AFFECTIVE ABANDONMENT DUE TO DISCRIMINATION DUE TO DISABILITY, CHARACTERIZED AS ABANDONMENT OF DISABLED, INCLUDED IN THE CRIMINAL AND CIVIL SCOPE
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7337412
Helen Cristina Macedo1
Mariana Luiza Lopes Miranda2
Resumo: Consiste na apresentação de um estudo de caso concreto, no qual uma criança abandonada por parte do genitor, diante ao diagnóstico de autismo, TDAH, esquizofrenia, entre outros transtornos. Será abordado sobre as formas de abandono afetivo, bem como sobre a possível caracterização do abandono de incapaz, uma vez que, devido às condições intelectuais do adolescente, é caracterizado como absolutamente incapaz. O CREAS/SM informou sobre um adolescente com diagnósticos psiquiátricos e neurológicos, sendo o mesmo vítima de negligências por parte do genitor. Neste estudo, trata-se sobre a tipicidade de tal ação, no âmbito cível e penal, caracterizando como abandono afetivo e abandono de incapaz, apresentando pontos característicos dos dois delitos citados e os seus fundamentos, bem como sobre a apresentação do estatuto do deficiente, a fim de ilustrar a teoria criada, apresentando a tipificação que também é prevista.
Palavras-chave: Abandono afetivo; Abandono de incapaz; Pessoas com deficiência.
Abstract: It consists of the presentation of a concrete case study, in which a child abandoned by the parent, faced with the diagnosis of autism, ADHD, schizophrenia, among other disorders. It will be approached on the forms of affective abandonment, as well as on the possible characterization of the incapable abandonment, since, due to the adolescent’s intellectual conditions, he is characterized as absolutely incapable. CREAS/SM reported on an adolescent with psychiatric and neurological diagnoses, the same being a victim of negligence on the part of the parent. In this study, it is about the typicality of such action, in the civil and criminal scope, characterizing as affective abandonment and abandonment of the incapable, presenting characteristic points of the two cited crimes and their foundations, as well as about the presentation of the status of the disabled, in order to illustrate the theory created, presenting the typification that is also predicted.
Keywords: Affective abandonment; Abandonment of the incapable; Disabled people.
1 INTRODUÇÃO
Considerando os desafios encontrados na sociedade contemporânea e no ordenamento jurídico, bem como em escritórios de advocacia e processos interpostos, grande causa vem chamando a atenção: O abandono afetivo e abandono de incapaz, advindo de genitores, interligados em casos concretos que gozam das mesmas infrações, gerando, como consequência, crianças/adolescentes traumatizados e que necessitam de cuidados especiais. Portanto, infere-se: qual ordenamento jurídico fundamenta a punibilidade de tal ação gerada por pessoas responsáveis ou genitores que deveriam exercer um papel de segurança e bem-estar a essas crianças/adolescentes? Dessa forma, apresenta-se um caso concreto acerca de J., 14 anos, filho de pais separados, atualmente residindo com a sua mãe; possui cerca de 08 (oito) CIDs diferentes, caracterizando: autismo, TDAH, esquizofrenia, entre outros. É de fácil compreensão que o adolescente necessita de cuidados especiais, bem como de uma rede de apoio fortalecida que possa-lhe garantir um tratamento seguro e eficaz, para uma melhor qualidade de vida. No entanto, não consegue ter acesso a essa qualidade de vida e uma base de apoio, principalmente pela ausência do genitor, tanto em âmbito afetivo quanto financeiro.
O adolescente, infeliz com essa decisão, aborda o seu genitor de várias maneiras, a fim de conseguir tal afeto e não obtém sucesso, trazendo conflitos familiares gravíssimos, além de promover uma regressão em seu tratamento. Vale destacar em questão, que o genitor agride constantemente o adolescente (fisicamente e psicologicamente), além de expor as situações vivenciadas em redes sociais, por fim, nega os diagnósticos do filho e por consequência o seu tratamento. No decorrer do caso foram feitas várias abordagens junto às autoridades competentes para a resolução do conflito: CREAS, Conselho Tutelar e Defensoria Pública, porém nenhum obteve sucesso e acordo entre as partes, somente a vítima que, por vezes, escuta que não é bem-vindo na casa do pai. No tocante, é perceptível várias infrações cometidas, mas aqui serão tratadas as formas de abandono afetivo, bem como a possível caracterização do abandono de incapaz, uma vez que, devido às condições intelectuais do adolescente, é caracterizado absolutamente incapaz. Ressalta-se que, na ação ajuizada pela Defensoria Pública, quem possui a guarda de fato e definitiva é a mãe do adolescente, que inclusive é definido valor mensal a título de pensão alimentícia, valor esse simbólico, devido aos custos com o seu tratamento.
Deste modo, ao longo desse artigo, se esclarece com base em jurisprudências e doutrinas a caracterização do abandono afetivo, abordado no artigo 186 do Código Civil, se tratando de genitores que negligenciam os seus filhos, faltando-lhes com afeto e com as condições básicas previstas na Constituição Federal, artigo 227.
Também o abandono de incapaz previsto no artigo 133 do Código Penal, onde trata-se sobre o abandono de pessoas que estão sob cuidados próprios ou de terceiros, uma vez que o incapaz se trata de uma pessoa vulnerável aos riscos resultantes do abandono.
2 PODER FAMILIAR
A terminologia “poder familiar” é recente no sistema jurídico brasileiro, sendo incluída no Código Civil de 2002 por sugestão de Miguel Reale (REALE, 2013, p. 22), pois o Código Civil de 1916 (arts. 379 a 395) intitulava-o de “pátrio poder”, ou seja, o poder do pai, o poder paterno, garantindo, expressamente, o seu exercício ao pai, marido, auxiliado pela mãe, sua mulher, tanto que, em eventual conflito ou divergência de opiniões quanto a esse exercício, prevaleceria a vontade paterna (BRASIL, 1916).
O poder familiar deve ser interpretado como “o poder exercido pelos pais em relação aos filhos, na ideia de família democrática, do regime de colaboração familiar e de relações baseadas, sobretudo, no afeto” (TARTUCE, 2020, p. 521).
Logo, ele promove o desenvolvimento dos filhos, favorecendo uma educação interativa e completa, mediante o respeito a sua individualidade e integridade psíquica.
O poder familiar é irrenunciável, tendo em vista que os pais não podem abrir mão dele; inalienável ou indisponível, já que não pode ser transferido a outras pessoas; imprescritível, uma vez que não decaem os pais pelos simples fatos de não o exercerem; por fim, incompatível com a tutela, não se podendo nomear tutor a menor, a não ser que haja suspensão ou destituição do poder familiar dos genitores (DINIZ, 2018, p. 643).
Para Carlos Roberto Gonçalves, o “aludido instituto constitui um múnus público, pois para o Estado […] interessa o seu bom desempenho. É, portanto, irrenunciável, incompatível com a transação e indelegável, não podendo os pais renunciá-lo, nem o transferir a outrem” (GONÇALVES, 2018, p. 412). O autor ainda defende que o poder familiar é imprescritível e que o genitor somente o perderá nos casos explicitamente descritos em lei, e que o instituto é incompatível com a tutela, “não se podendo nomear tutor a menor cujos pais não foram suspensos ou destituídos do poder familiar” (GONÇALVES, 2018, p. 412).
3 ABANDONO AFETIVO
O abandono afetivo consiste na omissão de cuidado, de criação, de educação, de companhia e de assistência moral, psíquica e social que o pai e a mãe devem ao filho quando criança ou adolescente (COSTA, 2016). O ordenamento jurídico brasileiro prevê a prática do abandono no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu art. 22, que define como a conduta dos pais que deixam, sem justa causa, de prover o sustento, a guarda e a educação dos filhos menores de 18 anos. No artigo 23 do mesmo Estatuto estabelece que a falta ou carência de recursos não caracteriza, por si só, abandono de uma criança ou de um adolescente, não podendo servir de base para a decretação da perda ou suspensão do poder familiar. Logo, desde que haja afeto e cuidado, a criança não é considerada abandonada, independentemente da precariedade financeira da família em que se encontre inserida (BRASIL, 1990).
O Código Penal Brasileiro tipifica o abandono como crime de duas formas, quais sejam: abandono material (art. 244) e abandono intelectual (art. 246). O abandono material ocorre, quando alguém deixa, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, filho menor de 18 anos ou inapto para o trabalho e de ascendente inválido. O abandono intelectual caracteriza-se por alguém deixar, sem justa causa, de prover instrução primária de filho em idade escolar (BRASIL, 1940).
Por abandono afetivo parental compreende-se o distanciamento ou a ausência afetiva dos pais no convívio com seus filhos, ainda que as obrigações alimentícias sejam cumpridas, os pais distanciam-se, por motivos conscientes ou inconscientes, privando-os da convivência e do cuidado afetuoso (HOUAISS, 2008).
Os casos de distanciamento afetivo entre pais e filhos, mais visivelmente aparecem após a desconstituição do casamento ou da união estável dos cônjuges, a partir da qual o filho menor de 18 anos, continua ou passa a residir apenas com um dos pais, em geral a mãe ou avós que passam a ser seus genitores, mantendo sua integridade física e suas responsabilidades, chamada por esse motivo de guarda unilateral ou uni-parental. Nesse regime tem-se que o filho menor, em períodos predeterminados, recebe a visita do outro genitor que não detém a guarda (ZEGER, 2012).
Nas lições de Costa (2016), o abandono moral é tão prejudicial como o abandono material, ou até mais, afinal a carência de recursos materiais pode ser superada através do trabalho árduo do outro genitor, o afeto não pode ser substituído. A sua ausência pode destruir princípios morais, principalmente quando estes ainda não estão consolidados na personalidade da criança ou do adolescente. Sabe-se, então, que o dever do genitor que não ficou com a guarda não é só aquele em relação aos alimentos, mas o de auxiliar na construção da personalidade e desenvolvimento do filho, pois a criança ou adolescente tem a figura paternal/maternal como referência e exemplo (SILVA, 2009).
A psicologia explica que o afastamento do genitor, a carência do afeto nos laços familiares pode desenvolver nos filhos sintomas de rejeição, baixa autoestima, chegando a prejudicar o seu rendimento na escola, podendo resultar, ainda, em outras inúmeras consequências. Sobre a família e o afeto, Aline Biasuz Suarez Karow dispõe:
A família e afeto são dois personagens desse novo cenário.
Contemporaneidade, o afeto é desenvolvido e fortalecido na família, sendo este, ao mesmo tempo, a expressão de união entre seus membros e a mola propulsora dos integrantes que buscam a sua realização pessoal através da sua exteriorização de forma autêntica (KAROW, 2012, p. 12).
Portanto, compreende-se que os laços de afetividade dentro da família são necessários para que se tenha um bom relacionamento familiar.
3.1 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL DA PERSONALIDADE
A Constituição de 1988 prevê, em seu artigo 1º, inciso III, o princípio da dignidade da pessoa humana. Tal princípio, estruturante de todo o ordenamento jurídico pátrio, não pode ser interpretado de forma vazia e banal como vem sendo constantemente realizado.
Ademais, tem-se que a afetividade não é tratada de forma categórica como princípio pela nossa legislação positivada, porém está implícita no ordenamento jurídico pátrio, devendo ser considerado como um princípio do Direito de Família.
A afetividade se define como a relação de carinho ou cuidado que se tem com alguém íntimo ou querido, sendo o estado psicológico que permite a demonstração e existência de sentimentos e emoções a outro ser vivo. Assim, dentre as vertentes do princípio da dignidade da pessoa humana, encontra-se o princípio da afetividade, passando a família a encontrar fundamento no afeto, na ética, e no respeito entre seus membros. Atualmente, se tem o conhecimento da família como um instrumento de proteção da pessoa humana.
Além de ser uma vertente do macro princípio da dignidade humana, o princípio da afetividade pode ser encontrado através da leitura não apenas da Constituição Federal e do Código Civil, mas de leis esparsas que versam sobre o Direito de Família. Dentre elas, encontra-se a Lei Maria da Penha (2006), a Lei da Guarda Compartilhada (2008), a Lei da Adoção (2009) e a Lei da Alienação Parental (2010), todas essas leis tratam da afetividade como um conceito jurídico.
3.2 PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL COMO OBRIGAÇÃO LEGAL DA FAMÍLIA
A Constituição de 1988, em seu artigo 226, trata o direito de família como base da sociedade. A Carta Constitucional determina a igualdade entre o homem e a mulher no que toca os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal. Além disso, o mesmo dispositivo, em seu parágrafo 7º, diz que a família é fundada nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (BRASIL, 1988).
O princípio da paternidade significa responsabilidade e esta começa na concepção e se estende até que seja necessário e justificável para o cumprimento de todos os deveres enunciados no artigo 227, quais sejam: o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (BRASIL, 1988).
Expressamente previsto na Carta Magna tem-se a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, ratificada pelo Brasil em 24 de setembro de 1990, onde dispõe que toda criança terá direito de conhecer seus pais e ser amparada e cuidada por eles. Além disso, foi incluído no art. 27, da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), onde o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado através dos pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, sendo sempre observado se o segredo de justiça então inerentes (BRASIL, 1990). Nesse contexto, preleciona Bennesby:
A partir da Constituição de 1988 e dessas mudanças normativas, o direito da criança ou do adolescente ao reconhecimento do seu estado de filho passa a ser absoluto, podendo ser exercido a qualquer tempo e, inclusive, em face dos herdeiros dos pais, considerando-se de natureza personalíssima e impassível de disposição (BENNESBY, 2015, p. 112).
A importância dos pais na formação dos filhos é algo notório e pesquisas elaboradas por profissionais da área da psicologia demonstram a importância de tal questão. Desse modo, é importante que os pais estejam envolvidos no processo de criar e educar os filhos de forma saudável. Sempre se soube que tal tarefa se mostra difícil, porém desde meados do século XX a estrutura familiar passa por grandes transformações modificando essa relação parental. A mulher passou a ser peça fundamental no mercado de trabalho, reivindicando direitos de igualdade ao poder masculino, requerendo e necessitando da participação mais efetiva do pai. Além disso, o índice de separações conjugais apenas aumentou, acarretando, infelizmente, na separação de pais e filhos e na culminação de novos conflitos.
Nessa esteira, tem-se que o princípio da paternidade responsável deve ser encarado como um dever legal, previsto não apenas na Constituição Federal, mas em diversas leis esparsas. Tal princípio tem por objetivo o planejamento familiar racional e independente, a fim de que os seus membros possam se desenvolver de forma natural e integral.
3.3 DOS MAUS-TRATOS À AUSÊNCIA DE TRATO
Apesar de a princípio, o abandono afetivo não parecer fornecer o mesmo risco de vida que os maus tratos e o descarte físico submetem a criança ou o adolescente, há diversas implicações no psiquismo do indivíduo que podem acarretar consequências muito mais graves à formação do ser humano. Por isso, muitas vezes o castigo físico que parece tão maldoso e repudiado se mostra como algo pequeno diante do castigo que é submetido àquele que é vítima do abandono afetivo.
Desse modo, propõe-se uma noção abrangente de maus-tratos infantojuvenil, nela se incluindo não só as formas de violência direta contra a integridade física e psíquica, como ainda as formas de privação, omissão ou negligência material e afetiva que comprometem o seu crescimento e desenvolvimento. Ainda que o sustento material esteja presente, a ausência afetiva simboliza o desinteresse, a falta de desejo e remete, ao final, o desamparo. Assim, ao decorrer do tempo, torna-se inatingível o desejo de convivência entre pai e filho.
No entanto, conforme será amplamente discutido, a ausência de afetividade é capaz de trazer consequências ainda mais sérias que a violência ativa contra a integridade física do filho, gerando marcas eternas e indissolúveis na formação e no caráter da vítima.
3.4 A PATRIMONIALIZAÇÃO DO AFETO
Uma dúvida que paira nos julgadores e nos estudiosos do tema sobre o abandono afetivo é acerca da possibilidade de monetarização das relações familiares, isto é, da conversão em pecúnia dos sentimentos mais íntimos que justificam a proximidade das pessoas relacionadas entre si por verdadeiros vínculos afetivos. Transformar o afeto em valor jurídico é algo natural e necessário e é consequência das mudanças sociais, porém monetizá-lo se mostra como um ponto de maior controvérsia e discussão.
Neste aspecto, dissertar sobre afeto não é uma tarefa fácil, mas monetizá-lo se mostra como uma tarefa ainda mais difícil. Por essa razão, reais e razoáveis dúvidas surgem sobre a viabilidade jurídica de conversão do afeto em patrimônio.
Importante destacar que inexiste, efetivamente, no ordenamento em vigor, qualquer obrigação legal de afeto, amor ou qualquer outro sentimento do gênero dos pais aos seus filhos.
Assim, o Poder Judiciário, ao estabelecer parâmetros patrimoniais à falta do afeto estaria, por óbvio, patrimonializando um sentimento, qual seja, o afeto. Entretanto, tal premissa parece absurda, pois seria duvidoso exigir de alguém que ame e tenha afeto de outrem. Na realidade, porém, não se estaria a exigir amor, afeto ou algum outro sentimento subjetivo e inalcançável por meio das controvérsias judiciais, mas o cumprimento do dever jurídico do cuidado, inerente ao poder familiar, como vínculo jurídico que une pais e filhos.
Assim, parte da doutrina e da jurisprudência assenta-se na premissa de que não se estaria sendo exigido sentimentos, mas os deveres de criação, convívio, educação e acompanhamento dos filhos, com o intuito de garantir a proteção e o saudável desenvolvimento dos mesmos. Tais deveres são atribuições decorrentes de uma paternidade responsável plasmada por valores previstos em nosso vigente texto constitucional.
De fato, os deveres jurídicos dos pais para com seus filhos estão previstos no artigo 1.634 do Código Civil, sendo possível prever que a atenção, o cuidado, o cumprimento de obrigações para com a formação social e psicológica do indivíduo estão inseridos no bojo da paternidade e maternidade responsáveis.
4 O ABANDONO DE INCAPAZ
Para a completa compreensão do delito de abandono de incapaz (art. 1331, CP), é necessária a racionalização e pré-compreensão do que se entende pelos termos “abandono” e “incapaz”, sendo que ambos constituem elementares do crime positivado pelo artigo 133 do Código Penal brasileiro. Neste sentido, esclarece que o termo “abandono” tem significado de desamparo, descuido.
De modo que se considera, para fins de caracterização do delito, o abandono físico e de cuidado. O crime de abandono de incapaz, previsto no art. 133 do Código Penal constitui o delito de perigo individual que comporta, no tipo, uma forma simples, referida no caput e duas formas qualificadas, correspondentes à ocorrência de lesão grave e morte, respectivamente nos parágrafos 1º e 2º. Sobre elas, indistintamente, cabe aumento de pena de um terço, nas hipóteses especificadas no parágrafo 3º. No crime de abandono de incapaz protege-se a vida, a saúde e a segurança daquelas pessoas que são incapazes ou possuem dificuldades de se defender dos riscos que possam vir a ocorrer, diante de uma situação de abandono.
4.1 ESTRUTURA JURÍDICA
O abandono de incapaz consiste, muitas vezes, em deixar a vítima desamparada, sem assistência, expondo-a ao perigo que, por algum motivo, não consegue cuidar-se por conta própria, não tendo condições de defender-se sozinha. Em outras palavras, significa abandonar a pessoa que está sob seu cuidado, guarda ou vigilância. Para Delmanto, “trata-se de crime próprio, exigindo-se que o agente tenha especial relação de assistência com o sujeito passivo (cuidado, guarda, vigilância ou autoridade)” (DELMANTO, 2020, p. 56). O bem jurídico resguardado pelo preceito do art. 133 é “a proteção à vida e à saúde da pessoa humana”, o seu bem estar pessoal, particularmente do indivíduo incapaz de proteger-se contra situações de perigo decorrentes de abandono. Nesse modo, acerca do bem jurídico tutelado, Bitencourt transcreve:
A despeito da unanimidade nacional, convém destacar que a definição do tipo penal não faz qualquer referência a “perigo para a vida ou a saúde de outrem”. […] Na verdade, a admissão de que os bens jurídicos protegidos se referem à periclitação da vida e à saúde do abandonado, ainda que implicitamente, vem ao encontro da função de garantia que é atribuída aos tipos penais. Ademais, embora os nomen iuris, as denominações de títulos e capítulos não integrem a objetividade jurídica dos tipos penais, não deixam de estabelecer, genericamente, quais os bens jurídicos que pretendem proteger. Nessas circunstâncias, considerando que este capítulo se destina aos crimes contra a “periclitação da vida e da saúde”, admitimos que se permita uma interpretação ampliativa do conteúdo do art. 133, porque é in bonam parte. Embora pareça paradoxal, essa interpretação extensiva tem a finalidade exatamente de restringir a abrangência do dispositivo, pois exclui a exposição a qualquer outro perigo (BITENCOURT, 2019, p. 145).
Nesse sentido, pode-se assegurar que, genericamente, o tipo resguarda a vida e a integridade físico-psíquica do incapaz. Não importa o consentimento do ofendido. Dessa forma, Noronha (2001) alude que “é inoperante o consentimento do ofendido, pela indisponibilidade do bem jurídico em questão: a segurança própria” (NORONHA, 2001, p. 127).
4.2 O ABANDONO DE INCAPAZ NA FORMA COMISSIVA E OMISSIVA
No tocante, têm-se duas modalidades de formas de abandono de incapaz, que seria a forma comissiva, que se dá por conduzir de alguma forma uma criança para a floresta e abandoná-la, por exemplo. Bem como, a forma omissiva o agente pode se manter próximo à vítima de alguma forma, mas deixa simplesmente de prestar e realizar os cuidados necessários à sua proteção e bem-estar. Tratando-se de previsão de punições para o agente que cometer tal delito.
Diante disso, possuem três características de abandono: material, intelectual e moral, assim o material trata de deixar de prover subsídios a criança, como alimentação; o intelectual trata da privação da criança de frequentar a escola e da sua vida social; e o moral é o responsável por dar carinho e atenção necessária. Portanto, para a consumação do crime é necessário a comprovação do abandono, citado nos três modelos acima. No que tange ao caso concreto exposto, tem-se o abandono de incapaz por ação moral, uma vez que foi negado ao adolescente, atenção, carinho e compreensão ao seu tratamento.
Dessa forma, é correto dizer que tal crime foi cometido pelo agente em desfavor do adolescente e que deve ser configurado, uma vez que gerou vários conflitos e retardo nos benefícios de seus tratamentos, o que poderia ter trago de forma beneficiaria uma boa qualidade de vida para o adolescente, além de poderes financeiros que poderiam auxiliar em remédios e consultas.
4.3 CARACTERIZAÇÃO DO ABANDONO DE INCAPAZ
Nessa linha de raciocínio, tem-se que o abandono se dá a qualquer pessoa que esteja desprovida de consciência e que não possa responder por seus atos ou agir sozinha. A especialista em Direito Penal, Carla Rahal Benedetti lembra, no entanto, a necessidade de avaliar cada caso em suas particularidades: “Cada situação deve ser analisada de forma objetiva, isto é, se faz necessária a avaliação ponderada do caso para que a falta ou ausência de cuidados por instantes não seja entendida como uma conduta passível de penalização criminal” (BENEDETTI, 2018, p. 45). Além de ponderar a vontade do agente de negligenciar cuidados e a proteção necessária.
Segundo Cabezón: “Não há como a lei obrigar um pai a ter carinho pelo seu filho. Nesse caso, pode-se considerar abandono de incapaz no caráter moral e o filho pode pedir indenização, por exemplo, pelas vezes em que sofreu com a ausência do pai.” (CABEZÓN, 2017, p. 123).
Assim, há várias jurisprudências com decisões a favor dos filhos que sofrem com o abandono no caráter moral, recentemente ação ajuizado no Tribunal de Justiça de São Paulo:
Em decisão unânime, a 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo condenou um homem a indenizar sua filha por danos morais em decorrência de abandono afetivo. O valor foi fixado em R$ 10 mil, além do custeio do tratamento psicológico da criança, representada na ação pela mãe. Segundo os autos, o abandono se comprovou pela ausência de laços afetivos entre pai e filha, acarretando problemas psicológicos à criança. Em virtude disso, a criança está em tratamento por apresentar defasagem nas habilidades fonológicas e dificuldade na memória operacional, atenção e concentração. “As visitas voltaram a acontecer de maneira mais regular, mas não ao ponto de fornecer um efetivo vínculo de confiança e carinho entre as partes a suprir os desejos da menor que sente falta de qualidade na convivência paterna, o que gerou danos psicológicos atestados no estudo social”, frisou o relator do recurso, desembargador João Baptista Galhardo Júnior. No entendimento da Câmara, o réu não ofereceu justificativas plausíveis para seu afastamento ou negligência quanto à qualidade da convivência com a filha. “Eventual mau relacionamento com a genitora não é motivo que justifique o afastamento consentido e voluntário da convivência e da educação moral”, concluiu o relator. Completaram a turma julgadora os desembargadores Giffoni Ferreira e Hertha Helena de Oliveira (TJSP, 2022).
Observa-se, nesse esteio, que a jurisprudência vem formando um pensamento e um posicionamento acerca do abandono afetivo e das suas consequências jurídicas.
5 ANÁLISE DO ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
A Lei 13.146/2015, também conhecida como “Estatuto da Pessoa com Deficiência”, em seu artigo 90, descreve como crime o ato de abandonar pessoa com deficiência em hospitais, casas de saúde ou locais semelhantes. A pena prevista é de 6 meses a 3 anos de reclusão e multa. A norma também prevê que o responsável por não suprir as necessidades da pessoa com deficiência também responde pelo crime. A Declaração Dos Direitos das Pessoas Deficientes, aprovada pela Assembleia Geral da ONU, no dia 09 de dezembro de 1975, teve sua importância por trazer o conceito de pessoa deficiente, bem como influenciar na construção do termo “pessoa portadora de deficiência”, adotada pela Constituição Federal de 1988, onde definiu que “qualquer pessoa incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência congênita ou não, em suas capacidades físicas, sensoriais ou mentais”.
(ONU, 1975).
As deficiências são divididas em deficiência física, visual, auditiva, intelectual, psicossocial e a deficiência múltipla, conceituada como a associação de duas ou mais deficiências.
5.1 ABANDONO DE PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS
Abandono de incapaz trata-se de um crime previsto no artigo 133 do Código Penal, que consiste em abandonar uma pessoa que está sob seu cuidado, guarda ou vigilância, por qualquer motivo. No entanto, é importante frisar que esse crime não está relacionado à idade, mas à capacidade psíquica e motora do indivíduo de se defender de algum risco decorrente do abandono. Ou seja, pode ser um idoso, uma pessoa com deficiência física ou mental, ou uma criança.
Compreende-se, nesse contexto, o posicionamento adotado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO CÍVEL. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. ABANDONO MATERIAL E AFETIVO. NEGLIGÊNCIA. GENITORES QUE NÃO APRESENTAM CONDIÇÕES DE PROPORCIONAR A SUBSISTÊNCIA E O DESENVOLVIMENTO SAUDÁVEL DOS FILHOS. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. ART. 1.638 DO CÓDIGO CIVIL E ARTS. 22 E SEGUINTES DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA MÁXIMA PROTEÇÃO À CRIANÇA. PREVALÊNCIA DO MELHOR INTERESSE DOS MENORES. SENTENÇA MANTIDA.
Comprovado que os genitores não têm condições de cumprir com os deveres inerentes ao poder familiar, submetendo os filhos à negligência e ao abandono material e afetivo, impõe-se a destituição do poder familiar, diante da prevalência do princípio do superior interesse da criança. APELAÇÃO DESPROVIDA (BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. AC: XXXXX /RS. Relatora desembargadora Sandra Brisolara Medeiros. Diário Judiciário Eletrônico- DJe, 05 abr. 2017).
Compreende-se, consoante entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que, uma vez que os genitores não detenham a capacidade de cuidado a atenção para com os filhos menores, faz-se precípua a destituição do poder familiar.
6 CONCLUSÃO
No presente artigo, foi abordado e tratado com estudo de caso concreto o abandono afetivo e suas causalidades, bem como o abandono de incapaz com característica moral. Assim, foi exposto que o abandono afetivo e de incapaz possuem características semelhantes, portanto o agente pode ser punido por suas ações e não deve ser omisso aos cuidados necessários perante seu papel de genitor.
Nesse sentido, tem-se o abandono de incapaz no sentido moral, conforme citado acima, se dá pela falta de afeto e carinho para com o incapaz, desenvolvendo vários tipos de transtornos no futuro.
Percebe-se que tal questão é pauta de diversos estudos e doutrinas e está presente no cotidiano do poder judiciário. Desse modo, entende-se que não é possível monetizar a falta de afeto e atenção, mas a monetização de cuidados que deveriam ser proporcionados ao adolescente é considerada pela Justiça. Dessa forma, não se estaria exigindo afeto, mas sim a obrigação de garantir o cuidado nem que seja material à vítima. Além de trazer conflitos para o agente, que estaria abrindo mão de um dever indispensável.
REFERÊNCIAS
BENEDETTI, Carla Rahal. Resumo jurídico de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2018.
BENNESBY, Giulia Rabe. A Jurisdicialização do afeto e a responsabilidade civil por abandono afetivo. Rio de Janeiro, 2015. 125 p. Monografia de final de curso – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
BITENCOURT, César Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2019.
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1 Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário UNA- Campus Bom Despacho/MG.
2Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário UNA- Campus Bom Despacho/MG. mariana.lopesmiranda@hotmail.com.