognitiva assume que a aprendizagem é um fenômeno que vai além do processamento de informações entre o que é interno e externo ao organismo (Damásio, 2011; 2012; 2020). Ela se dá na interação entre os seres vivos em uma interpretação conjunta dos fenômenos que constroem e caracterizam a consciência de si mesmo, ou o corpo propriamente dito, que se estabelece em três fases de desenvolvimento.
A primeira fase, chamada de proto-eu, seria a elaboração neural de aspectos estáveis do organismo, responsável pelos sentimentos primordiais, que confere a noção basal de que o corpo está vivo. Na segunda fase, o proto-eu sofre alterações por meio das relações com o ambiente, formando padrões recorrentes organizados em mapas neurais que constituem a representação do modo como o organismo é modificado em interação com os objetos. Já na terceira fase, ocorrem padrões de coerência em um estado mais duradouro de criação de subjetividades do corpo, habilitando-o para a constituição da consciência e das memórias, influenciadas pela imaginação e pela não dissociação entre razão-emoção (Damásio, 2011).
Na abordagem do autor, a elaboração da percepção neuro-sensório-motora ao longo da vida, cria o que é chamado de mapas somáticos, altamente dinâmicos e construídos a partir da comunicação ininterrupta do cérebro com o corpo propriamente dito, caracterizando o eu autobiográfico. Portanto, a construção dos mapas somáticos está intimamente ligada à percepção de si e, à medida que percebemos a nós mesmos e o ambiente, os mapas se alteram ativando mecanismos próprios de construção de memórias e de representações dispositivas que criam projeções para novas realidades e ampliam modos de conhecê-la (Damásio, 2020).
Durante toda a vida mas, principalmente durante a infância, esses mapas são cartografados no córtex cerebral se alterando, expandindo e se detalhando. Esse movimento caracteriza o fenômeno da aprendizagem. Assim, há na infância uma pré-disposição orgânica para a dinamicidade, a instabilidade, a incerteza e a mudança, altamente relacionadas com o fenômeno da plasticidade neural (Pereira, 2017).
A neuroplasticidade, ou plasticidade neural, é descrita como a capacidade que nosso aparato neural tem – em especial os neurônios – de mudar, tanto no sentido adaptativo como também quimicamente e estruturalmente (Pereira, 2017; Costa, 2023). Esse conceito alterou a ideia de hierarquia e rigidez da especificidade funcional neurocerebral, substituída pela noção de complexidade integradora entre razão-emoção, presente nas modulações orgânicas necessárias para a aprendizagem e criação de novos conhecimentos.
A noção de neuroplasticidade reforça a ideia de que aprendizagem não é um processo de estabilidade mas, de adaptabilidade dinâmica, principalmente na infância. Esses entendimentos apontam caminhos para aproximações entre relações próprias do funcionamento natural de nosso organismo, como espécie humana, e a noção de interdependência dos processos de ensino-aprendizagem e criação, fortemente estimuladas por meio do desenvolvimento do conhecimento artístico.
Como ressalta Vieira (2007), a permanência do ser vivo é garantida pela criação e pela dinamicidade da aprendizagem nas diversas maneiras de adaptação do corpo ao ambiente. Assumindo-se tal pressuposto, é necessário indagar quais estratégias e procedimentos pedagógicos seriam coerentes para potencializar o ensino-aprendizagem da Arte da Dança para crianças em ambiente escolar?
Considerando que o reconhecimento das necessidades próprias de um sistema vivo se dá no diálogo com as diferenças, ou seja, em um processo de compartilhamento e convivência na alteridade (Greiner, 2017; Johann, 2021), podemos dizer que um ambiente que oportuniza procedimentos de criação, a partir do reconhecimento das singularidades individuais, pode ser um campo fértil para que estratégias de adaptação cognitiva emerjam de modo mais efetivo, quando comparadas à convivência subserviente de corpos que se adaptam a modelos preestabelecidos de comportamentos, ou a demandas de resolução de problemas dados. Nessa perspectiva, procedimentos pedagógicos de dança que estabeleçam mediações construídas a partir de estratégias de problematização, previsão e invenção da realidade, indicam possibilidades de desenvolvimento humano por meio do conhecimento artístico (Porpino, 2018).
Processos de ensino-aprendizagem e criação em Dança podem ser integradores de saberes individuais e coletivos em um movimento transdisciplinar, no qual é possível explorar a complexidade do corpo/pensamento articulados aos diferentes saberes. Nessa articulação, a transdisciplinaridade é assumida como um conceito de oposição à fragmentação disciplinar do conhecimento. Ela diz respeito a um modo de conhecer não hierarquizado, cronológico e linear, no qual assume-se que todos os tipos de conhecimentos e modos de conhecer possuem relação interdependente e são indispensáveis para o desenvolvimento humano (Santos; Sousa, 2020; Noronha; Zanetti, 2024).
Assim, pode-se dizer que a Arte/Dança é em si uma transdisciplina. Ela dialoga com diversas áreas de conhecimento em seus conteúdos específicos e permite uma visão complexa de ensino-aprendizagem-criação. Por esse motivo, acredita-se que ela seja uma potência de subversão de visões mecanicistas e lineares de construção de conhecimento, ainda vigentes em práticas estabelecidas culturalmente no ambiente escolar.
É importante destacar que ambientes coletivos, como o escolar, são formados por indivíduos distintos, que aprendem de variadas formas e constroem seus próprios conhecimentos ao se relacionarem entre si e com o meio. O fazer artístico da Dança fomenta esse comportamento relacional e abre margem para a discussão sobre a importância do ensino desta Arte na escola pública, diante da necessidade de diminuir as distâncias entre os sistemas educacionais vigentes e as demandas do século XXI.
Apesar de todas as evidências, de acordo com Marques (2014) e Noronha; Zanetti, (2024), o ensino da Dança para crianças no ambiente escolar público ainda se encontra restrito, por vezes sujeito a modelos mecanicistas de supervalorização de conhecimentos pautados em sistemas de causa e efeito, na supremacia da racionalidade sobre a emoção e no uso prioritário de conhecimento científico e discursivo em detrimento do conhecimento tácito, vinculado à subjetividade. Nesse contexto, a Arte/Dança culturalmente tem sido relegada a um saber de segundo plano, uma espécie de luxo intelectual.
O tradicional desenho de pensamento disciplinar e hierarquizado em áreas de conhecimento não explora a complexidade inerente ao processo de ensino- aprendizagem-criação demandada para a Educação do século XXI e alimenta a defasagem de sistemas educacionais, em crise pela própria dificuldade de adaptação a novas realidades. Afinal, como destaca Morin (2003), o processo de aprendizagem não é adaptar-se a um meio ambiente dado, a um meio físico absoluto, mas pressupõe a sua própria criação. Portanto, estratégias de ensino que possibilitem uma Educação complexa para crianças é o desafio que move a construção de procedimentos de ensino-aprendizagem-criação da Arte/Dança no ambiente da escola pública.
Inúmeras abordagens pedagógicas têm dialogado com a noção sistêmica de ensino-aprendizagem- criação artística, entre elas, a noção de Pedagogia Performativa. De acordo com Icle (2017), uma concepção pedagógica performativa assume o inacabamento, próprio da performatividade, como pensamento de base para ensinar-aprender-criar. Outra abordagem que reforça um pensamento sistêmico de ensino-aprendizagem articulado com a criação é o conceito de Aprendizagem Inventiva, proposto por Kastrup (2001). Nessa abordagem assume-se que toda aprendizagem inventiva é crítica, no sentido de que concerne aos limites e envolve sua transposição, impedindo o sujeito de continuar em estado de acomodação. Essa visão considera a aprendizagem não como um fenômeno restrito à recognição, mas de adaptabilidade cognitiva decorrente da invenção nos processos de aprender.
Observa-se que os conceitos de Pedagogia Performativa de Aprendizagem Inventiva bem como, as propostas de problematização do contexto individual e coletivo para o desenvolvimento da Dança no ambiente escolar, reforçam a centralidade do corpo para a Educação do século XXI, também enfatizada pela Neurociência Cognitiva, Psicologia e pela Neuroeducação. Portanto, parece ser necessário aprofundar a discussão sobre as lógicas de ensino da Dança para crianças no ambiente escolar, por vezes sujeita a sistemas educacionais estáticos, possibilitando um pensamento integrador e complexo.
Nesse sentido, a relação entre alteridade e processos criativos estabelecidos no corpo indica caminhos de reflexão importantes para a Educação em Dança, na medida em que busca atentar para a valorização das diferenças entre pessoas e conhecimentos. Ao não homogeneizar as pessoas mas, ao contrário, ao friccionar suas diferenças é que as singularidades são validadas na criação artística (Greiner, 2017). Surgem daí indicativos da necessária construção de estratégias pedagógicas que colaborem para a necessária expansão da percepção de realidade.
O desenho de pensamento sobre Arte/Dança que culturalmente é praticado em ambientes educacionais formais, em sua maioria, não atende às demandas da Educação na contemporaneidade. Apesar da Base Nacional Comum Curricular apontar diretrizes para o ensino da Arte na educação formal e garantir a inserção da Dança entre as quatro linguagens da Arte (Brasil, 2024), sua prática ainda é experiência pontual nas escolas públicas brasileiras.
Esse fato implica no desenvolvimento de conhecimento artístico frequentemente negligenciado, a não ser pelas brechas criadas pela presença de artistas-docentes convictos do papel transgressor da Dança no ambiente escolar. Esses indivíduos estão construindo cultura em Arte/Dança, à revelia da rigidez dos sistemas educacionais, tensionando acessos a um pensamento integrador que contagia o próprio sistema e indica caminhos para a necessária mudança de desenho de pensamento capaz de se aproximar das demandas da Educação do século XXI.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao aproximarmos a Dança de abordagens de ensino-aprendizagem defendidas pelo campo de estudos da Neurociência Cognitiva e da Psicologia, articuladas à recente área da Neuroeducação, verificamos o atual fortalecimento das contribuições da Arte/Dança para a criação de um sistema de ensino complexo, integrador, alinhado às demandas da atualidade para a Educação.
A literatura sobre o tema, assim como, nossa própria experiência pedagógica no contexto da educação pública, permite reconhecer que as brechas produzidas por artistas-docentes da Dança que atuam com crianças no ambiente escolar, embora ainda em presença quantitativamente pequena, estão trabalhando para mover a prática desta Arte do estado de luxo intelectual para o de potencial de conhecimento humano em sua diversidade.
Essas ações pedagógicas em Dança são ainda reforçadas por abordagens neurocientíficas que evidenciam a centralidade do corpo e da criação durante o período da infância como um fator crítico para a construção da capacidade de lidarmos com a coexistência de fatores de estabilidade e instabilidade, necessária à própria sobrevivência da espécie humanos diante da velocidade das mudanças verificadas no presente e estimadas para o futuro.
A atual crise dos sistemas educacionais lança novos olhares em torno dos parâmetros e lógicas que os sustentaram até o momento e evidenciam a urgência de reorientação da inflexibilidade de sua própria estrutura. É necessário rever a permanência de modelos de escola que por séculos vem negligenciando a Arte e o corpo em sua capacidade de produção de saberes (Marques, 2014; Noronha; Zanetti, 2024).
Construir estratégias para desorganizar tais estruturas, por meio de um olhar cuidadoso para a importância da Arte da Dança na escola pública, parece ser um caminho concreto para avançarmos nessa direção. Nesse contexto, o investimento no compromisso de aprofundar a aproximação entre a Dança e a Neuroeducação parece ser, por si só, uma estratégia de ampliação dos modos de criar, ensinar e aprender Dança no ambiente escolar.
A Educação do século XXI demanda uma consciência complexificada do processo de ensino-aprendizagem-criação com crianças, considerando os múltiplos tipos de conhecimento e formas de conhecer próprias dos seres humanos. É necessário, portanto, garantir a permanência e a ampliação de espaços de efetivação desse potencial de desenvolvimento humano no ambiente escolar na direção da valorização do conhecimento artístico como inerente a um pensamento contemporâneo de Educação.
REFERÊNCIAS
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1 Discente do Programa de Pós-graduação Mestrado em Artes da Dança da Universidade Estadual do Paraná, Campus Curitiba II, e-mail: bellamartinsheker23@gmail.com
2 Egressa do Curso Superior de Dança da Universidade Estadual do Paraná, Campus Curitiba II, e-mail: rafaela.nogueira.45@estudante.unespr.edu.br
3 Docente do Programa de Pós-graduação Mestrado Profissional em Artes da Universidade Estadual do Paraná, Campus Curitiba II. Doutora em Comportamento Motor (UFPR), e-mail: andrea.serio@unespar.edu.br