ARQUIVO(S) E CIRCULAÇÃO DA COLUNA “IMAGENS”: CRÔNICAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE PUBLICADAS NO JORNAL “CORREIO DA MANHÔ

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7813298


Moema de Souza Esmeraldo1


Definir o objeto significa então definir as condições sob as quais
podemos falar, com base em certas regras que estabelecemos ou
que outros estabeleceram antes de nós.
Umberto Eco, Como se faz uma tese

A princípio, para fomentar a reflexão teórica sobre o arquivo, pondera-se a ocorrência de teorias como os Estudos Culturais, que consideram o “arquivo literário” como um espaço em construção inacabado capaz de ativar anacronismos problematizadores da evidência histórica. A regra de tempo continuum, que normalmente rege o arquivo, pode ser substituída pelo pesquisador que percorre a descontinuidade e o estranhamento em relação ao tempo presente. Nesse sentido, expõe Reinaldo Marques (2015), na introdução do livro Arquivos literários: teorias, histórias, desafios, que é responsabilidade do arquivista zelar pelos documentos, normalizar, hierarquizar, armazenar e recuperar os dados nos arquivos. E caberia ao pesquisador comparatista “desconstruir a ordem estabelecida” (Marques, 2015, p. 25).

O autor deixa claro que o arquivo e a memória representam um “campo de lutas políticas” (Marques, 2015, p. 83), e como exemplo menciona sobre os êxitos e dificuldades da pesquisa em acervos literários. No caso, considera que o pesquisador, que anarquiza o arquivo, não perde de vista os “restos” desse arquivo. Para essa travessia, questiona como caberia ao pesquisador dar conta dos “restos e ruínas” apreendidos pelas noções de “resíduos e farrapos da história”, descrita por Walter Benjamin.

Acrescentamos, para enriquecer a discussão, considerações de Jeanne Marie Gagnebin, explicitadas no texto Apagar os rastros, recolher os restos, que faz parte da coletânea organizada por Sabrina Sedlmayer e Jaime Ginzburg, Walter Benjamin: rastro, aura e história, de 2012. Para tanto, a leitura do “rastro” é caracterizada pelo significado complexo do rastro em razão de sua fragilidade e permanência, pois está sempre ameaçado de ser apagado ou de não ser mais reconhecido como signo de algo que assinala. Assim sendo, para Benjamin, o estatuto paradoxal do rastro remete à questão de manutenção e apagamento do passado, implicando a vontade de deixar marcas, até monumentos de uma existência humana fugidia, segundo afirma Jeane Marie Gagnebein. Portanto, para a estudiosa da obra benjaminiana, na tarefa de conservação do passado, é preciso “resistir à dissolução do indivíduo enquanto ser privado na dinâmica do capitalismo avançado na multidão da grande cidade, na produção e no consumo de massa” (Gagnebein, 2012, p. 27-28). A partir dessa premissa, pode-se pensar a importância do trabalho com arquivos como forma de suspender os ditos da história oficial. 

Esse aspecto será abordado em sua trajetória e considerar-se-á o surgimento do arquivo ligado ao próprio aparecimento da escrita. Em decorrência da necessidade de guardar grande número de documentos acumulados no passado e da produção cada vez maior de novos documentos, aperfeiçoou-se a arquivologia, como conjunto de técnicas de organização e manipulação de arquivos. É postulado por essa disciplina que o arquivo, de modo geral, pode ser compreendido como um grande instrumento de armazenamento e acesso a informações e de preservação da memória, na medida em que funciona como um depósito de dados. Porém, a discussão sobre o arquivo é uma constante em estudos de diferentes áreas. Em evidência, os estudos ligados à memória possibilitam a proposta de interpretar, estabelecendo lógicas diferentes, novos deslocamentos da matéria que permitem comparativismo nos estudos contemporâneos.

Na comparação entre posições críticas, segundo o filósofo Michel Foucault, o princípio institucionalizador do arquivo está marcado pelo “lugar de consignação” que se torna possível, mesmo se essa relação é observada a partir de diferentes perspectivas. O arquivo participa de um processo através do qual se atualizam as configurações de enunciados. Para Foucault,

o arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupam em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas (Foucault, 2007, p. 147).

Dessa maneira, uma das características da função enunciativa é sua relação com um campo associado de domínio de memória. É por meio do domínio de memória que os enunciados se sucedem, ordenam-se e se determinam, na medida em que se afirmam ou se opõem. Essa discussão torna-se salutar para neste artigo, por entendermos que, citando Foucault, é justamente no arquivo que ocorre o agrupamento das figuras distintas do que “pode ser dito”, que encontramos o chamado domínio de memória dos enunciados. Assim, o “arquivo” continua associado às questões memorialísticas, mesmo quando não referidas no sentido material, pois grande parte de suas definições privilegiam os aspectos físico, material e técnico.

Nessa aporia, Jacques Derrida se valeu da expressão freudiana “mal de arquivo”, em uma conferência internacional intitulada “Memória, a questão dos arquivos”, em 1994. O título esclarece que arquivo é o locus da memória que tende a registrar o passado, a história. Derrida mostra a dupla raiz da palavra arquivo, arkhê, que implica começo e ao mesmo tempo comando, o “arconte” ou “o que comanda”. Esses significados linguísticos expõem uma verdade social e histórica da relação entre o poder e o arquivo. É o poder que detém o arquivo, é ele quem dispõe das informações, organizando uma história dentro de seus interesses, o que tem decisivas consequências políticas.

Para aprofundar a questão, remete-se aos arquivos como “instituições da memória”, expressão cunhada por Jacques Le Goff, que contribui por constatar o status da memória a partir da relação com a história. Com base na afirmação, Le Goff aponta dimensões problemáticas dessa relação, entre as quais a questão epistemológica, a técnica, a existencial, a política e a socioeconômica são pertinentes na compreensão das relações entre poder e arquivo. No que diz respeito à questão do arquivo, a própria noção de passado e as relações com ele estabelecidas confirmam que há uma ruptura entre passado e presente, pois a imagem sincrônica profere apenas algo, como se o passado fosse apenas um “antes”, com relação ao “agora”.

Nessa analogia de registro do passado com o presente, o historiador ressalta que há um processo de progressiva externalização da memória, que já tem início na modificação das sociedades orais e se acentua com a difusão da invenção da imprensa, chegando a seu ápice com os registros eletrônicos. Ressalte-se que o problema não consiste apenas na presença dominante das bases de dados eletrônicos nem na intermediação extrema e intensa, mas, sim, na qualificação do juízo crítico e nas sensibilidades políticas do homem, que poderá ser desmemoriado, embora sua poderosa memória artificial. Essa dimensão existencial corresponde, conforme Le Goff, a outra dimensão acerca do problema da memória, porque, pelo fato de não mais existir a memória “espontânea”, é que seria necessária a criação, fora das práticas, da memória e seus “artificialismos”, de que são exemplos os arquivos, museus e monumentos.

Diante de tais questões, as crônicas literárias selecionadas para esta pesquisa – que atualmente se encontram em arquivos deixados pelo próprio autor, conforme se verificará a seguir – confluem nessa oscilação, tematizando, desdobrando e habitando limiares na articulação entre crítica e arquivo. Assim, alguns dos textos que compõem o corpus fazem parte do inventário de Carlos Drummond de Andrade, e as crônicas em estudo, pertencentes à coluna “Imagens” foram, por sua vez, inventariadas pela Fundação Casa Rui Barbosa. Na captação de resíduos, pistas e índices, propõem-se problematização da tarefa crítica, que se pauta na multiplicidade de percursos e no ato da escolha, desviando de totalizações. Contudo, desta forma, o arquivo trava um embate cognitivo, renovando premissas do pesquisador, que, a cada atualização do inventário, ressignifica as “tramas do arquivo”.

Kelvin Klein, na tese A literatura do inventário: arquivo, anacronismo e além, propõe agregar ao cenário de estudos do arquivo a categoria do inventário, com propósito de lutar para se obter um ângulo produtivo de clivagem do arquivo. Para Klein (2013), cunhar o inventário é abrir o arquivo naquele ponto em que a convenção engessou a história literária. Reforça que vasculhar o inventário, assim como o arquivo, implica o procedimento de escolha, mas o inventário estaria necessariamente relacionado com a morte. Desse modo, o inventário é posto em funcionamento a partir de um fim, de um encerramento, de um limite. Para o autor, inventariar é dispor de elementos que foram abandonados e sintonizá-los a partir de um critério comum. “Um inventário não é uma coleção, não é um catálogo, não é uma lista – mas pode incluir também estes elementos em sua descoberta” (Klein, 2013, p. 7).

Neste percurso, Kelvin Klein (2013) comenta que o inventário, em outras palavras, tem a função de estabelecer o que é póstumo, aquilo que sobrevive na qualidade de rastro, e a própria organização do inventário testemunha a recorrência da morte como trabalho crítico. Ou seja, o procedimento inventariante é um desvelamento das possibilidades criativas de um cenário dispersivo, conforme demonstra Raúl Antelo em Tempos de Babel: anacronismo e destruição, quando se vale da montagem, para explicitar que o inventário apresenta imagens póstumas possíveis, rearranjando as marcas dissimilares que surgem a partir de um trauma.

Assim sendo, o inventário não se apresenta como um conjunto de metas cumulativas, visando a uma progressão ou a uma resolução coesa. Não há fim no horizonte do inventário; há, por conseguinte, metamorfose e devir, lembrando que devir é também um dos nomes possíveis do inventar. O inventário, em sua feição inventiva, intercala o movimento da coleta com a busca por objetos deixados para trás, com o gesto de captação de imagens cheias de espectros borrados e alguns elementos fixos. O inventário, portanto, se realiza no tempo e com o auxílio do tempo, para utilizar as palavras de Georges Didi-Huberman. Para tanto, precisa de um registro temporal distinto para que possa fazer sentido, ainda que parcialmente. O inventário é o lento e progressivo desbastamento da história corrente, como um bloco de matéria dura que vai abandonando lascas diante de um cinzel. Trata-se, deliberadamente, de uma imagem impura, retomada por Georges Didi-Huberman em seu estudo sobre Aby Warburg no livro A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, em que faz referência ao mergulho profundo que Walter Benjamin realiza no passado, como um pescador de pérolas, em busca dos lampejos aglutinadores de tempo que testemunham o ir e vir da história por meio das suas imagens do pensamento.

Didi-Huberman afirma que Warburg é também um pescador de pérolas que mergulha no passado e a cada imersão oferece uma nova pérola, que retira da escuridão e condensa em si a metamorfose do tempo, refletindo sobrevivências que estão sempre em movimento. Aby Warburg (1866-1929) foi um pesquisador e historiador da arte que buscou demonstrar, com suas pesquisas, a existência em certas imagens de camadas profundas e arraigadas a elementos precedentes. Em razão da busca por esta constatação, destaca-se a representação de trabalhos que remetem a reflexões sobre a Nachleben (pós-vida das imagens). Assim, o importante estudo sobre a sobrevivência de elementos imagéticos, propostos por Warburg, só foi possível graças ao deslocamento de sentido das funções ou definições atribuídas à imagem.

Diante dessas teorias serão privilegiadas crônicas de Carlos Drummond de Andrade cujo título de “Imagens” se repete na produção de uma escrita que narra imagens sobreviventes de camadas profundas da história. Como exemplos, serão analisados textos que referenciam espaços da cidade para expor a representação da experiência urbana. Saliente-se que tais crônicas fazem parte do arquivo do autor, em especial, o acervo das crônicas publicadas no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Como os demais arquivos pessoais, o arquivo geral de Drummond não foge à regra: trata-se de documentos acumulados durante a trajetória profissional e da vida do escritor. No caso, o arquivo pessoal encontrava-se com algum arranjo prévio, determinado pelo próprio titular, que tinha consciência da importância de seu acervo particular, que abriga hoje documentos que se tornaram fonte substancial de pesquisa.

Preocupado com a informação, Drummond manteve uma ordenação determinada em séries, e os materiais mais heterogêneos não receberam nenhum arranjo do poeta. Desse modo, este capítulo se apoia na organização deste arquivo pela Fundação Casa de Rui Barbosa, que adotou critérios para a estruturação do inventário a partir de pressupostos teológicos da arquivologia, para depois proceder à descrição dos documentos, sendo preparado posteriormente o inventário.

O extenso arquivo cobre um período que vai de 1917 a 1989, e, para promover o acesso às informações, foi elaborado um índice que remete o pesquisador ao documento e a informações nele contidas. Os verbetes do inventário foram redigidos de acordo com critérios internacionais para descrição de documentos, constando uma entrada de identificação e o tipo documental. Apesar de os verbetes da série produção intelectual informarem ao pesquisador se há cópia ou outra versão do documento, não foram encontradas, em todas as crônicas as referências de publicação em livro (ESMERALDO, 2019).

O arquivo de Carlos Drummond de Andrade como cronista no Correio da Manhã está organizado, catalogado e disponível para pesquisadores apenas para consulta na Fundação Casa de Rui Barbosa. Esse foi o arquivo utilizado para consulta, embora, como já mencionado, esse material também seja encontrado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, para onde foi designado pelo próprio Drummond, a pedido da pesquisadora Rita de Cássia Barbosa, a fim de ser reproduzido e catalogado.

Mesmo contando com dois arquivos, o acesso a esses textos pode ocorrer mais facilmente em sua fonte primária por meio da Hemeroteca Digital Brasileira, plataforma acessível no site da Biblioteca Nacional. Isso possibilitou a investigação nos periódicos, com o acesso público aos exemplares originais do jornal, no intuito de se proceder ao levantamento de textos que estabelecem a proposta de capturar cenas urbanas como imagens do cotidiano da cidade.

A grande maioria desses textos foi consultada na fonte, porém existiram ocorrências pontuais de edições esparsas de que não foram encontradas digitalizações. O caso que mais chamou atenção foi o ano de 1965, para o qual não há registro na plataforma da Hemeroteca Digital das edições do Correio da Manhã referentes aos meses de julho e agosto. Por conta dessas eventualidades, foi necessária a consulta ao acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, com o objetivo também de se coletarem informações sobre os textos drummondianos dessa fase que estão publicados em livro.

Até o final da vida, Drummond zelou pelo trabalho que realizou nos jornais e guardou, de forma bastante organizada, toda a sua produção, fato que merece uma reflexão específica e aprofundada. Com isso, pode-se chamar a atenção para a diversidade de tipos de textos escritos, que podem fornecer uma perspectiva mais complexa e menos estudada da sua obra, cuja vertente mais estimada é a da poesia.

No percurso de investigação da crônica de Carlos Drummond é importante destacar que, quanto ao acervo de publicações na imprensa, especificamente em relação aos textos escritos para o Correio da Manhã, são limitados os estudos consistentes que se propõem a traçar um levantamento. Na busca de rastrear essa crítica, primeiro, cabe destacar o trabalho da pesquisadora Isabel Travancas, fruto de uma pesquisa extensa, que abrange todos os textos publicados na imprensa por Carlos Drummond de Andrade de 1920 a 1980. Nesse projeto, procurou-se a incorporação de tecnologias para arquivar e indexar todas as crônicas publicadas no Jornal do Brasil e no Correio da Manhã, por ele coletadas.

O projeto de arquivamento das crônicas de C.D.A teve duração de dois anos, e a sua organização atende os princípios teórico-metodológicos da arquivologia. O Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, criado em 1972, destina-se a organizar e guardar documentos relativos à nossa literatura. Esse material é oriundo exclusivamente de doações de familiares ou dos próprios literatos. O arquivo de Carlos Drummond de Andrade encontra-se devidamente organizado, descrito e publicado, na forma de inventário analítico em meio digital, com acesso exclusivo na entidade. Esse trabalho de arquivamento foi coordenado por Eliane Vasconcellos Leitão, que dirige o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira. Teve como objetivo facilitar o acesso dessa documentação aos pesquisadores, sendo iniciado como projeto em comemoração ao centenário de Drummond.

A partir desse projeto, a pesquisadora Isabel Travancas afirma que os levantamentos do total de textos escritos para o Correio da Manhã somam 2.422 crônicas, como declara no artigo “Drummond na imprensa: crônicas dispersas”, publicado em 2007:

Ao longo de seus 85 anos de vida, Drummond escreveu muito. E não apenas poemas e livros. Ele escreveu intensamente na imprensa. Segundo dados do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa, ele produziu mais de 6.000 textos. Sua colaboração com o Correio da Manhã, que durou de janeiro de 1954 a setembro de 1969, resultou em 2.422 crônicas. No Jornal do Brasil, para o qual colaborou de outubro de 1969 a setembro de 1984, ele produziu 2.304 escritos. Grande parte deste material já foi organizado e catalogado e está disponível para pesquisadores na própria instituição (Travancas, 2007, p. 220).

Traçar o mapeamento dessas crônicas, sem dúvida, é um trabalho longo e denso. Tal feito demonstra a importância e a atualidade dos textos publicados nos jornais. Juntamente com a preocupação contínua de preservar o trabalho realizado por Drummond, a pesquisadora Claudia Poncioni, da Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris III, em tese defendida na mesma instituição, no ano de 2000, realizou um estudo bastante exaustivo dos textos publicados no jornal no Correio da Manhã.

Em um tempo de liberdade de expressão claramente reduzida para um cronista que disse estar cansado, optamos por tratar aquele que, de acordo com Drummond, é o segundo de sua carreira como colunista e que corresponde à era dourada da crônica brasileira. São as crônicas que ele escreveu por quinze anos, entre 1954 e 1969, três vezes por semana, para o diário carioca, agora extinto, Correio da Manhã, o jornal mais importante da época. Eles são em número de 2.432 (Poncioni, 2000, p. 14).

Desse modo, ela apresenta a sua escolha em estudar a coluna “Imagens” em seu caráter de tribuna, afirmando que, assim, Drummond nunca deixou de manifestar suas opiniões diante de fatos importantes até o AI-5, “momento que aparece como um ponto de non-retour na involução da vida política brasileira e também na expressão de Drummond sobre a política nacional” (Poncioni, 2002, p. 150). Sobre a questão de a coluna ser publicada justamente nesse cenário político nacional, no artigo “C.D.A: cronista do Correio da Manhã”, publicado na revista brasileira O eixo e a roda, em 2002, Poncioni afirma que foi injusta a acusação feita por alguns críticos:

Afonso Romano de Sant’Anna, José Maria Cançado e Geneton Machado afirmaram que Drummond não assumirá o papel que poderia ter assumido nos anos de chumbo, citando o exemplo de Alceu Amoroso Lima, que deixando de apoiar o regime militar passará a militar intensamente contra ele. Afirmando que Drummond não teve no cenário político nacional uma presença à altura de seu prestígio, referiam-se certamente apenas ao período das crônicas do Jornal do Brasil (1969-1984), parecendo ter esquecido as crônicas do Correio, onde, pelo contrário Drummond manifestou sua opinião política sempre que isso lhe pareceu necessário. Não que tenha escrito crônica política, embora isso tenha acontecido de forma ocasional, escreveu sim crônicas nas quais a política faz irrupção, de repente, como o fantástico, à medida que os acontecimentos exigem (Poncioni, 2002, p. 149).

Nesse mesmo artigo, conclui-se que uma leitura atenta de todos esses 2.432 textos permite constatar que Drummond se expressou sobre os acontecimentos que marcaram a história do Brasil entre os anos de 1954 e 1969. O que se trata, ainda, de uma faceta pouco conhecida de um cidadão envolvido no cotidiano da pólis, preocupado com o bem na cidade e com a consciência humana. Esse Drummond que executa, sim, uma escrita política, precisa ser mais estudado, pois, com sua perspicácia irônica e mordaz, esteve presente na vida nacional durante o período em que escreveu para o Correio da Manhã.

Portanto, para pensar sobre a recepção desses textos, é obrigatório inseri-los no contexto da vida política brasileira entre 1954 e 1969, que ainda estava fortemente enraizada no século XX. Essa conjuntura não escapa, por exemplo, a clivagens políticas esquerda-direita, que persiste até os dias atuais. Drummond sempre foi muito questionado sobre o fato de o escritor do poema “A rosa do povo”, trabalho marcado por um ideário socialista, ser, no mesmo momento, o chefe do gabinete de Gustavo Capanema, Ministro da Educação de Getúlio Vargas. Em seguida, nos anos 1950 e 1960, esteve perto do principal partido da oposição à direita. Além disso, cite-se a acusação de ter apoiado o golpe de Estado de 1964, embora tenha começado a criticá-lo menos de um mês depois que os militares tomaram o poder. Sobre esse contexto político, José Maria Cançado destaca que, em 1964,

Drummond também passaria o segundo semestre sendo truculentamente chamado a depor várias vezes em inquéritos policial-militares, nos quais eram acusados de subversão a ex-diretora da Rádio do Ministério da Educação, com quem trabalhara durante um tempo, e Carlos Heitor Cony, seu colega de Correio da Manhã, por denunciar na coluna O ato e o fato a violência e o caráter ditatorial do regime (Cançado, 2012, p. 292).

Ainda tendo como foco a questão política, não podemos deixar de mencionar que, ao mesmo passo que Drummond escreveu para o Correio, também continuava publicando poesias. Assim, seria impensável analisar a obra cronística de Drummond como um componente inseparável de sua obra poética. A recepção do texto jornalístico com a sua poesia nos leva a ilustrar a relação entre literatura e história. 

REFERÊNCIAS

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DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.

ESMERALDO, Moema. Cidade em fragmentos: imagens urbanas nas crônicas de C.D.A para o Correio da Manhã. Tese (Doutorado), Rio de Janeiro, 2019.

FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

GAGNEBIN, J. M. Apagar os rastros, recolher os restos. In: SELDMAYER, S.; GINZBURG, J. (Org.). Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 27-38.

KLEIN, K. S. F. A literatura do inventário: arquivo, anacronismo e além. 2013. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.

LE GOFF, J. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

MARQUES, R. Arquivos literários: teorias, histórias, desafios. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

PONCIONI, C. C.D.A.: cronista do Correio da Manhã. O eixo e a roda: revista de literatura brasileira, Belo Horizonte, v. 8, 2002.

PONCIONI, C. Les Chroniques de Carlos Drummond de Andrade au Correio da Manhã (1954-1969): le temps de la politique. 2000. Tese (Doutorado) – Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, Paris, França, 2000.

TRAVANCAS, I. Drummond na imprensa: crônicas dispersas. Revista do GELNE, v. 8, p. 219-231, 2007.

TRAVANCAS, I. Entrando no arquivo do Drummond e lendo suas crônicas na imprensa. In: TRAVANCAS, I. S.; ROUCHOU, J. R.; HEYMANN, L. Q. (Org.). Arquivos pessoais: reflexões multidisciplinares e experiências de pesquisa. v. 1. Rio de Janeiro: FGV, 2014.


 1Doutora em Letras pela PUC-Rio e Mestre em Estudos da Linguagem pela UFG. Docente da área de língua portuguesa e literatura, no Centro de Educação, da Universidade Federal de Roraima – UFRR. Membro-pesquisadora nos grupos “Africanidades, literaturas e minorias sociais” e “Formação de professores, práticas pedagógicas e epistemológicas do professor do Campo”, FPEC e líder do grupo “Recepção da literatura infanto juvenil e práticas sociais de letramento literário. moema.esmeraldo@ufrr.br

 2À une époque de liberté d’expression nettement amoindrie pour un chroniqueur qui se disait fatigue, nous avons choisi de traiter celle qui, selon Drummond, est la deuxième de sa carrière de chroniqueur et qui correspond à l’âge d’or de la chronique brésilienne. Il s’agit des chroniques qu’il écrivit pendant quinze années, entre 1954 et 1969, trois fois par semaine, pour le quotidien carioca, aujourd’hui disparu, Correio da Manhã, le plus important journal de l’époque. Elles sont au nombre de 2.432. (Tradução da autora).