REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202508061112
Guilherme Fernandes Lopes De Almeida1
Yasmin Bulkool Isaac2
Álvaro Ortigara Maciel3
Orientadora: Marina Fonseca Ribeiro4
Resumo
As hérnias da parede abdominal representam uma das condições cirúrgicas mais prevalentes globalmente, constituindo um significativo problema de saúde pública com impacto socioeconômico substancial. A evolução do tratamento cirúrgico, desde os reparos tensionais até a consolidação da técnica de Lichtenstein livre de tensão, foi marcada por uma busca contínua pela redução das taxas de recidiva. O advento da cirurgia minimamente invasiva (CMI) representou um novo paradigma, deslocando o foco para a otimização dos desfechos centrados no paciente, como dor pós-operatória e tempo de recuperação. O objetivo deste artigo é realizar uma revisão narrativa da literatura sobre as indicações, técnicas e desfechos clínicos atuais da cirurgia minimamente invasiva, laparoscópica e robótica, aplicada ao tratamento das hérnias da parede abdominal, com ênfase nas hérnias inguinais e ventrais. Por meio de uma revisão da literatura em bases de dados proeminentes, este trabalho discute as principais abordagens, como o Reparo Transabdominal Pré-Peritoneal (TAPP) e o Reparo Totalmente Extraperitoneal (TEP) para hérnias inguinais, e a evolução das técnicas para hérnias ventrais, desde o Onlay Intraperitoneal com Tela (IPOM) até as modernas reconstruções extraperitoneais da parede abdominal (eTEP e TAR). A análise comparativa dos desfechos clínicos demonstra vantagens consistentes da CMI em relação à dor aguda, recuperação e infecção de sítio cirúrgico, com taxas de recidiva equivalentes às da cirurgia aberta quando executada por cirurgiões proficientes. Conclui-se que a CMI está consolidada como padrão-ouro para casos selecionados, e seu sucesso depende fundamentalmente da seleção criteriosa do paciente, da técnica apropriada e da expertise do cirurgião, reforçando a necessidade de treinamento estruturado para garantir a segurança e a eficácia desses procedimentos avançados.
Palavras-chave: Hérnia Abdominal. Procedimentos Cirúrgicos Minimamente Invasivos. Laparoscopia. Cirurgia Robótica. Resultado do Tratamento.
1. INTRODUÇÃO
As hérnias da parede abdominal, que englobam as hérnias inguinais, ventrais, umbilicais e incisionais, representam uma condição de alta prevalência e relevância epidemiológica, sendo tratadas como um problema de saúde pública em escala global. No Brasil, estima-se que entre 20% e 25% da população adulta seja afetada por alguma forma de hérnia abdominal, o que corresponde a aproximadamente 28 milhões de indivíduos. Apenas a hérnia inguinal, a mais comum, foi responsável pelo afastamento de 28 mil trabalhadores de suas atividades em 2023, evidenciando seu significativo impacto socioeconômico. O Sistema Único de Saúde (SUS) realiza centenas de milhares de hernioplastias anualmente, com um volume crescente que atingiu 334 mil procedimentos em 2023.
A história do tratamento cirúrgico das hérnias é, em si, a história da própria cirurgia. Desde os relatos nos papiros egípcios até as descrições anatômicas de Cooper no século XIX, a abordagem evoluiu lentamente. A era moderna da hernioplastia foi inaugurada no final do século XIX com os trabalhos de Bassini, que introduziu o conceito de reconstrução anatômica do assoalho inguinal. Contudo, a grande revolução do século XX foi o desenvolvimento e a disseminação da técnica de hernioplastia livre de tensão, popularizada por Lichtenstein na década de 1980. Ao utilizar uma tela de polipropileno para reforçar a parede posterior do canal inguinal sem tensionar os tecidos nativos, a técnica de Lichtenstein reduziu drasticamente as taxas de recidiva, tornando-se o padrão-ouro para o reparo aberto por via anterior por décadas, devido à sua eficácia, simplicidade e reprodutibilidade.
O segundo grande ponto de inflexão no tratamento das hérnias abdominais ocorreu com o advento e a maturação da cirurgia minimamente invasiva (CMI). A introdução das técnicas laparoscópicas na década de 1990 propôs uma mudança de paradigma, não apenas na via de acesso, mas no próprio conceito do reparo herniário. A abordagem posterior, visualizando o defeito a partir do espaço pré-peritoneal, ofereceu a promessa de menos dor, recuperação mais rápida e retorno precoce às atividades. No entanto, esta transição gerou controvérsias e desafios que persistem até hoje. A superioridade da CMI em diferentes cenários clínicos, a seleção adequada de pacientes e a curva de aprendizado íngreme associada a essas técnicas são temas de debate contínuo na comunidade cirúrgica.
Essa discussão é particularmente relevante no contexto brasileiro, onde se observa uma notável discrepância. Enquanto as diretrizes de sociedades de especialistas, como a Sociedade Brasileira de Hérnia (SBH) e o HerniaSurge Group, recomendam a CMI como abordagem de escolha para cenários específicos, como hérnias bilaterais e recidivadas, os dados do SUS revelam que a CMI representa menos de 1% de todas as hernioplastias realizadas no país. Essa disparidade não reflete apenas uma preferência técnica, mas aponta para barreiras sistêmicas profundas, incluindo custos de equipamentos e materiais, e, crucialmente, a ausência de programas de treinamento estruturados e amplamente acessíveis para capacitar os cirurgiões. A excelência técnica da CMI torna-se um conceito abstrato se não for acessível à população e se os profissionais não estiverem devidamente habilitados para executá-la com segurança e eficácia.
Diante da rápida evolução das técnicas cirúrgicas (laparoscopia avançada, cirurgia robótica), do desenvolvimento de novos materiais protéticos e da publicação de diretrizes internacionais baseadas em evidências de alto nível, torna-se imperativa uma análise crítica e atualizada sobre o tema. O cirurgião moderno necessita de um guia consolidado para a tomada de decisões, visando otimizar os desfechos e a segurança para cada paciente individualmente.
O objetivo deste trabalho é realizar uma revisão narrativa da literatura sobre as indicações, técnicas e desfechos clínicos atuais da cirurgia minimamente invasiva aplicada ao tratamento das hérnias da parede abdominal.
2. METODOLOGIA
Este estudo consiste em uma revisão narrativa da literatura, conduzida com o propósito de sintetizar e discutir o estado da arte sobre a aplicação da cirurgia minimamente invasiva no tratamento das hérnias da parede abdominal. A metodologia foi desenhada para abranger as publicações mais relevantes, incluindo ensaios clínicos randomizados, metanálises, revisões sistemáticas, diretrizes de sociedades de especialistas e estudos seminais que fundamentam a prática atual.
A busca por artigos científicos foi realizada em bases de dados eletrônicas de amplo reconhecimento internacional e regional, como PubMed/MEDLINE (National Library of Medicine, EUA), LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde) e SciELO (Scientific Electronic Library Online). A estratégia de busca envolveu a combinação de descritores de saúde (DeCS/MeSH) e palavras-chave, com o intuito de maximizar a sensibilidade e a especificidade da pesquisa. Os descritores utilizados foram: “Hérnia Inguinal” (Inguinal Hernia), “Hérnia Ventral” (Ventral Hernia), “Laparoscopia” (Laparoscopy), “Procedimentos Cirúrgicos Robóticos” (Robotic Surgical Procedures), “Hernioplastia” (Herniorrhaphy) e “Resultado do Tratamento” (Treatment Outcome). A utilização desses termos é validada pela sua presença em estudos de referência sobre o tema.
Foram selecionados artigos publicados preferencialmente nos últimos 10 anos para garantir a atualidade das informações, com especial atenção a publicações de alto impacto e diretrizes recentes (até 2024/2025). Artigos clássicos e trabalhos pioneiros foram incluídos para fornecer o contexto histórico e a evolução conceitual das técnicas. A seleção dos estudos foi baseada na sua relevância para o objetivo do artigo, qualidade metodológica e contribuição para o entendimento das indicações, técnicas e desfechos clínicos da hernioplastia minimamente invasiva.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
3.1. Evolução e Princípios Fundamentais da Hernioplastia Minimamente Invasiva
A transição da cirurgia aberta para a CMI no tratamento das hérnias representou uma mudança conceitual tão impactante quanto a introdução do princípio “livre de tensão” por Lichtenstein. A abordagem minimamente invasiva alterou fundamentalmente a perspectiva do cirurgião, que passou de uma visão anterior do defeito herniário para uma visão posterior, a partir do espaço pré-peritoneal. Este novo ponto de vista permitiu a aplicação de um princípio biomecânico fundamental: a Lei de Pascal. Ao posicionar uma tela protética ampla posteriormente ao defeito, a própria pressão intra-abdominal, que é a força motriz da formação da hérnia, passa a atuar a favor do reparo, pressionando a tela contra a parede abdominal e mantendo-a no lugar.
Este conceito permite que uma única tela cubra todo o orifício miopectíneo de Fruchaud, uma área que engloba os sítios de fraqueza onde ocorrem as hérnias inguinais diretas, indiretas e femorais. Dessa forma, a CMI não apenas corrige o defeito visível, mas também reforça preventivamente todas as áreas potenciais de herniação na região inguinal, um princípio já defendido por Stoppa em seus reparos abertos pré-peritoneais.
Os trabalhos seminais que pavimentaram o caminho para a aceitação da CMI merecem destaque. Em 1982, Ralph Ger descreveu o primeiro conceito de um reparo herniário laparoscópico, utilizando clipes metálicos para fechar o saco herniário. Embora a técnica original de Ger fosse limitada a pequenos defeitos e não contemplasse o reforço do assoalho inguinal, ela foi a centelha que iniciou a exploração da via laparoscópica. A validação científica e a popularização da abordagem, no entanto, vieram com os estudos subsequentes. Robert J. Fitzgibbons Jr., por meio de uma série de ensaios clínicos randomizados e publicações influentes, foi uma figura central na avaliação crítica dos riscos, custos e benefícios da hernioplastia laparoscópica em comparação com a cirurgia aberta. Seus trabalhos, juntamente com os de outros grupos de pesquisa, foram cruciais para estabelecer a CMI como uma alternativa segura e eficaz, especialmente para hérnias bilaterais e recidivadas, consolidando os princípios que norteiam a prática atual.
3.2. Hérnias Inguinais: Técnicas TAPP e TEP
No tratamento da hérnia inguinal por CMI, duas técnicas principais se estabeleceram como padrão: o Reparo Transabdominal Pré-Peritoneal (TAPP) e o Reparo Totalmente Extraperitoneal (TEP). Ambas compartilham o mesmo objetivo final de dissecar o espaço pré-peritoneal e posicionar uma tela grande para cobrir o orifício miopectíneo, mas diferem fundamentalmente na via de acesso a este espaço.
A técnica TAPP inicia-se com o acesso à cavidade abdominal, classicamente com a inserção de trocateres de forma similar a outros procedimentos laparoscópicos, como a colecistectomia. Após a insuflação do pneumoperitônio, o cirurgião realiza uma incisão no peritônio parietal acima do defeito herniário, criando um flap peritoneal. Este flap é dissecado para expor o espaço pré-peritoneal, onde os elementos do cordão espermático (ou ligamento redondo), os vasos epigástricos inferiores e os marcos ósseos como o ligamento de Cooper e o tubérculo púbico são identificados. Após a redução do saco herniário e a colocação da tela, o flap peritoneal é fechado com sutura ou grampos, isolando a tela do contato com as vísceras abdominais. A principal vantagem da TAPP é a visão anatômica ampla e familiar para o cirurgião geral, o que facilita a orientação, especialmente no início da curva de aprendizado. Além disso, permite a inspeção da cavidade abdominal e o diagnóstico e tratamento de hérnias contralaterais ocultas ou outras patologias insuspeitas. Sua desvantagem teórica reside na violação da cavidade peritoneal, que acarreta um risco, ainda que muito baixo, de lesão visceral durante o acesso ou de formação de aderências à tela em caso de falha no fechamento peritoneal.
Por outro lado, a técnica TEP é realizada inteiramente no espaço extraperitoneal, evitando a entrada na cavidade abdominal. O acesso é criado através de uma pequena incisão infraumbilical, dissecando-se até o espaço pré-peritoneal, que é então expandido com o uso de um balão dissecador ou com a própria ponta do laparoscópio. Os trocateres de trabalho são inseridos na linha média, entre o umbigo e o púbis, sob visão direta. A dissecção e a colocação da tela seguem os mesmos princípios da TAPP. A vantagem fundamental da TEP é evitar a violação do peritônio, o que teoricamente minimiza o risco de lesões a órgãos intra-abdominais e de complicações adesivas a longo prazo. Suas desvantagens incluem um espaço de trabalho mais restrito e uma orientação anatômica menos intuitiva, o que resulta em uma curva de aprendizado considerada mais íngreme. A presença de cirurgias pélvicas prévias, como prostatectomias radicais, pode obliterar o plano de dissecção e tornar a TEP tecnicamente muito desafiadora ou impossível.
A escolha entre TAPP e TEP tem sido objeto de intenso debate e pesquisa. A mais recente e abrangente evidência provém da revisão sistemática da Cochrane Collaboration, atualizada em 2024. A análise de 23 ensaios clínicos randomizados com 2.266 participantes concluiu, com baixo a muito baixo nível de certeza da evidência, que pode haver pouca ou nenhuma diferença entre as duas técnicas em relação aos desfechos mais importantes. Para a recidiva herniária, o risco foi de 1.2% para TAPP e 1.1% para TEP (OR 1.14, 95% CI 0.49 a 2.62). Para a dor crônica, a evidência foi muito incerta, mas não apontou diferença significativa (OR 0.62, 95% CI 0.20 a 1.97). O único desfecho com diferença estatisticamente significativa foi a taxa de conversão para outra técnica (aberta ou a técnica laparoscópica oposta), que foi maior no grupo TEP (2.5%) em comparação com o grupo TAPP (0.7%) (OR 0.28, 95% CI 0.09 a 0.84).
Clinicamente, esses dados sugerem que, nas mãos de cirurgiões proficientes, ambas as técnicas são seguras e eficazes, com resultados equivalentes. A decisão deve ser individualizada, baseando-se na experiência do cirurgião e nas características do paciente. A TAPP pode ser preferível em casos de hérnias recidivadas após reparo aberto anterior, devido à melhor visualização de uma anatomia potencialmente alterada, ou quando há suspeita de uma hérnia contralateral. A TEP pode ser a escolha ideal para hérnias primárias bilaterais ou em pacientes com múltiplas cirurgias abdominais prévias, nos quais se deseja evitar a cavidade peritoneal aderida.
3.3. Hérnias Ventrais e Incisionais: Da Técnica IPOM às Abordagens de Reconstrução da Parede
O tratamento minimamente invasivo das hérnias ventrais e incisionais seguiu uma trajetória evolutiva notável, que reflete uma profunda maturação no entendimento dos princípios biomecânicos da parede abdominal. A abordagem inicial e mais simples foi a técnica de Onlay Intraperitoneal com Tela (IPOM). Neste procedimento, uma tela é introduzida na cavidade abdominal e posicionada sobre o defeito herniário, com uma sobreposição adequada, sendo fixada à parede abdominal com grampos, tachas (tacks) ou suturas transfasciais.
Embora o IPOM tenha sido um passo importante, suas limitações tornaram-se evidentes com o tempo. A primeira grande desvantagem é a necessidade do uso de telas revestidas (ou de dupla face), que possuem uma barreira antiaderente para evitar o contato do material protético com as alças intestinais. Essas telas são significativamente mais caras do que as telas de polipropileno padrão. Além disso, a fixação com múltiplos pontos transfasciais frequentemente se associa à dor pós-operatória, tanto aguda quanto crônica. Talvez a limitação mais crítica seja sua eficácia reduzida para defeitos maiores (tipicamente > 8-10 cm de diâmetro), nos quais as forças de tração na interface tela-parede são maiores, levando a taxas de recidiva mais elevadas e à formação de abaulamentos (“pseudo-recidiva”).
Essas limitações impulsionaram uma verdadeira revolução na CMI de hérnia ventral, marcada por um retorno aos princípios fundamentais da reconstrução da parede abdominal. A cirurgia aberta já havia demonstrado que o posicionamento da tela no espaço retromuscular (técnica de Rives-Stoppa), ou seja, um reparo sublay, oferecia resultados biomecânicos e clínicos superiores. A CMI, então, evoluiu para mimetizar esse padrão-ouro. A técnica eTEP (enhanced-view Totally Extraperitoneal), adaptada para a parede abdominal por cirurgiões como Jorge Daes e Igor Beliansky, permitiu, pela primeira vez, o acesso e a dissecção ampla do espaço retromuscular por via totalmente extraperitoneal. Isso possibilitou o posicionamento de uma tela grande de polipropileno no local ideal, fora da cavidade abdominal, eliminando a necessidade de telas caras e o risco de aderências viscerais.
Para hérnias ainda mais complexas, com grandes defeitos e retração dos músculos retos, a CMI incorporou outro conceito da cirurgia aberta: a Liberação do Músculo Transverso do Abdome (TAR). A técnica de r-TAR (TAR robótica) ou l-TAR (TAR laparoscópica) permite a secção do músculo transverso do abdome em sua porção mais medial, o que promove uma ampla liberação da bainha posterior do reto e permite a medialização dos complexos musculares. Isso facilita o fechamento da linha média sem tensão e cria um vasto espaço retromuscular para a colocação de uma tela de grandes dimensões, restaurando a anatomia e a funcionalidade da parede abdominal.
A trajetória da CMI para hérnias ventrais, de IPOM para eTEP/TAR, ilustra uma fascinante convergência de filosofias cirúrgicas. A cirurgia minimamente invasiva deixou de ser uma abordagem conceitualmente distinta para se tornar um veículo tecnologicamente avançado para executar os mesmos princípios biomecânicos sólidos estabelecidos pela cirurgia aberta de reconstrução. O reparo retromuscular, com restauração da linha alba, é o objetivo, independentemente da via de acesso. A questão para o cirurgião moderno não é mais “cirurgia aberta versus laparoscópica”, mas sim “qual é a melhor via de acesso – aberta, laparoscópica ou robótica – para alcançar o plano de reparo ideal (retromuscular) para este paciente e esta hérnia específicos?”. A CMI, nesse contexto, não é mais uma alternativa, mas sim uma ferramenta para alcançar o padrão-ouro de forma menos invasiva.
3.4. O Papel Emergente da Cirurgia Robótica
A introdução da plataforma robótica representa a mais recente evolução tecnológica na cirurgia de hérnia minimamente invasiva. O sistema robótico oferece vantagens técnicas inegáveis em relação à laparoscopia convencional. A visão tridimensional (3D) imersiva, estável e de alta definição proporciona uma percepção de profundidade superior. A instrumentação articulada (EndoWrist™), com sete graus de liberdade, mimetiza os movimentos do punho humano, permitindo a realização de suturas intracorpóreas complexas com uma precisão e facilidade muito maiores. Além disso, a filtragem de tremores e a ergonomia do console cirúrgico reduzem a fadiga do cirurgião, especialmente em procedimentos longos e complexos.
Esses benefícios técnicos encontram sua máxima aplicação em procedimentos de reconstrução da parede abdominal, como o eTEP-TAR. A necessidade de dissecção fina em múltiplos planos, a preservação de pequenos nervos e vasos perfurantes e, principalmente, a extensa sutura necessária para fechar a bainha posterior do reto e a linha média são tarefas significativamente facilitadas pela plataforma robótica.
No entanto, a adoção da cirurgia robótica deve ser analisada de forma crítica, ponderando seus benefícios contra suas desvantagens. O principal obstáculo é o custo substancialmente mais elevado, tanto na aquisição do sistema quanto na manutenção e no uso de instrumentais descartáveis. Adicionalmente, a cirurgia robótica possui sua própria curva de aprendizado, que, embora possa ser atenuada pela experiência prévia em laparoscopia, ainda exige treinamento específico e um volume considerável de casos para atingir a proficiência.
A questão central é se os desfechos clínicos justificam o investimento adicional. Metanálises recentes que comparam a hernioplastia ventral robótica (rVHR) com a laparoscópica (lVHR) começam a delinear um cenário. Uma revisão sistemática e metanálise de 2023 por Al-Subaie et al. não encontrou diferença significativa nas taxas de complicações pós-operatórias ou de recidiva entre as duas abordagens. No entanto, a cirurgia robótica foi associada a um tempo operatório significativamente mais longo, mas a um tempo de internação hospitalar ligeiramente menor. Outra metanálise de 2025 (publicada em 2024) sugeriu que a rVHR pode diminuir a taxa de reoperações e a taxa de recidiva, embora a diferença para esta última fosse marginalmente estatística. Estudos como os de Bittner e colaboradores têm contribuído para essa discussão, mas o consenso geral, baseado na evidência atual, é que, para a maioria das hérnias ventrais, a cirurgia robótica ainda não demonstrou uma superioridade clínica inequívoca sobre a laparoscopia que justifique universalmente seu custo mais elevado. Seu valor parece estar concentrado nos casos mais complexos de reconstrução da parede abdominal, onde a precisão da sutura e a dissecção fina são cruciais e podem, potencialmente, traduzir-se em melhores desfechos a longo prazo, algo que futuros estudos precisarão confirmar.
3.5. Indicações Atuais e Seleção Criteriosa de Pacientes
A seleção adequada do paciente e da técnica cirúrgica é o pilar fundamental para o sucesso no tratamento das hérnias da parede abdominal. As decisões devem ser baseadas nas melhores evidências disponíveis, consolidadas em diretrizes de sociedades de especialistas, como o HerniaSurge Group (cujas diretrizes de 2018 foram atualizadas em 2023 por Stabilini et al.) e a Sociedade Brasileira de Hérnia (SBH).
Para hérnias inguinais, a CMI (TAPP ou TEP) é considerada a abordagem padrão-ouro em situações específicas:
- Hérnias inguinais bilaterais: A CMI permite o tratamento de ambos os lados através das mesmas pequenas incisões, otimizando a recuperação.
- Hérnias inguinais recidivadas após reparo anterior aberto (e.g., Lichtenstein): A abordagem posterior da CMI acessa planos anatômicos virgens, evitando a dissecção em tecido cicatricial, o que reduz o risco de lesão de estruturas como o ducto deferente e os vasos testiculares, além de facilitar a identificação do verdadeiro defeito.
- Mulheres com hérnia inguinal: A CMI é fortemente recomendada, pois permite uma excelente visualização da região inguinofemoral, possibilitando a identificação e o reparo de hérnias femorais ocultas, que são mais comuns em mulheres e frequentemente não diagnosticadas no exame físico ou em reparos abertos anteriores.
A CMI também pode ser uma excelente opção para pacientes jovens e ativos com hérnias primárias unilaterais que desejam um retorno mais rápido às suas atividades físicas e profissionais. Por outro lado, a cirurgia aberta, predominantemente a técnica de Lichtenstein, permanece como a abordagem de escolha para pacientes com contraindicações à anestesia geral ou ao pneumoperitônio, para hérnias inguinoescrotais muito volumosas e complexas, e para cirurgiões que ainda não superaram a curva de aprendizado da CMI.
Para hérnias ventrais e incisionais, a indicação da CMI depende primariamente do tamanho do defeito, da presença de aderências e da experiência do centro cirúrgico. A CMI é uma excelente opção para defeitos de pequeno a médio porte (geralmente até 10 cm de diâmetro), onde técnicas como IPOM-Plus (IPOM com fechamento do defeito) ou eTEP podem ser empregadas com segurança e eficácia. Com o advento das técnicas de reconstrução da parede abdominal minimamente invasivas, como o eTEP-TAR, as indicações se expandiram para defeitos maiores e mais complexos, mas esses procedimentos devem ser restritos a centros de alto volume com expertise comprovada.
As contraindicações absolutas à CMI incluem a incapacidade do paciente de tolerar o pneumoperitônio devido a comorbidades cardiopulmonares graves. As contraindicações relativas são mais fluidas e incluem hérnias com “perda de domicílio” (onde um volume significativo de vísceras está permanentemente fora da cavidade abdominal), múltiplas cirurgias abdominais prévias com a expectativa de aderências extremamente densas, e a presença de infecção ativa no local da hérnia ou na tela, embora esta última seja uma área de crescente pesquisa com o uso de telas biológicas ou absorvíveis.
3.6. Análise Comparativa dos Desfechos Clínicos
A decisão entre uma abordagem aberta e minimamente invasiva deve ser informada por uma análise crítica dos desfechos clínicos, baseada em evidências de alta qualidade, como metanálises e grandes ensaios clínicos randomizados. A Tabela 1 sintetiza a comparação dos principais desfechos para hérnias inguinais e ventrais.
Tabela 1: Análise Comparativa de Desfechos Clínicos: Hernioplastia Aberta vs. Cirurgia Minimamente Invasiva (CMI)
Desfecho Clínico | Hérnia Inguinal (Lichtenstein vs. TAPP/TEP) | Hérnia Ventral (Aberta vs. CMI) | Nível de Evidência |
---|---|---|---|
Dor Pós-operatória Aguda | Significativamente menor na CMI | Menor na CMI | Alta |
Tempo de Recuperação / Retorno ao Trabalho | Significativamente mais rápido na CMI | Mais rápido na CMI | Alta |
Infecção de Sítio Cirúrgico (ISC) / Infecção de Tela | Menor na CMI | Significativamente menor na CMI | Alta |
Dor Crônica | Risco significativamente menor na CMI | Controversa; pode ser menor na CMI (evita fixadores transfasciais) | Alta (Inguinal) / Moderada (Ventral) |
Taxa de Recidiva | Equivalente (em mãos experientes) | Equivalente a superior na CMI (dependente da técnica e tamanho do defeito) | Alta (Inguinal) / Moderada (Ventral) |
Complicações Graves (Lesão Visceral/Vascular) | Risco baixo, mas específico da CMI (lesão de vasos ilíacos/bexiga) | Risco baixo, mas específico da CMI (lesão intestinal em lise de aderências) | Moderada |
Tempo Cirúrgico | Geralmente maior na CMI | Geralmente maior na CMI | Alta |
Custo do Procedimento | Maior na CMI (equipamento/material) | Maior na CMI (tela especial/robô) | Alta |
Para hérnias inguinais, a evidência é robusta e consistente. Metanálises de alta qualidade demonstram que a CMI (TAPP/TEP) resulta em menos dor pós-operatória aguda, menor necessidade de analgésicos, e um retorno significativamente mais rápido às atividades normais e ao trabalho em comparação com a técnica de Lichtenstein. Um dos benefícios mais importantes é a redução significativa do risco de dor crônica inguinal (inguinodinia), um desfecho debilitante que afeta a qualidade de vida. Uma metanálise de 2019 reportou um odds ratio de 0.41 a favor da CMI para a prevenção de dor crônica. Em relação à recidiva, quando realizadas por cirurgiões que superaram a curva de aprendizado, as taxas da CMI são equivalentes às da técnica de Lichtenstein, que já são muito baixas.
Para hérnias ventrais, a comparação é mais complexa devido à heterogeneidade dos defeitos e das técnicas. No entanto, a CMI demonstra uma vantagem clara na redução de complicações da ferida operatória, especialmente infecções de sítio cirúrgico. Este é um benefício de grande relevância clínica, particularmente em pacientes de alto risco, como obesos, diabéticos ou imunossuprimidos. O tempo de internação hospitalar também é consistentemente menor com a abordagem minimamente invasiva. A questão da recidiva é mais controversa. Enquanto a técnica IPOM pode apresentar taxas de recorrência mais altas em defeitos grandes, as modernas técnicas de reconstrução extraperitoneal (eTEP/TAR) buscam igualar ou até mesmo superar os excelentes resultados de longo prazo da cirurgia aberta de reconstrução, embora dados de seguimento mais longos ainda sejam necessários para uma conclusão definitiva.
3.7. Desafios, Complicações e a Curva de Aprendizagem
Apesar de seus benefícios comprovados, a CMI não é isenta de desafios e complicações específicas, que exigem conhecimento anatômico detalhado e habilidade técnica apurada. Na hernioplastia inguinal laparoscópica, a dissecção ocorre em proximidade a estruturas nobres. O “triângulo da dor”, delimitado lateralmente pelo trato iliopúbico e medialmente pelos vasos espermáticos, contém os nervos cutâneo femoral lateral e o ramo femoral do genitofemoral. A fixação da tela com grampos ou a dissecção inadvertida nesta área pode levar a neuralgias crônicas. Medialmente, o “triângulo da desgraça” (triangle of doom), delimitado pelo ducto deferente e pelos vasos espermáticos, contém os vasos ilíacos externos, e uma lesão nesta topografia pode resultar em hemorragia catastrófica. Outras complicações incluem lesão da bexiga, do ducto deferente e dos vasos epigástricos inferiores. A formação de seroma, um acúmulo de fluido no espaço morto deixado pelo saco herniário, é uma ocorrência comum, especialmente após o reparo de grandes hérnias, e seu manejo é geralmente conservador, com resolução espontânea na maioria dos casos.
Na hernioplastia ventral, o principal risco durante a CMI é a lesão visceral, seja pela passagem do trocater inicial em um abdome com aderências, seja durante a lise de aderências para expor a parede abdominal. Hérnias internas através de defeitos não fechados no peritônio (na técnica TAPP) ou nos sítios dos trocateres são complicações raras, mas graves, que podem levar à obstrução intestinal.
O fator mais crítico que influencia a incidência de complicações e os desfechos gerais da CMI é, sem dúvida, a curva de aprendizado. Os excelentes resultados reportados em grandes séries e metanálises são, em sua maioria, provenientes de centros de alto volume e de cirurgiões experientes. A transição da cirurgia aberta para a CMI, especialmente para a hernioplastia inguinal, é tecnicamente exigente. Requer a adaptação a uma visão bidimensional, a triangulação de instrumentos e, o mais importante, o domínio de uma anatomia visualizada por uma perspectiva posterior e não familiar. Estudos estimam que a proficiência em hernioplastia inguinal laparoscópica (TAPP/TEP) seja alcançada após um volume de 30 a 100 procedimentos. Durante esta fase de aprendizado, as taxas de conversão para cirurgia aberta, de complicações e de recidiva são reconhecidamente mais altas.
Isso reforça a mensagem de que a adoção segura e eficaz da CMI não pode ocorrer de forma autodidata. É imperativa a implementação de programas de treinamento estruturados, que incluam mentoria, proctoring (supervisão de casos por um cirurgião experiente) e, fundamentalmente, o uso de simulação. O treinamento em simuladores (físicos ou virtuais) permite que o cirurgião em formação desenvolva as habilidades psicomotoras e o conhecimento anatômico necessários em um ambiente seguro e controlado, sem colocar o paciente em risco, encurtando a curva de aprendizado e otimizando os resultados desde os primeiros casos clínicos.
4. CONCLUSÃO
A cirurgia minimamente invasiva transformou radicalmente o tratamento das hérnias da parede abdominal, deslocando o foco da simples correção do defeito para a otimização da experiência do paciente e da qualidade de vida pós-operatória. As evidências científicas acumuladas ao longo das últimas três décadas consolidaram a CMI como a abordagem padrão-ouro para uma variedade de cenários clínicos, oferecendo benefícios claros e consistentes em termos de redução da dor pós-operatória, menor taxa de infecção de sítio cirúrgico e recuperação mais rápida, mantendo taxas de recidiva equivalentes às das melhores técnicas abertas.
A mensagem central desta revisão é que o sucesso da hernioplastia minimamente invasiva não é uma propriedade inerente à tecnologia, mas sim o resultado de uma tríade indissociável: a seleção criteriosa do paciente, garantindo que as indicações e contraindicações sejam respeitadas; a escolha adequada da técnica, adaptando a abordagem (TAPP, TEP, IPOM, eTEP, r-TAR) às características específicas da hérnia e do paciente; e, de forma crucial, a execução por um cirurgião com proficiência comprovada, que tenha superado a curva de aprendizado e domine a anatomia e os passos críticos do procedimento. A negligência de qualquer um desses pilares pode anular os benefícios da CMI e, potencialmente, levar a desfechos inferiores aos da cirurgia aberta tradicional.
Olhando para o futuro, o campo da hernioplastia continuará a evoluir. As tendências emergentes apontam para uma personalização ainda maior do tratamento. Novos materiais protéticos, como telas parcialmente absorvíveis, biológicas ou com capacidade de liberar fármacos, prometem melhorar a integração tecidual e reduzir as complicações a longo prazo. A expansão da cirurgia robótica, à medida que seus custos se tornam mais acessíveis e sua superioridade em nichos específicos de reconstrução complexa se solidifica, oferecerá novas ferramentas para os casos mais desafiadores. A integração de inteligência artificial na análise de imagens pré-operatórias e no planejamento cirúrgico poderá, em breve, auxiliar na predição de dificuldades técnicas e na otimização da estratégia cirúrgica. A busca contínua por melhores desfechos, guiada pela medicina baseada em evidências e pela inovação responsável, garantirá que o tratamento das hérnias da parede abdominal permaneça na vanguarda da prática cirúrgica.
5. REFERÊNCIAS
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1guilhermealmeida9191@gmail.com – UNIBH (Centro Universitário De Belo Horizonte)
2yasminbulkool@gmail.com
Centro Universitário de Belo Horizonte – UniBH
3mdalvaro.ortigara@gmail.com
Médico graduado UNIVATES- Universidade do Vale do taquari
4Médica orientadora – marinafonseca_95@hotmail.com
Médica graduada pela UNIVÁS- Universidade do Vale do Sapucaí