ANTENAS ERB’S DE TELEFONIA CELULAR E O POTENCIAL RISCO À SAÚDE: PROPOSTA DE UMA SEQUÊNCIA DIDÁTICA

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.11074248


Aline Alves Ribeiro1
Luis Gustavo D’Carlos Barbosa2


Resumo

O artigo aborda a necessidade de renovar o ensino de Física, buscando despertar nos alunos uma maior curiosidade e interesse pelo tema. O objetivo é incentivar os estudantes a desenvolver pesquisas sobre temas que lhes interessam, ultrapassando os padrões tradicionais que muitas vezes tornam o ensino de Física monótono. Destaca-se que a disciplina é frequentemente percebida como complexa demais, o que pode contribuir para uma sensação de elitização. Para combater isso, o artigo propõe a introdução de temas do cotidiano e abordagens científicas diversas, como a integração de conceitos da biologia ao discutir os efeitos das radiações não ionizantes. O objetivo é mostrar aos alunos a natureza multidisciplinar da Física e sua interdependência com outras áreas do conhecimento. Destaca-se ainda a importância dessa abordagem para que os alunos se tornem participantes ativos em decisões comunitárias e individuais relacionadas a questões sociais e científicas.

Palavras-chave: sequência CTS – questões sociocientíficas – estações rádio-bases- aparelhos celulares

Introdução

O uso ubíquo de dispositivos móveis, como os celulares, é uma realidade cada vez mais presente em nossa sociedade contemporânea, tornando-se quase inevitável não utilizá-los ou não notar a profusão de antenas de Estações Rádio-Base (ERBs) espalhadas pelas áreas urbanas, muitas vezes próximas de nossas residências e edifícios. Esta situação tem suscitado um debate sócio-científico em curso há pelo menos duas décadas, no qual diversos estudos apontam possíveis impactos negativos na saúde decorrentes da exposição às radiações não-ionizantes, enquanto outros minimizem esses riscos, argumentando uma baixa probabilidade de efeitos adversos no organismo humano. As autoridades governamentais, as comunidades locais e as empresas de telecomunicações têm se envolvido em negociações para estabelecer limites de exposição aos dispositivos móveis e às ERBs, porém, tais discussões nem sempre transcorrem de maneira consensual.

Neste contexto, como trabalho conclusivo da disciplina de Estudo e Desenvolvimento de Projetos II, pertencente ao segundo período do Curso de Licenciatura em Física da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, decidimos empreender o desenvolvimento de uma sequência didática que abordasse essa problemática sob uma perspectiva CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade). Nosso objetivo foi elaborar uma unidade temática que não apenas ensinasse conceitos e modelos de física, mas também proporcionasse aos estudantes uma introdução às diversas dimensões da natureza da ciência e sua intrincada relação com os limites de segurança e a participação democrática. Além disso, almejamos fomentar a capacidade dos alunos de tomar posições e decisões fundamentadas, bem como de argumentar com base em evidências científicas, considerando não apenas a administração de riscos, mas também valores, como o princípio da precaução.

Como motivação adicional para nossa abordagem, utilizamos o caso recente ocorrido em 2013, no qual moradores de um bairro na cidade de São Paulo, capital, travaram uma batalha legal contra uma empresa de telecomunicações visando impedir a instalação de uma torre de transmissão de celular em sua comunidade. Este caso proporcionou uma oportunidade para problematizar em sala de aula questões pertinentes relacionadas aos impactos das infraestruturas de telecomunicações na saúde e no ambiente, bem como os conflitos de interesses entre diferentes atores sociais.

Aportes teórico-metodológicos

Optamos por adotar a metodologia dos três momentos pedagógicos delineada por Delizoicov (1991) como estrutura para nossa abordagem pedagógica. Em sua essência, essa metodologia busca proporcionar uma compreensão temática do conhecimento ao expor os alunos à complexidade da vida e da realidade, envolvendo-os no contexto escolhido por meio de uma autêntica problematização. No primeiro momento, os alunos são instigados a refletir sobre questões iniciais e a levantar questionamentos relevantes. Em seguida, no segundo momento, são introduzidos conceitos científicos, dados sociais e mecanismos tecnológicos que permitem aos estudantes uma análise mais aprofundada e sistematizada da realidade. Por fim, no terceiro momento, busca-se realizar uma síntese ou aplicação do conhecimento, retornando ao ponto de partida de forma criativa, o que demanda dos alunos a capacidade de conclusão da sequência e de resposta aos primeiros questionamentos, incentivando sua participação em discussões e tomadas de decisão relacionadas aos conceitos abordados.

Numa perspectiva epistemológica, articulamos à metodologia dos Três Momentos Pedagógicos a distinção tridimensional proposta por Santos (2004): educação em ciência, sobre ciência e pela ciência. A primeira dimensão refere-se aos conceitos e modelos científicos tradicionais que são ensinados em sala de aula. Já a educação sobre ciência aborda o conhecimento dos aspectos da natureza da ciência, incluindo como o conhecimento tecnocientífico é produzido e os processos envolvidos na tomada de decisões científicas. Por sua vez, a educação pela ciência ou através de questões sociais implica em promover o exercício da cidadania, estimulando a argumentação, o posicionamento e as tomadas de decisão em assuntos que envolvem ciência e tecnologia. É nesse contexto que surge a necessidade de compreender a ciência como um empreendimento social, o que demanda uma abordagem mais ampla e contextualizada do conhecimento científico.

Figura 1: Dimensões do risco da CEM(Fonte: OMS,2002)

A controvérsia escolhida para nosso trabalho centra-se nos problemas de saúde relacionados à proximidade de moradias às Estações Rádio-Base (ERBs), pois representa um tema que integra conceitos físicos, biológicos e dimensões sociais, alinhando-se com a visão exposta pelo MEC (2002), que enfatiza a necessidade de um ensino de Física mais contextualizado e relevante, afastando-se da mera memorização de fórmulas e procedimentos abstratos.

A sequência didática

A proposta faz uso de um pluralismo metodológico, que chamaremos a exemplo de Santos & Fiedler-Ferrara (2007), de multi abordagem, já que nos utilizamos de diferentes recursos didáticos: vídeos, textos midiáticos, explanações orais, jogo de representações de papeis (Role Playing),etc. Ela está dimensionada para uma aplicação de 6 à 10 horas-aula, dependendo da profundidade e desdobramento permitido pelo tempo curricular. Um resumo dos conteúdos e vivências é explicitado a seguir.

Tabela 01: Resumo da sequência didática proposta

Momento PedagógicoConteúdo ou vivênciaDuração(horas-aula)
Problematização do ConhecimentoVídeo, texto e debate de idéias e posicionamento prévio dos alunos.      1-2





Organização do Conhecimento
Ondas: propagação e espectro eletromagnético. Radiações ionizantes e não ionizantes. Campo magnético e elétrico: abordagem semiquantitativa. Efeitos térmicos e não térmicos das radiações não -ionizantes: estudos diversos e controvérsias. Evidências científicas e confiabilidade. Replicabilidade de experimentos e sua importância na ciência. Legislações, recomendações da OMS, gerenciamento do risco pelo poder público e o princípio da precaução. O ônus e o bônus da tecnologia: comparação entre potencial nocividade do aparelho celular em uso e das ERB’s em funcionamento.




4-6
Síntese do ConhecimentoRole-play ou debate simulado em que uma tomada de decisão coletiva acerca da instalação de uma ERB.         1-2

Problematização do Conhecimento

Na etapa inicial da nossa abordagem pedagógica, buscamos instigar nos alunos uma consciência crítica em relação à controvérsia que envolve as Estações Rádio-Base (ERBs) e os celulares, visando a compreensão das múltiplas perspectivas envolvidas e da complexidade dos vínculos entre ciência, tecnologia e sociedade. Em seguida, serão oferecidas ferramentas para participar de discussões e debates que têm o potencial de moldar o futuro de suas comunidades.

Propomos a utilização de um vídeo de cunho jornalístico que explore as opiniões de moradores e especialistas, aliado à leitura coletiva de um texto jornalístico que aborda a batalha judicial em curso entre moradores que se opõem à instalação de uma ERB próxima de suas residências. Através desses materiais mediadores, buscamos estimular o reconhecimento das diversas vozes envolvidas na controvérsia sociocientífica, destacando os diferentes papéis, possíveis interesses e crenças, bem como os conhecimentos técnico- científicos pertinentes, conforme percebidos pelos próprios estudantes.

Embora o professor desempenhe o papel de facilitador ao trazer conhecimentos prévios e concepções alternativas dos alunos, nesta fase inicial da sequência pedagógica, não se recomenda uma explanação aprofundada ou a decodificação excessiva, priorizando-se a sensibilização para o tema. Propomos questões orientadoras, tais como: “Pessoas que residem próximas às torres de transmissão de celulares podem enfrentar problemas de saúde?”; “Quais fenômenos físicos ou biológicos estão associados a essa questão?”; “Você consideraria mudar-se para uma área onde uma antena seria instalada?”; e “E se uma antena fosse instalada na área onde você atualmente reside, você aceitaria?”.

O professor pode coletar fragmentos das discussões por escrito ou no quadro, através de diálogos com toda a turma, além de incentivar a organização de pequenos grupos para debater e registrar de forma sintetizada as ideias discutidas. Essa abordagem visa promover a reflexão crítica dos alunos sobre a controvérsia em questão e estimular sua participação ativa na construção do conhecimento.

Organização do Conhecimento

Na estruturação do conteúdo, optamos por selecionar não apenas os tópicos tradicionais do ensino de ciências, como o cálculo de campo elétrico e magnético, mas também por abordar dimensões sociais, como a legislação relacionada à exposição a campos elétricos, e dimensões epistemológicas, como a confiabilidade das evidências e a replicabilidade dos estudos.

No primeiro tópico, “Ondas: propagação e espectro eletromagnético”, é essencial apresentar aos alunos os fundamentos da física ondulatória, destacando as semelhanças entre as ondas mecânicas e eletromagnéticas, além de fornecer uma visão geral sobre a presença dessas ondas na natureza e na sociedade. Deve-se também enfatizar que as ondas eletromagnéticas não dependem de um meio material para se propagarem, e abordar suas características identitárias, como comprimento de onda e frequência.

No segundo tópico, introduzimos a fronteira com a biologia ao discutir a distinção entre radiações ionizantes e não ionizantes, focando nos riscos associados às primeiras e destacando os potenciais riscos das segundas. Embora as radiações não ionizantes sejam geralmente consideradas menos prejudiciais, é importante mencionar estudos, como o de Nancy Wertheimer em 1979, que apontam possíveis associações entre a proximidade de antenas de transmissão e certos problemas de saúde. Nesse contexto, é crucial ressaltar o princípio da precaução ao lidar com questões de saúde pública.

No terceiro momento, apresentamos os conceitos de campo elétrico e magnético de maneira qualitativa, destacando suas interações e efeitos. É fundamental que os alunos compreendam que a intensidade desses campos depende da distância à fonte e que a determinação dos níveis de campo em uma determinada localidade é essencial para avaliar os riscos associados.

No quarto tópico, exploramos os efeitos térmicos e não térmicos das radiações eletromagnéticas, utilizando como recurso o vídeo “Efeitos biológicos das radiações eletromagnéticas”. Discutimos como os efeitos térmicos estão mais relacionados ao uso do celular, enquanto os efeitos não térmicos são menos compreendidos devido à complexidade das variáveis envolvidas.

No quinto tópico, abordamos a importância da replicabilidade dos estudos científicos e a confiabilidade das evidências apresentadas. Destacamos a necessidade de compreender que a ciência é um empreendimento coletivo, sujeito a debates e revisões constantes.

Nos tópicos finais, exploramos medidas históricas e atuais adotadas em diversos países em relação à exposição a radiações eletromagnéticas, incluindo as diretrizes estabelecidas pela Comissão Internacional para a Proteção contra Radiação Não-Ionizante (ICNIRP). Abordamos também o uso do princípio da precaução em casos de conflito de interesses e promovemos uma reflexão sobre a percepção de risco associada às tecnologias, destacando a importância de considerar tanto os benefícios quanto os possíveis riscos.

Síntese do Conhecimento

Para instigar os alunos à levantarem dados e discutirem sobre o tema, no terceiro e último momento da Aplicação e Síntese do Conhecimento, foi proposto um “jogo” estilo Role Playing, onde todos poderão opinar em uma simulação de situação problema, embasados em investigações, legislação, reportagens e outras fontes confiáveis às quais eles queiram consultar. Isto caracteriza a vivência de uma educação pela ciência que segundo Santos (2004), já descrita acima. 

  • Prefeito da cidade imaginária (1 aluno c/ auxílio do professor)

Interessado(a) em chegar numa solução que equilibre sensibilidade social e evidências científicas. Precisa decidir se permitirá a implantação de uma torre de transmissão de celular a menos de 200m de uma creche municipal, já que há evidências de que o campo magnético pode causar leucemia em crianças quando expostas a distâncias menores que 200 m. No entanto, a construção dessa torre trará benefícios financeiros para a prefeitura, bem como o “aluguel” do terreno onde será implantada.

  • Consultor A: Cientistas, médicos e biólogos. (2 grupos de alunos)

É DESFAVORÁVEL à implantação da Torre no terreno, pois haverá crianças a menos de 200m no local, podendo causar nelas leucemia entre outros agravantes de saúde sérios;

  • Consultor B: Cientistas céticos(as) à exposição a campos magnéticos, políticos e investidores de linhas de transmissão. (2 grupos de alunos)

É FAVORÁVEL à implantação da Torre no local informado, visto que há estudos científicos que comprovem que a exposição a campos magnéticos seja um causador de leucemia em crianças, porém não existem evidências conclusivas, além disso a emissão de radiação destas torres está dentro da norma segundo a OMS;

Mediador das regras e regulador do tempo de perguntas e respostas = professor(a).

Considerações finais

  O principal objetivo desta sequência é despertar nos alunos uma curiosidade renovada, incentivando-os a desenvolver pesquisas sobre temas que lhes interessem, indo além dos padrões estabelecidos pelo ensino tradicional de Física, muitas vezes percebido como monótono. Muitas vezes, há o equívoco de que a disciplina é excessivamente complexa para ser compreendida pela maioria dos estudantes, o que contribui para uma percepção de elitização.

Ao introduzir temas relacionados ao cotidiano e adotar abordagens científicas diversas, como a integração de conceitos da biologia ao discutir os efeitos das radiações não ionizantes, buscamos chamar a atenção dos alunos para a natureza multidisciplinar do assunto e a interdependência dos conteúdos. A escolha deliberada de uma questão sócio-científica visa mostrar aos alunos que os conceitos de Física estão diretamente inseridos no contexto social e em suas vivências diárias. Além disso, destacamos a importância dessa interação entre diferentes áreas do conhecimento para que os alunos possam participar ativamente de decisões comunitárias e individuais que envolvem questões relevantes para suas vidas.

Referências:

Luz, A. M. R. da; Alvarez, B. A. Curso de Física. 1 ed., volume 3. Scipione, São Paulo, 2006.

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DELIZOICOV, D. Conhecimento, Tensões e Transições. Tese. São Paulo: FEUSP, 1991.

SANTOS, R.V.C; FIEDLER-FERRARA,N. Ondas Eletromagnéticas, Circuitos e Antenas: uma Proposta de Ensino que Busca a Complexificação do Conhecimento Cotidiano. XVII Simpósio Nacional de Ensino de Física. 10p.

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1 Universidade F. do Triângulo Mineiro/ICENE/Licenciatura em Física, aline.engenharia@gmail.com
2 Universidade F. do Triângulo Mineiro/ICENE/ DECMT, luis_dcarlos@hotmail.com