ANÁLISE DO PERFIL EPIDÊMIOLOGICO DOS CASOS DE AUTOMUTILAÇÃO EM TERESINA-PI NOS ANOS DE 2018 A 2023

ANALYSIS OF THE EPIDEMIOLOGICAL PROFILE OF SELF-MUTILATION CASES IN TERESINA-PI IN THE YEARS 2018 TO 2023

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10054240


Isadora Carvalho Bezerra de Sousa
Layssa Raquel Lima Quinderé
Maria Paula Rodrigues Luz
Orientador: Luan Arnon de Melo Cunha


RESUMO:

INTRODUÇÃO: Mudanças corporais, desequilíbrios hormonais, alterações no comportamento, além das pressões dos estudos e do mercado de trabalho, desavenças familiares e desejo de experimentar substâncias, tornam indivíduos cada vez mais susceptíveis a um estado de maior fragilidade psicológica. A automutilação, o comportamento repetido do próprio individuo de inflingir lesões á superficie do seu corpo com o propósito de reduzir emoções negativas. METODOLOGIA: Trata-se de um estudo epidemiológico, retrospectivo, quantitativo e descritivo sobre a prevalência de lesões autoprovocadas e registradas utilizou-se do Sistema de Informações sobre Morbidade Hospitalar do SUS (SIH/SUS) na cidade de Teresina no período dos anos de 2018 a 2022. RESULTADOS: Durante o período analisado, 3.594 casos de automutilação foram registrados. As notificações apresentaram variações significativas, com o maior número de casos em 2019 (27,54%) e o menor em 2020 (12,85%). A distribuição ao longo dos meses também variou de ano para ano. A faixa etária mais afetada foi de 15 a 29 anos, com oscilações percentuais em cada ano. O sexo feminino teve uma maior prevalência de automutilação em comparação com o sexo masculino. DISCUSSÃO: Este estudo aborda a automutilação em adolescentes e adultos jovens, destacando suas complexas dimensões psicológicas, socioculturais e de gênero. A prática é compreendida como uma tentativa paradoxal de alívio emocional e autopunição. A análise também revela que a pandemia de COVID-19 intensificou os desafios para a saúde mental, aumentando a prevalência de doenças mentais, automutilação e ideação suicida, enfatizando a necessidade de intervenções e prevenção eficazes. CONCLUSÃO: Evidencia-se que a automutilação, principalmente em adolescentes e adultos jovens, na cidade de Teresina PI, parte de motivações complexas e sofre influencias do contexto sociocultural e de gênero. A pesquisa destacou pontos do contexto ambiental e de um cenário global que intensificam os registros de automutilação, como por exemplo a pandemia da COVID-19 que se destacou como um agravante de problemas de saúde mental em todo o país.

Palavras-chave: automutilação, epidemiologia, autolesão não suicida.

ABSTRACT:

INTRODUCTION: Bodily changes, hormonal imbalances, alterations in behavior, along with the pressures of education and the job market, family conflicts, and the desire to experiment with substances, make individuals increasingly susceptible to a state of heightened psychological vulnerability. Self-harm, the repeated behavior of inflicting injuries on one’s own body with the purpose of alleviating negative emotions. METHODOLOGY: This is an epidemiological, retrospective, quantitative, and descriptive study on the prevalence of self-inflicted and registered injuries using the Sistema de Informações sobre Morbidade Hospitalar do SUS (SIH/SUS) in the city of Teresina during the years 2018 to 2022. RESULTS: During the analyzed period, 3,594 cases of self-harm were recorded. Notifications showed significant variations, with the highest number of cases in 2019 (27.54%) and the lowest in 2020 (12.85%). The distribution throughout the months also varied from year to year. The most affected age group was 15 to 29 years, with percentage fluctuations in each year. The female gender had a higher prevalence of self-harm compared to the male gender. DISCUSSION: This study addresses self-harm in adolescents and young adults, highlighting its complex psychological, sociocultural, and gender dimensions. The practice is understood as a paradoxical attempt to relieve emotional distress and self-punishment.The analysis also reveals that the COVID-19 pandemic has intensified challenges for mental health, increasing the prevalence of mental illnesses, self-harm, and suicidal ideation, emphasizing the need for effective interventions and prevention. CONCLUSION: It is evident that self-harm, especially in adolescents and young adults in the city of Teresina, Piauí, stems from complex motivations and is influenced by sociocultural and gender contexts. The research highlighted aspects of the environmental context and the global scenario that intensify self-harm records, such as the COVID-19 pandemic, which stood out as an exacerbating factor for mental health problems throughout the country.

Keywords: self-harm, epidemiology, non-suicidal self-injury.

1. INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA

A violência autoprovocada é um grave problema de saúde pública em âmbito global (OPAS, 2018). Pode se manifestar de diversas formas e alcançar qualquer indivíduo, independente da raça/cor, condição social, sexo e faixa etária (SINIMBU RB et al., 2016). As lesões autoprovocadas se caracterizam por atos de automutilação, que vão desde formas leves, como arranhões, mordidas e pequenos cortes na pele, até formas mais graves, como a perda de membros e até mesmo da própria vida (BAHIA CA et al., 2017).

Globalmente, estima-se que 1 em cada 7 (14%) jovens entre 10 e 19 anos tenham problemas de saúde mental, no entanto, esses continuam amplamente desconhecidos e não tratados. (WHO, 2021a). Adolescentes com problemas de saúde mental são particularmente vulneráveis à exclusão social, discriminação, estigma (afetando a disposição em buscar ajuda), dificuldades educacionais, comportamentos de risco, problemas de saúde física e violações de direitos humanos. (BROWN e PLENER, 2017; OPAS, 2018; WHO, 2021a).

O transtorno de conduta (envolvendo sintomas de comportamento destrutivo) ocorre em 3,6% dos jovens de 10 a 14 anos e 2,4% dos de 15 a 19 anos (WHO, 2021b). Alguns adolescentes estão em maior risco de condições de saúde mental devido às suas condições de vida, estigma, discriminação ou exclusão, ou falta de acesso a apoio e serviços de saúde de qualidade. (BROWN e PLENER, 2017; OPAS, 2018; WHO, 2021a; WHO, 2021b).

Faz-se crucial, nesse contexto, implementar intervenções de promoção e prevenção da saúde mental entre adolescentes de diferentes regiões e realidades para ajudá-los a desenvolver habilidades de regulação emocional, oferecer alternativas mais saudáveis para comportamentos de risco, construir resiliência para lidar com desafios e adversidades e fomentar ambientes sociais e redes de apoio.

Ademais, lidar com adolescentes que se auto lesionam é desafiador para os profissionais de saúde envolvidos com a saúde mental. (ARAGÃO & MASCARENHAS, 2018; WHO, 2021b). No ano de 2011, a portaria de número 104 do MS incluiu a violência na Lista Nacional das Doenças e Agravos de Notificação Compulsória. Com isso, a notificação passou a ser obrigatória para todos os profissionais de saúde, seja de serviços públicos ou privados, devendo ser registrado no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) qualquer caso suspeito ou confirmado de violência.

Dados sobre lesão autoprovocadas apesar de notificados, são essenciais para que propostas e planejamentos sejam criados com o intuito de diminuir esta problemática, com base na identificação de pessoas que estão mais propensas a realizar os atos lesivos com o mesmo. Desse modo, tendo em vista o crescente impacto social e econômico que a violência autoprovocada gera, essa introdução visa descrever o perfil epidemiológico dos casos de violência autoprovocada em adolescentes em Teresina, Piauí no período de 2018 a 2022.

2. MÉTODO

Este trabalho trata-se de um estudo epidemiológico, retrospectivo, quantitativo e descritivo sobre a prevalência de lesões autoprovocadas e registradas na cidade de Teresina no período dos anos de 2018 a 2022.

Para a obtenção dos dados necessários durante a construção desta pesquisa, utilizou-se registros disponibilizados pelo Sistema de Informações sobre Morbidade Hospitalar do SUS (SIH/SUS). Realizou-se uma busca na plataforma DATA SUS, reconhecida por sua qualidade e abrangência na área da saúde por meio das abas doenças e agravos, violência autoprovocada e utilizando as variáveis faixa etária, sexo, raça ou etnia, escolaridade e tipo de lesão autoprovocada.

Outrossim, para a construção do artigo, realizou-se uma busca nas bases de dados utilizando os descritores: autolesão, autolesão não suicida, automutilação e violência autoprovocada, em português para garantir a precisão e a relevância dos resultados.

Os critérios de inclusão adotados neste estudo foram delineados com base em parâmetros demográficos e clínicos, envolvendo os seguintes elementos: gênero, representado por indivíduos do sexo masculino e feminino, raça/cor, que englobou diferentes grupos étnicos, faixa etária, abrangendo a faixa etária de 14 a 29 anos, escolaridade, considerando diferentes níveis de educação; e tipo de lesão, classificando as características da lesão em questão.

Por sua vez, os critérios de exclusão foram estabelecidos para restringir a análise a um grupo específico de casos, excluindo informações referentes a situações de violência resultantes de agentes externos ou causadas por terceiros, bem como episódios de violência de natureza distinta. Adicionalmente, foram excluídos dados relativos a casos de automutilação ocorridos fora do período da adolescência, informações originadas de outras unidades federativas que não o Piauí e de localidades que não a cidade de Teresina.

Os dados para esta pesquisa foram obtidos através de uma busca na plataforma DATA SUS (TABNET) e posteriormente serão tabulados na plataforma Excel., versão 2021. Posteriormente, os dados foram estruturados em formatos gráficos e tabelas, com o propósito de facilitar a compreensão e a visualização das informações obtidas.

3. RESULTADOS

Segundo os dados obtidos através do Sistema de Informações sobre Morbidade Hospitalar do SUS (SIH/SUS) observou-se um número de 3. 594 pessoas encaminhadas à serviços de diversos níveis de atenção de saúde pública com quadro de lesões de automutilação no intervalo entre os anos de 2018 e 2022. A distribuição ao longo dos anos revela variações significativas com maior índice presente no ano de 2019 com 990 notificações (27,54%) e menor índice no ano de 2020 com um total de 462 casos notificados (12,85%). Os demais dados foram descritos no gráfico 1.

Gráfico 1. NÚMERO DE CASOS DE AUTOMUTILAÇÃO NOTIFICADOS NA CIDADE DE TERESINA- PI NOS ANOS DE 2018, 20109, 2020, 2021 E 2022.

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net.

Em relação aos meses de maior incidência de busca aos serviços hospitalares, notou-se uma flutuação de acordo com o ano de notificação. No ano de 2018, o mês de maior incidência foi o mês de outubro com 63 casos notificados (11,3%), no ano seguinte, 2019, houve uma maior incidência no mês de novembro com 121 casos registrados (12,2%). O ano de 2020 teve maiores índices de notificações nos meses correspondentes a janeiro e fevereiro, ambos com 87 registros hospitalares (18,8%). No que diz respeito ao ano de 2021, o mês de agosto teve recorde de notificações com um total de 109 casos (11,6%). Por conseguinte, o ano de 2022 teve alta de notificações no mês de novembro com um total de 71 casos (11%). Os demais valores de notificações estão dispostos na tabela 1.

Tabela 1. PREVALÊNCIA DE CASOS DE AUTOMTILAÇÃO EM TERESINA EM RELAÇÃO AOS MESES DE OCORRÊNCIA CORRESPONDENTES AOS ANOS DE 2018 A 2022.


MÊS DE OCORRÊNCIA
ANO DE OCORRÊNCIAJANFEVMARABRMAIJUNJULAGOSETOUTNOVDEZ
2018402829537260294153634939
20195839514986861009991107121104
2020878763152125823544855
20215872554176899910998937275
2022475155324964556354617149

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Com base nos dados obtidos por meio do Sistema de Informações sobre Morbidade Hospitalar do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), identificou-se que, uma maior prevalência de lesões autoprovocadas entre as faixas etárias de 15 a 29 anos com oscilações percentuais correspondentes aos anos de notificação. No ano de 2018 foram notificados 305 casos (55%) dentro do segmento de idade supracitado. No ano seguinte, 2019, houve um registro de 553 casos (56%). Em continuidade, o ano de 2020 registrou 253 pacientes (55%) dentro desta faixa etária seguido do ano de 2021, onde foram registrados 478 pacientes (51%) com lesões autoprovocadas. O ano de 2022 notificou 354 casos (55,2%) pertencentes a este grupo etário. Os valores restantes das notificações estão apresentados no gráfico a seguir (gráfico 2).

GRÁFICO 2. PREVALÊCIA DE LESÕES AUTORPOVOCADAS POR FAIXA ETÁRIA NOS ANOS DE 2018 A 2022.

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Com base nas informações extraídas do Sistema de Informações sobre Morbidade Hospitalar do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), observou-se que a prevalência de lesões autoprovocadas é mais significativa entre indivíduos do sexo feminino em comparação com indivíduos do sexo masculino. Números delineados minuciosamente no gráfico subsequente (gráfico 3).

GRÁFICO 3. PREVALÊNCIA DE AUTOMUTILAÇÃO POR SEXO NA CIDADE DE TERESINA -PI ENTRE OS ANOS DE 2018 E 2022.

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Baseando-se ainda nos dados obtidos do Data SUS, por meio da plataforma TabNet, e na análise dos dados sociodemográficos da cidade de Teresina, destaca-se uma notável congruência na prevalência de notificações de automutilação entre pessoas autodeclaradas pardas nos anos investigados (2018, 2019, 2020, 2021 e 2022). Ademais, quando se compara essa prevalência em relação às pessoas autodeclaradas brancas, observa-se uma variação significativa. Em 2018, essa variação foi de 20%, aumentando para 24,1% em 2019, 25,7% em 2020, 16,4% em 2021 e atingindo 33,1% em 2022. As demais informações epidemiológicas relacionadas à cor ou raça serão apresentadas no gráfico a seguir (gráfico 4).

GRAFICO 4. PREVALÊNCIA DE AUTOMUTILAÇÃO POR RAÇA/COR NA CIDADE DE TERESINA NOS ANOS DE 2028 A 2022

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

Outrossim, os resultados da pesquisa revelam que a maioria das pessoas que se envolvem em práticas de automutilação em Teresina, Piauí, apresentam níveis de escolaridade predominantemente relacionados ao ensino médio incompleto. Este grupo é seguido por aqueles que concluíram o ensino médio. Os demais dados estão descritos no gráfico 5.

GRÁFICO 5. PREVALÊNCIA DE NOTIFICAÇÕES DE AUTOMUTILAÇÃO NA CIDADE DETERESINA – PI NOS ANOS DE 2028 A 2022

Fonte: Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net

4. DISCUSSÃO

Em várias culturas – primitivas, modernas e contemporâneas – o corpo é utilizado para comunicação. Além dos adornos usados no corpo com o objetivo de comunicar identidade, status, fé etc., também verificamos ao longo da história as marcas corporais derivadas de lesões autoinfligidas. (ARAÚJO et al., 2016).

Para MENNINGER (1934), em um contexto psicanalista, a automutilação contem tres elementos essenciais: (1) agressão voltada para o interior, que frequentemente é sentida em relação a um objeto exterior de amor-ódio, geralmente um dos pais; (2) estimulação, com uma intenção sexual ou puramente física; e (3) uma função autopunitiva que permite que a pessoa compense ou pague por um “pecado” de natureza agressiva ou sexual.

Segundo o quinto manual diagnóstico e estatistico de transtornos mentais (DSM V), considera- se automutilação, o comportamento repetido do próprio individuo de inflingir lesões á superficie do seu corpo com o propósito de reduzir emoções negativas, como ansiedade, e/ou resolver uma dificuldade interpessoal. A pesar do ato não ter como objetivo inicial a ideação suicida, individuos praticantes tem uma maior propensão á sua realização e por esta razão, demandam ações de saúde direcionadas.

Segundo o manual de Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde CID 10, a automutilação é um transtorno caracterizado por movimentos intencionais, repetitivos, estereotipados, desprovidos de finalidade (e frequentemente ritmados), não ligado a um transtorno psiquiátrico ou neurológico identificado. Todavia, sabe-se que a presença de adoecimentos mentais são fatores de risco para a pratica de autmutilação como forma de alívio dos sintomas emocionais. Segundo Menninger, o grande paradoxo é que, enquanto a automutilação é autopunitiva e autodestrutiva, ela também é uma tentativa de se autocurar.

Em decorrencia de constantes modificações do meio cuiltural e ambiental, um conjunto extenso de fatores sociais tendem a ser desencadeantes de transtonos mentais. Neste interirm cita-se o surgimento de um vírus respiratório que tornou vigente a necessidade de isolamento social e modificou os indices de saúde mental em todo o cenário mundial. Segundo CARR et al 2021, as evidências provenientes de inquéritos de autorrelato indicam que podem ter ocorrido aumentos a curto prazo na prevalência de doenças mentais, automutilação e ideação suicida após a implementação do confinamento.

Somado a isso, catastrofes, inovações tecnológicas que limitam a comunicação verbal interpessoal e a mudança de paradigma do real e virtual corrroboram para um maior acometimento de doenças psiquiatricas e suas consequencias. Outrossim, CARBALLO et al. (2020) elucidam um conjunto de fatores que podem levar a um desequilibrio emocional intenso. Mudanças corporais, desequilíbrios hormonais, alterações no comportamento, além das pressões dos estudos e do mercado de trabalho, desavenças familiares e desejo de experimentar substâncias, tornam individuos cada vez mais susceptiveis a um estado de maior fragilidade psicológica.

De forma surpreendente em relação aos dados constatados no estado do Piauí, uma investigação realizada por NACAMURA et al. (2021) abrangendo todo o território nacional revelou um estudo fascinante sobre a evolução ao longo do tempo nessas categorias, o qual demonstrou um notável aumento nos casos de suicídio, respaldando assim as informações encontradas no Piauí.

De modo complementar, sabendo-se que o suicidio é uma consequencia ou agravo da automutilação, entende-se a importancia de se falar sobre o tema para compreendemos os índices de suicidio no Brasil. A análise das taxas de mortalidade ajustadas revelou um aumento no risco de morte por suicídio em todas as regiões do país, com padrões semelhantes identificados na região Nordeste e no estado do Piauí. Além disso, a letalidade da automutilação está intimamente ligada ao acesso e aos aos meios utilizados para tal fnalidade. Desse modo, nota-se que existe variações de acordo com as características culturais de cada região do país.

A automutilação é uma pratica comum em todas as faixas etárias, todavia, este estudo revelou uma maior prevalência de notificações em adolescentes e adultos jovens (14 a 29 anos). Segundo o DSM 5 curso da Autolesão Não Suicida se inicia com mais frequência no começo da adolescência e pode continuar por muitos anos. A internação hospitalar devido a Autolesão não suicida atinge um pico entre os 20 e os 29 anos de idade e depois diminui. ARAÚJO 2019.

ROSA E VICENTIN (2012), a adolescência é caracterizada como um período de intenso trabalho psíquico, subjetivo e relacional, geralmente desencadeado pela entrada na puberdade. Este fenomeno pode ser atribuido a maturação de estruturas cerebrais neste periodo. MONEZZI ei tal 2018 afirmar que durante a adolescência, a maturação de áreas corticais não está completa, o que reduz a capacidade de regulação top-down, a qual é associada, em particular, ao controle inibitório do córtex pré-frontal ventromedial, região relacionada à capacidade de autocontrole, ao redirecionamento da atenção e reavaliação emocional.

De acordo com informações fornecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e dados obtidos através do sistema de informação do sus (DATA SUS), a região nordeste é a terceira região que mais registra casos de automutilação do Brasil durante os cinco anos de pesquisa ficando atras somente das regiões sul e sudeste. Em consonância com a presente pesquisa, também foi observada uma flutuação nos casos de suicídio no estado do Piauí ao longo dos anos analisados, indicando uma tendência de aumento.

A análise dos dados de gênero revela uma correlação importante na prática da automutilação, onde as mulheres se mostram mais suscetíveis a esse comportamento. Esse fenômeno pode ser compreendido dentro do contexto das relações de gênero, que muitas vezes impõem sofrimentos e pressões específicas sobre as mulheres em uma sociedade ainda influenciada pelo patriarcado. Mulheres tendem a ter maior ocorrência de problemas relacionados à saúde mental, o que ocasiona maior vulnerabilidade em relação à violência autoprovocada PINHEIRO, WARLING E COELHO (2021).

A automutilação, nesse contexto, pode ser vista como uma tentativa de aliviar o sofrimento imposto e legitimado por normas sociais restritivas. Isso é especialmente relevante para meninas que sofrem violência de gênero, pois a automutilação pode representar uma busca por um alívio temporário, embora prejudicial, para o sofrimento emocional, fisiológico e social que enfrentam DIONISIO E QUEIROZ (2020).

Outro fator que corrobora a presença de automutilação em adolescentes e adultos jovens é a prevalencia da prática em pessoas de escolaridade intermediária ou que estejam cursado o ensino médio. Para DIONISIO E QUEIROZ (2020), entende-se que a escola pode ser lugar de produção de sofrimento, mas com potencial significativo para promover acolhimento, escuta e fortalecimento da autoestima, autovalorização do adolescente.

Em consonancia com os dados obtidos na pesquisa, observou-se um padrão de notificações por individuos autodeclarados pardos. Este dado é corroborado pelo resultado do ultimo censo demográfico realizado em 2010 que mostra que, em comparação a outras raças e/ou cores, a população piauiense se autodeclara parda em sua grande maioria.

Ademais, no tocante ao tio de lesão mais frequente, observa-se que escolha do meio utilizado nas violências autoinfligidas abrange aspectos psicossociais, de gênero, aceitabilidade sociocultural, além da disponibilidade ao acesso VELOSO et al 2017. Segundo os dados obtidos na pesquisa o envenenamento se mostrou o tipo de autolesão não suicida mais comumente registrando. A intoxicação exógena chega a ser responsável por, aproximadamente, 70% dos casos de tentativas de suicídio notificados no país. Evidenciou-se uma possível facilidade de acesso a esses produtos farmacêuticos, o que, possivelmente, contribui para uma maior ocorrência de tentativas de suicídio por intoxicação PINHEIRO, WARLING E COELHO (2021).

Em contrapartida, na faixa etária mais recorrente, a automutilação por objetos perfurocortantes é o tipo de lesão mais comum. Segundo PINHEIRO, WARLING E COELHO (2021), normalmente, esse instrumento apresenta-se acessível, como mostra pesquisa com adolescentes brasileiros sobre alguns meios utilizados na automutilação: mãos, unhas, facas, estiletes, dentes, vidros, pedras, cachecol, canetas, grampos e escova de dente.

Este estudo aborda a automutilação em adolescentes e adultos jovens, destacando suas complexas dimensões psicológicas, socioculturais e de gênero. A prática é compreendida como uma tentativa paradoxal de alívio emocional e autopunição. A análise também revela que a pandemia de COVID-19 intensificou os desafios para a saúde mental, aumentando a prevalência de doenças mentais, automutilação e ideação suicida, enfatizando a necessidade de intervenções e prevenção eficazes.

5. CONCLUSÃO

Diante do amplo espectro de práticas culturais e do constante diálogo entre corpo e sociedade, este estudo abordou a complexa temática da automutilação em adolescentes e adultos jovens. Ao explorar essa prática, pôde-se identificar a presença de fatores de ordem psicológica, sociocultural e de gênero que a permeiam. As reflexões psicanalíticas de Menninger (1934) contribuíram para compreender a automutilação como uma expressão de agressão interiorizada, estimulação e função autopunitiva, conectando-a à dinâmica emocional complexa vivenciada por esses indivíduos. O reconhecimento da automutilação como uma tentativa de autotratamento e autocompensação ressalta sua natureza paradoxal.

Além disso, a análise das informações obtidas a partir das definições do DSM-5 e da CID- 10 permitiu uma compreensão abrangente da automutilação, que é caracterizada como um comportamento repetitivo de infligir lesões no corpo com o propósito de lidar com emoções negativas e dificuldades interpessoais. Embora o ato em si não tenha a intenção suicida, a prática da automutilação está associada a um maior risco de ideação suicida, destacando a necessidade de abordagens preventivas e de intervenção.

As mudanças culturais e ambientais constantes, exemplificadas pelo impacto da pandemia de COVID-19, têm aprofundado os desafios para a saúde mental, conforme evidenciado por Carr et al. (2021). O isolamento social e a alteração da dinâmica social têm influenciado significativamente a saúde mental, aumentando a prevalência de doenças mentais, automutilação e ideação suicida. Diante desse cenário, torna-se ainda mais premente a abordagem eficaz das questões relacionadas à saúde mental, incluindo a automutilação, em adolescentes e jovens.

Os dados apresentados destacam a região Nordeste, com o estado do Piauí como um exemplo, como uma área com altas taxas de automutilação, evidenciando a necessidade de estratégias de prevenção e intervenção direcionadas. A análise de gênero também revela a maior suscetibilidade das mulheres, que muitas vezes recorrem à automutilação como um meio de enfrentar os desafios impostos pelas normas sociais de gênero e a violência que podem sofrer. A prevalência da prática em indivíduos pardos e a escolha de meios variados para a automutilação acrescentam complexidade ao fenômeno.

Em suma, este estudo sublinha a importância de compreender a automutilação como um fenômeno multifacetado, profundamente enraizado em questões emocionais, culturais e de gênero. Além disso, a reflexão sobre os desafios contemporâneos e o impacto das mudanças culturais e sociais na saúde mental destaca a urgência de promover estratégias de apoio e prevenção eficazes.

6. REFERENCIAS

Veloso, C., Monteiro, C. F. de S., Veloso, L. U. P., Figueiredo, M. do L. F., Fonseca, R.

S. B., Araújo, T. M. E. de ., & Machado, R. da S.. (2017). Violência autoinfligida por intoxicação exógena em um serviço de urgência e emergência. Revista Gaúcha De Enfermagem, 38(2), e66187.

VASCONCELOS, Sílvia Eutrópio et al. Impactos de uma pandemia na saúde mental: analisando o efeito causado pelo COVID-19. Revista Eletrônica Acervo Saúde, v. 12, n. 12, p. e5168-e5168, 2020.

DIONÍSIO, Juliana Soares et al. Gênero e automutilação na escola básica: um estudo de caso. Revista Práxis, v. 12, n. 23, 2020.

DAS NEVES MATRICARDI, Jhoniffer Lucas et al. Perfil epidemiológico de lesões autoprovocadas: Política nacional de prevenção da automutilação e do suicídio. Seven Editora, 2023.

ARAÚJO, Juliana Falcão Barbosa de. Cortes que Viram Cartas: Ensaios sobre automutilação na clínica psicanalítica. 2019.

ARAUJO, Juliana Falcão Barbosa de et al . O corpo na dor: automutilação, masoquismo e pulsão. Estilos clin., São Paulo , v. 21, n. 2, p. 497-515, ago. 2016 .

Lara, G. de ., Saraiva, E. S., & Cossul, D.. (2023). Automutilação na adolescência e vivência escolar: uma revisão integrativa da literatura. Educação E Pesquisa, 49, e249711.

Melo, F. C. P., Oliveira, A. S. S. de ., Oliveira, A. K. S. de ., Melo Júnior, E. B. de ., Campelo, L. L. de C. R., Ibiapina, A. R. de S., & França, L. da C.. (2022). ANÁLISE DAS INTERNAÇÕES PSIQUIÁTRICAS PELO SUS NO PIAUÍ, BRASIL, DE 2008 A 2020.

Cogitare Enfermagem, 27, e81576.

Rocha, D. de M., Oliveira, A. C. de ., Reis, R. K., Santos, A. M. R. dos ., Andrade, E.

M. L. R., & Nogueira, L. T.. (2022). Comportamento suicida durante a pandemia da COVID- 19: aspectos clínicos e fatores associados. Acta Paulista De Enfermagem, 35, eAPE02717.

FEITOSA, Lucíola Galvão Gondim Corrêa et al. Assistência em saúde mental no Piauí: mecanismos estruturais para o cuidado entre a razão e a desrazão. Serviço social e saúde, v. 13, n. 1, p. 77-92, 2014.

Pinheiro, T. de P., Warmling, D., & Coelho, E. B. S.. (2021). Caracterização das tentativas de suicídio e automutilações por adolescentes e adultos notificadas em Santa Catarina, 2014-2018 . Epidemiologia E Serviços De Saúde, 30(4), e2021337.

CARBALLO, J. J. et al. Psychosocial risk factors for suicidality in children and adolescents. European child & adolescent psychiatry, v. 29, p. 759-776, 2020.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo

Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.

CARR, Matthew J. et al. Effects of the COVID-19 pandemic on primary care-recorded mental illness and self-harm episodes in the UK: a population-based cohort study. The Lancet Public Health, v. 6, n. 2, p. e124-e135, 2021.

TOFANI, LUÍS FERNANDO NOGUEIRA et al. Caos, organização e criatividade: revisão integrativa sobre as Redes de Atenção à Saúde. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2021, v. 26,n. 10 [Acessado 9 Novembro 2022] , pp. 4769-4782.

CARDOSO, Jordana Santos et al. Redes de atenção à saúde: Rede de Atenção Psicossocial– RAPS. São Luis-EDUFMA, v. 1, n. 01, p. 13-61, 2018.

FERNANDES, CRISTOFTHE JONATH et al. Índice de Cobertura Assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (iRAPS) como ferramenta de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira. Cadernos de Saúde Pública [online]. 2020, v. 36, n. 4

DAMACENO, Adalvane Nobres et al. Redes de atenção à saúde: uma estratégia para integraçãodos sistemas de saúde. Rev Enferm UFSM, v. 10, n. 14, p. 1-13, 2020.

FERNANDES, Cristofthe Jonath et al. Índice de Cobertura Assistencial da Rede de Atenção Psicossocial (iRAPS) como ferramenta de análise crítica da reforma psiquiátrica brasileira. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, 2020.

NUNES, Mônica; JUCÁ, Vládia Jamile; VALENTIM, Carla Pedra Branca. Ações de saúde mental no Programa Saúde da Família: confluências e dissonâncias das práticas com os princípios das reformas psiquiátrica e sanitária. Cadernos de Saúde Pública, v. 23, p. 2375- 2384, 2007.