REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202503312258
Mayra Lis Santos Helfenstein1; Milena da Cunha Cabral1; Isabella Stagliorio Dumet Faria1; Natalia Poletto1; João Pedro Novaes Andrade1; Natália Queiroz de Santana1; Guíniver Couto Almeida1; João Pedro Timotio de Almeida1; Antônio de Assis Oliveira Alves Filho2; Domingos Felipe Lima da Nóbrega3
RESUMO:
Apresentação do caso: AAN, 33 anos, feminina, IMC 32 kg/m², foi submetida previamente à nefrectomia esquerda devido a pielonefrite complicada. Dois meses após a cirurgia, apresentou dor abdominal irradiada para o dorso, com piora nos esforços, e um abaulamento progressivo no flanco esquerdo. A tomografia computadorizada (TC) do abdome revelou uma volumosa hérnia no flanco esquerdo, com colo de 12,3 x 9,6 cm e um grande saco herniário, com 45% de relação, contendo gordura e alças intestinais. Em avaliação pré-cirúrgica, foi planejado o implante de um cateter para pneumoperitônio e a aplicação de toxina botulínica à direita (6 semanas antes da cirurgia). A cirurgia consistiu em uma hernioplastia incisional para reconstruir a parede abdominal, utilizando uma tela de polipropileno no espaço sublay e outra tela onlay. A paciente apresentou boa evolução pós-cirúrgica e recebeu alta no 6° dia pós-operatório. Discussão: O relato descreve um caso de hérnia incisional ocorrida após nefrectomia esquerda, com um abaulamento significativo na área da incisão cirúrgica. A relevância do caso é amplificada pelo perfil da paciente, que é do sexo feminino e com obesidade grau I, ambos fatores de risco para o desenvolvimento de hérnias incisionais. A paciente apresentou dor abdominal irradiada para o dorso devido ao grande conteúdo herniado, além de náuseas e vômitos associados ao quadro álgico. A suspeita de hérnia foi levantada com base no histórico e exame físico, sendo confirmada pela TC, que revelou gordura e intestino delgado no saco herniário. A equação EY Tanaka indicou que a hérnia ultrapassou 45% da cavidade abdominal, levando à realização de pneumoperitônio progressivo pré-operatório para reduzir o volume abdominal e reintroduzir o conteúdo herniado. A conduta terapêutica incluiu hernioplastia incisional com tela de polipropileno e dreno portovac, visando reforçar a parede abdominal e drenar o líquido acumulado no local da cirurgia. Comentários finais: O caso demonstra a eficácia do pneumoperitônio progressivo e da hernioplastia ventral no tratamento de hérnia incisional volumosa em paciente obesa. A tela de polipropileno (sublay e onlay) e dreno portovac foram fundamentais para melhorar a cicatrização e reduzir complicações pós-operatórias. A preparação pré-operatória e a abordagem cirúrgica bem planejada foram essenciais para a recuperação da paciente e a prevenção de complicações, ressaltando a importância de técnicas avançadas e personalização do tratamento.
Palavras-chave: Hernia incisional. Pneumoperitônio. Cirurgia.
APRESENTAÇÃO DO CASO:
AAN, 33 anos, feminino, IMC de 32 kg/m2, sem comorbidades prévias, submetida previamente a nefrectomia esquerda secundária a pielonefrite complicada em 2020. Dois meses após a cirurgia, apresentou dor abdominal com irradiação para o dorso com piora nos esforços, e notou abaulamento no flanco esquerdo com aumento progressivo durante os anos seguintes. Em 2023, foi submetida a uma tomografia computadorizada (TC) de abdome superior que revelou uma volumosa hérnia no flanco esquerdo com colo de 12,3 x 9,6 cm, contendo insinuação de gordura e segmento de delgado. Foi aplicada a equação de EY Tanaka, que indicou uma relação de 45% entre saco herniário e cavidade abdominal. Optou-se por hernioplastia incisional complexa com utilização de toxina botulínica (6 semanas antes do procedimento) em parede lateral direita e implante de cateter para confecção de pneumoperitôneo progressivo pré-operatório com o objetivo de evitar a síndrome compartimental abdominal. Posteriormente, foi infundido um volume total de aproximadamente 9200 ml (durante 7 dias), com TC de controle evidenciando apenas insinuação gasosa dentro do saco herniário. Prosseguiu-se com hernioplastia incisional, com dissecção e abertura de saco herniário, lise de aderências sob parede abdominal e identificação de fáscia transversal parcialmente danificada – sendo reconstruída com vicryl 3-0 e colocação de tela de polipropileno sob fáscia transversal – sublay. Foi realizado a rotação do saco herniário sob a tela, optando-se pela colocação de uma segunda tela sob a musculatura do oblíquo externo – onlay, e posicionado um dreno portovac 6.4 no subcutâneo, sem intercorrências. A paciente apresentou evolução pós operatória satisfatória e no 6º dia pós-operatório, evoluiu bem, sem déficits, hemodinamicamente estável e respirando confortavelmente em ar ambiente, com dreno à direita com 20 ml/24h e à esquerda com 5 ml/24h de aspecto serohemático. Ao exame físico, apresentava-se em bom estado geral, normotensa, tendendo a taquicardia, boa aceitação de dieta. Abdome com presença de discreto enfisema subcutâneo próximo à incisão, ferida operatória limpa e seca, sem sinais flogísticos. A paciente então recebeu alta hospitalar e foi encaminhada para retorno ao ambulatório com retorno após 1 semana do procedimento, com boa evolução clínica e retirada do dreno ambulatorial.
DISCUSSÃO DO CASO:
As hérnias são protusões anormais de um órgão ou tecido, causado por um defeito em suas paredes circundantes, tendo como exemplos mais comuns as umbilicais, inguinais, femorais e incisionais1. Acerca da hérnia incisional, ela é definida como o resultado de uma cicatrização inadequada na área de uma incisão operatória, podendo ou não ter protuberância2. De acordo com a literatura, o conteúdo mais comum relativo às hérnias incisionais são: tecido adiposo e vísceras3. No caso da paciente em questão, dois meses após a realização de uma nefrectomia esquerda, observou-se um abaulamento no flanco esquerdo, localizado na área da incisão cirúrgica. Este abaulamento continha tecido adiposo, pequenos vasos, alças do intestino delgado e cólon, além de conteúdo aéreo secundário ao pneumoperitônio induzido, sem a presença de sinais obstrutivos.
Essas hérnias ocorrem em, aproximadamente, 10 a 15% das incisões cirúrgicas, sendo mais comuns em mulheres e pacientes com idade acima de 40 anos4,5. Ademais, estão relacionadas a diversos fatores de risco, como idade avançada, desnutrição, múltiplas laparotomias, diabetes, infecção pós-operatória da ferida cirúrgica e, sobretudo, obesidade. Esta última tem sido associada cada vez mais aos riscos aumentados para formação da hérnia e seu encarceramento, além de complicações e recorrências após sua correção6,7. Dessa forma, além de AAN ser do sexo feminino, ela possui obesidade grau 1, visto que seu IMC é de 32 kg/m2, sendo essa comorbidade um grande fator de risco para o desenvolvimento das hérnias incisionais. Contudo, apesar do alto índice, a própria trata-se de uma paciente jovem, sem patologias prévias, sem cirurgias anteriores à nefrectomia e sem complicações durante o pós-operatório, os quais, como mencionado anteriormente, são potenciais desencadeantes dessa condição.
Em relação a apresentação clínica dos pacientes com hérnia incisional, nota-se um comprometimento não apenas com o âmbito anatômico, gerando desconforto, mas também no domínio estético. Assim, os sintomas mais comuns são dor abdominal (que piora com tosse ou tensão, induzindo uma projeção do conteúdo através do local disfuncional da parede) náuseas, vômitos, desconforto respiratório e dor crônica em dorso8. Esse quadro álgico está relacionado à classificação do tamanho da hérnia, que pode ser categorizada da seguinte forma: pequena (menos de 5 cm de largura ou comprimento), média (entre 5 e 10 cm de largura ou comprimento) ou grande (mais de 10 cm de largura ou comprimento)8. A paciente em questão manifestou uma dor abdominal com irradiação para o dorso, tendo em vista a existência de um grande conteúdo herniado (acima de 10 cm), bem como, náuseas e vômitos diante do mal-estar ocasionado pela dor.
Para fins diagnósticos, inicialmente, a palpação do conteúdo herniado é um dos meios de investigação, sendo bastante eficaz principalmente em pacientes não obesos. Além disso, alterações na estética da pele a exemplo de eritema, isquemia ou ulcerações também contribuem para a suspeita de uma hérnia incisional8. Contudo, uma vez que o exame físico não auxilie nesse processo, a tomografia computadorizada (TC) é outro recurso, o qual permite uma avaliação mais meticulosa, viabilizando a identificação do conteúdo que está contido no saco da hérnia, bem como é útil para programação da abordagem cirúrgica9. Outrossim, a TC ainda define a qualidade da musculatura abdominal e enfatiza condições que possam dificultar o reparo, a exemplo de uma fístula9. No que tange aos diagnósticos diferenciais, a TC é válida para descartar outras causas de dor e desconforto abdominal nos pacientes, como diástase de reto abdominal, hematoma da bainha do reto ou tumores da parede abdominal9.
No caso da paciente em questão, o diagnóstico inicial foi sugerido pelo exame físico, que evidenciou um abaulamento associado ao relato de aumento progressivo. A confirmação foi obtida através da TC, que revelou a presença de gordura e intestino delgado no saco herniário, com dimensões de 12,3 x 9,6 cm. Com base nas dimensões obtidas pela TC, é necessário calcular a relação volumétrica entre o saco herniário e a cavidade abdominal10. Considerando que ambas as estruturas possuem formato elipsoide, seus volumes são calculados a partir dos eixos crânio-caudal (CC), transversal (T) e ântero-posterior (AP) pela equação: CC x T x AP x 0,5210.
Dessa forma, utilizando o método de Tanaka e cols, determina-se a razão entre os volumes dessas cavidades10. Quando o resultado excede 25%, como observado no caso da paciente descrita (45%), ocorre uma perda de domicílio, indicando que não há espaço suficiente na cavidade abdominal para a redução da hérnia10,11. Nesses casos, um recurso aliado é o pneumoperitônio progressivo pré-operatório, onde, através do cateter de insuflação, ar ambiente é introduzido na cavidade abdominal12. O objetivo é readequar gradualmente o volume dessa cavidade para possibilitar a reintrodução visceral, minimizando a probabilidade de ocorrência de síndrome compartimental no pós operatório11,12.
As hérnias incisionais podem ser tratadas de forma expectante ou operatória, o que define o procedimento a ser adotado é a apresentação e a gravidade dos sintomas. Além disso, fatores como localização, tamanho, presença ou não de conteúdo visceral do saco herniário são questões analisadas para a realização do tratamento adequado10. Quando recomendada, a cirurgia de reparação de hérnias incisionais pode ser realizada de duas maneiras: laparoscópica ou aberta. A reparação laparoscópica é indicada para pacientes com maior risco de complicações na ferida, como infecções, dor e dificuldade na cicatrização, hérnias com menos de 10 cm de largura e hérnias fora da linha média. Já a reparação aberta é indicada para pacientes com hérnia de baixo risco (com baixo risco na ferida), e para hérnias ventrais complexas que incluem grandes defeitos, perda de domínio ou contaminação13.
No caso descrito, a paciente apresentava sinais e sintomas indicativos para tratamento cirúrgico – colo da hérnia: 11,8 x 15,9 cm (CC-T) e saco herniário: medindo cerca de 22,6 x 26,4 cm (CC-T). Sendo assim, optou-se pela realização da hernioplastia incisional – cirurgia realizada para reparar uma hérnia incisional, que ocorre no local de uma incisão prévia feita durante uma cirurgia anterior. No procedimento foi utilizado tela cirúrgica de polipropileno e dreno portovac. A tela, tem como objetivo reforçar a parede abdominal e diminuir o risco de recorrência da hérnia14, já que distribui a tensão e promove uma cicatrização mais forte e estável. Enquanto o dreno Portovac, por sua vez, é empregado para remover líquidos e sangue acumulados no sítio cirúrgico, reduzindo assim o risco de infecções e facilitando o processo de cicatrização15.
COMENTÁRIOS FINAIS:
O manejo da hérnia incisional volumosa em paciente com obesidade, sem comorbidades prévias e com histórico de nefrectomia, evidenciou a eficácia do pneumoperitônio progressivo seguido da hernioplastia ventral com uso de tela de polipropileno. A paciente apresentou uma recuperação pós-operatória sem intercorrências significativas, destacando a importância da preparação pré-operatória em casos com grande conteúdo herniário para prevenir a síndrome compartimental.
A abordagem cirúrgica utilizada demonstrou ser adequada para a resolução da hérnia, considerando o volume e a complexidade do caso. A utilização de tela cirúrgica e dreno portovac foram cruciais para a redução de complicações e a promoção de uma cicatrização eficiente. A paciente evoluiu favoravelmente, com alta hospitalar precoce e encaminhamento para acompanhamento ambulatorial, refletindo a efetividade do tratamento adotado.
Este caso reforça a relevância do diagnóstico precoce e da intervenção cirúrgica bem planejada em pacientes com hérnias incisionais volumosas, especialmente em indivíduos com fatores de risco como a obesidade. A implementação de técnicas avançadas e a personalização do tratamento são fundamentais para garantir a recuperação plena e a qualidade de vida dos pacientes.
REFERÊNCIAS:
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1Graduandos de medicina da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
2Médico residente de Cirurgia Geral no Hospital Universitário Professor Edgar Santos.
3Médico-cirurgião geral.