REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10632254
Lara Silva de Almeida
Roberta Raposo Melo
Ronald Torres de Olinda
Laryssa Kellye Pereira Soares Sousa
Paschoal Macedo Calori Rosseti
Lohara Silva de Lima
Jessica Rodrigues da Silva
Ana Paula Lopes da Silva
Adna Seabra de Almeida
Ana Claudia Morais Salomão
RESUMO: Este trabalho consiste em um relato de caso de uma paciente idosa com abscesso hepático secundário à ingestão acidental de um corpo estranho, posteriormente identificado como uma espinha de peixe. A ingestão de corpos estranhos é um evento comum, geralmente sem complicações, mas pode resultar em perfuração, obstrução ou infecção intra-abdominal. O diagnóstico é desafiador devido à inespecificidade dos sintomas e à falta de recordação do evento pelo paciente. O tratamento inclui a retirada do corpo estranho, drenagem do abscesso e administração de antibióticos. O relato descreve o caso de uma paciente que desenvolveu um abscesso hepático, sendo necessária a drenagem percutânea guiada por imagem e ajuste na antibioticoterapia. A paciente apresentou complicações, como rebaixamento súbito de consciência e sepse, exigindo a troca do antibiótico e drenagem de emergência. A cultura identificou Streptococcus constellatus como agente causador. A remoção bem-sucedida da espinha de peixe foi realizada por laparoscopia exploradora associada à endoscopia digestiva alta. A paciente teve melhora, recebeu alta da UTI no 25º dia e alta hospitalar no 29º dia, após 21 dias de tratamento antibiótico.
Palavras-chaves: Abscesso Hepático Piogênico, Streptococcus Constellatus, ingestão de corpo estranho, drenagem percutânea
INTRODUÇÃO
A ingestão acidental de corpo estranho é um evento comum e, na maior parte dos casos, o objeto passa pelo trato gastrointestinal sem deixar danos¹,2. Contudo, complicações como perfuração, obstrução ou infecção intra-abdominal podem acontecer3. A incidência de perfuração gastrointestática nestes casos é menor que 1%4 e o abscesso hepá? Como resultado da migração deste corpo estranho é ainda mais raro5. O diagnóstico e o desenvolvimento do quadro costuma ser um desafio pois, além dos sintomas e exames complementares serem inespecíficos, o paciente raramente se recorda de ter ingerido o corpo estranho6. A gravidade da disfunção causada pelo abscesso hepático varia desde uma simples infecção a um choque séptico com risco de óbito3. O tratamento indicado para os casos de abscesso hepático como incluem a retirada do corpo estranho, drenagem do abscesso e administração de antibiócos7. A retirada do corpo estranho é crucial para o controle da infecção8. A escolha da antibioticoterapia adequada otimiza consideravelmente o tratamento destes pacientes e, tendo em vista a característica polimicrobiana destes abscessos9, a espera pelo resultado da cultura se faz necessária para que haja uma escolha asserti do tratamento medicamentoso.
O presente trabalho inclui um relato de caso e uma revisão bibliográfica que tem como objetivo analisar as bactérias isoladas em casos de abscessos hepáticos secundários à ingestão de corpo estranho, visando retratar a dificuldade em se definir um tratamento empírico frente à grande variedade de microorganismos identificados.
RELATO DE CASO
M.R.S, feminino, 80 anos, hipertensa, dislipidêmica, com resistência insulínica, portadora de fibromialgia e artrite reumatóide. Relatava náuseas há 12 dias, associadas a desconforto abdominal, episódios de febre (38°C), sem queixas urinárias ou intestinais. Em consulta com gastroenterologista realizou exames laboratoriais que indicavam leucocitose e aumento da proteína C reativa (PCR), sendo internada para elucidação do caso. À admissão hospitalar apresentava-se hipocorada (2+/4+), desidratada (2+/4+), com abdome flácido e doloroso à palpação em hipocôndrio direito, sinais de Bloomberg e Murphy nega?vos. Exames laboratoriais indicavam leucocitose (12.720, bastonetes 1%,segmentados 67%, eosinófilos 1%, linfócitos 20% e monócitos 11%) , elevação de enzimas hepáticas (fosfatase alcalina:155, gama GT:105) e PCR de 115. Foi solicitada tomografia computadorizada de abdome total que indicou imagem volumosa em segmentos hepáticos VII e VIII, medindo seus maiores diâmetros cerca de 88 x 60 x 66 mm. Realizou-se, então, uma ressonância magnética e tórax e abdome para caracterização da lesão hepática; foi encontrada lesão cística loculada com septações de permeio e realce por contraste localizada nos segmentos IV e VIII, medindo 81 x 61 x 60 mm e volume de 150cm³, determinando alterações perfusionais do parênquima hepática com subjacente. Com a suspeita de abscesso, hepático, foi iniciada antibioticoterapia de amplo espectro com Piperacilina +Tazobactam (Tazocin®) e acionou-se a radiologia intervencionista para drenagem percutânea guiada por imagem. Devido ao uso de AAS, procedeu-se à sua suspensão por 5 dias para a realização da drenagem. Contudo, após 2 dias a paciente evoluiu com rebaixamento súbito de consciência, hipotensão e dessaturação, sendo iniciada ressuscitação volêmica e abertura de protocolo de sepse. Escalona-se o antibiótico para Meropenem e foi realizada drenagem percutânea do abscesso de emergência. A paciente foi transferida para Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Houve aumento de leucócitos de 9230 (bastonetes 12%, segmentados 82%, eosinófilos 1%, linfócitos 3% e monócitos 2%) para 20810 (bastonetes 12%, segmentados 84%, linfócitos 2% e monócitos 2%), além de queda da hemoglobina de 9,1 para 7,8. A drenagem foi realizada e a cultura parcial da secreção abdominal foi positiva para coco gram positivo; utilizou-se antibioticoterapia para Ampicilina + Sulbactam (Unasyn®) para cobertura de gram positivo segundo cultura e antibiograma, que demonstrou o crescimento de Streptococcus constellatus, sensível à Unasyn. No 12º dia de internação realizou-se uma nova tomografia computadorizada que revelou redução significativa do abscesso hepático, permanecendo coleção de 5,3 x 2,9 x 2,8 cm e volume de 22cm³. Neste exame foi identificado corpo estranho transfixando o antro gástrico, com extensão para o lobo hepático com direito, medindo 3,8 cm com características que sugerem uma espinha de peixe. No 13º dia de internação a paciente foi submetida à laparoscopia exploradora associada à endoscopia digestiva alta (EDA) no intraoperatório. A intenção era avaliar se havia perfuração mantida da cavidade gástrica e realizar a retirada do corpo estranho via laparoscópica com segurança. O procedimento se deu sem intercorrências. Durante a EDA intraoperatória foi visto somente lesão cicatricial em fundo gástrico, sem tecido de continuidade. O corpo estranho (espinha de peixe) foi retirado sob visualização direta através de videolaparoscopia, sem sangramento hepático associado e sem qualquer outra intercorrência. A paciente recebeu alta da UTI no 25º dia e alta hospitalar no 29º dia. O tempo de ATB foi de 21 dias.
METODOLOGIA
Foram analisados 48 relatos de caso, entre os anos de 1997 e 2018, dos quais 23 casos foram desconsiderados por não darem ênfase na identificação da bactéria em questão e nem na antibioticoterapia instituída.
RESULTADOS
DISCUSSÃO
Os abscessos hepáticos originados por corpos estranhos representam ocorrências raras, incidindo em menos de 1% dos casos. A visualização da perfuração por meio de exames de imagem é desafiadora, e frequentemente os pacientes omitem a ingestão de corpos estranhos. Estes abscessos, se não tratados adequadamente, apresentam elevado risco de mortalidade.
No caso em questão, a paciente apresenta um abscesso hepático piogênico, caracterizado por uma massa purulenta no gado, resultante de lesão direta ou infecção intra-abdominal. Com o tempo, o abscesso tende a se organizar, formando septações na parede, o que complica o tratamento.
Embora a incidência desse tipo de abscesso hepátialidade de 100% na ausência de diagnóstico e intervenção adequados.
A formação do abscesso hepático piogênico, mais comumente no lobo direito do gado, ocorre devido ao suprimento sanguíneo duplo desse órgão. Isso pode resultar de sepse disseminada pela artéria hepática ou da translocação de uma infecção gastrointestinal pelo sistema portal.
Os sintomas desse tipo de abscesso podem demorar meses ou anos para se manifestarem, sendo as áreas mais frequentes de perfuração o duodeno e o estômago, embora nem sempre sejam identificadas. A maioria dos corpos estranhos ingeridos não causa complicações, mas os abscessos hepáticos geralmente se manifestam por dor abdominal mal localizada, inespecífica, perda de peso, febre e astenia.
O diagnóstico rápido é crucial, sendo os exames de imagem prioritários. A ultrassonografia abdominal auxilia na identificação de coleções no parênquima hepático, enquanto a tomografia com contraste é mais eficaz para delimitar a extensão do abscesso, sua localização e a identificação do corpo estranho. A obtenção de culturas para identificação e sensibilidade é realizada por meio de biópsia ou aspiração guiada por imagem.
O tratamento adequado envolve a drenagem cirúrgica, com remoção do corpo estranho e correção do local de perfuração. A escolha desse método depende do tamanho e acessibilidade do abscesso, além da antibioticoterapia empírica, guiada pela fonte mais provável de infecção, até que os resultados dos testes de identificação e sensibilidade estejam disponíveis.
A infecção hepática ocasionada por Streptococcus Constellatus é uma condição clinicamente desafiadora, cujas evidências na literatura são escassas. Este relato de caso destaca a natureza oportunista dessa infecção, observando sua incidência quando ultrapassa a flora das mucosas que habita: orofaríngea, geniturinária e gastrointestinal.
A presença do S. Constellatus em órgãos distintos tem sido associada à formação de abcessos, apresentando riscos substanciais para a saúde do paciente. A não identificação em tempo hábil dessas infecções pode resultar em desfechos graves, inclusive levando o paciente à óbito.
O S. Constellatus pode ser classificado em duas subespécies, S. Constellatus subsp. Constellatus e S. Constellatus subsp. Faringe, destacando a diversidade intrínseca dessa bactéria. Ambas as subespécies pertencem ao grupo dos estreptococos viridianos, caracterizados por padrões hemolíticos específicos.
Este caso ilustra a importância crucial da pronta identificação e tratamento das infecções hepáticas por Streptococcus Constellatus, especialmente quando se manifestam em órgãos não convencionais. A compreensão da variedade genotípica e fenotípica dessa bactéria é essencial para orientar a abordagem terapêutica e melhorar os desfechos clínicos.
CONCLUSÃO
Em conclusão, a escassez de relatos de casos semelhantes na literatura ressalta a necessidade de mais pesquisas e relatos para ampliar nossa compreensão sobre a patogênese, diagnóstico e manejo dessa infecção específica, contribuindo assim para a melhoria da prática clínica.
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