INTERSEMIOTIC ANALYSIS OF THE EPIC POEM “PARADISE LOST” BY JOHN MILTON AND THE HOMONYMOUS GRAPHIC NOVEL BY PABLO AULADELL
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12096952
Brunno de Sousa e Silva1
Laisa Carolyne Almeida1
Vanusa Gonçalves de Almeida1
Wisara Almeida da Silva1
Orientador: Fábio Araújo Pereira2
RESUMO
A adaptação em quadrinhos de “Paraíso Perdido” por Pablo Auladell, lançada em 2011, representa uma fascinante transição do épico literário de John Milton para o meio visual. Este estudo analisa como a linguagem gráfica de Auladell dialoga com o poema original, explorando de que maneira essa interação influencia a percepção dos leitores sobre a trama, personagens e simbolismos presentes na obra. A hipótese destaca que a adaptação não apenas reinterpretou elementos narrativos, mas também enriqueceu a compreensão das complexidades filosóficas e temáticas do épico, oferecendo uma abordagem visual única. A pesquisa, conduzida qualitativamente por meio de análise textual bibliográfica, contribui socialmente ao tornar obras clássicas mais acessíveis, atendendo ao interesse intrínseco na interseção entre literatura e arte visual, e cientificamente oferece insights sobre a transposição intersemiótica de obras literárias para o formato visual, promovendo discussões acadêmicas sobre o papel das adaptações na preservação e renovação de obras clássicas.
Palavras-chave: Poema épico. História em quadrinhos. Intersemiótica.
1 INTRODUÇÃO
As adaptações e releituras de textos clássicos tornaram-se comuns em diversas formas artísticas, incluindo histórias em quadrinhos, cinema, teatro e games. Ao dialogarem com autores clássicos e recriarem os textos em contextos contemporâneos, essas adaptações desempenham um papel crucial na formação de leitores. O aumento expressivo de adaptações de clássicos literários para HQs nas últimas décadas tem sido notável, apresentando uma diversidade de formatos e abordagens, seja por meio de um único artista, de dois artistas ou de uma equipe multidisciplinar (Kohlbach, 2018).
De acordo com Ramos (2013), os quadrinhos constituem um amplo rótulo ou hipergênero, englobando diversas categorias, cada uma com suas particularidades. Sob o termo “história em quadrinhos” (HQs), são compreendidos gêneros como charges, cartuns, tiras, graphic novels e outras formas de produção. Quando utilizadas de maneira estratégica, as HQs têm o potencial de democratizar o acesso a conteúdos que, de forma convencional, poderiam não ser atrativos ou conquistar outros públicos com menor habilidade de leitura (Miranda & Pereira, 2021).
A conexão entre a literatura clássica, especialmente o gênero épico, e as histórias em quadrinhos é complexa e rica, manifestando-se principalmente através da intertextualidade, adaptação e preservação cultural. As histórias em quadrinhos frequentemente se apropriam de temas, personagens e narrativas das epopeias clássicas, reinterpretando-os para um público moderno. Obras como “Sandman” de Neil Gaiman e “300” de Frank Miller utilizam elementos da mitologia antiga para criar narrativas contemporâneas, repletas de jornadas heroicas e desafios épicos, similarmente às epopeias de Homero.
Para compreendermos essa relação, é essencial primeiramente contextualizar o poema épico, uma forma literária que remonta à antiguidade e que frequentemente trata de temas épicos, heroicos e mitológicos. Abrams e Harpham (2015) definem a epopeia como “um poema longo e narrativo que celebra as façanhas de um herói ou deuses”. Destacam que a ação épica é grandiosa em escala e importância, envolvendo eventos que têm consequências significativas para uma nação ou para a humanidade como um todo. Um exemplo emblemático desse gênero é “Paraíso Perdido” de John Milton, que narra a queda de Lúcifer e a expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden.
Publicada em 1667, “Paraíso Perdido”, poema épico de John Milton, se destaca como uma das maiores epopeias da literatura inglesa. Nesta obra, Milton explora temas teológicos e filosóficos, narrando a rebelião de Satanás e a queda do homem. Sua riqueza linguística e complexidade temática proporcionaram uma base sólida para uma adaptação em história em quadrinhos, realizada pelo artista espanhol Pablo Auladell.
Lançada posteriormente, essa adaptação em quadrinhos captura a essência do poema, mergulhando nas intricadas camadas narrativas e expressando visualmente as profundezas da trama. Publicada em 2011, a HQ não só transpõe a riqueza literária do poema original para o formato gráfico, mas também introduz elementos visuais que acrescentam à experiência interpretativa da obra.
A complexa migração de “Paraíso Perdido” para as histórias em quadrinhos levanta questionamentos sobre como os elementos visuais reconfiguram a experiência do leitor. A problemática central é: como a linguagem gráfica de Pablo Auladell dialoga com o épico literário de John Milton, e de que maneira essa interação influencia a percepção da trama, dos personagens e dos simbolismos presentes na obra?
Para responder a este questionamento, faz-se necessário analisar e compreender os processos de transposição da obra literária “Paraíso Perdido” para o formato de história em quadrinhos, destacando as mudanças narrativas e estilísticas ocorridas na adaptação. A pesquisa será conduzida por meio de uma abordagem qualitativa, utilizando análise textual bibliográfica.
Este artigo parte da hipótese de que a adaptação em quadrinhos da obra em questão não apenas reinterpretou elementos narrativos, mas também potencializou a compreensão das complexidades filosóficas e temáticas do épico literário. Justifica-se essa pesquisa pela relevância de tornar obras clássicas mais acessíveis e pela contribuição ao debate acadêmico sobre as adaptações intersemióticas.
2 METODOLOGIA
Este estudo foi realizado em Gurupi, Tocantins, junto à Universidade de Gurupi – UNIRG, durante um período de um ano, com foco na análise intersemiótica entre o poema épico “Paraíso Perdido” de John Milton e sua adaptação em história em quadrinhos por Pablo Auladell.
Fundamentada bibliograficamente, a pesquisa utilizou livros e artigos científicos. Seguindo a abordagem de Fachin (2001), a pesquisa bibliográfica consistiu na leitura, seleção, fichamento, organização e arquivamento de tópicos relevantes para a temática. Os recursos de busca incluíram sites, bibliotecas, jornais, revistas (periódicos) e materiais digitais, visando compreender amplamente as interpretações visuais e literárias da obra. Também foram incluídos na análise materiais em português alinhados com a temática proposta. Materiais que não contribuíam para a compreensão da relação entre o poema e sua adaptação visual foram excluídos.
A análise dos dados possui caráter qualitativo, conforme sugerido por Minayo (2001), explorando os significados mais profundos das relações, processos e fenômenos presentes na obra literária e em sua adaptação para quadrinhos. A abordagem crítica é apresentada por meio de tabelas, destacando os aspectos concernentes à interpretação visual da narrativa.
Este trabalho não requer submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa, conforme estabelecido na Resolução CNS 466/2012, uma vez que não envolve diretamente seres humanos. Nesse contexto, a pesquisa não acarreta riscos aos participantes. É relevante salientar que os benefícios advindos da análise intersemiótica entre literatura e quadrinhos contribuem para uma melhor compreensão cultural e artística, promovendo reflexões significativas sobre a relação entre formas distintas de expressão artística.
3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
3.1 TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA E ASPECTOS GERAIS DA ADAPTAÇÃO
Para entender plenamente o processo de tradução intersemiótica realizado por Pablo Auladell, é essencial recorrer a várias teorias e conceitos de estudos literários e de mídia, bem como a análise da tradução da grandiosidade e do drama do épico literário para o formato das histórias em quadrinhos também exige certa compreensão das características específicas de cada meio artístico.
Primeiramente, a teoria da tradução de Roman Jakobson oferece uma base sólida para esta análise; uma vez que Jakobson define três tipos de tradução: intralingual, interlingual e intersemiótica, a adaptação de Auladell enquadra-se na categoria intersemiótica, que Jakobson descreve como uma interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais:
“A tradução de uma língua para outra substitui mensagens em uma língua, não por unidades de código separadas, mas por mensagens inteiras em outra língua. […] No nível da tradução ou transmutação intersemiótica, uma interpretação de signos verbais por meio de signos de sistemas de sinais não-verbais está envolvido” (Jakobson, 1995).
Ainda sobre definições teóricas acerca da intersemiótica, o poeta e tradutor brasileiro Haroldo de Campos nos esclarece mais que “a tradução intersemiótica ou transcriação é o processo pelo qual um texto, originalmente escrito em um sistema de signos, é recriado em outro sistema de signos, como quando um poema é transformado em uma peça musical ou em um filme” (Campos, 1987).
Com veremos de maneira mais detalhada a seguir, a adaptação de Auladell se encaixa em ambas as definições, pois traduz os versos de Milton em imagens, preservando a essência semântica e estética do texto original.
Umberto Eco (2008) explora, ainda, a interação entre diferentes formas de comunicação e mídia, argumentando que as culturas contemporâneas são caracterizadas por uma tensão entre o desejo de novidade e o impulso para preservar tradições culturais. Nesse contexto, as histórias em quadrinhos representam uma forma de comunicação visual e acessível, com potencial de atrair um público diversificado ao transmitir narrativas complexas de maneira eficaz.
Scott McCloud, por sua vez, oferece uma análise da linguagem dos quadrinhos, argumentando que essa forma de arte é uma combinação única de imagens e texto, que juntos criam um espaço entre as palavras e as imagens, onde a imaginação do leitor é capaz de habitar. McCloud descreve como os quadrinhos têm o poder de comunicar informações de maneira concisa e eficaz, aproveitando os recursos visuais para transmitir emoção, atmosfera e movimento. Defendendo que os quadrinhos têm um potencial ilimitado para contar histórias, desde que os criadores compreendam e explorem as nuances de sua linguagem (McCloud, 2004).
Nos quadrinhos, os signos não verbais comunicam informações e emoções que complementam ou até substituem o texto verbal. A título de maior elucidação, o quadro a seguir apresenta uma síntese das função dos signos não verbais nos quadrinhos, conforme a teoria dos quadrinhos discutida, respectivamente, por Eisner e McCloud:
Quadro 1 – Função dos signos não verbais
Signo | Função |
Expressão de Emoções e Estados Internos | Através de expressões faciais, postura corporal e outros indicadores visuais, os quadrinhos transmitem estados emocionais complexos de maneira rápida e eficiente. Isso permite uma conexão imediata entre o leitor e os personagens. |
Ambiente e Contexto | Cores, sombras e detalhes de fundo podem indicar o tempo, lugar e atmosfera, influenciando a percepção do leitor sobre a cena. |
Ritmo | A disposição dos quadros e o uso de espaços em branco (sarjeta) entre eles podem controlar o ritmo da leitura. Por exemplo, quadros menores e mais próximos podem sugerir ação rápida, enquanto quadros maiores e mais espaçados podem indicar um momento de pausa ou reflexão. |
Metáforas Visuais e Símbolos | Signos não verbais podem funcionar como metáforas visuais, onde certos elementos carregam significados simbólicos. Por exemplo, uma nuvem escura sobre a cabeça de um personagem pode simbolizar preocupação ou tristeza. |
Fonte: Elaboração própria a partir de dados Eisner e McCloud (2016).
Ao tratarmos das sequências de ação nas histórias em quadrinhos, McCloud explora como o uso de diferentes signos e técnicas de composição, enquadramento e sequenciamento podem afetar a maneira como os leitores percebem e interpretam o movimento e a intensidade das cenas de ação. A escolha de ângulos de câmera, tamanho dos quadros e disposição das imagens, criam uma sensação de ritmo e fluidez que aumenta o impacto emocional destas sequências (McCloud, 2004).
A técnica de “espaçamento”, na qual o tempo entre os quadros é ampliado ou reduzido para criar uma sensação de ritmo, pode ser usada de forma eficaz para aumentar a intensidade das sequências de ação, permitindo que os leitores sintam a urgência e o dinamismo dos eventos que estão ocorrendo (McCloud, 2004). Ao aplicar os princípios de composição visual delineados por McCloud, Pablo Auladell cria sequências de ação que transmitem a magnitude e a intensidade do conflito entre Deus e Satã.
Além disso, a interação entre texto e imagem nas histórias em quadrinhos desempenha um papel fundamental na construção de significado e na transmissão de temas filosóficos e existenciais. Os quadrinhos têm o poder de integrar texto e imagem de maneira única, criando uma dinâmica narrativa que permite que os leitores mergulhem profundamente na história (Eisner, 1999). O uso de balões de diálogo, letras e fontes podem influenciar a maneira como os leitores interpretam as palavras e os sentimentos dos personagens, criando uma experiência imersiva e envolvente.
Portanto, ao considerarmos a tradução da grandiosidade e do drama do épico literário para o formato das histórias em quadrinhos, é essencial reconhecer as capacidades únicas desse meio artístico. As imagens, diálogos e sequências visuais dos quadrinhos oferecem uma plataforma flexível para a adaptação de narrativas épicas, permitindo que o autor explore temas complexos de maneiras visualmente impactantes.
5 ANÁLISE DE DADOS
Uma das questões a serem analisadas é a fidelidade narrativa da adaptação de Auladell em relação ao texto de Milton. “Paraíso Perdido” é uma obra conhecida por sua densa linguagem poética e suas elaboradas descrições teológicas e filosóficas. Auladell, ao transpor essa narrativa para os quadrinhos, enfrenta o desafio de condensar o texto original sem perder a essência da história. O artista opta por manter os elementos centrais da trama — a rebelião de Lúcifer, a queda dos anjos, a criação do homem e a expulsão do Paraíso — mas com significativas adaptações visuais que tornam a narrativa mais acessível ao leitor moderno.
Na adaptação, Auladell utiliza a imagem para sintetizar e complementar o texto. Enquanto Milton depende da riqueza de seu verso branco para construir imagens mentais nos leitores, Auladell usa a arte visual para transmitir atmosferas e emoções. Por exemplo, a descrição grandiosa da queda de Lúcifer e seus anjos é transformada em sequências de painéis dinâmicos e sombrios que capturam a magnitude do evento com uma intensidade visual que o texto por si só talvez não possa alcançar. Isso exemplifica como a história em quadrinhos não apenas traduz, mas também expande a experiência narrativa, oferecendo novas dimensões interpretativas.
Linda Hutcheon (2013) argumenta que adaptações são atos de criação e recriação, que envolvem tanto a fidelidade quanto a transformação. Segundo Hutcheon, adaptações devem ser vistas como obras independentes que oferecem novas interpretações e experiências. A adaptação de Auladell se encaixa perfeitamente nessa definição, pois, ao mesmo tempo em que homenageia “Paraíso Perdido”, ela reinventa a obra para um novo contexto e público.
Além disso, a teoria dos “modos de discurso” de Mikhail Bakhtin também explora as diferentes formas de discurso e gêneros interagem dentro de uma narrativa. Neste sentido, a adaptação para HQ pode ser vista como um diálogo entre o discurso literário de Milton e o discurso visual contemporâneo dos quadrinhos. Esta interação cria um novo texto que é simultaneamente literário e visual, alterando a experiência do leitor.
Bakhtin também introduz, em sua teoria, os conceitos de polifonia (múltiplas vozes) e heteroglossia (múltiplos discursos) como fundamentais para a compreensão narrativa:
A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. E se falarmos de vontade individual, então é na polifonia que ocorre a combinação de várias vontades individuais […] (BAKHTIN, 1997, p. 21).
Já a heteroglossia é marcada, segundo Wieler (2023) pela “convivência entre múltiplas vozes – todas falam a mesma língua, mas cada um dissolve, em sua semântica, em sua sintaxe, as particularidades, as ideologias, as diversidades socioculturais” que acabam por se tornarem marcas representativas de períodos artísticos distintos que confluem na contemporaneidade.
Na adaptação de Auladell, a polifonia se manifesta na forma como ele representa diferentes personagens e suas perspectivas visuais. A heteroglossia torna-se evidente na combinação de elementos pictóricos de diferentes tradições artísticas e estilos, desde a iconografia religiosa até influências modernas e contemporâneas. Esta mistura de estilos e vozes visuais cria uma riqueza narrativa que dialoga com a complexidade temática do original de Milton.
3.3 REPRESENTAÇÃO VISUAL E SIMBOLOGIA
Auladell demonstra uma profunda compreensão dos temas e simbolismos presentes em “Paraíso Perdido”, utilizando os signos não verbais para explorar e reinterpretar esses elementos. Suas ilustrações são impregnadas de simbolismo religioso e iconográfico que refletem as complexidades teológicas do poema de Milton. A representação visual de personagens como Lúcifer e Adão é feita com um cuidado detalhado, enfatizando suas características simbólicas e suas jornadas emocionais.
A imagem de Lúcifer, por exemplo, é frequentemente retratada com uma aura de majestade sombria e trágica, capturando sua dualidade como anjo caído. O quadrinista utiliza sombras profundas e contrastes marcantes para destacar a tensão entre a luz divina e a escuridão da rebelião, um tema central no poema de Milton. A transformação visual de Lúcifer ao longo da narrativa — de um ser de luz a uma figura de trevas — é uma metáfora visual para sua queda e corrupção.
Além das transformações narrativas e visuais, a adaptação de Auladell também deve ser vista sob o prisma do contexto cultural contemporâneo. A transposição de uma obra do século XVII para um formato de quadrinhos do século XXI implica na recontextualização dos temas e valores presentes no original. Stuart Hall enfatiza como o significado dos textos é construído em contextos específicos e é negociado pelo leitor, sublinhando a importância da recontextualização na adaptação de obras literárias para novos formatos e tempos:
Os textos são produzidos e consumidos em contextos específicos de tempo e lugar, e esses contextos moldam o significado que é feito dos textos. A significação não está fixada no texto, mas é negociada entre o texto e o leitor, que traz suas próprias experiências, conhecimentos e expectativas para o processo de interpretação. (HALL, 2003).
Auladell consegue manter a relevância dos temas universais de “Paraíso Perdido” — a luta entre o bem e o mal, a busca pelo conhecimento, a natureza da liberdade e da obediência — enquanto os apresenta de uma forma que ressoa com o público moderno. O autor não está simplesmente traduzindo o texto de Milton para imagens; ele está engajado em um processo dialógico no qual o discurso literário do século XVII interage com o discurso visual do século XXI. Processo este que envolve a troca e a fusão de modos de expressão.
Estilisticamente, a arte de Auladell é caracterizada por um traço expressivo e um uso audacioso da cor e da luz. Seu estilo é ao mesmo tempo evocativo e simbólico, com uma clara influência de tradições artísticas que vão desde o renascimento até o expressionismo moderno. Essa mistura estilística reforça a natureza atemporal dos temas de “Paraíso Perdido” e permite uma exploração visual rica e multifacetada.
Os traços da ilustração, enquanto elemento qualitativo, têm a capacidade de evocar objetos reais, transformando-se em ícones que carregam significados. Isso ressalta a importância da imagem na narrativa dos quadrinhos, pois, ao contrário das palavras que descrevem uma cena, a ilustração utiliza signos para sugerir significados, muitas vezes sujeitos à interpretação individual de cada leitor. É notável que a ilustração, em alguns casos, é capaz de construir uma narrativa completa sem depender do auxílio de palavras (Ramos, 2013).
Auladell utiliza uma paleta cromática que varia conforme a tonalidade emocional da narrativa. Segundo Kolbach (2018) as cores desempenham um papel fundamental nos quadrinhos, equiparando-se em importância ao desenho e ao texto, pois contribuem para complementar a narrativa ao enfatizar emoções e eventos nas histórias em quadrinhos (HQs). Cenas de paz e criação são representadas com cores suaves, enquanto momentos de conflito e queda são imersos em tonalidades escuras e opressivas. Este uso consciente da cor como elemento narrativo é uma característica que distingue a adaptação de Auladell, permitindo-lhe comunicar de maneira imediata e visceral as emoções e atmosferas do poema de Milton.
Neste sentido, Souza (2022), aponta que, na adaptação de Auladell, as imagens desempenham o papel central na representação visual da ação, dispensando, em muitos quadros e requadros, o auxílio do texto escrito. Notavelmente, a pintura retrata os eventos de maneira expressiva, enquanto o texto é significativamente suprimido e reduzido em quantidade em comparação com o poema de Milton.
No Livro 1, o texto escrito é predominantemente utilizado para narrar os eventos e essa abordagem pode ser atribuída à sobreposição da imagem sobre o texto. A pintura de Auladell objetivamente apresenta muitos dos elementos descritos por Milton, resultando na redução da presença do texto escrito, que agora se concentra em diálogos e na narração (Souza, 2022).
Assim, a adaptação de “Paraíso Perdido” por Pablo Auladell representa uma transformação notável do épico literário de John Milton para a linguagem visual dos quadrinhos. O processo de transposição midiática evidencia a capacidade da arte sequencial de reinterpretar não apenas os elementos narrativos, mas também de potencializar as complexidades filosóficas e temáticas presentes na obra original. Auladell, ao utilizar predominantemente a pintura como forma de expressão artística, reestrutura a narrativa por meio de signos não verbais que proporcionam uma visão objetiva da imagética do poema épico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditamos que os recursos gráficos desempenham papel crucial na transmissão da atmosfera e sentimentos do poema, oferecendo uma abordagem visual única que amplia a experiência do leitor. A intertextualidade entre linguagem literária e visual na adaptação em quadrinhos proporcionou novas perspectivas sobre eventos narrativos literários transpostos para arte pictórica, estabelecendo um diálogo criativo entre as formas de expressão. O processo de adaptação, aqui apresentado, destaca-se como uma ponte entre duas maneiras distintas de expressão artística, proporcionando aos leitores uma nova perspectiva sobre o épico clássico de Milton.
A relação intersemiótica entre poesia épica e quadrinhos primariamente oferece um terreno fértil para a exploração de temas universais e complexos ao combinar elementos visuais e narrativos de maneira inventiva e inovadora. Os quadrinhos têm o potencial de reimaginar e revitalizar histórias antigas, oferecendo novas perspectivas e insights para os leitores contemporâneos. Nesse sentido, a análise dessa interação nos permite compreender não apenas as obras individuais, mas também o processo criativo e a evolução das formas artísticas ao longo do tempo.
O uso do formato de quadrinhos, um meio muitas vezes associado a narrativas populares e acessíveis, democratiza a obra de Milton, tornando-a acessível a um público mais amplo. Essa democratização, no entanto, não significa uma simplificação dos temas, mas sim uma nova abordagem para explorá-los. Auladell usa a linguagem visual, composta por signos não verbais, para mediar entre a erudição do texto original e a capacidade interpretativa do leitor contemporâneo, criando, reiteramos, uma ponte entre duas épocas e dois públicos.
Tornou-se evidente que a adaptação contribui socialmente para a compreensão cultural democrática, ao tornar obras clássicas mais acessíveis; pessoalmente, ao atender o interesse intrínseco do pesquisador na interseção entre literatura e arte visual; e, cientificamente, pois ofereceu conhecimentos e recursos sobre a transposição de obras literárias para o formato visual, enriquecendo teorias sobre a interação entre literatura e artes gráficas, promovendo discussões acadêmicas sobre o papel das adaptações na preservação e renovação de obras clássicas.
Em conclusão, a adaptação de “Paraíso Perdido” de John Milton para a história em quadrinhos por Pablo Auladell é uma tradução intersemiótica que vai além da simples conversão de texto em imagem. Ela representa uma reinterpretação profunda que respeita a obra original enquanto a re-contextualiza e a expande. O quadrinista utiliza a linguagem visual para explorar temas, simbolismos e emoções com uma profundidade que complementa e enriquece o poema épico de Milton. Esta adaptação, que não só torna a obra acessível a um público contemporâneo mais amplo, também oferece novas oportunidades para a análise crítica e a apreciação artística, demonstrando o potencial das histórias em quadrinhos como um meio poderoso para a tradução literária.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
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JAKOBSON, Roman. Aspectos linguísticos da tradução. In: Linguística e Comunicação. Tradução: Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1995.
KOHLBACH, Thauany Braga. Adaptação Literária Para História Em Quadrinhos: Um Conto De Ecos No Porão – Vol. 2. 105 f. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação em Design) – Universidade Federal de Santa Catarina. Florianopolis, 2018.
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RAMOS, Marcela de Oliveira. Quadrinhos e literatura: adaptação de linguagens em The Walking Dead. Fernando Souza Gerheim. Rio de Janeiro, 2013. Monografia (Graduação em Produção Editorial) – Escola de Comunicação Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 74 f.
SOUZA, Sidney Vicente de. Paraíso Perdido: uma análise intermidiática sobre a obra de Pablo Auladell. Monografia (Licenciatura em Letras – Língua Inglesa)
UFCG/CFP. Cajazeiras, 2022. 49f.: il.
1Acadêmicos do Curso de Letras – UnirG, Gurupi/TO;
2Prof. Orientador, Curso de Letras – Centro Universitário de Gurupi/TO).