BEYOND THE DIGITAL HORIZON: EXPLORING CROWDWORK IN BRAZIL AND ITS IMPLICATIONS FOR THE WORKING SOCIETY
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10248081102
Thaís Lima de Oliveira Silva1
Carlo Benito Cosentino2
RESUMO
No capitalismo contemporâneo emerge um novo trabalho de plataformas digitais: o crowdwork. Nesse sentido, o presente artigo trata sobre o estudo do crowdwork ou microtrabalho no Brasil, em que consiste na realização de microtarefas realizadas por humanos a fim de treinar a Inteligência Artificial. No paradigma da heteromação, o loop humano se torna essencial, porém precário. A baixa/variável remuneração, instabilidade, insegurança, informalidade, sobrecarga e ausência de regulação são camuflados pela procura da flexibilidade, renda e reconhecimento. Objetiva-se neste estudo analisar o fenômeno do crowdwork ou microtrabalho no Brasil, investigando especificamente seus impactos sociais, econômicos e regulatórios, incluindo a relação com o adoecimento dos trabalhadores, a proteção e regulação existentes, bem como a viabilidade da renda básica universal nesse contexto. O método utilizado neste estudo será o dialético, adequado para captar a historicidade e as transformações contínuas nos modos de produção capitalista, especialmente com a chegada da Indústria 4.0 ou Quarta Revolução Industrial. Além disso, quanto à abordagem, será utilizada a qualitativa, ou seja, voltada para a parte subjetiva da problemática, capaz de identificar e analisar dados que não podem ser expressos de forma exclusivamente numérica. Ainda, é válido pontuar que o trabalho será realizado através de pesquisa bibliográfica de autores especialistas sobre o tema, a partir de fontes já elaboradas (livros, artigos científicos, publicações periódicas, teses, dissertações), fazendo assim uma análise de conteúdo crítico, com o propósito de levantar um arcabouço rico que servirá de base no processo da construção da pesquisa.
Palavras-chaves: Capitalismo de Plataforma; Microtrabalho; Heteromação; Precarização; Proteção.
ABSTRACT
In contemporary capitalism, a new kind of work is emerging on digital platforms: crowdwork. In this sense, this article deals with the study of crowdwork or microwork in Brazil, which consists of microtasks carried out by humans in order to train artificial intelligence. In the paradigm of heteromation, the human loop becomes essential, but precarious. Low/variable pay, instability, insecurity, informality, overload and lack of regulation are camouflaged by the search for flexibility, income and recognition. The aim of this study is to analyze the phenomenon of crowdwork or micro-work in Brazil, specifically investigating its social, economic and regulatory impacts, including the relationship with worker illness, existing protection and regulation, as well as the viability and implications of universal basic income in this context. The method used in this study will be the hypothetical-deductive one, which consists of identifying a problem, making conjectures and falsifying certain hypotheses in order to reach a conclusion about the problem. In addition, the approach will be qualitative,
i.e. focused on the subjective part of the problem, capable of identifying and analyzing data that cannot be expressed exclusively numerically. It is also worth pointing out that the work will be carried out through bibliographical research by specialist authors on the subject, based on sources that have already been prepared (books, scientific articles, periodicals, theses, dissertations), thus carrying out a critical content analysis, with the aim of creating a rich framework that will serve as a basis in the process of constructing the research.
Keywords: Platform Capitalism; Microwork; Heteromation; Precarization; Protection.
1INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, a dinâmica do mercado de trabalho tem passado por profundas transformações impulsionadas pela evolução do sistema econômico global. A transição do capitalismo industrial para o emergente modelo de capitalismo de plataforma deu origem a novas configurações laborais, desafiando as concepções tradicionais de emprego e trabalho.
Essa evolução do capitalismo é marcada por crises econômicas estruturais e diante dessas crises, as relações de trabalho passam por uma (re)organização, a fim de se ter como alternativa uma maior geração de lucro ao capital no país. No entanto, como consequência resultante desse processo, a precarização se torna regra.
Desemprego, desregulamentação, subemprego e flexibilidade fazem parte dessa nova sistemática e diante disso os trabalhadores se tornam mais vulneráveis e suscetíveis a submeter-se a qualquer tipo de trabalho em busca de sustento. Esta dinâmica, por sua vez, propicia ressaltar a invisibilidade de uma classe de trabalhadores, também conhecidos como crowdwork ou microtrabalhadores.
O microtrabalho desempenha um papel fundamental no desenvolvimento e aprimoramento da inteligência artificial. É esse exército de trabalhadores por trás da Inteligência Artificial (IA) que a alimenta, a faz reconhecer imagens, transcrever áudios e traduzir textos, por exemplo. Os sistemas de IA dependem intrinsecamente deste trabalho humano para aprender e aperfeiçoar seu desempenho, sendo este processo vital para a evolução contínua de suas capacidades.
Essa relação de colaboração da contribuição humana na geração de dados cruciais para o avanço da inteligência artificial é o que se faz analisar o conceito de heteromação. As transformações trazidas pela informatização da economia têm como resultado que um grande contingente de trabalhadores se encontrem envolvidos em tarefas essenciais, mas muitas vezes precárias.
Esse estudo tem como objetivo geral analisar o mundo dos crowdworks (microtrabalhadores) no Brasil e suas implicações em virtude do sistema econômico. Os específicos consistem na exploração e explicação das transformações do capitalismo e suas crises estruturais, com seus impactos nas relações de trabalho; examinar os fenômenos pertinentes à heteromação; analisar o crowdwork (microtrabalho) no Brasil, considerando seu viés conceitual abordando a precarização existente nesta modalidade; e trazer como um mecanismo a renda básica para o desafio atual como proteção social.
O método utilizado neste estudo será o dialético, adequado para captar a historicidade e as transformações contínuas nos modos de produção capitalista, especialmente com a chegada da Indústria 4.0 ou Quarta Revolução Industrial.
Quanto à abordagem, será utilizada a qualitativa, voltada para a parte subjetiva da problemática, capaz de identificar e analisar dados que não podem ser expressos de forma exclusivamente numérica. No que diz respeito ao tipo de pesquisa, será explicativa e exploratória trazendo conceitos e explicações a respeito do modo de produção capitalista no trabalho humano, bem como suas metamorfoses a fim de identificar seus impactos na sociedade contemporânea e no mundo do trabalho.
Por fim, se faz importante falar sobre a forma de coleta e análise de dados, que será por documentos e bibliografias a partir de fontes já elaboradas (livros, artigos científicos, publicações periódicas, teses, dissertações) analisando o conteúdo crítico, com o propósito de levantar um arcabouço rico que servirá de base no processo da construção da pesquisa.
2 DO CAPITALISMO CLÁSSICO INDUSTRIAL AO CAPITALISMO DE PLATAFORMA: Breve evolução histórica e suas crises estruturais
No século XVI, na Inglaterra, iniciou-se um processo migratório da zona rural para a zona urbana. No entanto, até o final do século XVIII, o artesanato dominou os mercados.
No regime feudal surge a relação de servidão e as mercadorias circulavam através da troca e da permuta. Os trabalhadores eram produtores rurais, ferreiros e artesãos. Nesse período ressurge a figura da moeda e a partir daí deu-se os primórdios do capitalismo (Silva, 2022). os próprios trabalhadores eram donos das ferramentas e das máquinas, bem como vendedores do produto final. Contudo, a produção, principalmente no setor têxtil, não estava sendo capaz de ultrapassar os concorrentes e satisfazer os consumidores.
A partir disso, houve uma intensificação da divisão do trabalho tendo que concentrar os trabalhadores, que antes poderiam realizar o trabalho em seus lares, em um único local: a fábrica. A importação de tecidos de algodão e o aumento do consumo interno alavancado pela urbanização e mercantilização estimularam o aumento de produção e a concorrência. O desenvolvimento de novos métodos e melhorias de técnicas de produção, bem como o aperfeiçoamento de seus equipamentos, possibilitou um grande aumento de produtividade e queda de preços (Dathein, 2003).
Em toda a década de 1930 houve aperfeiçoamentos no tear de tecer, permitindo que a produção fosse mais rápida e com qualidade, provocando um aumento de produtividade. Após isso, as máquinas de produção hidráulica foram substituídas pelas máquinas a vapor, não sendo mais a ferramenta movida por energia humana, e sim por energia motriz (Dathein, 2003), época em que ficou conhecida como a Primeira Revolução Industrial, sendo esta a consolidação do capitalismo.
Sobre Primeira Revolução Industrial, Jesus e Silva (2020) afirma que:
ocorreu no século XVIII e foi impulsionada pela inovação da máquina a vapor e a sua aplicação no mercado têxtil. Causou bastante impacto, na medida em que impulsionou a criação de novas profissões, aumentou a quantidade de mercadorias produzidas e permitiu o crescimento das cidades e ferrovias. (JESUS E SILVA, 2020, p. 5).
Ainda nessa época, Marx (2013), também afirma que a maquinaria, na intenção de reduzir tempo de fabricação de um produto, prolongou as jornadas de trabalho, tornando-se excessiva e ultrapassando o limite natural humano, pois a rapidez da produção deixava os capitalistas ainda mais gananciosos. Junto a isso, salários ínfimos, ou até mesmo nenhum salário, e condições degradantes e precárias resumiam a desvalorização do trabalho. A falta da regulamentação para a classe operária fazia com que os donos dos meios de produção tivessem total liberdade ao estabelecer as condições de trabalho.
Diante das condições sub-humanas, a sociedade que vive-de-trabalho se exasperou, surgindo as primeiras organizações de trabalhadores, início dos sindicatos que passaram a reivindicar direitos. Os trabalhadores pressionaram o poder público por soluções, em que algumas dessas manifestações incluíam a destruição dos maquinários fabril, consideradas como a causa da precariedade (Pazzinato; Senise, 2002).
Mais tarde, na metade do século XIX, a Segunda Revolução Industrial se inicia. Período em que foram introduzidas a metalúrgica, a siderurgia e a química como as novas ascendentes da indústria (Jesus e Silva, 2020). Essa segunda fase se caracterizou como uma nova forma de organização da produção industrial que aproveitasse o tempo e o trabalho humano de forma otimizada, gerando produção em massa.
A partir da última metade do século XIX pode-se dizer que houve uma Segunda Revolução Industrial. Enquanto a Primeira baseou-se na energia a vapor do carvão e no ferro, a Segunda baseou-se na eletricidade e no aço, ocorrendo importantes desenvolvimentos na química, nas comunicações e com o uso do petróleo. Estas inovações, de início e em geral, não substituíram plenamente as antigas, tendo somente começado a se destacar […]. A Segunda Revolução Industrial possui várias características que a diferenciam da Primeira. Uma delas foi o papel assumido pela ciência e pelos laboratórios de pesquisa, com desenvolvimentos aplicados à indústria elétrica e química, por exemplo. Surgiu também uma produção em massa de bens padronizados e a organização ou administração científica do trabalho, além de processos automatizados e a correia transportadora. Concomitantemente, criou-se um mercado de massas, principalmente e em primeiro lugar nos EUA, com ganhos de produtividade sendo repassados aos salários. Por fim, houve um grande aumento de escala das empresas, via processos de concentração e centralização de capital, gerando uma economia amplamente oligopolizada. (Hobsbawm, 1968, p. 160-5 apud Dathein, 2003, p. 5).
Essa nova forma de organização da produção e do trabalho trouxe, nas palavras de Ricardo Antunes (2006), a “mais aguda crise do século” e “foram tão intensas as modificações, que se pode mesmo afirmar que a classe-que-vive-do-trabalho sofreu a mais aguda crise deste século, que atinge não só sua materialidade, mas teve profundas repercussões na sua subjetividade e afetou sua forma de ser”. (Antunes, 2006, p.23). É nesse contexto e nesta fase que surgem os modelos de organização da produção e do trabalho, conhecidos como Fordismo e Taylorismo.
O sistema fordista era caracterizado pela produção em série e pela organização do trabalho. Henry Ford realizou o fracionamento e o gerenciamento industrial que resultaria na produtividade do trabalho através da produção em série. O grande ícone do fordismo é a esteira rolante, instrumento que gera velocidade à produção e impulsiona os trabalhadores. (CANÊDO, 2013).
No entanto, o sistema taylorista consistia em gerenciar o tempo na produção através de sistemas técnicos “que visavam a otimização do emprego e da mão de obra, de modo a aumentar a racionalização do movimento e evitar a ociosidade e a morosidade operária” (CANÊDO, 2013, p. 24). A partir desse novo sistema, o trabalho é fortemente regulado pelo capital, implicando em uma exploração do trabalho cada vez mais intensificada, clamando a classe trabalhadora, mais uma vez, por seus direitos.
Apesar de já existirem movimentos de trabalhadores na primeira Revolução Industrial, é aqui que ela ganha mais força na consciência coletiva da classe trabalhadora, em que tal movimento foi importante nas conquistas dos direitos trabalhistas.
Na metade do século XX, surge a terceira fase da Revolução Industrial, também conhecida como “Revolução Informacional”. Antunes (1998) aponta que:
O cronômetro e a produção em série e de massa são “substituídos” pela flexibilização da produção, pela “especialização flexível”, por novos padrões de busca de produtividade, por novas formas de adequação da produção à lógica do mercado (ANTUNES, 1998, p.16).
Nesse período, ocorrem diversas inovações, como a revolução das tecnologias de informação caracterizada pela proliferação e utilização dos semicondutores, dos computadores, automação e robotização em linhas de produção, informação armazenada e processada de forma digital, e as comunicações com os telefones móveis e a internet, por exemplo. (Hermann, Pentek, & Otto, 2015 apud Jesus e Silva, 2020, p. 5).
A sociedade do trabalho inicia com o processo de passagem do industrial tradicional para os de conhecimento ou cognitariado. O uso da tecnologia produziu e continua a produzir grandes repercussões, não só dentro das empresas mas também fora delas e na sociedade do trabalho como um todo. Em meio a esse processo de avanço tecnológico, a globalização ganhou dimensão em todas as esferas (política, social, econômica…).
Na virada do século XX para o século XXI, surge a Quarta fase da Revolução Industrial, ou também conhecida como a “Indústria 4.0”, “Revolução 4.0”, “Uberização”, ou ainda “Capitalismo de Plataforma”.
Esta fase não se limita apenas a sistemas e máquinas inteligentes. As tecnologias digitais nessa fase “estão mais sofisticadas e integradas, transformando a sociedade e a economia global” (SCHWAB, 2016, p. 19). Simultaneamente ocorrem descobertas em áreas que vão desde a genética até a nanotecnologia, assim como das energias renováveis à computação quântica. “O que torna a Quarta Revolução Industrial diferente das Revoluções anteriores é a fusão dessas tecnologias e a interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos”. (SCHWAB, 2016, p. 20).
Em 2011 na feira de Hannover, foram reunidas pessoas de diferentes áreas, como políticos, representantes de empresa e acadêmicos, com o objetivo de descrever como as mudanças trazidas pela Quarta Revolução Industrial irá revolucionar a produção e entrega do produto – cadeias globais de valor. (Schwab, 2016).
A “Indústria 4.0” é um conceito que representa a automação industrial e a integração de diferentes tecnologias aplicadas ao ambiente de produção, como a Inteligência Artificial (IA), Cyber-Physical Systems (CPS), a Internet of Things – a “Internet das coisas” – (loT), impressão 3D, nanotecnologia, biotecnologia, veículos autônomos, robôs avançados, Big Data, entre outros. (Schwab, 2016 et al. apud Tessarini Júnior e Satolrato, 2018).
A conjunção dessas tecnologias, tem potencial para fabricar produtos de forma mais eficiente, fazendo-se a integração e comunicação entre máquinas, pessoas e recursos (Kagermann; Wahlster; Helbig, 2013 apud Tessarini Júnior e Satolrato, 2018).
No Brasil, as primeiras notícias sobre o tema “Indústria 4.0” foram especialmente voltadas para a visão na estratégia de mercado, empresas, com redução de custos e aumento de lucratividade, deixando de lado a preocupação com a principal engrenagem: o trabalhador.
O mundo do trabalho foi profundamente impactado em todas essas fases da revolução industrial devido às transformações ocorridas no capitalismo, marcado sempre, entre uma e outra, por estagnação, caracterizadas por uma crise estrutural do sistema capitalista (Antunes, 2003) “que se estendeu até os dias atuais e fez com que, entre tantas outras consequências, o capital implementasse um vastíssimo processo de reestruturação, visando recuperar o seu ciclo reprodutivo…”. (ANTUNES, 2003, p. 49).
Examinando isso, Srnicek, (2017, p. 27, apud Silva, 2020), professor de economia que cunhou o termo “Capitalismo de Plataforma” em seu trabalho “Platform Capitalism”, destaca como um aspecto significativo do capitalismo a sua capacidade contínua de adaptação. Em suas palavras, “sempre que uma crise o atinge, ele tende a se reestruturar” e diante dos desafios, o sistema capitalista desenvolve novas tecnologias, formas de organização, mercados, modalidades de trabalho e métodos de exploração, para criar uma nova forma de acumular capital.
A pandemia do COVID-19 também foi um grande exemplo de crise e reestruturação, bem como o desenvolvimento e utilização da tecnologia, modificando mais uma vez a organização do trabalho na produção e nos serviços, introduzindo novos desafios e preocupações à sociedade que vive de trabalho.
Juliana Teixeira Esteves (2010) afirma que:
O capitalismo tem, em sua natureza, uma estrutura de acumulação de capitais. Convive de forma conflituosa com a constante renovação de meios e métodos de produção, para superar as inúmeras crises por ele próprio provocadas. No próprio sistema existe uma tendência: produzir mais-valia, aumentar a produtividade para enfrentar o mercado competitivo. Entretanto, ao desenvolver meios que aumentem a produção, o sistema termina por eliminar postos de trabalho e dificulta, ou mesmo impede o acesso destes às mercadorias produzidas, o que desencadeia um desequilíbrio entre produção e consumo. (ESTEVES, 2010, p. 91).
Diante da reestruturação e organização do capital, medidas de precarização do trabalho, como desemprego, flexibilidade, salários rebaixados e jornadas extenuantes foram adotadas (Antunes, 2018).
Em resposta aos obstáculos impostos ao processo de acumulação, nos anos 1980, um conjunto de medidas, articuladoras de velhas e novas formas de exploração do trabalho, passou a redesenhar a divisão internacional do trabalho, alterando também de forma significativa a composição da classe trabalhadora em escala global. Movendo-se com facilidade pelo globo, fortemente enraizado no capital financeiro, um número cada vez mais reduzido de corporações transnacionais passou a impor à classe-que-vive-do-trabalho, nos diferentes países do mundo, patamares salariais e condições de existência cada vez mais rebaixados (ANTUNES, 2018, p. 155).
Assim, as transformações geradas em razão da reestruturação do capital foram de grande intensidade, fundadas na superexploração da força de trabalho (Antunes, 2018), tornando o gênero humano subjugado a essa condição através da relação capital-trabalho.
3 O PARADIGMA DA HETEROMAÇÃO
“Será mesmo o fim?” Esta é a pergunta que alguns autores e leitores fazem ao testemunhar o avanço tecnológico. A tecnologia já permeou tantos aspectos da vida que alguns questionam se, na verdade, a tecnologia irá aumentar a força de trabalho humano ou se irá substitui-la.
Estudar sobre as plataformas digitais sem reconhecer que elas dependem da exploração humana em toda a ca deia de fornecimento global é negligenciar um aspecto crucial da sua operação. Todos os meios digitais, aparentemente trazem uma ideia de desmaterialização das coisas, no entanto nos lembra que por trás de cada dispositivo desenvolvido, há uma realidade sombria de condições de trabalhos desumanos.
“Há uma massa de corpos sem nome, invisibilizados, escondidos por trás da tela e exposta a vigilância no ambiente de trabalho, espoliação da multidão, roubo de salários e softwares de proprietários” (Scholz, 2017, p. 24).
Como alertado pelo ativista do software livre, Micky Metts (apud Scholz, 2017), embora as plataformas digitais possam oferecer uma sensação de liberdade e autonomia para os usuários, essa liberdade não pode ser sustentável ou ética se for construída sobre a escravidão ou exploração de trabalhadores em toda a cadeia de fornecimento.
A literatura sobre automação e suas implicações na redução do emprego é vasta e abrangente, envolvendo contribuições significativas de diversos autores e pesquisadores. Autores como Chui, Manyika e Miremadi (2015 apud Scholz, 2017), Frey e Osborne (2017 apud Scholz, 2017), e Acemoglu e Restrepo (2018 apud Scholz, 2017) têm se dedicado a analisar as potenciais consequências da automação no mercado de trabalho, muitas vezes levantando hipóteses e modelos prospectivos sobre o possível declínio dos empregos formais ou até mesmo do próprio conceito de trabalho, como apontado por Rifkin (2014 apud Scholz, 2017).
No entanto, uma crítica que pode ser feita a essas abordagens é a possível omissão do processo de desenvolvimento e sustentação do ambiente digital. Autores como Bessen (2017 apud Scholz, 2017) e Casilli (2019 apud Scholz, 2017) têm argumentado que, ao longo da história, as tecnologias não substituíram completamente os seres humanos, mas sim complementaram suas habilidades, criando novas oportunidades de emprego e formas de trabalho.
Portanto, é essencial considerar não apenas os impactos diretos da automação na redução de empregos, mas também os complexos processos de interação entre tecnologia e trabalho humano ao longo do tempo, sendo este último, diálogo desse estudo, a fim de trazer uma nova perspectiva sobre o trabalho humano e a tecnologia.
Essa conceituação de substituição dos humanos por máquinas vem do paradigma da automação, em que as máquinas criariam valor por si mesmas e os sistemas automatizados aliviariam o trabalho humano mediante sua substituição (Ekbia; Nardi, 2017, apud Viana Braz, 2021). Já no paradigma da heteromação, as tecnologias não estariam substituindo totalmente o trabalho humano, mas o reconfigurando na forma de trabalho heteromatizado (Viana Braz, 2021).
O termo heteromação foi cunhado por Hamid Ekbia, se tratando de um conceito que surgiu no contexto da economia digital e se refere à dinâmica em que a automação, impulsionada pela tecnologia, não necessariamente substitui completamente o trabalho humano, mas o reconfigura e muitas vezes o intensifica. Em vez de eliminar empregos de forma direta, a heteromação envolve uma integração de sistemas tecnológicos para otimizar e coordenar as atividades laborais, criando uma interdependência entre humanos e máquinas.
Em 2017, o McKinsey Global Institute (MGI, 2017) divulgou um relatório, “Harnessing automation for a future that works” (“Aproveitando a automação para um futuro que funcione”)[1] e, com base nessa análise, o Marketplace lançou uma série sobre empregos à prova de robôs[2]. A tecnologia no centro do debate é a Inteligência Artificial (IA).
O relatório do MGI (2017) representa um ponto de partida valioso para abordar a questão da automação x heteromação no mercado de trabalho. Por meio de uma pesquisa extensa, ele busca classificar várias ocupações de acordo com sua suscetibilidade à automação, segmentando as capacidades básicas em cinco categorias principais: percepção sensorial, capacidades cognitivas, processamento de linguagem natural, capacidades sociais e emocionais, e capacidades físicas (conforme destacado na página 4 do relatório).
Por meio de um exame da “tecnologia atualmente demonstrada”, o relatório faz uma avaliação de quais recursos estão disponíveis para as máquinas, atribuindo um “potencial de automação” a cada categoria ocupacional. O relatório conclui que cerca de 60% das ocupações têm pelo menos 30% de atividades potencialmente automatizáveis, sendo que algumas (por exemplo, psiquiatras e legisladores) têm quase zero de potencial e outras (por exemplo, operadores de máquinas de costura) têm 100% de potencial, com a maioria (por exemplo, gerenciais) ficando em algum ponto intermediário.
Embora a análise da MGI (2017) seja minuciosa, o relatório apresenta uma limitação: leva em consideração apenas ocupações tradicionais, mas não leva em consideração uma categoria de trabalho que é cada vez mais relevante na era da tecnologia: a heteromação. Este termo se refere a um tipo de trabalho mediado por computador que é realizado por seres humanos em apoio a sistemas tecnológicos e empresas econômicas, não sendo muitas vezes remunerado adequadamente ou é minimamente remunerado.
A heteromação envolve uma combinação de capacidades humanas e tecnológicas, mas com uma ênfase significativa nas máquinas e, por extensão, em seus proprietários ou controladores. Isso pode incluir, por exemplo, atividades como autoatendimento, geração de conteúdo em redes sociais, classificação de dados para treinamento de algoritmos de inteligência artificial ou realização de tarefas repetitivas em sistemas automatizados e uma ampla variedade de atividades que proporcionam valor econômico às empresas, mas que possui pouco retorno financeiro e nenhum reconhecimento enquanto trabalhadores.
Foi devido a esse olhar não limitado que acho importante não apenas examinar as ocupações tradicionais, mas também reconhecer a importância e complexidade da heteromação devido às mudanças na economia capitalista, diante de suas crises e reestruturações, confluindo as novas modalidades de trabalho, bem como sua invisibilidade.
Na pesquisa conduzida no relatório do MGI (2017) sobre a automação, uma lacuna significativa é identificada na página 9 quando destaca:
A escala das mudanças na força de trabalho ao longo de muitas décadas que as tecnologias de automação podem desencadear é de uma ordem de grandeza semelhante às mudanças de longo prazo possibilitadas pela tecnologia nas forças de trabalho dos países desenvolvidos, afastando-se da agricultura no século XX. Essas mudanças não resultaram num desemprego em massa de longa duração porque foram acompanhadas pela criação de novos tipos de trabalho não previstos na altura. Não podemos dizer com certeza se o precedente histórico será mantido desta vez. Mas a nossa análise mostra que os seres humanos continuarão a ser necessários na força de trabalho: os ganhos totais de produtividade que estimamos só ocorrerão se as pessoas trabalharem ao lado de máquinas. (MGI, 2017, p. 9, tradução própria).
Acontece que as pessoas já estão trabalhando “ao lado das máquinas”, mas seu trabalho é precário e caracterizado por condições desfavoráveis e de invisibilidade. A discussão muitas vezes se concentra na competição entre inteligência artificial e seres humanos pelo trabalho, enquanto na realidade, a natureza do trabalho está passando por uma transformação.
Existem vários exemplos de trabalhadores heteromatizados, desde criadores de vídeos do YouTube até cuidadores de robôs sociais. No entanto, mesmo com essa diversidade de exemplos, é preciso reconhecer que apenas se está a arranhar a superfície e continuamente novos casos são descobertos.
Muitas das atividades de trabalho heteromatizado envolvem pessoas realizando tarefas que antes eram executadas por trabalhadores remunerados ou que emergiram como novas formas de trabalho não remunerado. Um exemplo é o trabalho heteromatizado desenvolvido por microtrabalhadores, o reCAPTCHA. Este robô do google funciona apresentando aos seus usuários um desafio que requer interação humana para ser resolvido, sendo feito por meio da exibição de uma imagem com texto distorcido ou números que precisam ser digitados corretamente em um campo específico.
A forma mais comum do reCAPTCHA é a que exige que os usuários cliquem em uma caixa para confirmar que não são robôs, bem como identificar algumas imagens, como carro, moto, bicicleta, prédio, faixa de pedestre, semáforo, entre outros. Ao “comprovar” que o usuário não é um robô, preenchendo corretamente os campos ou identificando imagens, por exemplo, o usuário realiza gratuitamente um microtrabalho para a empresa que solicita.
As pessoas estão sendo atraídas (redes sociais, a exemplo) ou até mesmo forçadas (autoatendimento, a exemplo) a participar do trabalho heteromatizado, onde fornecem uma quantidade significativa do trabalho. Essa dinâmica é impulsionada por diversas forças, incluindo a proliferação de tecnologias de automação, o crescimento do trabalho baseado em plataformas e a busca pelo lucro no capitalismo. Como resultado, o capitalismo encontrou maneiras de explorar o trabalho gratuito ou barato, muitas vezes sem qualquer consideração pelas necessidades básicas e dignidade dos trabalhadores.
Essa dinâmica revela uma transformação nas relações de trabalho, onde o capitalismo busca maximizar os lucros através da exploração do trabalho gratuito ou barato. Um caso emblemático surge com a Amazon Go[3], a supostamente revolucionária loja sem caixas. Originalmente promovida como um exemplo pioneiro de automação completa, a realidade operacional da Amazon Go revelou uma dependência significativa de trabalho humano, especificamente de trabalhadores baseados na Índia.
Embora a tecnologia de automação empregada nas lojas Amazon Go permita aos clientes pegar produtos das prateleiras e sair sem passar por um caixa, a supervisão e o processamento dessas transações ainda dependem fortemente de intervenção humana. Trabalhadores indianos, distantes fisicamente das localidades das lojas, monitoram e verificam cada compra por meio de feeds de vídeo em tempo real. Esta prática expõe a realidade de que, apesar da aparência de automação total, existe uma camada oculta de trabalho humano essencial para o funcionamento da tecnologia.
Esse caso sublinha uma das principais contradições do capitalismo de plataforma: enquanto avança a narrativa de inovação e eficiência através da automação, frequentemente mascara o uso intensivo de mão de obra barata e precária em locais distantes. A situação na Amazon Go desafia a percepção de que a tecnologia pode substituir completamente o trabalho humano, mostrando como a heteromação se torna uma característica proeminente das novas configurações de trabalho, onde a automação convive lado a lado com formas tradicionais e ocultas de trabalho humano.
4 O QUE É O CROWDWORK/MICROTRABALHO?
Os microtrabalhadores são indivíduos que realizam pequenas tarefas, muitas vezes por meio de plataformas online, a fim de alimentar a Inteligência Artificial, pois esta, apesar de ser desenvolvida para atingir níveis humanos ou aquém, são limitadas, dependendo do
aprendizado de máquina (aprendizado profundo, redes neurais, redes adversárias generativas, redes convolucionais etc.), que por sua vez se baseia na disponibilidade de dados de qualidade enriquecidos por inúmeros trabalhadores (Casilli, 2021).
Essa modalidade de trabalho, até então não reconhecida, pode abranger uma variedade de atividades no que tange à alimentação de dados da IA, como classificar dados, transcrever áudios, verificar informações, conteúdos, traduções, entre outros.
Remetem-se, portanto, sobremaneira, a atividades de moderação de conteúdos em redes sociais, categorização e reconhecimento de imagens, análise de expressões faciais, traduções pontuais, criação de palavras-chave para textos, experimentação e teste de produtos, transcrição de áudios, digitalização de documentos, preenchimento de questionários em pesquisas acadêmicas ou de mercado, visitas de sites para geração de tráfego ou mesmo ao desenho de estruturas geométricas em mapas e geolocalizações específicas (como é o caso, por exemplo, dos datasets usados nos softwares de veículos autônomos) (BRAZ, 2021, p. 140).
São tarefas geralmente fragmentadas em partes menores ou, então, distribuídas a uma grande quantidade de trabalhadores, cada um contribuindo com uma pequena parte do projeto.
As plataformas que conectam os microtrabalhadores às empresas requisitantes (espécie de terceirização) ou diretamente à tarefas, são conhecidas como plataformas de microtrabalho ou crowdsourcing. Ela “representa o ato de uma empresa ou instituição pegar uma função antes feita por empregados e terceirizar para uma indefinida (e geralmente grande) rede de pessoas na forma de uma chamada aberta” (Howe, 2006 apud Kalil, 2021).
Um exemplo, é a Amazon Mechanical Turk, primeira plataforma de microtrabalho introduzida por Jeff Bezos em meados dos anos 2000. O nome da plataforma fez referência a ao lendário jogador de xadrez robô, inventado no século XVII pelo nobre austríaco Von Kempelen.
O turk original foi apresentado como a primeira inteligência artificial capaz de entender o jogo humano de xadrez para assim superá-los. Porém, dentro do aparato se escondia um ser humano que movia as peças durante o jogo, sendo o operador não um gênio do xadrez, mas cujas habilidades eram médias (Casilli, 2021).
A primeira plataforma de microtrabalho se baseia em ideia semelhantes. Ao invés de colocar pessoas especialistas em computação que fiquem encarregados de treinar, ele confia essa responsabilidade a leigos, centenas de milhares de leigos.
Imagine uma empresa que quer desenvolver alto falantes inteligentes, como é o caso da Alexa, por exemplo, que pode tocar músicas e listas de reprodução com base em títulos sugeridos pelos usuários. Ela provavelmente tem um banco de dados contendo vários exemplos de vozes humanas, em diferentes idiomas, sotaques, bem como diferenciação gêneros musicais, entre outras (Casilli, 2021). Se a empresa fizesse isso contratando especialistas, softwares e mais tecnologias para desenvolver, ela provavelmente iria despender de muita economia.
Dessa forma, é mais fácil para ela contratar uma plataforma que faz esse tipo de serviço, como é o caso da Amazon Mechanical Turk, que utiliza milhões de trabalhadores, leigos e mal remunerados para exercer esse mesmo tipo de atividade.
5 A PRECARIZAÇÃO COMO REGRA
Apesar do microtrabalho trabalho ser mais concentrado no norte global, ele vem ganhando espaço no sul global, principalmente após a pandemia da Covid-19, o que torna a realidade deste trabalho ainda mais complicada. O sul Global é composto de países de baixa renda, onde os salários médios são ainda mais baixos e a economia informal é significativamente mais prevalente (Casilli, 2021). Diante das transformações econômicas, estes países sofrem os efeitos ainda mais severos, fazendo com que as pessoas se submetam a trabalhos precários em busca do sustento.
Nesse contexto de precariedade, é importante ressaltar que os microtrabalhadores não são contratados formalmente nem pelas empresas-clientes nem pelas plataformas online, constituindo em uma força de trabalho descartável, devendo concordar com os “termos de serviço”, sendo remunerados por peça, ou considerados consumidores-trabalhadores (Casilli, 2021) – em que sua recompensa é a escolha de algum produto do site, ao invés do recebimento de dinheiro – ou até mesmo, nem recebendo pela realização de sua tarefa, na maioria das vezes sem motivos justificáveis, ou pelo simples fato da plataforma ou empresa-cliente não apreciar o trabalho final[4].
Sobre ser considerados consumidores-trabalhadores, Moreshi, Pereira e Cozmon (2020) afirmam:
A luta que une os turkers brasileiros efetivamente é a impossibilidade de receber pagamento pelos trabalhos de maneira direta. De acordo com os Termos de Serviço da Amazon, apenas trabalhadores residentes nos Estados Unidos e alguns selecionados da Índia e de 24 outros países podem receber seus pagamentos diretamente em uma conta bancária por transferência on-line. Para todos os turkers localizados em outros lugares, incluindo os brasileiros, o pagamento é transformado em créditos que devem ser usados exclusivamente no site da Amazon dos EUA (MORESHI, PEREIRA e COZMON, p. 22, 2020).
Comprar algo na Amazon EUA como recompensa de seu trabalho, significa também pagar impostos e taxas expressivas, sem mencionar que não recebem seus produtos no mesmo dia, devido ao prazo de entrega. Para driblar isso, a maioria dos tukers brasileiros optam por trocar os créditos da Amazon por outros créditos, como GooglePlay, Nintendo, PlayStation em uma espécie de site de leilões. Isso significa que, além de usarem uma parte do dinheiro para pagarem as taxas do leilão on-line, eles dependem do mercado volátil desses sites para venderem os gift cards (Moreshi, Pereira e Cozmon, 2020).
Quando adquirem um gift card por 10 dólares, muitas vezes precisam comercializá-lo por cerca de 8,50 dólares, e em alguns casos, até menos. E como se isso não fosse suficiente, ao receber o pagamento por meio do PayPal, é aplicada uma taxa descontando 8% sobre o valor. Quando o valor do dólar está em baixa, a situação se torna ainda mais desafiadora para eles.
Em uma das entrevistas feita por Moreshi, Pereira e Cozmon (2020), um turk desabafou o seguinte:
Compramos mais créditos do PlayStation porque é o que tem mais demanda, mas está devagar no momento, todo mundo está reclamando. Compramos esses créditos da Amazon e os vendemos no GameFlip, uma plataforma exclusiva para jogos. Lá você pode colocar os créditos que recebeu na Amazon, mas sempre precisa oferecer descontos [para vender os gift cards]. Este mês [julho] é horrível. O processo sempre significa perdas: você compra um gift card por US$ 10 e precisa vendê-lo por cerca de US$ 8,50, muitas vezes até menos do que isso. Como se isso não bastasse, uma vez vendido, você finalmente recebe o dinheiro via Paypal, descontando outros 8% do valor. Quando o valor do dólar cai, tudo fica ainda mais difícil. (MORESHI, PEREIRA E COZMON, 2020, p. 23).
Ainda segundo Moreshi, Pereira e Cozmon (2020), o preço por tarefa é estipulado pela plataforma sem margem de negociação, na maioria das vezes os remunerando por atividades concluídas ou hora de trabalho enviado.
Ao discutir as horas dedicadas ao trabalho, é crucial destacar que os microtrabalhadores enfrentam frequentemente jornadas exaustivas. Segundo a pesquisa conduzida por Moreshi, Pereira e Cozmon (2020) na plataforma da Amazon Mechanical Turk, os brasileiros trabalham em média 17 horas por semana. À primeira vista, pode parecer um número relativamente modesto, porém, ao considerar quantos desses trabalhadores já possuem um emprego principal, essa cifra ganha um peso específico.
No Brasil, a maioria dos trabalhadores (75%) tem o crowdwork como meio de complementar a renda, ou seja, não é a principal fonte de subsistência. Entendemos que o número de trabalhadores dependentes é menor pelo fato de a língua ser um obstáculo no acesso às atividades, tendo em vista que a maioria das tarefas demanda o inglês para a execução, e pelo crowdwork não ser tão difundido no país. (KALIL, 2021, p. 187).
Diante desses dados, torna-se evidente que, embora o crowdwork no Brasil não represente a fonte primária de renda para muitos, ele desempenha um papel crucial como fonte secundária. Quando os indivíduos buscam uma segunda fonte de renda, isso sugere que a primeira possivelmente não seja suficiente. Isso pode ser atribuído à informalidade do trabalho ou aos elevados custos dos gastos essenciais, consequências do sistema econômico diante de crises e reestruturações. Esta observação suscita uma reflexão significativa sobre a dinâmica econômica e a necessidade de estratégias para melhorar a estabilidade financeira dos trabalhadores.
Ainda na dinâmica da precarização, o microtrabalho, como uma de suas atividades, exerce a moderação de conteúdos. Então, conteúdos de violência física ou sexual, acidentes, mortes, preconceitos, discriminações bem como discurso de ódio, por exemplo, são uma realidade enfrentada pelos crowdworks. Esses materiais podem causar danos psicológicos a quem é exposto.
Em uma reportagem de 2012, Chen trouxe à tona algumas destas diretrizes: moderadores devem confirmar uma denúncia sempre que for “retratada a mutilação de pessoas, de animais ou humanos decapitados, desmembrados, carbonizados ou queimando. Discursos violentos, como “adoro ouvir crânios rachar” também devem ser apagados. “Cabeças esmagadas, membros, etc. são ok desde que interiores não estejam expostos”; “feridas profundas podem ser mostradas”, assim como “sangue excessivo” (CHEN, 2012, apud MARANHÃO E SAVINO, 2021, p. 158-159).
Newton (2019, apud Maranhão e Savino, 2021) também compartilhou algumas experiências pessoais que alguns moderadores tiveram:
“pessoas colocando “fogos de artifício acesos na boca de cachorros”, outras “mutilando os genitais de um rato vivo, e cortando o rosto de um gato com um machado”. (NEWTON, 2019 apud MARANHÃO E SAVINO, 2021, p. 159).
Nos contratos das plataformas online ou de empresas-clientes de microtrabalho é utilizado um “termo de confidencialidade” em que o contratado está ciente da possível existência de conteúdos sensíveis e embora possam suscitar angústia e sentimentos de ansiedade, renunciando todas as reclamações decorrentes desse fato. Todos os trabalhadores precisam assinar o termo, mesmo sem ter conhecimento do conteúdo, para exercer o seu trabalho na plataforma. Durante o trabalho, é possível optar por sair depois de exibido o conteúdo, porém não receberá nenhum pagamento (Maranhão e Savino, 2021).
O contato com esse tipo de conteúdo perturbador pode desenvolver no microtrabalhador estresse, ansiedade, síndrome de burnout e em alguns casos, Transtornos de Estresse Pós Traumáticos – TEPT.
[…]o Facebook concordou, recentemente, em pagar US$ 52 milhões a moderadores atuais e antigos para compensá-los por problemas de saúde mental desenvolvidos no trabalho, reconhecendo tacitamente a natureza perigosa da atividade (BARRET, 2020, p.12 apud MARANHÃO e SAVINO, 2021, p. 160).
Por fim, importante também ressaltar a precariedade em relação à ilusão de um trabalho livre e humanitário, quando na verdade se trata de um trabalho livre/subordinado/algorítmico. A propagação da ideia de que se pode trabalhar de onde estiver, bem como a falta de uma gestão humana, faz pensar os microtrabalhadores, bem como as plataformas e empresas, sobre a liberdade e autonomia.
O objeto do Direito do Trabalho clássico traz a ideia de um trabalho livre e subordinado, em que objeto livre e subordinado não deveria se fundir. O trabalho subordinado traduz-se, na prática, como trabalho organizado de maneira militar e opressora, em que cada um tem uma função definida e cada um tem o seu lugar (Andrade, 2020).
O Direito do Trabalho clássico, na relação entre empregado e empregador, veio conferir uma superioridade jurídica, já que economicamente havia desigualdade, tentando, a partir dessa superioridade jurídica, buscar a igualdade. Mas como falar em igualdade se de um lado tem aquele que detém o poder, admite e assalaria e do outro tem o que fica economicamente, juridicamente e psicologicamente subordinado?
Não é diferente nas relações plataformizadas. Embora o microtrabalhador não esteja sujeito ao poder humano disciplinar exploratório, não significa que não exista subordinação. Aqui, a gestão deixa de ser feita por humanos e passa a ser feita por algoritmos, por isso o termo “livre/subordinado/algorítmico”.
Essa disseminação de trabalho livre e autônomo em plataformas, a exime de sua responsabilidade. Apesar de o microtrabalho ser precário, como demonstrado nas discussões acima, ela não se responsabiliza pelos danos à saúde, nem por jornadas exaustivas, salários ínfimos, proteção, e outros direitos.
A impressão é de que as plataformas de crowdsoursing, bem como empresas-clientes, se exime de todas as suas responsabilidades, seja ela regulatória, protecional, bem como dos riscos psicossociais à saúde do trabalhador por essa ideia de liberdade e autonomia, tornando os trabalhos ainda mais precários, já que diante dessas plataformas, não se tem margem de negociação.
6 MECANISMO PARA MITIGAR A PRECARIEDADE NO MICROTRABALHO
Diante de tudo que foi explanado neste artigo, em que trouxe o sistema econômico como precursor da precarização devido às suas crises e reestruturações impactando fortemente a sociedade do trabalho, se faz necessário explorar estratégias que possam proporcionar maior estabilidade e segurança aos microtrabalhadores, espécie de trabalho que surgiu no Capitalismo de Plataforma.
Neste contexto, um possível mecanismo emerge com destaque: a implementação de uma Renda Básica Universal, a fim de proteger o trabalhador e sua dignidade.
Durante o processo de industrialização e as crises vivenciadas pelo estado liberal no início do século XX, como a Primeira Guerra Mundial, a Grande Depressão em 1929 e a Segunda Guerra Mundial, surge o Estado de Bem Estar Social (Welfare State). É após a Segunda Guerra Mundial, em virtude da necessidade de estabelecer proteção contra os variados riscos ao ser humano, que o sistema de seguridade é criado, cumprindo adequadamente o seu papel, pois havia pleno emprego – empregado e empregador contribuem simultaneamente para o sistema (Esteves, 2010).
Porém, o sistema econômico passa por mais uma transformação: a inserção de novas tecnologias (Esteves, 2010, p. 85). Esse desenvolvimento leva ao surgimento da precarização, não por culpa da automação mas, como dito nos tópicos anteriores, pela crise que o sistema econômico caminha, precisando se reestruturar. É nessa reestruturação que habita a precariedade, atingindo os seus efeitos na sociedade que vive-de-trabalho, saindo do pleno emprego para o desemprego estrutural. O capitalismo é toda uma série de mudanças qualitativas nas condições de vida e trabalho.
É diante dessa precarização que temas como desemprego, desregulamentação, flexibilidade e informalidade surgem. O mercado de trabalho formal vem diminuindo e com eles o contingente de cidadãos protegidos pelo sistema baseado em contributividade também (Esteves, 2010). Então, como o Estado pode proteger esses cidadãos? Se diante da precariedade o número de desempregados aumentam, bem como a informalidade e a busca pela segunda fonte de renda, como ficam esses trabalhadores?
A criação do Estado de Bem Estar Social após a Segunda Guerra Mundial foi uma resposta acertada às necessidades da época, fornecendo proteção contra os diversos riscos que os trabalhadores enfrentaram. No entanto, o atual contexto de crescente precariedade no mundo do trabalho exige novas abordagens e políticas que sejam capazes de enfrentar os desafios da atual dinâmica econômica.
Portanto, num cenário de desemprego e informalidade em ascensão, muitos trabalhadores se veem sem capacidade de, por exemplo, depender unicamente de uma fonte de renda, ou até enfrentam a realidade de nem mesmo possuírem essa fonte de renda. Diante disso, buscam alternativas para complementar seus ganhos e garantir a sua subsistência, uma vez que o custo de vida aumenta e torna-se difícil cobrir despesas básicas, por exemplo.
Os trabalhadores tornam-se mais vulneráveis diante das incertezas econômicas, uma vez que a insegurança de seus empregos se faz presente — não pelo avanço tecnológico, mas sim pelo cenário econômico que se é enfrentado devido à crises e reestruturações do capital.
Nesse sentido, a Renda Básica Universal surge como uma medida essencial para garantir o sustento, satisfação de necessidade básica e a dignidade do precariado.
Parijs e Vanderborght (2017, apud Sousa, 2021) citam a narrativa contada no livro “Utopia” de Thomas More publicado em 1516 em que o primeiro fundamento de renda básica “diz respeito a ideia de uma renda mínima que garantisse a todos um meio de subsistência que pudesse evitar que as pessoas recorressem a meios que fossem prejudiciais a vida em sociedade, como roubar” (MORE, 1956 apud PARIJS e VANDERBORGHT, 2017 apud SOUSA, 2021, p. 27).
Como a discussão sobre renda básica universal não é nova, alguns grupos surgiram baseando o programa sobre diferentes perspectivas (Artur, 2016 apud Sousa, 2021), em que a primeira dela, idealizada por Friedman, surge com o intuito de simplificar o sistema de seguridade social, a fim de proteger os cidadãos de riscos de desemprego, invalidez e doenças; a segunda, idealizada por Robert Theobald, atentou para o mercado de trabalho no que se refere às possíveis perdas de emprego devido ao progresso tecnológico; e a última, idealizada por autores marxistas, previu a renda básica como um mecanismo de transformação social que elevaria as relações pessoais para além do ambiente de mercado (Sousa, 2021).
A partir do final da segunda metade do século XX os fundamentos de renda mínima foram unificados na ideia da Renda Básica Universal, na qual consiste em:
[…] um modelo de transferência de renda que tem como fundamentos justamente a garantia de que as necessidades básicas sejam atendidas através de pagamentos feitos a todos os adultos e que não haja condicionalidades ou requisitos (ARTHUR, 2016 apud Sousa, 2021, p. 30).
No Brasil, apesar de existir uma lei que estipule a Renda Básica Universal, Lei de nº 10.835/04, esta nunca foi executada. Os motivos para isso podem ser tanto de natureza política, econômica ou evidências empíricas insuficientes. Alguns pesquisadores nos últimos anos vêm se dedicando a investigar a implementação da Renda Básica Universal no Brasil e como ela pode impactar na pobreza e desigualdade, bem como em sua viabilidade econômica (Sousa, 2021). Um exemplo disso, é o estudo feito por Jain Family Institute (JFI), instituição de pesquisa sem fins lucrativos, sediada em Nova Iorque, nos Estados Unidos, em parceria com a Universidade Federal Fluminense (UFF), a respeito da renda básica universal disponibilizada na cidade de Maricá, localizada no estado do Rio de Janeiro, única cidade brasileira a estabelecer a renda básica universal para todos da população.[5]
O intuito deste artigo não é trazer como principal objetivo de estudo a aplicação da renda básica, e sim explorar os microtrabalhadores e suas implicações quanto ao sistema econômico, trazendo portanto, a renda básica como um possível mecanismo, o que não a torna como o único, para os desafios precários enfrentados pelos microtrabalhadores.
A busca por renda, devido a sua insuficiência, faz com que pessoas se submetam a trabalhos cada vez mais precários, podendo afetar sua vida social, psíquica e física. Por isso, a possibilidade de renda básica universal seria interessante para a sociedade do trabalho – que não possui renda suficiente, ou que trabalham na informalidade, ou que até mesmo estão desempregados.
Com uma renda mínima que atendesse as necessidades básicas de cada indivíduo de acordo com o custo de vida real no Brasil, talvez estes não se submeteriam à trabalhos precários. Para se comprovar essa possibilidade, primeiramente é necessário um estudo e aplicação prática hipotética, com o intuito de se ter resultados (positivos ou negativos), a fim de verificar se realmente a possibilidade de renda básica universal surtiria efeitos.
Sendo assim, a renda básica universal é uma peça importante no quebra-cabeça de mecanismos e estratégias, mas isso não exclui outras formas de mitigação da precariedade, como é o caso do fortalecimento dos movimentos sociais e relações sindicais, bem como regulamentação do trabalho destinado a essa nova classe de trabalhadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo oferece uma análise abrangente do crowdworkers (ou microtrabalhadores). Para entender suas implicações, este artigo buscou trazer de forma abrangente a evolução do capitalismo clássico industrial até ao capitalismo de plataforma, bem como suas crises estruturais e como a reestruturação influencia em trabalho precários.
A diante, foi trabalho sobre o conceito de heteromação, conceito introduzido por Hamid Ekbia, que proporciona uma perspectiva que se distancia do paradigma tradicional da automação. Ao invés de eliminar os seres humanos do ciclo de trabalho, a heteromação busca reconfigurar e intensificar as atividades laborais, promovendo uma interdependência entre humanos e máquinas. Este novo paradigma não apenas redefine a dinâmica do trabalho, mas também desafia as concepções tradicionais sobre o papel da tecnologia na sociedade.
No contexto da heteromação, os microtrabalhadores, desempenham um papel crucial ao alimentar a inteligência artificial por meio da realização de tarefas fragmentadas e distribuídas. No entanto, enfrentam uma realidade marcada pela precariedade, caracterizada por desemprego, remunerações insuficientes, informalidade, jornadas exaustivas e falta de proteção social.
A implementação de uma Renda Básica Universal surge como um mecanismo possível para enfrentar os desafios da precariedade no microtrabalho. Este modelo, fundamentado na garantia de necessidades básicas sem condicionalidades, pode proporcionar estabilidade e dignidade aos trabalhadores em um cenário de incertezas econômicas e transformações tecnológicas.
No entanto, é importante ressaltar que a Renda Básica, embora represente um passo significativo, não deve ser encarada como o único mecanismo para os desafios enfrentados pelos microtrabalhadores. Ela deve ser integrada a outras estratégias, como por exemplo, o
fortalecimento dos movimentos sociais e a regulamentação do trabalho.
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[1] https://www.mckinsey.com/global-themes/digital-disruption/harnessing-automation-for-a-future-that-w orks
[2] https://features.marketplace.org/robotproof/
[3] https://exame.com/tecnologia/amazon-fresh-lojas-indianos-compras/
[4] https://www.intercept.com.br/2023/06/19/brasileiros-ganham-fracoes-de-centavos-para-melhorar-sua-inteligenci a-artificial/
[5] https://www.maricabasicincome.com/pt/inicio
1 Mestranda em Direito na Universidade Federal de Pernambuco – Recife – PE – Brasil Linha e Grupo de pesquisa: Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica thais.tlos@ufpe.br
2 Doutor e Professor em Direito na Universidade Federal de Pernambuco – Recife – PE – Brasil Linha e Grupo de pesquisa: Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica carlo.cosentino@ufpe.br