ALEJANDRO JODOROWSKY E A FORMAÇÃO DO POETA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7714102


Carolina Votto1
Fred Mendes Stapazzoli Junior2


Resumo: Este artigo aborda o processo de formação do poeta a partir do filme Poesia sem fim do diretor chileno Alejandro Jodorowsky produzido em 2016. Propomos refletir em um primeiro momento acerca da formação e vocação do poeta através da construção de um tempo imaginário de invenção, abordando os aspectos estéticos apresentados no filme, bem como a possibilidade do cinema enquanto uma obra de arte total. Posteriormente a relação com os mestres que compõe o repertório de criação do artista. Por conseguinte, a importância de uma estética da existência na construção de uma leitura poética acerca da vida.

Palvras-chaves: Poesia-Cinema-Formação-Estética da Existência

Abstract: This article deals with the process of formation of the poet from the film Poetry without end of the Chilean director Alejandro Jodorowsky produced in 2016. We propose to reflect in a first moment about the formation and vocation of the poet through the construction of an imaginary time of invention, approaching the aesthetic aspects presented in the film, as well as the possibility of cinema as a total work of art. Later the relationship with the masters that composes the repertoire of creation of the artist. Therefore, the importance of an aesthetic of existence in the construction of a poetic reading about life.

Key-Words: Poetry-Movie-Formation- Aesthetics of Existence

Pensar a formação do poeta através de sua própria lente é o que nos propomos neste espaço de escrita. Por isso, a escolha de refletirmos o processo de construção poética do artista multimídia Alejandro Jodorowsky a partir de seu filme Poesia sem fim produzido em 20163. Esse filme foi apresentado em festivais de cinema como a 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e o Festival de Cannes. A película angariou um único prêmio de Melhor Narrativa segundo a escolha do público no Festival Internacional de Cinema de San Francisco. A experiência estética apresentada por Poesia sem fim, nos conduz a refletir acerca de como alguém se torna poeta? Qual seria a vocação e formação de alguém para se tornar um artista de sua própria vida? Essas são questões que irão permear esse itinerário reflexivo e as inquietações estéticas suscitadas pelo artista chileno.

O encontro com o imaginário

Alejandro Jodorowsky é um artista chileno, com quase um século de vida, isto é, vivenciou as grandes transformações estéticas do século XX e continua atuante neste novo século. Descendente de russos, nasceu na cidade de Tocopilla localizada ao norte do Chile. Seu último filme Poesia sem Fim é uma narrativa autobiográfica que narra a transição de sua adolescência para juventude nos anos 40 em Santiago, capital chilena. Esse filme parte do desejo do artista de compor uma autobiografia desenvolvida em cinco partes começando pelo filme A Dança da Realidade de 2013 em que narra a sua infância na cidade interiorana de Tocopilla e os conflitos apresentados na infância, inclusive, já neste filme o próprio diretor aparece dialogando com o seu personagem de infância. Algo que o mesmo irá repetir em Poesia sem Fim, sendo que este narra a sua juventude antes de sua ida para a França e o seu encontro definitivo com o grupo surrealista francês de André Breton.

Poesia sem fim, além de carregar o fito de uma estética surrealista, aproximando-se do imaginário fantástico é através da construção de imagens poéticas que este nos propõe um entrelaçar as mãos nos tempos embaralhados da vida: presente e passado, conjunções que a arte nos permite imaginar.

Falei para todos os técnicos: “Vocês vão achar que não sei nada de cinema. Tudo bem, mas sei o que quero, e o que quero é curar a minha alma”. Por isso, fui filmar em Tocopilla, no Chile, porque lá estão as ruas por onde andei, a loja do meu pai, a praça onde eu ficava quando era criança; então, isso vai me curar e curar meus filhos, porque meu filho vai interpretar o meu pai, e vai ser um enorme choque psicológico entre nós. Vou fazer a minha mãe cantar, vou humanizar o meu pai, vou corrigir a minha árvore genealógica. É um trabalho terapêutico para mim e para todos. (JODOROWSKY, 2015)

A cena inicial do filme nos apresenta Jodorowsky, seu pai e sua mãe chegando a rua Matucana em Santiago, a partir de uma estética teatral personagens desfilam de forma inanimada em grandes painéis em movimento, assim o artista anuncia o espetáculo que foi a sua introdução e vocação à poesia. Como em outros filmes jodorowskyanos, o espectador é jogado no imaginário fantástico, em que as imagens pulsam como se o inconsciente estivesse em festa. Neste caso é o imaginário das reminiscências do poeta.

Imagens reminiscentes que nos induzem a indagar: quais são os conteúdos da vida que permitem alguém a se tornar artista? Blanchot em O Livro Porvir ao remeter-se ao escritor francês Marcel Proust e sua relação com o tempo; enaltece que o escritor francês soube se apropriar das experiências vividas para colocá-las em um tempo imaginário que é o espaço da escrita. Poderíamos pensar que Jodorowsky com sua poesia infinita transformou em imagens seu tempo imaginário, onírico das experiências que o constituíram no caminho da poesia.

A experiência do tempo imaginário feita por Proust só pode ocorrer num tempo imaginário, e fazendo daquele que a ela se expõe um ser imaginário, uma imagem errante, sempre ali, sempre ausente, fixa, convulsiva, como a beleza de que falou André Breton. A metamorfose do tempo transforma primeiramente o presente em que ela parece ocorrer, atraindo-o para a profundeza indefinida onde o “presente” recomeça o “passado”, mas onde o passado se abre ao futuro que ele repete, para que aquilo que vem volte sempre, e novamente, de novo. (BLANCHOT, 2016. P: 23).

Blanchot refere-se a um tempo estético presente na obra proustiana, poderíamos estender como Jodorowsky se apropria da linguagem cinematográfica para a construção desse tempo imaginário, muitas vezes esburacado da memória. A experiência de um tempo imaginário através da estética cinematográfica, apresentando situações ao espectador desconcertantes do ponto de vista de uma racionalidade tradicional. Pois, nos deparamos com figuras exóticas, como por exemplo, um Hitler anão na porta da loja de seu pai Jaime (alusão ao fascismo que desenhava seus matizes no continente latino-americano); pessoas sendo assassinadas em um clima de barbárie contínua; uma mãe que se remete ao filho em canto lírico. A experiência estética propiciada pelo filme Poesia sem fim perpassa a construção do olhar para o estranho que habita o artista e que possivelmente permite que olhemos para as estranhezas que nos compõe. Uma mãe que entoa um canto lírico, melancólico em sua presença feminina, em toda extensão do filme, ela se apresenta como a musa triste que ao falar expressa seu canto sôfrego. Um pai castrador no sentido lato do termo, pertencente a uma cultura opressora, é proprietário de uma loja de roupas e o dinheiro possui um valor essencial em sua tenra existência. Essa figura paterna deseja que seu filho seja médico, mas seu filho quer ser poeta e assim imagina que também pode “curar as pessoas”.

Desde a primeira cena de Poesia sem fim nos deparamos com uma cidade devastada pela fome, miséria e violência, esse é o imaginário posto pelo artista, um lugar devastado pelo capitalismo, pelo início da segunda guerra mundial e a ascensão do fascismo na Europa. É perceptível como podemos observar o impacto disso nesse país latino-americano e como o diretor plasticiza essa catástrofe através das imagens.

Jodorowsky nasceu exatamente no ano de 1929, momento em que se viveu uma das maiores crises econômicas pós a primeira guerra mundial. É neste cenário dantesco que somos inseridos ao percorrer os passos do poeta, do seu inferno, purgatório e paraíso propiciado pela arte.

Imagem extraída do Filme Poesia sem fim.

A partir desse caminho iluminado pela poesia o artista vai nos inserindo em seu processo formativo, um mendigo embriagado se aproxima do protagonista quando este está chorando e diz: “Não se preocupe, menino. Uma virgem iluminará o seu caminho. Como uma borboleta que queima”. A partir dessa fala profética, a voz do narrador invade a cena e em um jogo entre passado e presente, o artista em sua idade atual reflete ao lado do seu personagem adolescente e diz: “Este bêbado, convertido em profeta do vinho, com uma só frase, me puxou do abismo”. A partir daqui o poeta começa a desenhar a sua face ao desvelar a máquina de escrever escondida nos escombros de sua casa escreve no confronto com a imagem de seu pai com um espectro: “A flor canta e desaparece. Como podemos reclamar. Chuva noturna, casa vazia. Meus passos no caminho vão se dissolvendo”.

E em um certo momento da narrativa alguém tenta roubar utensílios da loja de seu Pai Jaime, este furioso, expulsa o assaltante e o mesmo deixa sua cesta dentro da loja. Alejandro ao deparar-se com os objetos presentes na cesta, encontra um livro de capa verde do poeta espanhol Garcia Lorca, disfarçadamente coloca o livro embaixo de seu casaco e a noite em casa põe a ler o poema Romance Sonâmbulo4 do poeta que foi assassinado pelas tropas franquistas no ano de 1936. Aqui começa se esboçar o repertório poético de “Alejandrito”, a formação do poeta começa a dar seus primeiros passos.

A formação e vocação do poeta

Não fica evidente em nenhum momento do filme espaços institucionais de ensino da arte, somente os caminhos da vida, os encontros e os malogros existenciais que vão compondo o imaginário narrativo. Segundo Truffaut em Proporcionar prazer, ou o prazer dos olhos: “A arte cinematográfica só existe por meio de uma traição bem organizada da realidade. Todos os grandes cineastas dizem não a alguma coisa” (TRUFFAUT, 2005, p. 47). Parece evidente ser este o desejo de Jodorowsky, trair a realidade em uma organização estética que constitua imagens poéticas inesquecíveis5, a partir de uma relação multimidia, isto é, compondo com o teatro, as artes visuais, a música, o circo, a mímica, as histórias em quadrinhos, a dança e a magia. Construindo assim, sua grande constelação estética, as linguagens confabulando em seu imaginário especular. As escolhas de seus mestres perpassam por Frederico Garcia Lorca, Nicanor Parra, Pablo Neruda, o surrealismo, Artaud, Jean Cocteau que acabam por confabular para a construção de um processo formativo transfigurador.

Mas curiosamente em nenhum momento de Poesia sem fim aparecem as instituições de ensino tradicionais, mesmo sabendo que o artista estudou na Universidade de Santiago, o que transparece é uma leitura próxima a concepção grega de autoformação ou da própria concepção da palavra Formação em alemão. Bildung, como uma imagem, um exercício espiritual e o espelho formador do mundo. É plausível esmiuçar a etimologia desse termo a partir da palavra Bild (imagem) e Vorbild (modelo); o filósofo alemão Hans. G. Gadamer em seu texto intitulado Formação presente na obra Verdade e Método aborda a raiz histórica do termo formação como integrante do conceito de cultura.

Os conceitos relacionados a formação segundo o filósofo da hermenêutica seriam: a arte, a criatividade e o gênio. Sendo esta exercitada através do oficio de uma disposição própria e renovada de si mesmo, estimulando força e elevação da força. Essa elevação da força estava ancorada em três pilares a arte, a filosofia e a ciência.

Porque em “formação” (Bildung) encontra-se a palavra “imagem” (Bild). O conceito da forma fica recolhido por trás da misteriosa duplicidade, com a qual a palavra “imagem” (Bild) abrange ao mesmo tempo “cópia” (Nachbild) e “modelo” (Vorbild). Corresponde, no entanto, a uma freqüente transferência do devir para o ser, o fato de que a formação (Bildung) (assim também a palavra “Formation” dos nossos dias) designa mais o resultado desse processo de devir do que o próprio processo. A transferência, aqui, é bastante compreensível, porque o resultado da formação não se produz na forma de uma finalidade técnica, mas nasce do processo interno de constituição e de formação e, por isso, permanece em constante evolução e aperfeiçoamento. Não é por acaso que, nesse particular, a palavra formação se iguala à palavra grega physis. (GADAMER, 1999, 49-50)

Jodorowsky parece escolher as imagens e os modelos que constituem essa ficção autobiográfica, ainda mais, se pensarmos que a palavra ficção se origina do latim fictione, tendo sua declinação de fictio, de fingire, modelar, inventar. Um possível fingimento que constrói realidades. Fazer de seu processo formativo uma invenção em relação a vida. E dessa forma, retomamos Truffaut, ao refletir que o cinema atinge o seu melhor quando “o homem cineasta consegue dobrar a máquina ao seu desejo e, dessa forma, nos fazer entrar no seu sonho” (TRUFFAUT, 2005, p. 48). Entrar no sonho de “Alejandrito” é depararmo-nos com o imaginário pulsante do absurdo como lugar de invenção e não de horror. Por isso, nos desloquemos para a cena em que o artista rompe com a sua família, executando o ato simbólico de cortar a machadadas uma árvore no pátio da casa da avó materna, em um ato aparentemente descontrolado, rompe com a sua genealogia para encontrá-la na arte.

Neste momento começa a Vita Nuova6 do poeta, indo morar em uma casa de duas artistas mecenas, um desenrolar de sua vocação começa aflorar. Segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben a vocação do poeta é algo que transmuta entre o imemorial e o inesquecível, um traço que percorre questionamentos como:

A que coisa é fiel o poeta? A pergunta envolve certamente qualquer coisa que não pode ser fixada em proposições ou em profissões de fé memorizadas. Mas como se pode conservar uma fidelidade sem nunca a formular, nem sequer a si próprio? Ela teria sempre de sair da mente no próprio instante em que se afirma. (AGAMBEN, 2016, p. 37).

Agamben ao formular acerca da ideia de vocação em sua obra Ideia de Prosa, atenta para a constante construção da vocação da poeta, neste lugar em que o imemorial aparece na arte, nas invenções apresentadas pelo artista. Jodorowsky parece destacar-se e aproximar-se de diretores como Fellini e Jean Cocteau, artistas que também buscaram compor o imaginário cinematográfico7 a partir de narrativas que envolviam o memorial e este último o surrealismo. Inclusive, Jean Cocteau roteirizou o primeiro curta do diretor chileno intitulado: A Gravata de 1957. Mas, aqui interessa-nos pensar esse lugar da vocação do poeta, Jodorowsky parece nos direcionar que a única coisa em que ele de fato poderia ser fiel é à poesia.

E para este a poesia reúne todas as linguagens artísticas, algo presente no que o filósofo italiano descreve como “um abraço invertido da memória e do esquecimento, que conserva intacta, no seu centro, a identidade do que é imemorial e inesquecível, é a vocação”. (IDEM, p. 38). E esse abraço invertido se mostra no filme no momento em que Alejandrito deixa a casa dos pais e vai morar em uma casa povoada por artistas; e ao entrar é questionado de que arte este produz, ele diz que poesia e assim pedem que ele recite um poema e ele diz que não possui nenhum. De forma romântica é colocado que se ele é poeta, pode improvisar uns versos e este declama com o furor de sua juventude:

“Deixar que a minha vida se consuma. Lançando chamas de sonhos”.

Esse lançar as chamas do sonho se aproxima com o que foi mencionado anteriormente quando Truffaut se refere ao êxito do diretor de cinema quando este consegue dobrar a máquina e nos fazer entrar em seu sonho. Adentrar sua trajetória imaginário-poética é a isso que o diretor chileno nos convida. E não seria essa também uma das tarefas de um processo autoformativo que contemple as diferentes subjetividades?

Jodorowsky nos apresenta sua subjetividade mitificada na figura do artista que deseja apresentar o cinema como uma “obra de arte total” inserindo os elementos teatrais, performáticos, circenses e visuais, algo muito presente em sua formação e dos artistas que este admirava. Pois em meados do século XX, principalmente na arte contemporânea as linguagens artísticas assumem um caráter pluralista. Ou seja, a junção de diferentes linguagens estéticas para aproximar a profícua relação entre arte e vida. Herança esta advinda das vanguardas artísticas europeias.

Costumamos chamar de vanguardas europeias o conjunto de tendências artísticas vindas de diferentes países europeus cujo principal objetivo era levar para a arte o sentimento de liberdade criadora, a subjetividade e até mesmo certo irracionalismo. Sobretudo em um contexto em que as correntes filosóficas de cunho positivista influenciavam toda produção artística da época. Os movimentos de vanguarda emergiram nas duas primeiras décadas do século XX e provocaram uma ruptura com a tradição cultural do século XIX, influenciando não apenas as artes plásticas, mas também outras manifestações artísticas, entre elas a literatura.

Do francês avant-garde, a palavra vanguarda significa “o que marcha na frente”.

E aqui é interessante destacar que Jodorowsky considera que produz um cinema para um público extemporâneo, como este mesmo atesta: “Eu sempre estive 20 anos à frente de meu tempo” (JODORWSKY, 20017, p. 08). As correntes de vanguarda, embora apresentassem propostas específicas, pregavam um mesmo ideal: era preciso derrubar a tradição por meio de práticas inovadoras, ideal da arte moderna também. Capazes de subverter o senso comum e captar as tendências do futuro. Essas propostas, incompreendidas à época em virtude, principalmente, do contexto conservador no qual estavam inseridas, adquiriram importância histórica e influenciaram o trabalho de vários artistas no mundo.

Mas aqui neste contexto, interessa-nos especificamente o movimento surrealista, do qual o cineasta chileno se filiou esteticamente. O termo surrealismo, cunhado por André Breton a partir da ideia de ‘estado de fantasia supernaturalista’ de Guillaume Apollinaire (1880-1918), traz consigo um sentido de afastamento da realidade ordinária que o movimento surrealista celebra desde o primeiro manifesto, de 1924. Citamos um fragmento em que Breton faz uma ode a imaginação e seu potencial importância:

Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares. Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu a considero apropriada para manter, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar (como se fosse possível enganar-se mais ainda). Onde começa ela a ficar nociva, e onde se detém a confiança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de errar não é, antes, a contingência do bem? (BRETON, 1924, p. 02-03)

A importância do mundo onírico, do irracional e do inconsciente, anunciada já no texto inaugural, se relaciona diretamente ao uso livre que os artistas fazem da obra de Sigmund Freud e da psicanálise, permitindo-lhes explorar nas artes o imaginário e os impulsos ocultos da mente. O Surrealismo desejava provocar o estranhamento. Essa provocação estava imbuída da visão freudiana do estranho, texto este que o psicanalista escreveu em 1919 cunhando o termo: UNHEIMLICH (estranho, inquietante) termo ambíguo que combina o estranho com o familiar (heimlich), também o “estranho” significa “o nome de tudo que deveria permanecer secreto e escondido e veio à tona”.

Frase está que Freud se apropria do filósofo romântico Schelling.

Esse texto de Freud produziu profunda ressonância no meio artístico e literário, pois o estranho, no caso dos surrealistas, se remete ao animismo e à magia. Esses artistas como Breton, Salvador Dali, Magritte, Leonora Carrington8 buscavam encontrar os mitos de seu tempo. Mitos que predominavam na vida psíquica e social de sua época. Motivos aleatórios para desafiar a lógica da mente racional e expressar um tipo de lógica profunda do inconsciente.

No surrealismo nunca houve uma unidade de estilos, o que é perceptível nos filmes do diretor chileno também. Pinturas muito diferentes em termos formais. O aspecto sexual da modernidade era crucial para os integrantes desse movimento. A mulher como objeto de desejo, ou seja, a imagem da musa. Os trabalhos surrealistas tinham em comum, o efeito de desorientar expectativas habituais. O efeito desejado era o de revelar o inconsciente na representação e de desfazer as concepções reinantes de ordem e realidade.

Não se tratava apenas de “questionar” a realidade, mas também de questionar a forma pela qual ela era normalmente representada.

Jodorowsky mantém em todo o desenrolar do filme a fidelidade a estética surrealista, sendo fidedigno a frase de Apollinaire que coloca “o estado de uma fantasia super naturalista”. As imagens representadas em todo o desenvolver do filme se encarregam do encontro do onírico representado de forma profundamente realista.

Inclusive na relação estabelecida entre o poeta e o espaço em que este acaba sendo abrigado. O poeta alemão Hugo Von Hofmannsthal em carta a seu amigo Edgar de 1895 ao refletir sobre a essência da arte e o papel do artista, nos concebe uma reflexão acerca desse espaço de singularidade ocupado por quem se permite e tem a oportunidade de explorar a imaginação:

A essência da arte é sempre a espontaneidade, a essencialidade, olhar a existência sem temor, sem preguiça e sem mentira. Os artistas visto nessa perspectiva, talvez sejam as pessoas que mais veem com interesse o problema da existência e que nunca se acomodam com fórmulas que não querem dizer mais nada. Dessa maneira, partindo de uma atividade artística diletante, creio ter entrado de acordo com a vida. (HOFMANNSTHAL, 2017, p. 58).

Parece que Jodorowsky também busca estar de acordo com a vida ao produzir esse filme, narrar a sua adolescência e entrada na juventude imerso nos diferentes conflitos que isso apresenta. Ao mesmo tempo em que, busca ser artista em sua cotidianeidade. Através do homem imaginário que o habita iluminar as feridas de sua história e transformá-las em objeto artístico. Não obstante, que essa narrativa também imputa uma certa imagem do mito do artista, principalmente quando este é orientado a procurar uma musa. A iniciação do poeta ao amor perpassa ao imaginário de amar através das palavras e para isso é preciso buscar a fonte de inspiração. Neste caso, o artista assume uma posição edipiana e nos apresenta sua musa Stella Díaz, uma poetisa de cabelos longos avermelhados, personagem encenado pela mesma atriz que compõe a sua mãe no filme.

Trecho do filme em que Alejandro encostado no balcão avista Stella Díaz pela primeira vez

O encontro com a musa e o amor significam uma parte fundamental na formação do poeta, e mais quando essa mesma mulher também é a musa de seu mestre o poeta Nicanor Parra9. Parra escreve o Homem Imaginário que sonha com a mulher imaginária diante de um amor imaginário que somente é possível de vislumbrá-lo esteticamente.

Destacamos um trecho do referido poema:
O homem imaginário
vive numa mansão imaginária
rodeada de árvores imaginárias
à beira de um rio imaginário

Sombras imaginárias
vêm pelo caminho imaginário
entoando canções imaginárias
à morte do sol imaginário

E nas noites de lua imaginária
sonha com a mulher imaginária
que o brindou seu amor imaginário
volta a sentir essa mesma dor
esse mesmo prazer imaginário
e volta a palpitar
o coração do homem imaginário10

Voltar a palpitar o coração do homem imaginário, o coração da inventividade diante da figura da musa e do amor. Agamben ao referir-se a Ideia de Musa enaltece a dialética entre a latência e não-latência, considerando a impossibilidade de o pensador inspirar a si mesmo, sendo de a ordem da necessidade recorrer ao mundo e suas invariáveis dissonâncias como material de pensamento. E essa abundância de possibilidades se coloca na via do imaginário e da memória, sendo está a musa, o acontecimento de uma ideia. E diante da musa11o desabrochar do amor e da sexualidade.

Uma existência etopoietica

Nos descaminhos do poeta o amor se configura como uma travessia necessária da experiência de criação, a amizade e as formas inventivas de existir se apresentam na trajetória narrada por Alejandro no momento em que ele sai a caminhar com o seu amigo, o também poeta Enrique Lin. Os dois decidem como poetas da vida que irão caminhar em linha reta independente daquilo que esteja no caminho, em uma ação quase infantil, performáticos atravessam por cima de um caminhão, adentram a casa de uma senhora, pulam a janela, fogem de cães furiosos e chegam a conclusão de que a poesia é um ato.

Transcrevemos o diálogo entre os amigos:

Enrique Lihn: Alejandro estas de acordo comigo? A linguagem que nos foi ensinada transporta ideias loucas.

Alejandro: Então, meu caro Henrique. Em vez de pensar direito, pensamos distorcido.

Henrique Lihn: Eu gostaria de salientar que também andamos de maneira distorcida.

Alejandro: Eu tenho a impressão que caminhamos em linha reta.

Henrique Lihn: Sim, mas aquele caminhão nos obriga a desviar. O que poderemos fazer?

Alejandro: Nós, poetas não somos obrigados a nada. Continuemos em linha reta.

Henrique Lihn: Alejandro, a poesia é um ato!

Alejandro: Sim, mil vezes! A poesia é um ato!

O exercício da poesia como ato se aproxima da busca de uma estética da existência, uma forma etopoietica de existir, perpassa pelas condições de se pensar o sujeito como obra de arte. Questão está presente em Foucault, principalmente nos seminários desenvolvidos no final anos 70 e o começo dos anos 80 do século passado.

Quando o mesmo resgata o conceito de cuidado de si (Epimélea Heautoû) da Grécia antiga – diante dos movimentos de inquietude da alma faz-se invenção nas pequenas cotidianeidades. O filósofo francês aborda que o exercício etopoietico permite uma outra forma de viver, mais próxima de uma via reflexiva e criativa. Como caminhar em linha reta, brincar com a desorganização da vida. Mas sentir-se plenamente vivo, Jodorowsky parece querer trazer para Poesia sem fim uma estetização de suas inquietudes joviais diante da vida também. Em outra cena marcada pelo encontro imaginário do diretor com seu “eu” da juventude, este dialoga e impulsiona o jovem Alejandro a viver, mesmo quando este tomado pelo horror de existir – questiona: Qual é o sentido da vida? Como bem podemos observar na imagem abaixo em que o diálogo aparece.

Trecho do filme Poesia sem fim

Talvez seja está uma das questões mais angustiantes de se estar vivo e da qual as respostas variam em relação a cada circunstância da vida. E também e não menos importante, de como somos preparados para enfrentar esses questionamentos; e imputar uma força plástica a existência. Nietzsche no aforismo intitulado: O que devemos aprender com os artistas escrito na obra a Gaia Ciência de 1888, nos conduz a pensarmos de que meios dispomos para tornar as coisas mais belas, atraentes, desejáveis para nós, mesmo quando estás não o são. Qual seria a tarefa do artista ao inventar artifícios para uma vida poética? O filósofo aponta:

Afastarmo-nos das coisas até que não mais vejamos muito delas e nosso olhar tenha de lhes juntar muita coisa para vê-las ainda – ou ver as coisas de soslaio e como quem recorte – ou dispô-las de forma tal que elas encubram parcialmente umas às outras e permitam somente vislumbres em perspectivas – ou contemplá-las por um vidro colorido ou à luz do poente – ou dotá-las de pele e superfície que não seja transparente: tudo isso devemos aprender com os artistas, e no restante, ser mais sábios do que eles. Pois neles esta sutil capacidade termina, normalmente, onde termina a arte e começa a vida; nós, no entanto, queremos ser os poetas-autores de nossas vidas, principiando pelas coisas mínimas e cotidianas. (NIETZSCHE, 2012, p:180-81)

Jodorowsky dirige Poesia sem fim aos 88 anos de idade, após um longo distanciamento das ruas de Tocopilla, da rua Maturana, das opressões sofridas pelo seu pai. Insere seus dois filhos como atores protagonizando o seu eu jovem e o outro seu Pai Jaime. No confronto com a memória imaginária transformada em espetáculo, este nos apresenta sua vida artística, vislumbres em perspectivas ou um colorido a luz do poente.

Mas, acima disso ele nos mostra a possibilidade de sermos poetas-autores de nossas vidas, como Nietzsche pensará nos conduzindo as coisas mínimas e cotidianas. Nos permitindo adentrar a superfície por profundidade, o artista celebra a teatralidade da vida, suas dores, fracassos, amores, amizades e seus mestres. É preciso poesia para ter a coragem de se despedir das circunstâncias que perdem o motivo de ser também, e essa é uma das cenas de maior efusão de cores, gestos, danças e carga de dramaticidade, abandonar o que já morreu (sua saída do Chile) para ir ao encontro de novas paisagens inventivas (sua travessia para a França).

Trecho do filme Poesia sem fim

Diante do que foi exposto até agora e dos amálgamas que compõe o universo imaginativo do artista, podemos pensar que a formação do poeta exposta por Jodorowsky nos acena para as diferentes possibilidades de se narrar a memória, de se reencontrar e reencantar-se com a sua própria história de vida. A escolha do cinema como a linguagem estética que contempla esses diferentes lugares do fazer artístico e possibilita afirmar como disse Truffaut – as possibilidades de se fazer um filme é melhorar a vida -, e parece ter sido este o objetivo do diretor chileno, resgatar as brincadeiras e os conflitos de adolescente, reafirmar suas escolhas mesmo diante da dissolubilidade do tempo. Um filme enquanto uma experiência autoformativa da existência.

Referências Bibliográficas

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BARTHES, Roland. A preparação do Romance VolI. – São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. – São Paulo: Martins Fontes, 2013.

CATÁLOGO MOSTRA Alejandro Jodorowsky. Serviço Social do Comercial – SESC e Centro Cultural Banco do Brasil, 2009).

FREUD, Sigmund. Obras completas (1917-1920) Volume 14. – Rio de Janeiro: Companhia das letras, 2010.

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). – São Paulo: Martins Fontes, 2010.

GADAMER, Hans. G. Verdade e Método. Vol. I. Trad: Flávio Paulo Meurer. – Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

LORCA, Frederico Garcia. Antologia Poética. – São Paulo: Martins Fontes, 2010.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad: Arthur Parreira. – São Paulo: Martins Fontes, 2013.

HOFMANNSTHAL, Hugo Von. As palavras não são deste mundo. – Belo Horizonte: Editora ÂYINÉ, 2017.

NIETZSCHE, Friedrich. GAIA CIÊNCIA. Trad. Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das letras, 2012.

TRUFFAUT, François. O prazer dos olhos/textos sobre o cinema. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

XAVIER, Ismail (org). A experiência do cinema. – Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.

Sites:

Disponível em <https://www.kickstarter.com/projects/276667448/jodorowskys-new-film-endless-poetrypoesia-sin-fin> Acessado em 10/02/2019

Disponível em <http://www.algumapoesia.com.br/poesia3/poesianet318.htm> Acessado em 14/02/2019

Disponível em < https://observador.pt/2017/09/10/alejandro-jodorowsky-o-cinema-vai-passar-a-ser-visto-nos-museus/ >Acessado em 20/02/2019.

Disponível em https://www.planocritico.com/critica-poesia-sem-fim/ Acessado em 15/02/2019.

Disponível em <https://www.facebook.com/umfilmemedisse/photos/a.223686927987842/574663409556857/?type=3&theater> Acessado em 30/12/2018.


3Esse filme foi produzido a partir de uma campanha de financiamento coletivo que contou com a doação
de 10 mil admiradores da obra de Jodorowsky via o site Kickistarter, a campanha foi difundida através do
site https://www.kickstarter.com/projects/276667448/jodorowskys-new-film-endless-poetrypoesia-sin-fin.
4Verde que te quero verde. Grandes estrelas de escarcha. Nascem com o peixe de sombra que rasga o
caminho da alva. A figueira raspa o vento a lixá-lo com as ramas, e o monte, gato selvagem, eriça as piteiras
ásperas. Mas quem virá? E por onde?… (GARCIA LORCA, 1966, p: 53).
5Em entrevista ao jornal Observador de Lisboa em 19/09/2017 intitulada: O cinema vai passar a ser visto
nos museus. O entrevistador destaca que seus filmes possuem a característica de alguém que faz cinema
como poeta e Jodorowsky destaca: “Sim, e da imagem poética. Eu não me comprazo na neurose. Conheço
bem a história da pintura e sei que há em certos quadros uma tal beleza visual, uma tal perfeição, que nos
faz chorar. Eu quero fazer imagens que, uma vez vistas, nunca mais se esquecem. Por isso, tento que os
meus filmes tenham imagens inesquecíveis.< https://observador.pt/2017/09/10/alejandro-jodorowsky-o- cinema-vai-passar-a-ser-visto-nos-museus/ >Acessado em 20/02/2019.
6“No meio do caminho de nossa vida”, primeiro verso da Divina Comédia de Dante Aliguieri se chama
Vita Nuova, seria o momento que marca decisivamente a vida do poeta.
7“Filho de Fellini com Artaud. Um artista precisa ser como Jean Cocteau…esquizofrênico. Necessita ser
muitas pessoas ao mesmo tempo, não apenas uma”. (Catálogo MOSTRA Alejandro Jodorowsky. Serviço
Social do Comercial – SESC 2009).
8Leonora Carrington (1917-2011) foi uma pintora surrealista, escritora e escultora. Viveu a maior parte da
sua vida na Cidade do México, mas nasceu na Inglaterra. Jodorowsky estudou pintura com Leonora e
montou o cenário de seu espetáculo intitulado: Penélope no início dos anos 60.
9Nicanor Parra (1914-2018) Foi um poeta e matemático chileno, irmão mais velho da artista Violeta Parra.
Era conhecido por seu estilo antipoético. O nome de Nicanor Parra foi, por diversas vezes, cogitado ao
Nobel de Literatura. Físico e matemático, professor que “perdeu a voz dando aulas”, como escreveu num
dos poemas, publicou em 1937 seu primeiro livro, Cancionero sin nombre. Mais tarde, o livro foi por ele
rejeitado e os poemas excluídos de suas antologias. O que buscava Nicanor Parra era uma poética apta a
incorporar uma noção de vida, a dialogar com as coisas do mundo. Por isso, esperou quase 20 anos para,
em 1954, publicar seu segundo livro: Poemas y antipoemas.
10Esse poema foi extraído da obra Antologia Poética de Nicanor Parra disponível em:
http://www.algumapoesia.com.br/poesia3/poesianet318.htm Acessado em 14/02/2019.
11Aqui caberiam outras discussões pertinentes ao papel da mulher no contexto de criação do poeta, o lugar
do feminino ao culto de uma imagem idealizada.


1Doutora em Educação e Professora do Departamento de Metodologia de Ensino – Universidade Federal de Santa Catarina.
2Mestre em Filosofia.