ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL: A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DA CONFISSÃO SOB A ÓTICA DO PRINCÍPIO DA NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO

REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.10214091


Felipe Teodoro Icasatti
Maria Clara Silva Hermenegildo


Resumo:

O Acordo de Não Persecução Penal foi recentemente introduzido no Direito Processual Penal brasileiro e, sem dúvidas, confere benefícios às partes envolvidas. A justiça consensual é uma importante tendência dentro de todos os ramos do direito. No direito civil podem ser encontrados os institutos da mediação, conciliação e arbitragem, que são bastante fomentados e garantem a solução mais rápida e satisfatória do conflito. Em igual sentido, o direito penal implementa o Acordo de Não Persecução Penal como forma de fomentar a justiça consensual. Todavia, um de seus requisitos é a confissão formal e circunstanciada do acusado, o que converge com os princípios constitucionais. Desse modo, o presente trabalho tem como escopo principal o estudo do Acordo de Não Persecução Penal sob a ótica dos princípios penais, em especial ao da não autoincriminação. Para tanto, será realizado um estudo acerca da justiça consensual, dos princípios penais e do Acordo de Não Persecução Penal. Com a revisão literária acerca do tema, será possível compreender se trata-se de instituto inconstitucional e se é necessária a retirada do referido requisito.

Palavras-chave: Acordo Não Persecução Penal. Princípios Penais. Não Autoincriminação. Inconstitucionalidade.

Abstract: The Non-Prosecution Agreement was recently introduced into Brazilian Criminal Procedural Law and, without a doubt, confers benefits to the parties involved. Consensual justice is an important trend within all branches of law. In civil law one can find the institutes of mediation, conciliation and arbitration, which are widely promoted and guarantee a faster and more satisfactory solution to the conflict. Similarly, criminal law implements the Non-Prosecution Agreement as a way to foster consensual justice. However, one of its requirements is a formal and detailed confession by the accused, which converges with constitutional principles. Thus, the main purpose of this paper is to study the Non-Prosecution Agreement from the point of view of criminal principles, especially that of non-self-incrimination. To this end, a study will be conducted on consensual justice, criminal principles, and the Non-Persecution Agreement. With the literary revision about the theme, it will be possible to understand if it is an unconstitutional institute and if it is necessary to remove the requirement.

Keywords:     Non-prosecution    Agreement.     Penal    Principles.    Non       self-incrimination.

Inconstitutionality

1 INTRODUÇÃO

Com a entrada e vigor da Lei nº 13.964 de 2019, conhecida como Pacote Anticrime, o Código Penal ganhou certas inovações, como o instituto do Acordo de Não Persecução Penal, instituído no artigo 28-A do referido Códex. Trata-se o acordo de uma ferramenta despenalizadora, que tem como objetivo conferir benefícios ao investigado, trazendo uma solução consensual para a demanda sem a continuidade da ação penal em relação ao fato e ao acusado objeto de acordo.

Para a realização do acordo de não persecução penal, o Código traz determinadas exigências, dentre estas, oportunamente destaca-se a confissão formal e circunstanciada da prática da infração penal. Todavia, tal exigência pode ser considerada contrária aos princípios constitucionais e penais atualmente vigentes no Brasil.

Não obstante, a Constituição Federal atualmente vigente no Brasil dispõe, em seu artigo

5, inciso LXIII, que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (Brasil, 1988)

A partir do cenário exposto, o presente trabalho tem por objetivo principal analisar a constitucionalidade da exigência da confissão como conjectura para propositura do acordo de não persecução penal à égide do princípio da não-autoincriminação. Para tanto, será realizada uma abordagem bibliográfica e documental para compreender os posicionamentos pertinentes ao tema, com escopo de compreender se as garantias constitucionais são tuteladas aos cidadãos quando da propositura do acordo de não persecução penal.

Assim, como objetivos específicos, o presente trabalho pretende demonstrar o objetivo dos institutos despenalizadores, verificar onde ocorre a inconstitucionalidade da norma em exame, demonstrar o ponto em que fere o princípio da não-autoincriminação e a

inconstitucionalidade da confissão no acordo.

Complementarmente, o estudo busca demonstrar como as diversas áreas do direito tem caminhado para o fomento à justiça consensual e como o acordo de não persecução penal segue esta tendência. A justiça consensual tem como principal objetivo a efetiva solução da demanda, sem ter como foco a punição. No mesmo sentido, o acordo de não persecução penal deve ter como escopo a resolução do conflito, sem ter como pretensão a punição do acusado.

Assim, com o estudo do instituto e de seus requisitos essenciais, o presente trabalho também demonstrará como a exigibilidade da confissão está em desacordo com o objetivo supra descrito, uma vez que não contribui positivamente para solucionar a situação conflituosa, ao contrário, contribui para a punição do réu.

O presente artigo possui como metodologia a linha descritiva e explicativa, uma vez que abordará os aspectos técnicos e legais presentes no ordenamento jurídico brasileiro, trabalhando com a conceituação dos tópicos pertinentes e suas aplicações dentro da justiça brasileira.

Ademais, trata-se de pesquisa realizada com enfoque no viés qualitativo, uma vez que discorrerá acerca dos elementos que afetam o sistema judiciário penal brasileiro, bem como serão utilizados os princípios norteadores e demais ferramentas legislativas vigentes. Por fim, destaca-se que o presente trabalho conta com a revisão bibliográfica, haja vista que analisa o tema proposto sob a visão doutrinária a respeito do acordo de não persecução penal, suas exigências e os princípios penais.

Com o estudo realizado na forma supra exposta, o presente trabalho tem um papel fundamental no cenário jurídico atual, vez que visa a proteção dos direitos constitucionais ao demonstrar a inconstitucionalidade da norma mencionada, garantindo, assim, o cumprimento da Carta Magna, a proteção dos direitos dos acusados e a dignidade humana.

2 A CONSENSUALIDADE COMO MODELO DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO DIREITO BRASILEIRO

Para que seja possível compreender as especificidades do direito processual penal, o acordo de não persecução penal e sua eventual inconstitucionalidade, é imprescindível que institutos, doutrinas e marcos relevantes em todas as áreas do direito sejam compreendidas. Isso porque, estudando o acesso à justiça, a busca por meios alternativos de solução de conflitos, bem como o cenário jurídico e social pelo qual a justiça consensual se instaurou e ganha forças ainda hoje, torna-se possível a análise pormenorizada da problemática central, a visualização de seus objetivos e as possíveis mudanças.

Inicialmente, ao abordar o acesso à justiça, é essencial que sejam compreendidos os seus pontos principais. Uma das principais doutrinas no campo do acesso à justiça foi escrita por Cappelletti e Garth, autores em muito utilizados no campo na área cível, que ilustram como o acesso à justiça é tratado pelo direito. Nesse ponto, os autores destacam que o conceito de acesso à justiça abrange dois pontos:

A expressão acesso à justiça é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado que, primeiro deve ser realmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos (Cappelletti; Garth, 1988, p.08).

Infere-se, por conseguinte, que o acesso à justiça pode ser compreendido sob a ótica do Poder Judiciário, com a apreciação efetiva dos litígios pelos órgãos do poder estatal e, ainda, sob a perspectiva de produção de resultado eficazes quando da solução dos conflitos, alcançando a pretensão das partes da forma mais justa e satisfatória possível.

Ainda de acordo com os autores, a evolução do acesso à justiça ocorreu em conjunto com a evolução da concepção de Estado, que transitou entre o ideal liberal para reconhecimento do seu papel social (Cappelletti, Garth, 1988, p. 13). No mesmo sentido, Rodrigues Júnior aduz que o movimento referido se deu “em decorrência da importância de se reconhecerem os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades, associações e indivíduos” (Rodrigues Júnior, 2006, p.10).

Tecidas as considerações pertinentes ao acesso á justiça e a forma como o Poder Judiciário foi modificando durante o tempo, com a implementação de institutos e formas de reduzir o número de demandas, conferir efetividade às resoluções dos conflitos e trazer mais celeridade na solução efetiva, fica possível visualizar como o Direito Penal seguiu a tendência e trouxe novas ferramentas.

2.1 A jurisdição no Direito Penal

Em que pese o foco do trabalho ser o Acordo de Não Persecução Penal e que seus aspectos serão oportunamente aprofundados no presente trabalho, é de suma importância que os institutos do direito penal sejam, primeiramente, analisados sob a ótica do acesso à justiça e justiça consensual, uma vez que restará demonstrada a origem destes institutos e a tendência ao fomento da adoção de mecanismos apropriados na justiça restaurativa e como certos requisitos estão em desacordo.

A justiça restaurativa, de acordo com Eduardo Rezende Melo (Melo, 2005), procura por amparo às vítimas e ao atendimento de suas necessidades, bem como busca, além da responsabilização do causador do dano, “dar ocasião para o confronto de todas as questões que, a ver de cada qual, o determinaram e para o encaminhamento de possibilidades de sua superação ou transfiguração”.

É evidente, portanto, a busca por métodos que complementem o sistema tradicional, de tal modo que o direito penal não tenha caráter apenas punitivo, mas que seja voltado a resolver o conflito em busca da paz social.

O sistema retributivo, conforme critica Eduardo Rezende Melo, “funda-se apenas na sucessão de imposições de sofrimento mantendo o homem, com isso, sempre preso a uma situação passada, insuscetível de reversão para dar margem ao novo” (Melo, 2005, p.59).

Acerca deste cenário, Foucault explicita que a designação de um terceiro elemento, como o juiz, que possua atribuição de decidir, de forma neutra, o que é justo, afasta-se da ideia de justiça social, ao passo que abstrai as singularidades dos conflitos e de cada caso, sendo aplicados tão somente os preceitos gerais e abstratos (Foucault, p.29).

De acordo com Leonardo Sica (Sica, 2007), a justiça restaurativa é um conjunto de práticas que tem como proposta promover iniciativas de solidariedade, de diálogo e, contextualmente, programas de reconciliação. Mais amplamente, qualquer ação que objetive fazer justiça por meio da reparação do dano causado pelo crime pode ser considerada prática restaurativa. (Sica, 2007, p. 10).

Tem-se, portanto, que a justiça restaurativa vai de encontro ao processo penal correntemente utilizado, uma vez que o procedimento é voltado à culpa do acusado. Impende ressaltar que o foco não é o dano efetivamente causado à vítima, ao acusado ou à sociedade, como utilizado no método restaurativo, mas sim à violação ao ordenamento jurídico, a determinação da culpa e as cominações legais pertinentes.

Como principal exemplo dos métodos restaurativos utilizados no direito penal brasileiro, cabe ressalva a Lei 9.099/95, que dispõe sobre os Juizados Especiais, haja vista que prevê a fase preliminar em seus artigos 69 e seguintes. Nesta fase, em audiência preliminar, inicialmente deve ser esclarecida acerca da possibilidade de composição dos danos em acordo a ser entabulado entre as partes a ser homologada pelo juiz competente, conforme prevê os artigos 72 a 74 da referida Lei.

O artigo 79 da Lei dos Juizados Especiais prevê que, em audiência de instrução e julgamento, restando frustrada a conciliação entre as partes e não havendo proposta pelo Ministério Público, deverá o magistrado ofertar a composição civil.

Ainda dentro da Lei 9.099/95, extrai-se a possibilidade de suspensão condicional do processo, conforme prevê o artigo 89 que apresenta a possibilidade de aplicação do modelo de justiça restaurativa, haja vista que permite a aplicação de outras condições que não expostas nos parágrafos 1º e 2º do referido artigo.

Ademais, a Lei 10.741/03, que regulamenta os crimes contra idosos, apresenta a possibilidade de utilização do rito dos Juizados Especiais para crimes em que a pena máxima privativa de liberdade não exceda 04 anos.

É possível visualizar a aplicação da justiça restaurativa também no Estatuto da Criança e

do Adolescente que, em seu artigo 126 apresenta a possibilidade de remissão, oportunidade em que o procedimento poderá ser excluído, suspenso ou extinto. Além da possibilidade de remissão, a Lei 8.069, em suas medidas socioeducativas apresentadas pelos artigos 112 e seguintes demonstram a o modelo restaurativo haja vista a preocupação em reparação do dano. 

Tartuce assevera que a legislação em destaque apresenta relevante evolução no sentido jurídico e de mentalidade, uma vez que “quebra a inflexibilidade do clássico princípio da obrigatoriedade da ação penal, ao prever espalho para o consenso. Pela noção de transação penal, coteja-se também, além do clássico princípio da verdade material, a verdade

consensuada” (Tartuce, 2019, p.12).

A autora destaca, ainda, as previsões legais que apresentam a possibilidade de composição civil, aplicação de penas alternativas, exigência de representação da vítima para lesões corporais e a possível suspensão condicional do processo para crimes em que a pena não seja superior a um ano, como métodos que enfocam a efetiva reparação dos danos e solução consensual de conflitos sem a necessária intervenção do judiciário.

Com alteração mais recente, a Lei 13.964 introduziu o artigo 28-A no Código de Processo Penal trazendo a possibilidade do acordo de não persecução penal, o que amplia a possibilidade de acordo com as autoridades públicas antes da acusação formal quanto ao delito.

O referido artigo determina:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e

prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:

I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II – renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

  1. – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);
  2. – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou
  3. – cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada (Brasil, 2019).

Sob a perspectiva da justiça consensual e restaurativa, inicialmente, cumpre ressalva a preocupação legislativa no sentido de reparação dos danos como condições do acordo, conforme se extrai de seu inciso primeiro. Ainda, impende destacar que, mais uma vez, o direito negocial influencia diretamente a legislação vigente, haja vista que incentiva a prática de acordo entre as partes como medida inicial do procedimento a fim de evitar o prosseguimento das ações penais.

Infere-se, por conseguinte, que há a evidente tendência legislativa para solução consensual de conflitos que excede o ordenamento jurídico em seu viés geral e abstrato, trazendo possibilidades que respeitam as individualidades de cada conflito. A referida tendência evidencia, além da singularidade das lides, a possibilidade de ser alcançada a solução consensual sem que fiquem as partes dependentes do provimento jurisdicional.

Brancher destaca que, com a aplicação de métodos restaurativos, há um processo de empoderamento dos indivíduos, bem como acarreta uma prática democrática, sendo esta uma democracia deliberativa em que todos comparecem em condições de absoluta igualdade ao invés de submissos a alguma forma de assimetria hierárquica (Brancher, 2005).

Destaca Carvalho que as políticas provenientes da justiça restaurativa não têm o escopo de substituir a justiça brasileira, mas sim complementar e ampliar a gama de serviços de justiça existentes e, ainda, que por suas especificidades, podem se revelar mais adequadas e eficazes em determinadas situações (Carvalho, 2005).

Destaca a autora que as políticas provenientes da justiça restaurativa não têm o escopo de substituir a justiça brasileira, mas sim complementar e ampliar a gama de serviços de justiça existentes e, ainda, que por suas especificidades, podem se revelar mais adequadas e eficazes em determinadas situações (Carvalho, 2005).

Dessa forma, com a primeira tratativa acerca dos institutos penais, em especial o acordo de não persecução penal, fica evidente que a flexibilização da resolução dos conflitos está focada da efetiva solução, recuperação de danos e paz social, não tendo como foco principal a punição dos acusados.

Posteriormente, com a análise pormenorizada do instituto, suas características, requisitos essenciais e demais tópicos pertinentes, será possível compreender como o avanço da justiça para os meios consensuais está em desacordo com a exigibilidade da confissão quando do acordo de não persecução penal.

3. O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

O capítulo anterior permitiu visualizar como o Direito brasileiro vem caminhando para fomentar cada vez mais a justiça consensual, implementando uma série de institutos que estão mais focados na resolução dos conflitos do que com a punição. A análise do direito cível e

privado, em especial com a exposição dos métodos alternativos de solução de conflitos do direito civil contribui para visualizar a tendência de utilização destes meios em todas as áreas.

Não de modo diverso, conforme também exposto no capítulo anterior, no âmbito do direito penal, a justiça consensual vem ganhando cada vez mais espaço e os institutos que vêm surgindo nesta área são de suma importância para corroborar com uma justiça que tenha como foco a efetiva solução das demandas.

A partir da exposição do cenário geral acerca da justiça consensual, suas formas de atuação dentro do direito e da sociedade e como ela vem mudando a ótica da aplicação do direito e papel das partes envolvidas em processos judiciais, é essencial que o instituto do acordo de não persecução penal seja estudado de modo pormenorizado, sendo compreendidos seus conceitos e aplicações práticas para que seja possível verificar como a ferramenta contribui para a justiça consensual e quais pontos estão em desacordo tanto com os objetivos da justiça consensual, quanto das normas constitucionais.

Nas breves considerações já feitas sobre o Acordo ora em exame, foi possível inferir que trata-se de um método despenalizador que apresenta nitidamente características da justiça consensual, um vez que permite ceder direitos diante de outros como meio de ponderar e negociar, com o fim de algo benéfico, como reparação dos danos e paz social. Neste sentido, Lopes Júnior afirma ser o acordo um:

[…] poderoso instrumento de negociação processual penal que requer uma postura diferenciada por parte dos atores judiciários, antes forjados no confronto, que agora precisar abrir-se para uma lógica negocial. (Lopes Junior, 2020, p.315). 

A Lei nº 13.964 de 2019 foi responsável por instituir no ordenamento jurídico brasileiro o acordo de não persecução penal com a inclusão do art. 28-A no Código de Processo Penal. Antes de aprofundar em seus aspectos, cabe compreender seus aspectos gerais. O artigo estabelece condições para o Ministério Público propor o Acordo de não persecução penal nos casos em que o investigado confesse formal e circunstancialmente a prática de uma infração penal sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior a 4 anos e que não seja passível de arquivamento (Brasil, 2019).

As condições ajustadas podem incluir: reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, quando possível; renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produtos ou proveito do crime; prestar serviços à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito; pagar prestação pecuniária; cumprir outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada (Brasil, 2019).

Para determinar a pena mínima, são consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso. O acordo não se aplica em casos de transação penal dos Juizados Especiais Criminais, reincidência, conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, benefício nos últimos 5 anos, crimes de violência doméstica ou contra a mulher (Brasil, 2019).

O artigo determina, ainda, que o acordo é formalizado por escrito, assinado pelo membro do Ministério Público, investigado e seu defensor. O juiz verifica sua voluntariedade e legalidade em audiência. Se considerado inadequado, os autos retornam ao Ministério Público para reformulação (Brasil, 2019).

Após homologação judicial, o acordo é executado perante o juízo de execução penal. O descumprimento das condições leva à rescisão do acordo e à oferta de denúncia pelo Ministério Público. O não cumprimento também pode justificar a não suspensão condicional do processo. O acordo não constará na certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos em lei. Após cumprimento integral, a punibilidade é extinta. Em caso de recusa do Ministério Público, o investigado pode requerer a revisão do caso por órgão superior (Brasil, 2019).

A partir da análise inicial do dispositivo é possível extrair diversos pontos relevantes para a construção da problemática central ora proposta. Inicialmente, Barros (2020) ressalta que se trata de um acordo bilateral pactuado entre o Ministério Público e o investigado, oportunidade em que é imposto a este último certas medidas a serem cumpridas que, se seguidas adequadamente, resultam na extinção da punibilidade do acusado e, por outro lado, este não será processado. Ainda, o autor disserta:

Apesar de se tratar de um acordo, é inegável que, na disputa de interesses, existe uma conflituosidade entre as partes (Ministério Público e acusado) envolvidas. Entretanto, a fim de evitar a judicialização e toda a tramitação processual, ambos os interessados realizam concessões mútuas dentro de parâmetros estabelecidos pela lei para, consensualmente, estipularem aplicação imediata de medidas alternativas à prisão. (Barros, 2020, p. 83)

A partir destas considerações, imprescindível a análise dos requisitos para realização do Acordo. Depreende-se da leitura do dispositivo que o acordo pode ser realizado em casos onde não cabe o arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática delitiva sem violência ou grave ameaça, com pena mínima inferior à 04 anos (Brasil, 2019).

Acerca da possibilidade de realização do acordo, disciplina Lima

O acordo de não persecução penal só deve ser celebrado quando se mostrar viável a instauração do processo penal. Em outras palavras, deverá existir aparência de prática criminosa (fumus comissi delicti), punibilidade concreta (v.g. não estar prescrita a pretensão punitiva), legitimidade da parte 9v.g. ser crime de ação penal pública, praticado por pessoa maior de idade) e justa causa (suporte probatório mínimo a fundamentar uma possível acusação. Por consequência, se o titular da ação penal entender que o arquivamento é de rigor, não poderá proceder à celebração do acordo. O CPP silencia acerca das hipóteses que autorizam o arquivamento do procedimento investigatório. Não obstante, é possível a aplicação, por analogia, das hipóteses de rejeição da peça acusatória e de absolvição sumária, previstas nos arts. 395 e 397 do CPP, respectivamente (Lima, 2020, p. 226).

Na parte final do caput do artigo em exame, extrai-se que, além dos requisitos já citados, o acordo deve ser suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Desse modo, presentes todos os requisitos citados, são impostas algumas condições ao investigado, condições estas descritas nos incisos de I à V. Sobre as condições, disserta, Lehfeld, Nunes e Faria:

Do aludido artigo, constam que são: a reparação ou restituição da coisa à vítima, se possível fazê-lo; renunciar a bens e direitos, como o proveito do crime; prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas pelo período da pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços; pagar prestação pecuniária a entidade pública ou de interesse social e, cumprir outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada (Lehfeld, Nunes e Faria, 2021, p. 102).

Isso posto, depreende-se também da leitura do dispositivo que, não havendo causas impeditivas e presentes os requisitos supra expostos, o Ministério Público propõe o acordo de não persecução penal, que deve ser formalizado por escrito e, posteriormente, homologado pelo magistrado.

3.1. Confissão formal e circunstanciada

Com a exposição da legislação que regulamenta o acordo de não persecução penal e analisando seus requisitos, é possível extrair que o Código de Processo Penal dispõe acerca da imprescindibilidade da confissão formal e circunstanciada do investigado sobre a prática delitiva. Para melhor compreender o requisito e suas particularidades, necessária se faz uma análise do que consiste e como opera a confissão no direito processual penal brasileiro.

Acerca do tema, Nucci (2020) disciplina que considera-se confissão tão somente o ato voluntário e pessoal praticado pelo agente, sob o fundamento de que não há confissão por preposto ou mandatário, tampouco diante de coação. Complementarmente, Lima (2020) define a confissão como ato retratável e divisível da parte, afirmando que o acusado pode se retratar de fatos que havia confessado e pode admitir a prática de todos os crimes a ele imputado ou parte deles.

Infere-se, por conseguinte, que a confissão é o ato pelo qual o acusado assume a autoria da prática delitiva a ele imputada, no todo ou em parte, sem qualquer coação, podendo, posteriormente, se retratar do ato.

De acordo com Lai (2020), a confissão formal corresponde à confissão realizada diante de autoridade pública, policial ou Ministério Público, subscrita e reduzida a termo. O autor ainda esclarece que o termo circunstanciado estabelece que a confissão deve conter a especificação das principais características da infração, tais como o tempo, o modo, o lugar e o meio de execução.

Sobre o tema, dissertam Castro e Meira:

Por formal, é compreensível que o legislador se referia à forma em que a confissão seria realizada –possivelmente o objetivo era coibir a confissão oral sem registros; e, por circunstancial, entende-se que a finalidade era fazer constar detalhes suficientes para que se possa aferir judicialmente sua consistência e verossimilhança (Castro, Meira, 2021, p. 85)

Depreende-se, portanto, que a confissão exigida quando da realização de acordo de não persecução penal não pode trazer consigo teses defensivas, tratando-se tão somente da exposição detalhada do fato típico ocorrido, vedando, portanto, a confissão qualificada, que corresponde àquela que incorpora teses defensivas.

Sobre a temática, importante colacionar julgado relevante que discorre sobre a forma como a confissão deve ser feita para concessão do acordo.

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. ART. 28-A, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL? CPP. CONFISSÃO QUE NÃO ATENDE AOS REQUISITOS LEGAIS. INDEFERIMENTO    DA    HOMOLOGAÇÃO.    AUSÊNCIA    DE CONSTRANGIMENTO. WRIT NÃO CONHECIDO.1. Diante da hipótese de habeas corpus substitutivo de recurso próprio, a impetração sequer deveria ser conhecida, segundo orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal ? STF e do próprio Superior Tribunal de Justiça ? STJ. Contudo, razoável a análise do feito para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal que justifique a concessão da ordem de ofício. 2. O acordo de não persecução penal é negócio jurídico extraprocessual que possibilita a celebração de acordo entre acusação e acusado para o cumprimento de condições não privativas de liberdade em troca do não prosseguimento do processo penal, afastando, assim, efeitos deletérios da sentença condenatória. Para tanto, é requisito essencial do ato que o acusado confesse de maneira formal e circunstanciada a prática do delito. 3. No caso em análise, a despeito de confessar a infração penal perante o Juízo, o paciente afirmou que o fazia apenas para ter acesso ao acordo de não persecução penal, mas que não era o autor da infração penal. Tal afirmação do paciente não preenche os requisitos do art. 28-A, do CPP, e afasta a possibilidade de homologação do acordo de não persecução penal. 4. Habeas Corpus não conhecido. (HC 636.279/SP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 09/03/2021, DJe 23/03/2021) – (grifo nosso).

Portanto, a confissão formal e circunstanciada é uma forma específica de confissão que tem como foco o ilícito penal praticado, não sendo possível qualquer menção à teses defensivas, sob pena de não homologação do acordo.

Fica evidente, portanto, que a confissão formal e circunstanciada é um requisito extremamente relevante nos acordos de não persecução penal, visto que, se ausente, não há homologação pelo magistrado. Todavia, conforme será verificado posteriormente, o referido requisito está em total dissonância com os princípios constitucionais penais brasileiros.

4. PRINCÍPIOS PENAIS E AS EXIGÊNCIAS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

Assim como os demais ramos do direito, no âmbito penal são encontrados diversos princípios imprescindíveis para criar, interpretar e executar as normas. O ordenamento jurídico penal é baseado em princípios constitucionais que visam a proteção de direitos fundamentais, conferir segurança jurídica e alcançar o ideal de justiça.

Mais especificamente no que se refere ao processo penal, como exemplo, já no art. 5º, inciso LIV a Constituição Federal prevê que: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.” (Brasil, 1988). Do referido texto constitucional extrai-se a preocupação do legislador na garantia do processo justo, podendo ser visualizado o princípio do devido processo legal. De acordo com Santos Neta:

Tal princípio nada mais é do que à garantia de um processo justo e que consagre os princípios da presunção de inocência, ampla defesa, plenitude de defesa, contraditório, juiz natural, vedação das provas ilícitas, razoabilidade e proporcionalidade, todos eles encerram um outro princípio, qual seja, o do devido processo legal (Santos Neta, 2022, p. 10).

Sobre os princípios, Miguel Reale disserta que são “verdades fundantes de um sistema de conhecimento, como tais admitidas, por serem evidentes ou por terem sido comprovadas, mas também por motivos de ordem prática de caráter operacional, isto é, como pressupostos

exigidos pelas necessidades da pesquisa e da práxis” (Reale, 2001, p. 305).

Assim, infere-se que os princípios constitucionais não devem ser considerados tão somente como fator de orientação para a construção de normas, mas sim reconhecer sua força como verdadeiras normas jurídicas, que regulamentam as demais, possuindo condão, inclusive, de revogar legislações por estarem incompatíveis. Ademais, uma vez previstos na Constituição, esta força fica ainda mais evidente.

Além dos reflexos na redação das normas, os princípios atuam na interpretação e aplicação delas, servindo, inclusive como limite aos operadores do direito, garantindo que as decisões dos julgadores não violem as garantias constitucionais. Quanto ao processo penal, Pacelli de Oliveira discorre:

Em relação ao processo penal enquanto sistema jurídico de aplicação do Direito Penal, estruturado em sólidas bases constitucionais, pode-se adiantar a existência de alguns princípios absolutamente inafastáveis, e, por isso, fundamentais, destinados a cumprir a árdua missão de proteção e tutela dos direitos individuais (Oliveira, 2016, p. 36)

Conforme já mencionado, o art. 5º da Constituição traz a ideia do devido processo legal e, dele, se originam outros princípios de extrema relevância. Isso porque, um processo penal que não observa a ampla defesa, o contraditório ou a igualdade, não cumpre o devido processo legal.

Ressalta Agra (2002) que a garantia do devido processo legal assegura a eficácia dos direitos do cidadão previstos na Constituição Federal, ao passo que as demais garantias não seriam suficientes sem o direito ao processo regular, que necessite observar as regras para prática dos atos processuais e administrativos.

Além da garantia ao devido processo legal, para a problemática proposta no presente trabalho, é de grande relevância a observação do princípio da presunção de inocência, haja vista ser responsável pela tutela da liberdade dos indivíduos. O princípio pode ser localizado no art.

5º, inciso LVII da Constituição Federal, que assim dispõe: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (Brasil, 1988).

Sobre o referido princípio, disserta Araújo:

Tal princípio tem relevância pois significa que, ainda que o Estado tenha direito e interesse em punir indivíduos que tenham condutas desconformes, podendo aplicar sanções àqueles que cometem ilícitos, deve respeitar todas as garantias constitucionais e, em especial, a liberdade pessoal, um bem jurídico do qual o cidadão não pode ser privado, salvo dentro dos limites da lei, sendo indispensável, para tanto, que ocorra um processo (Araújo, 2017, p. 8).

Infere-se, por conseguinte, que os princípios do devido processo legal e da presunção de inocência se correlacionam, uma vez que, a partir da presunção de inocência é garantido ao acusado que tenha sua liberdade tutelada, protegendo-o do cumprimento de pena sem o devido processo.

4.1. O princípio da não-autoincriminação

Para o problema ora em discussão, o princípio penal de maior relevância é o da não autoincriminação, que garante que ninguém seja obrigado a produzir prova contra si mesmo. Pretende-se compreender como o referido princípio se relaciona com a necessidade de confissão formal documentada no acordo de não persecução penal. Luiz Flávio Gomes assim conceitua o princípio:

(…)o privilégio ou princípio (a garantia) da não auto-incriminação (Nemo tenetur se detegere ou Nemo tenetur se ipsum accusare ou Nemo tenetur se ipsum prodere) significa que ninguém é obrigado a se auto-incriminar ou a produzir prova contra si mesmo (nem o suspeito ou indiciado, nem o acusado, nem a testemunha etc.). Nenhum indivíduo pode ser obrigado, por qualquer autoridade ou mesmo por um particular, a fornecer involuntariamente qualquer tipo de informação ou declaração ou dado ou objeto ou prova que o incrimine direta ou indiretamente. (Gomes, 2010)

Corroborando, Aury Lopes Júnior define:

O direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, insculpida no princípio Nemo Tenetur se Detegere, segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando do interrogatório. (Lopes Júnior, 2019, p. 192)

Na Carta Magna, o referido princípio assim se apresenta no art. 5º, inciso LXIII: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (BRASIL, 1988).

O direito ao silêncio pode ser observado no Código de Processo Penal, que assim dispõe:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.

(Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003)

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa (Brasil, 1941).

Depreende-se que o princípio em tela não está restrito apenas à garantia do silêncio, mas abrange todos os atos processuais que visam prejudicar o réu no sentido de produzir provas contra si mesmo. Trata-se de princípio constitucionalmente tutelado, o que mostra sua grande relevância e imprescindibilidade de cumprimento.

4.2. O princípio da não-autoincriminação e a exigência da confissão como requisito para o acordo de não persecução penal

Como estudado nos tópicos anteriores, o acordo de não persecução penal foi implementado pela Lei nº 13964 de 2019 e, dentre as demais condições impostas, a necessidade da confissão formal e circunstanciada deve receber especial atenção. Isso porque fica evidente que a exigência fere diretamente o princípio da não autoincriminação.

Uma das características marcantes da justiça negocial, que é em muito positiva, é a realização de acordo entre as partes com fim de substituir a pena. Todavia, exigir a confissão nos moldes atualmente vigentes vai de encontro a inúmeros preceitos do direito penal, ao mesmo tempo em que não é capaz de demonstrar sua essencialidade para as transações penais.

Acerca do tema, Nucci ressalta:

Confissão formal e circunstanciada: demanda o dispositivo uma confissão do investigado, representando a admissão de culpa, de maneira expressa e detalhada. Cremos inconstitucional essa norma, visto que, após a confissão, se o acordo não for cumprido, o MP pode denunciar o investigado, valendo-se da referida admissão de culpa. Logo, a confissão somente teria gerado danos ao confitente. (Nucci, 2020, p. 222)

Silva, Silva e Reis (2020) destacam, ainda, que a confissão exigida como “moeda de troca” entre Ministério Público e acusado, só tende a prejudicar o acusado, o seu direito ao silêncio e a não produzir provas contra si mesmo. Salientam os autores que, ao exigir que o acusado confesse a prática delituosa, não lhe está assegurado os direitos do artigo 5, LXIII da Constituição da República, forçando-o a produzir prova contra si.

Ainda sobre o princípio, Avena (2020) disserta que o direito conferido ao acusado de não produzir provas contra si vai além do direito a não responder as perguntas em fase de interrogatório, mas abrange todos os meios de prova que, ainda que de modo indireto, possam acarretar prejuízos à defesa.

Infere-se, por conseguinte, que o princípio da não autoincriminação tem alcances bem mais amplos do que o simples direito ao silêncio em interrogatório. O instituto tutela o acusado para que não seja obrigado a se colocar na situação de prejuízo. Quando se exige o

reconhecimento da prática delituosa, ignora-se o fato de que o legislador está levando o acusado a se colocar na posição de inúmeros prejuízos que podem suceder a realização do acordo.

Lovatto e Lovatto (2020) dissertam que a exigência da confissão nos moldes do Acordo de Não Persecução penal já é capaz de torna-lo inconstitucional, uma vez que o requisito é para o acusado uma verdadeira pressão psicológica, não sendo um benefício. Os autores ainda defendem que, em busca da solução rápida dos processos, a exigência faz com que inocentes se vejam pressionados a realizar a confissão. Neste sentido, Lovatto e Lovatto apud Silva:

Existem duas espécies de falsas confissões: (a) falsas confissões voluntárias, em que o sujeito confessa por vontade própria, motivado a beneficiar a ele e a um terceiro ou, até 10 mesmo, por psicopatologia ligada à necessidade de atenção, autopunição, sentimento de culpa ou delírio, e (b) falsas confissões involuntárias, em que o sujeito não está motivado por características pessoais, mas associadas a procedimentos de investigação, mais relacionadas à técnica de manipulação ou coerção na inquirição ou à vulnerabilidade do investigado (Silva, 2020, p. 09 apud Lovatto; Lovatto, p. 10).

O que se percebe é que a exigência da confissão é realizada em momento em que o acusado está em posição de vulnerabilidade, sendo compelido a confessar a prática delitiva o que pode gerar um fenômeno de falsas confissões forçadas sob o pretexto de resolução rápida de conflitos. Isso porque o acusado se vê diante de dois caminhos, ou a instauração de processo criminal ou a imposição de condições a serem cumpridas, que irão substituir a pena e acarretar a extinção de sua punibilidade.

No mesmo sentido, Nucci afirma que “obrigar o investigado a confessar formalmente o

cometimento do crime para depois fixar penas alternativas e outras condições não nos parece válido, ferindo o direito à imunidade contra a autoacusação” (Nucci, 2020, p. 383). Corroborando, Lopes Júnior discorre:

O direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia muito maior, insculpida no princípio Nemo tenetur se detegere, segundo o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuízo jurídico por omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por exercer seu direito de silêncio quando do interrogatório. Sublinhe-se: do exercício do direito de silêncio não pode nascer nenhuma presunção de culpabilidade ou qualquer tipo de prejuízo jurídico para o imputado. Destarte, através do princípio do Nemo tenetur se detegere, o sujeito passivo não pode ser compelido a declarar ou mesmo participar de qualquer atividade que possa incriminá- lo ou prejudicar sua defesa (Lopes Júnior, 2020, p.713).

Por fim, destaca-se:

A lógica que se observa não se mostra compatível com a intenção do legislador ao estabelecer que nenhum prejuízo será imposto àquele que exercer o direito ao silêncio; pelo contrário, ao se recusar a declarar-se culpado das imputações que lhe são feitas, o acusado deixa de receber a proposta de acordo de não persecução penal, o que acaba gerando de certa forma um prejuízo a sua defesa, haja vista que se trata de um instituto que evita a persecução penal em juízo (Reis Júnio & Bianchi, 2022, p. 15).

Fica evidente, portanto, que a exigência da confissão é matéria inconstitucional, violando diretamente o princípio da não autoincriminação garantido constitucionalmente.

4.3. O descumprimento do acordo de não persecução penal e a confissão

Acerca da violação mencionada, um ponto que merece especial destaque é a situação de descumprimento das condições do acordo de não persecução penal. De acordo com o Código de Processo Penal:

Art. 28-A (…)

§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia.

§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo (Brasil, 1941).

Ainda, o referido Código prevê:

Art. 197. O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância (Brasil, 1941).

Neste cenário, Lovatto e Lovatto (2020) esclarecem que a confissão exigida não poderia ser utilizada como meio de prova em eventual processo criminal, haja vista que, tendo o Estado tomado para si a persecutio criminis, deve produzir provas que não dependam de ato pessoal daquele que poderia se manter em silêncio, sem produzir provas contra si. No mesmo sentido, Constantino destaca:

Destaca-se, ainda, que a confissão promovida para o pacto de não processamento penal poderá ser utilizada como efetivo documento, com natureza de indicativo probatório, no ambiente do cursivo instrutório processual extrapenal, desde que sua juntada esteja acompanhada da ampla defesa e do contraditório. E mesmo o fato de haver cláusula no Acordo de Não Persecução Penal, prescrevendo que o mesmo estará restrito às consequências criminais do fato, certamente não será impeditivo para que a confissão firmada no expediente criminal seja extrapolada em processo de natureza diversa, uma vez se tratando de documento e prova lícita (Constantino, 2020 p. 16).

Mais além, Poli e Vila (2020) entendem que, caso não seja implementado o juiz de garantias, o mesmo julgador que homologa o acordo de não persecução penal será o responsável por sua revogação em caso de descumprimento, já possuindo, portanto, a confissão do acusado quando na persecução do feito. As autoras ressaltam:

A realização do acordo de não persecução penal e a posterior revogação deve acarretar o impedimento do juiz que homologou o acordo a fim de que não seja incumbido de julgar o caso, visto que – mesmo que a lei determine que a confissão formalizada no acordo é circunstancial, logo, que não serve como prova inequívoca para condenar – a contaminação psíquica do julgador comprometerá a sua imparcialidade no que se refere à responsabilidade penal do acusado e, portanto, interferirá no julgamento (Poli & Vila, 2020, p. 184).

Infere-se, por conseguinte, que o requisito da confissão para realização do acordo de não persecução penal é extremamente prejudicial ao acusado, haja vista que garante que a acusação utilize desta confissão para embasar o oferecimento de denúncia e convencimento do juiz para condenação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve como escopo principal analisar o Acordo de Não Persecução Penal sob a ótica dos princípios constitucionais, buscando compreender se os requisitos para pactuação estão de acordo com as normas da Carta Magna, garantindo o direito dos acusados. 

A primeiro momento, a análise da justiça consensual foi de suma importância para visualizar a tendência de todo o direito de priorizar a solução do conflito sem ter como centro a punibilidade de alguma das partes. Notou-se que as mudanças legislativas vêm no sentido de focarem na reparação de danos e paz social, conferindo cada vez mais liberdade às partes para realizarem acordos e solucionar as demandas. 

O que se percebe é que, no âmbito do direito civil já existem institutos de grande importância na solução alternativa de conflitos, que auxuliam as partes na solução de suas controvérsias sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário na figura do magistrado. A prática da mediação, conciliação e arbitragem é bastante fomentada no cenário do direito civil. 

Não de modo diverso, o direito penal segue a mesma tendência, trazendo ferramentas importantes na solução de demandas sem a necessidade de sentenças juridiciais e do longo processo de instrução processual, que demanda tempo, recursos públicos e privados e, por muitas vezes, não são eficazes na diminuição dos prejuízos.

Observou-se que o direito penal implementa institutos que visam a reparação dos danos e a paz social. Um dos instrumentos de maior destaque no processo penal é o Acordo de Não Persecução Penal, que permite que Ministério Público e acusado acordem o cumprimento de determinadas condições com objetivo de encerrar o feito, sem que haja necessidade de sentença meritória. 

Ademais, foram ressaltados certos princípios constitucionais de relevância para a problemática proposta, em especial o da não autoincriminação, que garante que o acusado não seja obrigado a produzir prova contra si mesmo. Foi possível visualizar que o referido princípio vai além do direito ao silêncio em interrogatório, mas abrange a proteção do acusado em não se colocar em posição de prejuízo.

A partir destes estudos, é possível concluir que o Acordo de Não Persecução Penal, ao exigir a confissão formal e circunstanciada, está eivado de inconstitucionalidade. Isso porque determina que o

acusado reconheça, de forma livre e voluntária, a prática delitiva, o que lhe traz prejuízos, compelindo-o a produzir prova contra si mesmo.

Além da evidente inconstitucionalidade, a exigência de confissão para realização de Acordo de Não Persecução Penal caminha em sentido contrário às tendências atuais do direito brasileiro, uma vez que não trata-se de exigência com fim de resolver o conflito, mas sim a verdadeiramente apontar culpados dos delitos. 

O Acordo de Não Persecução Penal é uma ferramenta extremamente importante para a resolução de conflitos sem que o direito penal atue apenas com função punitiva, com a necessidade de apontar culpados e devidas sanções. De maneira diversa, o acordo busca diminuir os danos sofridos pelas partes, atuando como instrumento de garantir que as vítimas tenham melhor proteção jurídica. 

Ter como foco a culpabilidade e não a redução e/ou extinção dos danos faz com que o direito penal caminhe na contramão da tendência atual de todo o direito. Atualmente, reconhece-se a função social do direito importante na proteção dos direitos e garantias constitucionais. Desse modo, exigir a confissão não contribui para a efetiva resolução do conflito, mas apenas traz mais prejuízos às partes, em evidente dissonância com a Constituição. 

Desse modo, a questão problemática acerca da inconstitucionalidade do Acordo de Não Persecução Penal sob a ótica do princípio da não autoincriminação pôde ser confirmada. Inferindo-se que a confissão como requisito essencial faz com que o acusado produza prova contra si mesmo, podendo acarretar prejuízos ao acusado, em especial em caso de descumprimento do acordo.

Percebe-se, por fim, que, para cumprir aos preceitos da justiça negocial, conferir a reparação de danos e atingir maior paz social, é prescindível a confissão da prática delitiva ao acusado. De tal modo que, sendo retirado o requisito do texto normativo, não serão criados prejuízos às partes envolvidas ou à sociedade. 

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