REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102411181726
Ticciana Calixto Fernandes
Johan Danilo De Souza Nunes Fredberg
Orientadora: Prof.ª Esp. Samara Trigueiro Felix da Silva
O presente artigo intenciona debater a temática fixada no Recurso Extraordinário nº 635.659/SP perante o Supremo Tribunal Federal, em que se discutiu, à luz do art 5º, X, da Constituição Federal, a compatibilidade do art 28 da Lei 11.343/2006, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal, com os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada. Assim, este artigo tem como objetivo discutir se as teses fixadas estabelecem um progresso com relação a problemática do tratamento jurídico dado ao porte de drogas para consumo pessoal ou apenas constituem medidas paliativas? A fim de solucionar tal problemática foram realizadas pesquisas bibliográficas e jurisprudenciais, concluindo-se que as teses fixadas pela Suprema Corte não passam de medidas paliativas, pois, embora o procedimento seja de natureza não penal, continua sendo resolvido em sede policial até que um regulamento seja aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça.
Palavras-chaves: Recurso Extraordinário. Supremo. Consumo pessoal.
This article aims to debate the theme set out in Extraordinary Appeal No. 635.659/SP before the Federal Supreme Court, in which it was discussed, in light of art 5, X, of the Federal Constitution, the compatibility of art 28 of Law 11.343/2006, which typifies the possession of drugs for personal consumption, with the constitutional principles of intimacy and private life. Thus, this article aims to discuss whether the established theses establish progress in relation to the issue of legal treatment given to possession of drugs for personal consumption or merely constitute palliative measures? In order to resolve this problem, bibliographical and jurisprudential research was carried out, and it is concluded that the theses established by the Supreme Court are nothing more than pallet measures, since, although the procedure is of a non-criminal nature, it continues to be resolved in police headquarters until a regulation is approved by the CNJ.
Keywords: Extraordinary Resource. Supreme Court. Personal consumption.
INTRODUÇÃO
A pesquisa em tela tem como tema as teses fixadas no Recurso Extraordinário nº 635.659/SP (Tema 506) perante o Supremo Tribunal Federal, em que se discutiu, à luz do art 5º, X, da Constituição Federal, a compatibilidade do art 28 da Lei 11.343/2006, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal, com os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada.
O consumo de drogas para uso pessoal é presente na história da humanidade desde sua formação. A forma como a humanidade optou por tratar esse assunto dentro da seara social e jurídica, consiste basicamente em proibir a conduta estabelecendo sanções penais para quem a descumpre ou a descriminaliza.
Segundo dados do Monitor de Políticas de Drogas nas Américas, Instituto Igarapé, 16 países americanos já descriminalizaram o porte de maconha para consumo pessoal, sendo eles Antígua e Barbuda, Argentina, Barbados, Bermudas, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, México, Peru, Trindade e Tobago, Estados Unidos, Uruguai e Venezuela.
No âmbito do direito interno brasileiro, em princípio, elegeu-se tipificar a conduta de porte de drogas para consumo pessoal como crime. Essa definição jurídica está no art. 28 da Lei nº 11.343/2006, conhecida como Lei de Drogas.
Ante o exposto, percebe-se que a discussão deste tema é de suma importância, visto que alguns cidadãos acreditam que é possível portar drogas no país sem que haja nenhuma reprimenda, pois não se configura conduta ilícita. Tal conceito se deve ao fato de que, apesar de ser amplamente discutido no meio social brasileiro, o tema ainda é visto de forma desarrazoada e sem rigor técnico.
Desta feita, reafirmamos que é indispensável discutir as teses fixadas na R.E 635.659/SP, pois o conhecimento divulgado no seio da sociedade brasileira sobre o tema é de péssima qualidade jurídica, levando a crenças distorcidas sobre a possibilidade, ou não, do consumo de drogas.
Para atender ao problema da pesquisa, foi apresentado um universo teórico que traduz o entendimento dos principais doutrinadores e dos Tribunais Superiores sobre o tema em estudo. O marco teórico do presente artigo inicia-se com estudo do art. 28 da Lei nº 11.343/2006, e ainda dentro deste universo, apresentamos as teses fixadas no R.E 635.659/
SP, e ademais, como se deu a dinâmica dos votos dos Excelentíssimos Ministros do Supremo Tribunal Federal, visto que tal arcabouço jurídico teórico fornecesse todos os pontos importantes para compreensão da conclusão apontada por este artigo.
1. ANALISE DA LEI DE DROGAS: ARTIGO 28
A Lei de nº 11.343 de 2006, conhecida como Lei de Drogas, institui o Sistema Naci- onal de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD; ademais prescreve medidas para preven- ção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; assim como, estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de dro- gas; além de definir crimes.
Preliminarmente, a Lei de nº 6.368/76 regulava a sistemática das drogas, já em 2002, a Lei de nº 10.409/2002 promovia mudanças na parte material e processual, entretanto, foi integralmente vetada pelo Presidente da República, prevalecendo apenas a parte processual. Portanto, até a edição da Lei de nº 11.343/2006 havia duas leis que tratavam sobre o tema, uma dispondo sobre o direito material penal e a outra contendo a parte procedimental.
Com o propósito de corrigir as dificuldades que até então ambas as legislações apre- sentavam, nasceu a Lei nº 11.343/2006, revogando expressamente as Leis nº 6.368/76 e nº 10.409/2002, passando a vigorar como diploma legislativo de caráter nacional.
A Lei de nº 11.343/2006 é composta por 75 artigos, segundo Masson e Marçal (2019) seu objeto é a proteção à saúde pública, assim, por conclusão a da coletividade. O objeto material é as drogas, assim definida, mediante Portaria SVS/MS nº 344/1998.
Na área criminal esta lei apresentou como principais inovações o tratamento diferen- ciado em relação ao usuário, a tipificação de crime específico para a cessão de pequena quan- tia de droga para consumo conjunto, o agravamento da pena do tráfico, a criação da figura do tráfico privilegiado, a tipificação do crime de financiamento ao tráfico, bem como a regula- mentação de novo rito processual.
O primeiro crime tipificado é o porte de drogas para uso pessoal. O artigo 28 tipificou como condutas quem adquire, guarda, traz consigo, transporta ou tem em depósito drogas para consumo pessoal, ou para aquele que prática as condutas equiparadas. Apresentou no § 1º, como condutas equiparadas, quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar de- pendência física ou psíquica.
O referido artigo apresentou várias modificações em relação à conduta da lei anterior, a Lei de nº 6.368/76. Diante de tal conjuntura, várias discussões surgiram a medida este artigo foi aplicado às situações fáticas.
A primeira discussão em relação a este crime estava relacionada com o fato de que, pelo fato de não estabelecer como reprimendas, penas privativas de liberdade, o fato delituoso continuaria a ter natureza penal? Pois, de acordo com a Lei nº 11.343/2006, não há nenhuma possibilidade de imposição de pena privativa de liberdade para as condutas tipificadas no “ca- put” do artigo 28 e no § 1º. Segundo a lei de Drogas, as únicas penas que poderiam ser im- postas ao sujeito passivo, compreendia: advertência sobre os efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento à programa ou curso educa- tivo.
Do exposto, percebe-se que diante das alterações advindas da Lei 11.343 de 2006 no que tange a impossibilidade de aplicação da pena privativa de liberdade, houve a descrimina- lização da conduta ou a despenalização? Igualmente, há ainda quem sustente a ocorrência da descaracterização do artigo 28, haja vista a ausência de prisão.
O Supremo Tribunal Federal solidificou entendimento afirmando que houve a despe- nalização, mantendo a conduta como típica. A doutrina majoritária corroborou sustentando que o fato continuaria a ser tratado como crime, porém, com um abrandamento no tratamento penal dispensado ao usuário, visto que, a Lei nº 6.368/76, cominava à conduta do usuário de drogas pena privativa de liberdade pelo prazo de seis meses a dois anos, na modalidade de- tenção.
Em 19 de Agosto de 2015, inicia-se o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659/SP, com voto do Relator Gilmar Mendes dando provimento ao Recurso, e neste momento, inicia-se mais uma polêmica em torno do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006, qual seja: a compatibilidade do art 28 da Lei 11.343/2006, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal, com os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada, à luz do art 5º, X, da Constituição Federal.
Na visão dos doutrinadores, entre eles Almeida (2017), o aumento da população carcerária na última década está diretamente relacionado com o crime de tráfico de drogas, pois não há uma definição clara sobre os critérios que tornam um cidadão em conflito com a lei, ser enquadrado na conduta de tráfico de drogas, do artigo 33 ou de usuário do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006.
Analisando os dados apresentados pelo INFOPEN, sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro – e pelo SISDEPEN, sistema de informações estatísticas do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), mostram que a população carcerária em dezembro de 2021 era 670.714 presos, deste universo 29,35% eram presos provisórios. Já em 2014, 40,13 % da população carcerária era de presos provisórios.
O SISDEPEN informou que em relação ao período de julho a dezembro de 2021, o total de 203.625 infrações foram enquadradas nas Leis nº 6.368/76 e nº 11.343/2006, o que representa cerca de 23,41% do total de delitos, sendo este, o segundo maior, atrás apenas de crimes contra o patrimônio.
Neste cenário, doutrinadores e operadores do direito levantaram discussões sobre à eficácia da Lei de Drogas, e ademais sobre as políticas públicas vigentes.
Foucault (2004), defende que o Estado vislumbra o controle dos corpos como uma demonstração de poder, portanto, utiliza as prisões como uma forma de demostrar a eficácia das Leis. Zaffaroni afirma que o resultado desta política de encarceramento é uma falsa sensação de segurança, uma vez que o Estado vivi em constante guerra com a criminalidade e com os possíveis infratores.
Entretanto, é necessário observar que Estado Brasileiro não tem estrutura para aplicar uma política de descriminalização das drogas, tampouco de gerir um sistema que permita, que as forças de segurança pública exerçam seu papel de forma a prevenir os crimes, em vez de reprimir, ou que seja possível promover um desencarceramento em massa com controle sobre essas pessoas.
A verdade é que, no Estado Brasileiro, ocorre de forma silenciosa uma guerra comandada pelas facções criminosas. Estudos realizados pelo Ministério da Justiça apontam que no Brasil existem 72 grupos criminosos atuando nos presídios.
Acreditamos que há um engano em defender que apenas retirar pessoas das cadeias irá resolver os problemas de etiquetamento social das pessoas presas, com base na Lei nº 11.343/2006. Se o Ordenamento Jurídico Brasileiro não se estruturar para retirar o usuário das Delegacias de Polícia Civil de nada adianta descriminalizar, pois o estigma social ainda continuará, mesmo que na folha de antecedentes criminais nada conste, sobre sua passagem nas dependências das unidades policiais.
Essas e outras questões tão debatidas na sociedade, foram discutidas no Recurso Extraordinário 635.659/SP, que trata de um caso concreto, no qual uma pessoa foi condenada à pena de prestação de serviço a comunidade por portar 3 gramas de maconha para consumo próprio.
Neste Recurso, foram discutidas as questões jurídicas sobre se a posse de pequena quantidade de maconha deve ser considerada crime, e caso seja considerada crime, qual o critério para diferenciar os usuários de traficante? Essas questões foram discutidas por 9 anos no Supremo, e no dia 26 de junho de 2024 foram fixadas as teses sobre Recurso Extraordinário 635.659/SP.
2. ANALISE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 635.659/SP: TEMA 506
No dia 26 de junho de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF), finalizou o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659/SP, com repercussão geral (Tema 506), que julgou a constitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 à luz art. 5º, X, da Constituição Federal, fixando como tese, em apertada síntese, que o porte de maconha para consumo pessoal não possui natureza penal, e sim um ilícito administrativo; além de estabelecer os critérios de forma objetiva, que diferenciam o usuário do traficante.
No caso em comento, artigo 28 da Lei nº 11.343/2006 é impugnado devido a sua incompatibilidade com as garantias constitucionais da intimidade e da vida privada. Não se funda o recurso na natureza em si das medidas previstas no referido artigo, mas, essencialmente, na vedação constitucional à criminalização de condutas que diriam respeito, tão somente, à esfera pessoal do agente incriminado.
O relator desse Recurso, foi o Excelentíssimo Senhor Ministro Gilmar Mendes, que usando de suas palavras afirmou que “tratar como crime a posse de drogas para consumo próprio fere o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações”.
Ainda, segundo o Excelentíssimo Senhor Ministro, “a criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”.
Em seu voto, é perceptível que a visão do referido Ministro, é no sentido de questionar os critérios utilizados, atualmente, para definir quem pode ser enquadrado como usuário ou como traficante na dinâmica da vida- ser baseado apenas nas palavras dos policiais. O Excelentíssimo Ministro deu provimento ao Recurso para declarar a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei nº 11.343/2006, de forma afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal.
O Excelentíssimo Senhor Ministro Edson Fachin pediu vista e proferiu seu voto, igualmente dando provimento parcial ao recurso. No dia 10 de setembro de 2015, o Excelentíssimo Senhor Ministro Roberto Barroso deu seu voto, reconhecendo a procedência do recurso. O julgamento foi suspenso após pedido de vista do Excelentíssimo Senhor Ministro Teori Zavascki, sendo este retomado em 02 de agosto de 2023, com o voto do Excelentíssimo Senhor Ministro Alexandre de Moraes que acompanhou o voto do relator, contudo, divergindo sobre quem fará a definição e qual será a quantidade máxima permitida. O Excelentíssimo Senhor Ministro Alexandre de Moraes afirmou que “será presumido usuário aquele que adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trazer consigo, uma faixa fixada entre 25,0 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmea.”. No dia 24 de agosto de 2024, o Excelentíssimo Senhor Ministro Gilmar Mendes reajustou o seu voto aos parâmetros sugeridos pelo Excelentíssimo Senhor Ministro Alexandre de Moraes.
Os Excelentíssimos Senhores Ministros André Mendonça, Nunes Marques e Cristiano Zanin, consideraram o artigo 28 constitucional e votaram contra a descriminalização e pela improcedência do Recurso.
Em seu voto o Ministro André Mendonça afirma que esta é uma questão que deve ser resolvida pelo Poder Legislativo, aduzindo, durante a Sessão do Pleno, que na prática “nós estamos liberando o uso”. Propôs a constitucionalidade do artigo 28, visto que “não se trata de vida privada e sim de danos sérios a saúde, com aumento de suicídio e acidentes”, seguindo o voto do Excelentíssimo Ministro Zanin. O referido Ministro afirmou que a descriminalização aumentaria ainda mais o tráfico de drogas- e que o § 2º, do artigo 28 já estabelece critérios que permitem diferenciar a conduta que deve ser enquadrada como tráfico ou como porte para consumo pessoal.
A Excelentíssima Senhora Ministra Rose Weber acompanhou o voto do Relator e o Excelentíssimo Ministro Barroso reajustou seu voto, para acompanhar o voto do Relator.
O Excelentíssimo Senhor Ministro Dias Toffoli votou pelo improvimento do Recurso reconhecendo a constitucionalidade do art. 28 da Lei nº 11.343/2006, aplicando como medidas as previstas nos incisos I a III do já citado dispositivo, pois, não acarreta efeitos penais; além de outras medidas que visam especificamente solicitar que o poder Legislativo e o Executivo participem também do processo por meio de medidas específicas.
No dia 25 de junho de 2024, o julgamento foi retomado com o voto do Excelentíssimo Senhor Ministro Fux que votou pelo improvimento do Recurso. A Excelentíssima Senhora Ministra Carmen Lúcia acompanha o voto do Excelentíssimo Senhor Ministro Edson Fachin, no sentido do parcial provimento do recurso, declarando a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei nº 11.343/2006, dando interpretação conforme. Declarou em seu voto ainda que até que sobrevenha a atuação do Legislador, acompanha o voto do Excelentíssimo Senhor Ministro Alexandre de Moraes, no que se refere ao critério quantitativo. Neste momento, Excelentíssimo Senhor Ministro André Mendonça reajusta seu voto para aderir ao entendimento do Excelentíssimo Senhor Ministro Dias Toffoli deixando de estabelecer uma fixação de quantitativo de droga.
No dia 26 de junho de 2024, por maioria dos Ministros e nos termos do voto do Relator, o julgamento é finalizado dando provimento ao Recurso Extraordinário 635.659/SP para declarar:
A) a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 28 da Lei nº 11.343/2006, de modo a afastar do referido dispositivo todo e qualquer efeito de natureza penal, ficando mantidas, no que couberem, até o advento de legislação específica, as medidas ali previstas, vencidos dos Excelentíssimos Senhores Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Luiz Fux;
B) absolver o acusado por atipicidade da conduta, vencidos os Excelentíssimos Senhores Ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques e Luiz Fux.
3. O ATUAL POSICIONAMENTO DO SUPREMO E AS QUESTÕES PRÁTICAS DE SUA APLICAÇÃO
Ao finalizar o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659/SP é cediço que prevaleceu o voto de Relator e foram fixadas como teses gerais, as seguintes:
“1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III);
2.As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta;
3.Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença;
4.Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito;
5.A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes;
6.Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários;
7.Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio;
8.A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário”. (STF)
Verifica-se que as discussões produzidas durante o julgamento de referido recurso produziram a descriminalização do porte para consumo pessoal apenas da cannabis sativa, vulgarmente conhecida como maconha. Esperava-se que as teses fixadas fossem resolver de forma clara e inequívoca as questões do já citado Recurso, contudo, ao definir a quantidade de 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas fêmeas como critério para diferenciar quem é enquadrado como usuário ou traficante, não resolveu a celeuma, pois, no item 5 declarou que a presunção é relativa, e que somente diante do caso concreto e das demais provas apresentadas a autoridade policial, e ainda considerando as circunstâncias, é facultado a autoridade policial lavrar Auto de Prisão em Flagrante, enquadrando-o como traficante, mesmo se a quantidade apreendida for menor ou igual ao fixado na tese.
Ademais, ressalta-se que durante seu voto, o Ministro relator utilizou como um dos seus principais argumentos o fato de que a palavra da polícia era uma fonte questionável, usando de suas palavras:
“Não se está aqui a afirmar que a palavra de policiais não mereça crédito. O que se crítica é deixar exclusivamente com a autoridade policial, diante da ausência de critérios objetivos de distinção entre usuário e traficante, a definição de quem será levado ao sistema de Justiça como traficante, dependendo dos elementos que o policial levar em consideração na abordagem de cada suspeito “.
Portanto, se a palavra do policial não deve ser utilizada como fonte exclusiva para dizer quem deve ser levado ao sistema de Justiça, porque a presunção foi definida como relativa, e não como absoluta? Além do mais, porque ainda continuar utilizar as forças de segurança, se o atual sistema possui falhas que expõe à intimidade e a vida privada dos conduzidos?
Outro ponto que deve ser observado se deve ao fato de que a discussão se limitou apenas à cannabis sativa, acredita-se que a inconstitucionalidade deveria ser reconhecida para porte das drogas em geral. Se assim fosse, a posição jurisprudencial permitiria alinhamento com a ideia da descriminalização do porte para consumo pessoal.
Há correntes que defendem que esta discussão deveria ser apreciada pelo poder Legislativo ou pelo poder Executivo, que mediante a retirada da substância cannabis ativa da Portaria SVS/MS nº 344/1998, resolveria de forma rápida esta questão sem tanto dispêndio de recursos em 9 anos de julgamentos.
Outro ponto que se questiona, é se realmente o porte de consumo pessoal é o fato gerador de incentiva as atividades criminosas, e se o fato de usar cannabis sativa pode estigmatizar um indivíduo ao ponto de impossibilitá-lo de se inserir no mercado de trabalho. Esta discussão é mais uma, que só poderá ser finalizada ao longo do tempo.
Acrescenta-se que não adianta retirar a natureza penal de um ilícito visando assegurar os direitos fundamentais dos indivíduos, e continuar vilipendiando sua esfera de intimidade com as mesmas forças de segurança que a sociedade julga não saber fazer seu trabalho, de forma adequada, segundo os anseios sociais. Acrescenta-se que o Tribunal deliberou, ainda, nos termos do voto do Relator:
- Determinar ao CNJ, em articulação direta com o Ministério da Saúde, Anvisa, Ministério da Justiça e Segurança Pública, Tribunais e CNMP, a adoção de medidas para permitir (i) o cumprimento da presente decisão pelos juízes, com aplicação das sanções previstas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06, em procedimento de natureza não penal; (ii) a criação de protocolo próprio para realização de audiências envolvendo usuários dependentes, com encaminhamento do indivíduo vulnerável aos órgãos da rede pública de saúde capacitados a avaliar a gravidade da situação e oferecer tratamento especializado, como os Centros de Atenção Psicossocial de Álcool e Drogas – CAPS AD;
- Fazer um apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que adotem medidas administrativas e legislativas para aprimorar as políticas públicas de tratamento ao dependente, deslocando o enfoque da atuação estatal do regime puramente repressivo para um modelo multidisciplinar que reconheça a interdependência das atividades de
(a) prevenção ao uso de drogas; (b) atenção especializada e reinserção social de dependentes; e (c) repressão da produção não autorizada e do tráfico de drogas;- Conclamar os Poderes a avançarem no tema, estabelecendo uma política focada não na estigmatização, mas (i) no engajamento dos usuários, especialmente os dependentes, em um processo de autocuidado contínuo que lhes possibilite compreender os graves danos causados pelo uso de drogas; e (ii) na agenda de prevenção educativa, implementando programas de dissuasão ao consumo de drogas; (iii) na criação de órgãos técnicos na estrutura do Executivo, compostos por especialistas em saúde pública, com atribuição de aplicar aos usuários e dependentes as medidas previstas em lei;
- Para viabilizar a concretização dessa política pública – especialmente a implementação de programas de dissuasão contra o consumo de drogas e a criação de órgãos especializados no atendimento de usuários – caberá aos Poderes Executivo e Legislativo assegurar dotações orçamentárias suficientes para essa finalidade. Para isso, a União deverá liberar o saldo acumulado do Fundo Nacional Antidrogas (Funad), instituído pela Lei 7.560/86 e gerido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), e se abster de contingenciar os futuros aportes no fundo, recursos que deverão ser utilizados, inclusive, para programas de esclarecimento sobre os malefícios do uso de drogas. (STF)
Para concluir, o STF determinou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a participação das Defensorias Públicas, efetue mutirões carcerários para apurar e corrigir prisões decretadas em desacordo com os parâmetros fixados no voto do Relator, pois é sedimentado no ordenamento jurídico brasileiro que a norma mais benéfica ao réu retroage. Espera-se, também, que os números de procedimentos reduzam de forma sensível, e que o Brasil seja um exemplo de nação que resolveu o problema de encarceramento, apenas fixando uma tese sobre porte para consumo pessoal de cannabis sativa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo permite concluir que, em relação à problemática deste artigo, qual seja, se a descriminalização do porte de “maconha” para consumo pessoal pode ser considerada como um progresso ou solução paliativa, afirma-se que se concretizou como uma medida paliativa, devido, principalmente, à presunção relativa do critério definido para diferenciar usuário do traficante, pois é cediço que a Lei nº 11.343/2006 em seu artigo 28, § 2, já estabelecia critério que permitia estabelecer essa diferenciação de forma relativa. Portanto, estabelecer a quantidade de 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas fêmeas, e ao final afirma que dependendo da situação fática este critério pode ser relativizado pela autoridade policial, não produziu uma mudança no que atualmente acontece nas sedes policiais do Estado Brasileiro.
Noutro norte, a descriminalização tratou apenas de uma substância, em um universo composto por diversos tipos de drogas, assim sendo, como promover a descriminalização apenas de um tipo de droga, se o artigo 28 tipifica como crime drogas de forma abrangente?
Outra vertente que fundamenta o posicionamento adotado por este estudo, reside no fato de que na prática nada mudou, pois, em relação à invasão da privacidade e da intimidade do conduzido, as ocorrências continuam sendo levadas ao conhecimento da autoridade policial para serem decididas, destacando-se que algumas das medidas fixadas na tese para evitar a invasão dependem da colaboração dos outros poderes para que se efetuem.
Na prática, verifica-se que a única mudança real consiste no fato de que em relação à cannabis sativa, se a conduta praticada for enquadrada pela autoridade policial como porte para consumo pessoal, não gera anotações em sua FAC. Consequentemente, quanto a problemática deste artigo, as teses fixadas no Recurso Extraordinário 635.653/ SP constituem mais uma medida paliativa do que um efetivo progresso para a sociedade, pois ainda há muitas discussões jurídicas a serem realizadas para que realmente as questões discutidas nesse recurso sejam solucionadas de forma produzir um progresso jurídico com reflexos sociais.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no HC n. 679.715/MG, RelatorMinistro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 26/10/2021, Diário da Justiça Eletrônico de 3/11/2021. Disponível em:<https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/16112021-Associacao- para-o-trafico-nao-impede-progressao-mais-benefica-para-maes–decide-Quinta- Turma.aspx#:~:text=Segundo%20o%20artigo%201%C2%BA%2C%20par%C3%A1grafo,i nfra%C3%A7%C3%B5es%20penais%20cujas%20penas%20m%C3%A1ximas>. Acesso em: 15 out. 2024.
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