ARTE CIBORGUE: O OBJETO COMO DISPOSITIVO DE CRIAÇÃO DA OBRA

CYBORG ART: THE OBJECT AS A DEVICE FOR CREATING THE WORK

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12786489


Julio Constantino Campos Maciel1


RESUMO

A presente pesquisa se propõe a pensar na desestabilização das hierarquias entre o objeto e o corpo durante o processo de criação da cena. Para tanto, interconecta-se os estudos de Erin Manning, sobre o gesto menor, aos da pesquisadora Amabilis de Jesus da Silva, sobre figurino penetrante, entendendo que ambos partem do pressuposto do objeto como um propulsor da ação. E ambos observam esta relação de jogo entre o objeto e o corpo como desencadeadora de devires, podendo pairar nesta relação o próprio acontecimento artístico. Do acontecimento em si, as autoras refletem sobre o duracional, ou seja, o objeto que, sendo resultado de técnicas, portanto do tempo histórico, passa a também ser a-histórico ao ser notado em sua possibilidade objetal, mostrando uma dobra do tempo. Explorado este contato nas pesquisas das autoras, estende-se tais premissas para a arte ciborgue com o objetivo de compreender como se transmutam as relações com o objeto/aparato tecnológico, o devir e a relação com o tempo.

Palavras-chave: Arte ciborgue. Objeto. Processos de criação. Artes da cena.

ABSTRACT

This research proposes to think about the destabilization of hierarchies between the object and the body during the scene creation process. To this end, Erin Manning’s studies, on the minor gesture, are interconnected with those of researcher Amabilis de Jesus da Silva, on penetrating costumes, understanding that both start from the assumption of the object as a driver of action. And both observe this playful relationship between the object and the body as a trigger for becomings, with the artistic event itself being able to hover in this relationship. Regarding the event itself, the authors reflect on the durational, that is, the object that, being the result of techniques, therefore of historical time, also becomes ahistorical when noticed in its object possibility, showing a folding of time. Exploring this contact in the authors’ research, these premises are extended to cyborg art with the aim of understanding how relationships with the technological object/apparatus, becoming and the relationship with time are transmuted.

Key-words: Cyborg art. Object. Creation processes. Performing arts.

1 INTRODUÇÃO

Erin Manning (2018, p. 260) inicia seu texto Artimanhas: coletividades emergentes e processos de individuação refletindo sobre as definições de arte e o modo como o “objeto ainda desempenha um papel chave nas práticas artísticas, restringindo-as a uma configuração passiva-ativa que segrega o observador do realizador”. A partir disso, a autora propõe pensar numa definição que começaria por “o que mais pode a arte”. Tal propósito requer deslocar a função do objeto para pensá-lo não como um fim, senão como um propulsor, sendo que assim desloca-se também o entendimento de arte, voltando-se para o processo em si mesmo, nas suas possibilidades de devir e nos processos operativos que contrabalançam a expressão e o próprio mundo.

A sugestão da autora, de tomar a arte por um jeito (way), empresta de Bergson a definição de intuição como sendo a arte. “De um lado, a intuição aciona um processo, de outro, agita, no entremear da experiência, a passagem decisiva que ativa uma abertura produtiva nas dobras duracionais do tempo” (Manning, 2018, p. 260).

A correlação que se propõe entre os escritos de Manning e a tese da pesquisadora Amabilis de Jesus da Silva, intitulada Figurino-penetrante: um estudo da desestabilização das hierarquias em cena, paira exatamente na possibilidade de pensar o objeto como um dispositivo que impulsiona a criação, fazendo observar o instante mesmo em que ocorrem as experiências. Silva analisa obras nas quais as materialidades do figurino penetram, marchetam ou perfuram o corpo, obrigando-o a lidar com estados de presença. Entre as obras constam figurinos feitos por peças de gelo, figurinos endurecidos pelo sal, uso de pregadores de grampo de roupa em partes sensíveis do corpo, entre outros.

A tese da pesquisadora também serve, aqui, como um elo com as pesquisas de artistas da cyborg art, cujos implantes colocam o próprio corpo como obra, assim como em estado de arte duracional. No entanto, os modos de concepção do processo de criação e da relação com o público diferem entre tais artistas. São estas diferenças que serão observadas a partir do entrelaçamento entre os estudos de Manning e de Silva.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA OU REVISÃO DA LITERATURA

O deslocamento da definição de arte proposto por Erin Manning para abarcar o processo criativo como sendo em si mesmo o acontecimento artístico, tendo no objeto um impulsionador do ato criativo, busca, principalmente, ressaltar a relação com o devir. Desta forma, o momento no qual a criação está sendo realizada pode ganhar contorno de obra artística. E nesse momento da criação “não se trata ainda de um objeto, uma forma, de um conteúdo, mas de processualidades” (Manning, 2018, p. 260).

Dialogando com Deleuze, a autora reflete que a processualidade, em que a intuição é ativada, ainda assim, não é por si o tempo e duração, mas o movimento que faz “afirmar e reconhecer imediatamente a existência de outras durações acima ou abaixo de nós” (Deleuze, apud Manning, 2018, p. 261). Estes instantes guardam em si a perspectiva do futuro, coadunando-o ao presente.

Para que possa notar as conexões pretendidas entre os estudos das duas pesquisadoras torna-se necessário esclarecer o modo como a tese de Silva está estruturada. Com o intuito de discutir uma possível desestabilização das hierarquias em cena, uma das proposições da autora é desestabilizar a própria função do figurino em cena. Habitualmente entendido como um sinalizador social, ele passa a ser pensado como um objeto de jogo no processo de criação.

Para que isso ocorra é necessário também reavaliar as relações entre os profissionais da cena. É comum que os diretores se reúnam, inicialmente, apenas com os atores, atrizes e os profissionais que trabalham com procedimentos do corpo, enquanto a equipe de criação (figurinistas, cenógrafos, iluminadores, sonoplastas, maquiadores) passa a integrar o processo mais tardiamente, quando as cenas já estão fixadas e quase completas.

Desta etapa, Silva coloca em debate que à equipe da criação cabe a finalização, mas cabe também a responsabilidade pela visualidade da cena, pelo seu design. Entendendo como um paradoxo, pois o design da cena pode implicar em modificações nas proposições iniciais dos atores e atrizes, a pesquisadora traça uma conversa com os escritos do encenador Peter Brook em O teatro e seu espaço. Segundo a autora:

Neste livro, o autor manifesta suas inquietações sobre a forma (linhas, cores, volume) dos elementos do figurino e cenografia como definidores da estética (design) da encenação, de modo a incorrer-se no perigo de engessamento de construções ainda em processo. Inquietações procedentes que geram a discussão em torno da materialidade da cena e atentam para a combinação de fatores identificadores das opções escolhidas, lembrando-se que estes dois elementos têm poder decisivo sobre o design do espetáculo (SILVA, 2010, p. 128)

Esta discussão, ainda circunscrita no âmbito do processo de criação para a obtenção de um resultado final, já se encaminha, na tese da pesquisadora, para os apontamentos sobre o entendimento das materialidades como materiais/matérias que ajudam a fundamentar e estruturar a cena. Antes, contudo, a autora busca argumentação nos estudos de Niels Bohm sobre a constituição de átomos e moléculas para pensar na forma em formação. Trazendo um excerto dos estudos de Bohm, a autora esclarece:

Desafortunadamente, na sua concepção moderna, a palavra “formal” tende a se referir a uma forma externa de pouca significância (isto é, um “vestido formal” ou uma mera formalidade). Entretanto, na filosofia grega da Antiguidade, a palavra forma significava, primeiramente, uma atividade formando-se interiormente, que é a causa do crescimento das coisas, do desenvolvimento e diferenciação de várias formas essenciais (BOHM, apud SILVA, 2010, p. 130).

É sob esta perspectiva, da forma em formação, que Silva observa o processo de criação do figurino no sentido comumente pensado, com sua função de sinalizador social, sendo então necessário que comece a ser elaborado desde o início de qualquer proposição. Porém, juntamente com isso, a autora já passa a fundamentar a tese de que levada para o processo inicial e entendida como dispositivo de jogo, a materialidade do figurino pode ser posta a serviço do corpo-atuante, como objeto composicional. Não se trata de colocar o figurino como uma forma (design) anteriormente à criação da cena, mas de percebê-lo para além do significado, como um dos objetos compartilhados no processo de criação.

Contudo, ao longo da tese, Silva traça um paralelo com a história da filosofia ocidental, tendo por recorte o binômio natural/artificial. Amparada pela pergunta de Santo Agostinho (se uma coisa existe, qual a sua natureza e qual a sua qualidade?), a autora alcança em Spinoza uma resposta temporária: há a Natureza Naturante (que gera outras matérias) e Natureza Naturada (todas as demais matérias). Nesse sentido, há um entrecruzamento entre filosofia e o catolicismo.

Nesse paralelo com a história da filosofia e do catolicismo, aos poucos ficam claras as intenções de fazer notar a impossibilidade de uma resposta afirmativa e assertiva sobre a existência de um corpo natural. E é desse paralelo que também é feito o entrecruzamento com os estudos do ciborgue, ressaltando que sobre a natureza é viável pensar em níveis e desdobramentos.

Ainda a partir desse paralelo, Silva vai recolhendo suas argumentações para pensar no figurino como um objeto equivalente ao corpo, para destacar a relação entre os dois, tendo em vista a bilateralidade.

Em seu texto Nós ciborgues, Fátima Régis, cercada por teóricos especialistas na área, dá como certo de que somos ciborgues em algum nível, e não se trata de implantes. A autora conclui: “A diferença entre homens, animais e máquinas é diferença de complexidade, não de natureza” (RÉGIS, 2023, 124).

Silva, de alguma maneira, tanto põe em evidência esta diferença de complexidade como também, por vezes, até mesmo a relativiza. As análises do figurino como um objeto de jogo iniciam mais brandamente, como, por exemplo, quando Silva (2010, p. 130) cita a performance Transferência, de Michel Groisman, na qual o artista tem velas acopladas em várias partes de seu corpo – constituindo-se num figurino – e a ação gira em torno da tentativa de acendê-las ou apagá-las.

Mas nas análises seguintes, os figurinos, chamado por Silva de penetrantes, estão numa esfera mais radical, pois se voltam o figurino/objeto que auxilia na presentificação do corpo em cena. Em sua concepção, um dos modos de presentificação pode se dar pelos estados alterados provocados por formas de penetração do figurino/objeto e com os quais o/a atuante tem que lidar no ato do acontecimento.

Um dos exemplos trazidos por Silva (2010, p. 144) é do figurino de gelo proposto pelo artista Leonardo Fressato – à época estudante do curso de Bacharelado em Artes Cênicas da UNESPAR /FAP – numa das proposições feitas pela autora e pelo professor Giancarlo Martins em sala de aula.

Segundo Silva o objetivo era que os/as estudantes apresentassem uma partitura corporal como exercício da disciplina de Composição Coreográfica, ministrada pelo professor Martins, e ao mesmo tempo incluíssem o figurino/objeto como uma interferência no corpo ou para o corpo. Fressato fez sua partitura calçando tamancos de gelo. Contudo, ainda segundo a autora, ao ter que lidar com as alternâncias de temperatura e com o derretimento da matéria do calçado, acrescentava-se tanto para ele quanto para o público a relação com a matéria gelo.

E da matéria gelo, a relação se dava com o visível e o invisível. O visível, a forma se desmanchando e o corpo do atuante lidando com a desestabilidade, reconformando o seu corpo, a sua partitura. Do invisível, o encontro da matéria gelo com os órgãos do corpo, causando hipotermia e interferindo nas condições metabólicas do corpo. Embora o público não pudesse ver a penetração do gelo no corpo, a ação causava uma reação sensorial de desconforto, por ser imaginada.

Esta é outra das hierarquias que a autora se dispõe a tratar: as estabelecidas entre o visível e o invisível. Observados conjuntamente às hierarquias entre o natural e o artificial, o visível e invisível são ponderados conforme suas relações com os estatutos da fé e da ciência. Nesta proposição de Fressato, a discussão do visível e do invisível se redimensiona em favor das qualidades da matéria, não do contexto histórico. O gelo gela, machuca, queima, paralisa os órgãos, muda o metabolismo.

Em outras análises, as aproximações com os estudos do ciborgue ficam mais salientes. No apanhado que perpassa os estudos da body modification, da body building e dos modernos-primitivos são apontados os modos nos quais o figurino/objeto penetra e modifica o corpo, interferindo nos processos de subjetivação. De Fakir Mustafar, o artista da body art que usava um corsete que deixava sua cintura com dezenove centímetros e suas práticas de suspensão por ganchos; à body hactivim, movimento que deposita nas mudanças corporais o lema do controle do corpo e contra o controle do Estado; aos chips de localização (GPS) implantados no corpo como prevenção contra sequestro; a tese termina citando os novos descartianos que fazem apologia à um adeus ao corpo, sugerindo que a internet se torne uma grande rede de mentes conectadas.

Interessa para a pesquisa da autora não somente as modificações do corpo, mas as estratégias com as quais estão relacionadas e as maneiras como se aproximam de práticas artísticas que envolvem estados de presença. A ação de suspensão (por ganchos) é pormenorizada a partir de uma entrevista de Mustafar, na qual o artista comenta que seu objetivo era o de “entrar em estados de consciência e descobrir a verdadeira natureza de si mesmo” (MUSTAFAR, apud SILVA, 2010, p. 60) e sobre exercícios de respiração para abrir vagas no corpo.

Conforme os escritos vão avançando, torna-se claro o intuito de observar o figurino/objeto que ao penetrar o corpo cria também se põe como uma pedagogia dos sentidos. O sentido é compreendido não como significado, mas como ativação dos órgãos, das percepções sensoriais. Deste modo, ativando a sensorialidade do objeto, lida-se com a sua complexidade, simultaneamente à complexidade do corpo humano. Neste encontro entre matérias há uma desestabilização de hierarquias.

No decorrer da tese diversas vezes a autora explica que suas análises não pretendem ser impositivas, mas tem por intenção chamar a atenção de outras formas de entender o figurino/objeto na sua relação com os processos de criação: “Certamente a defesa da tese que o figurino pode ser um topos para a criação não pretende se fazer uma regra, uma instituição, senão ampliar o debate sobre os processos, e alternativas pouco visitadas”. (SILVA, 2010, p. 129).

A autora propõe duas formas de entendimento do figurino/objeto como impulsionador da ação: a primeira, na qual o figurino/objeto desencadeia a ação, mas não necessariamente se mantém no resultado final. A segunda, na qual o próprio campo de experimento encerra o fazer artístico.

É nesse ponto que há uma confluência dos estudos de Silva com os de Manning, ao analisar performances e cenas nas quais o figurino/objeto penetrante provoca determinadas situações e que se tornam a própria produção artística. Quando o figurino/objeto está em jogo com o corpo e fazendo notar os seus processos internos de reorganização de si mesmo.

Manning pensa nas dobras duracionais do tempo e acrescenta:

A experiência é (em) movimento. Tudo aquilo que se fixa – um objeto, uma forma, um ser – é uma abstração (na noção mais comum do termo) da experiência. Essas abstrações não são imagens do passado (o passado não pode ser distinguido do in-ato do futuro-do-presente), mas  extratos  a-históricos  de  um  campo  duracional  em constituição. (Manning, 2018, p. 261)

A relação duracional igualmente está implícita na tese de Silva quando a autora se volta para as relações com o campo da física quântica, por seu interesse na atividade formando-se interiormente, conforme o excerto de Bohm. E para destacar esse tempo da duração da formação recorre à experiência sensorial causada pela penetração do figurino/objeto no corpo atuante. Enquanto Manning (2018) reflete sobre a condição da vida do objeto:

Este é o paradoxo: para que uma teoria do objeto exista o objeto tem que ser concebido como exterior ao tempo, colocado para lá da experiência, imutável. Por outro lado, na experiência, o que chamamos de objeto é sempre, em algum grau, um quase, em processo, em movimento (p. 262).

Manning cita Whitehead para explicar a intensidade objetal de um determinado objeto, ou seja, no caso de uma cadeira seria o campo relacional da sentabilidade, sendo que a “forma é menos o fim do que o conduíte” (MANNING, 2018, p. 262). Silva analisa a intensidade objetal no momento de encontro entre as matérias do corpo e do objeto. Um exemplo é a proposição de Fressato, na qual o gelo se exibe nas suas qualidades materiais e objetais: a matéria gelo é gelante.

Sobre a relação com o duracional, o tempo em que decorre a ação e na qual o próprio tempo é redimensionado, Menning argumenta:

A arte pode fazer sensível o mais-que do objeto, em virtude de sua capacidade de trazer à expressão o tempo acontecimental.  Essa habilidade com a arte  do  tempo envolve a ativação da diferenciação de temporalidades. No acontecimento, essa ativação da dinâmica diferencial cria, entre o que foi e o que será, uma memória do futuro. (MANNING, 2018, p.262)

Embora nos estudos de Silva não haja menção à relação com tempo, o modo de entender as relações entre o corpo e o objeto como um acontecimento, igualmente recaem neste tempo acontecimental da qual fala Manning.

Outro ponto de contato entre os dois estudos respeitam ao que Manning chama de jeitinho (minor gesture). Seria através do jeitinho que o presente da experiência se coloca no seu limite, forçando o instante do agora. “Agir é ativar tanto quanto atualizar. É tornar sensível a clivagem entre as dobras virtuais da duração e  as  aberturas  dos  atuais  presentes  como  qualidades  de  passagens – processualidade” (MANNING, 2023, p. 263).

Silva aposta neste instante de contato entre as matérias como um ativador para os estados de presença do corpo. E são também as movências entre estes estados que lidam com o duracional.

No entanto, o desenvolvimento dos estudos de Manning, mais adiante, passa a centrar na discussão dos procedimentos de criação que incluem a coletividade, tendo no objeto um lugar que pode confluir ou aflorar a individuação. Na maioria dos exemplos citados por Silva os processos criativos são de montagens e performances solos. Embora compreenda-se que não há impedimentos para adaptações com processos com mais pessoas, esta diferença também é oportuna para a segunda correlação feita neste trabalho: as práticas de artistas da cyborg art e os modos de compreender o corpo como obra/objeto e da relação do corpo com o objeto, incluindo ou não a participação do público.

2.1 Cyborg Art

A aproximação da tese de Silva com os estudos do ciborgue se dá tanto pela panorâmica iniciada com a body modification, a body building e os modernos-primitivos, quanto pelas análises das obras de artistas que pesquisam aparatos tecnológicos invasivos, a exemplo de Stelarc. Sobre as práticas deste artista, Silva detém-se no implante de um braço biônico que conectado à internet pode receber o comando dos internautas, e o implante de uma orelha de silicone em seu antebraço, ambas as obras parte constituinte de seu projeto de redesenho do corpo humano através da exploração de arquiteturas anatômicas alternativas.

Mantendo sempre por recorte a perspectiva do figurino penetrante, Silva analisa, numa primeira instância a parte de fora do corpo. Da parte de fora há uma dupla imagem que não se desvincula. Uma delas é o aparato tecnológico como parte da silhueta, formando um único corpo. A outra, são das imagens separadas: corpo mais aparato. Neste caso, o aparato mantém o referencial de seu próprio universo.

Com relação à parte de dentro do corpo, aquilo que fica invisível, nas proposições ciborgues as mudanças de estado de presença podem ser ainda mais complexas a depender do tipo de aparato. No caso da obra Terceiro Braço, de Stelarc, como há a possibilidade de uma conexão com o público, via internet, e do recebimento de comandos, as mudanças de estados podem ter escalas amplas.

Na atualidade, vários artistas vêm se dedicando ao que ficou chamado de arte ciborgue. Diversos fatores podem ser apontados como importantes para o fortalecimento desta forma de expressão: as relações com os meios informáticos, os avanços nos procedimentos médicos, os engajamentos de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, principalmente da filosofia, em teorias advindas no esteio das discussões pós-humanistas. Dentre as correntes que mais têm se destacado pela grande produção de bibliografias, estão o Pós-humanismo, Transhumanismo e o Metahumanismo, conforme esclarece o filósofo alemão Stefan Lorenz Sorgner, em publicações como Philosophy of Posthuman Art e Postumanesimo, metaumanesimo, transumanesimo: como andare oltre l’umano. Sorgner vem acompanhando a disseminação de tais estudos em suas várias frentes, assim como tem se aproximado do campo artístico.

O movimento artístico mais conhecido, ou que ao menos ocupa boa parte da literatura especialista, é o grupo Cyborg Art, abrigado na Cyborg Foundation, criada pelos artistas e ativistas Moon Ribas e Neil Harbisson. Segundo o site da Cyborg Art, os projetos são voltados especificamente para a arte do corpo implantado. Com o auxílio de profissionais da medicina, do design, e outros, os  artistas  podem desenvolver seus implantes conforme as suas intenções, mas quase todos  buscam uma aproximação direta com a natureza e seus fenômenos.

A performer e artista da dança Moon Ribas, por exemplo, implantou um sensor sísmico nos pés que vibra em conjunto com uma rede mundial de sismógrafos. Conhecido como Seismic Sense, o implante tem por intenção aumentar o seus sentidos com o auxílio da tecnologia. Enquanto Neil Harbisson viu nos implantes uma redimensão da sua acromatopsia, que o impedia de identificar as cores.

Segundo Rebbeca Hippertt e Luciana Silveira (2019):

Neil, durante seu curso de Música, assistiu a uma palestra sobre cibernética, ministrada pelo cientista da Computação Adam Montandon em Dartington College of Arts, que logo despertou seu interesse. Após expor a sua condição fisiológica, ficou curioso quanto às possibilidades de extensão dos sentidos através de uma prótese e, assim, Neil iniciou um projeto com Adam Montandon e desenvolveram, em 2003. o dispositivo eletrônico chamado de eyeborg, fusão das palavras “eye” (olho) e “cyborg” (organismo cibernético) (p. 06).

Se Moon Ribas utiliza-se de seu implante como um recurso para os processos de criação em dança, gerando estímulos que exigem respostas imediatas, Harbisson tem por procedimento a pintura de quadros. Seu implante transforma a cor em sons decodificáveis para o artista. Assim, em suas criações há um processo de transposição da cor para o som e novamente do som para a cor.

Outro integrante da Cyborg Art que apostou nos implantes como meio de ampliação dos sentidos é Manel Muñoz, conhecido como Manel de Águas, artista ciborgue e transespécie que implantou em seu crânio barbatanas cibernéticas, chamadas de Whather Sense ou Barbatanas Meteorológicas, que permite que o artista ouça as mudanças na pressão atmosférica, temperatura e umidade por meio de implantes em cada lado de sua cabeça, conduzido pelo osso da têmpora no crânio. Em seu caso, o artista cria trilhas sonoras a partir do recolhimento dos sons ouvidos através dos implantes.

Uma distinção é feita pelos integrantes da fundação: eles se separam de alguns setores dos movimentos pós-humanistas de um modo geral, pois a inteligência para a criação desses sensores é humana e não artificial, como é o caso daquelas geradas por Inteligência Artificial, conforme a explicação dada no site da Fundação:

Se ampliamos nossos sentidos para perceber nosso Planeta de forma mais profunda, nosso comportamento e compreensão com ele provavelmente mudarão. Experimentamos o mundo através dos nossos sentidos, portanto, ao criar novos sentidos, nossa experiência da realidade muda e se aprofunda. Acreditamos que ao criar novos sentidos revelamos uma realidade que nossos sentidos naturais não nos permitem perceber. É por isso que não assinamos VR (realidade virtual) ou AR (realidade aumentada); e em vez disso apontamos para RR , realidade revelada.2 (2022, s/p)

Para o foco da discussão aqui proposta, duas questões se colocam: uma é da quebra de fronteiras entre arte e vida, uma vez que os implantes não são utilizados somente no ato da criação artística. Esta questão também se abre para o tempo duracional, aquele posto por Manning,  que não mais pode ser medido, pois extrapola o tempo da experiência. E a outra questão é que conforme o site da Cyborg Art, os artistas partem do princípio que suas artes acontecem dentro de seus próprios corpos e cada um deles é o seu único público de sua própria arte.

Seguindo de perto a perspectiva de Silva sobre figurinos/objetos penetrantes não seria difícil entender dois pontos como sendo ligados aos processos de produção artística. O primeiro seria, talvez, aquele no qual o artista passa a se relacionar com o implante, ainda que no seu cotidiano, pois há uma reconfiguração da ordem corporal – algo estranho ao corpo que se une a ele – e outra da ordem do cognitivo – mudanças na percepção. O segundo seria aquele no qual o artista se coloca em estado de performance, entendendo qualquer de suas atitudes como pertencentes ao jogo. E nesse sentido, o ato de lidar e focar nas informações vindas dos implantes propicia a relação com o devir. De qualquer modo, a pergunta que se faz é sobre o modo de relação com o público, dada a compreensão dos artistas de serem eles mesmos seus próprios públicos.

O artista-ativista não binário, não humano, polímata, artista de mídia transdiciplinar, performer e metaformador, ontohacker, metatecnólogo e curador, Jaime Del Val segue por um caminho diferente dos artistas da Cyborg Art. Os pressupostos de suas ações artísticas estão intimamente ligados aos preceitos do Metahumanismo, cujas bases são as redefinições de incorporação das tecnologias como um modo de desafiar os métodos de controle contemporâneos, sendo, então, necessária a redefinição das percepções e das noções de espaço.

Direcionadas à participação do público, seus estudos da arquitetura interativa, ambientes nômades, estruturas digitais amorfas, entre outros, colocam o próprio espaço como jogo, como campo relacional. A pesquisa técnica de ferramentas tecnológicas para novos tipos de mídias são pensadas em seu projeto para incentivar o individual no coletivo, em prol da diversidade.

Algumas vezes entendidos por Del Val (2019) como um vestível, estas proposições são montadas por estruturas flexinâmicas. Ao serem postas nos espaços as estruturas geram ligações sem uma forma determinada (amorfas) entre os corpos e os ambientes. O artista comenta sobre os pressupostos anticartesianos destes ambientes, cuja finalidade é criar um continuum.

Na estrutura intitulada Metagaming os participantes devem colocar sensores que se distribuem pelo corpo, sem controle manual. Os sensores se conectam aos módulos fixados no espaço, que são translúcidos, para assim expandir a autopercepção. Como num jogo de realidade aumentada, a estrutura em conjunção com os sensores corporais promovem comportamentos não controláveis ou previsíveis. O propósito está na complexidade da interação, que foge aos controles digitais. Ao comando do corpo há uma resposta do ambiente, e à esta resposta do ambiente deve haver novamente a resposta do corpo e assim sucessivamente. O objetivo de evitar as respostas condicionadas também é uma tentativa de lidar com o devir constante. E como os ambientes são ativados por vários participantes ao mesmo tempo, o processo relacional se dá tanto no plano individual quanto no plano coletivo, e sempre redimensionando também a relação entre o individual e o coletivo.

Numa aproximação com os estudos de Manning é possível destacar a proposição de que a relação com o tempo na arte dimensiona o mundo em sua contínua composição:

A arte do tempo, antes de virar-se imediatamente à resolução da forma, indaga como técnicas de relação viram um conduíte para o movimento relacional que excede a própria tomada  de  forma  a  qual  a  arte  frequentemente  perturba. Antes de estagnar-se no objeto, a arte como maneira pode explorar como as forças do ainda não (not-yet) co-compõem com o meio (milieu) no qual elas são modos ainda incipientes. (Manning, 2018, 267).

É possível perceber nas estruturas flexinâmicas de Del Val  como os aparatos tecnológicos se tornam conduíte do movimento relacional, e como os próprios aparatos promovem, por si mesmos, esta dobra do tempo de que fala Manning, por estarem ligados às formas de técnicas de sua época.

Por outro lado, as estruturas propostas por Del Val podem ser vistas quase como uma ilustração do que Silva fala sobre a forma em formação e a tentativa de capturar o próprio movimento desta forma se formando, e com ela também a captura dos devires.

Manning (2018) argumenta:

A arte investiga, nessa co-composição, as forças coletivas emergentes. A arte desenvolve técnicas para intuir como pode tornar-se a base para a criação de novas maneiras, novos jeitos de colaborar, humanos e não-humanos, materiais e imateriais (p. 267).

A autora evidencia como ao se perceber o objetal de um objeto põe-se em jogo toda relação de técnicas e tecnologias que ele encerra, ao tempo que também passa a se estabelecer como parte integrante da criação. E nesse sentido, as estruturas criadas por Del Val mostram estas articulações entre o corpo e o objeto, nas quais a interdependência garante a existência do próprio acontecimento.

Manning aprofunda sobre a interferência dos vários vetores no processo do devir, fortalecendo que a participação não encontre conduto apenas no humano:

O artístico também realiza seu trabalho sem interferência humana, ativando  campos  de  relação  que  são  escalas  mistas  de  ambientes  ou  ecologias  que podem  incluir  ou  não  o  humano,  mas  não  dependem  dele.  Como categorizar  como humano ou não-humano a exuberância de um efeito de luz, o jeito (way) que o ar se move  através  de  um  espaço,  ou  o  jeito  como  uma  obra  de  arte  captura  outra  no movimento do seu pensamento? (Manning, 2018, p. 277).

A partir destas reflexões de Manning é possível também reanalisar as obras de Moon Ribas, Manel Muñoz e Neil Harbisson buscando perceber os tantos vetores que atravessam os dispositivos acoplados aos seus corpos e o quanto cooptam da natureza ao redor para ampliar as sensibilidades dos artistas, mas também do público que toma contato com suas obras/corpos.

3 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo de uma interconexão entre os estudos de Manning e de Silva, primeiramente buscou-se pensar na quebra de hierarquia entre o corpo e o objeto propostas tanto em uma quanto em outra pesquisa. Uma vez desestabilizada a hierarquia, o objeto passa a ser entendido sob a perspectiva de sua potencialidade para o jogo. Isso propicia que este instante de jogo seja em si um acontecimento artístico e não somente um procedimento de preparação para a cena, pois nele ocorre a abertura para o devir.

Da tese de Silva, os estudos relativos aos diferentes tempos de participação dos profissionais da cena no processo de criação encaminham-se para pensar na forma em formação. Trata-se de uma medida contra os engessamentos que ocorrem principalmente em função de uma separação entre tais profissionais nas várias etapas da criação de uma obra.

Já os estudos de Manning teorizam sobre o tempo, tomando por aporte as reflexões de Bergson. E o tempo é redimensionado, em suas teorias, pela própria existência do objeto que encerra em si as técnicas e tecnologias, gerando uma sobreposição de tempo, ou a dobra, como posto pela autora.

Buscou-se observar, em contraponto aos estudos das autoras, as práticas voltadas para o campo da arte ciborgue, para perceber se de algum modo é possível pensar em correlações, visto que os objetos passam a ser entendidos, nesta arte, como sendo os aparatos tecnológicos. E se há correlações, quais são? As teorias das autoras podem ser aplicadas igualmente para esta arte?

No desenvolvimento desta reflexão percebeu-se que o acontecimal, conforme nomeado estudos de Manning, pode ser observado nas obras de artistas implantados de modo amplo. Se por um lado os aparatos/implantes se prolongam na relação com a vida, por momentos perdendo o contato com a arte, por outro, quando os artistas se colocam em estado de performance a própria vida passa a ser cooptada pela arte.

Mas são as proposições de Jaime Del Val que encontram aproximação maior com as várias premissas elencadas nos estudos das pesquisadoras, principalmente aquelas que se voltam para as relações entre o corpo e o ambiente de estruturas flexinâmicas, que geram um continuum de comandos e respostas que escapam aos controles digitais e às respostas condicionadas. E principalmente aquelas concebidas para a participação coletiva tanto fazem perceber os momentos de devir individual quanto do próprio grupo.


2Texto orginal: If we extend our senses to perceive our Planet in a deeper way, our behaviour and understanding towards it will probably change. We experience the world through our senses so by creating new senses our experience of reality changes, and gets deeper. We believe that by creating new senses we reveal a reality that our natural senses don’t allow us to perceive. That’s why we don’t subscribe to VR (virtual reality) or AR (augmented reality); and instead aim for RR, revealed reality. Disponível em: https://www.cyborgfoundation.com/.  (tradução livre).


REFERÊNCIAS

DEL VAL, Jaime. Neither Human nor Cyborg: I Am a Bitch and a Molecular Swarm. Proprioception, Body Intelligence and Microsexual Conviviality. In:  Journal of Posthuman Studies, 2019.

HARBISSON, Neil. Cosmic Senses: How the use of the internet as a sense, instead of the use of the internet as a tool, canallow us to extend our perception of nature and extend our senses to outer space. In: Neil Harbisson: A collection of essays. Cyborg Arts Limited, 2015.

Cyborg Art The art of creating your own senses. Cyborg Foundation, 2024. Disponível em: https://www.cyborgfoundation.com/

MANNING, Erin. Artimanhas: Coletividades emergentes e processos de individuação. Trad. André Fogliano e José Antonio R. Magalhães. In: Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia. n. 52, 2018.

RÉGIS, Fátima. Nós, ciborgues: tecnologias de informação e subjetividade humano-máquina / 2. ed. Curitiba: PUCPRESS, 2023.

SILVA, Amabilis de Jesus. Figurino-penetrante: um estudo sobre a desestabilização das hierarquias em cena. Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas: Salvador, 2010.


1Mestrando em Artes da Universidade Estadual do Paraná e-mail: julioconstantino.jc@gmail.com