A VOZ DA RESISTÊNCIA: UMA ANÁLISE DO POEMA “POESIA NEGRA”, DE LUNA VITROLIRA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7970712


Flávia Martins Malaquias (UFMS)¹
Wellington Furtado Ramos (UFMS)²


RESUMO

Apresenta-se neste artigo uma análise do poema Poesia Negra, de Luna Vitrolira, publicado em 2018, no livro Aquenda – O amor às vezes é isso, marcado pela força e pela resistência da voz da autora, que reivindica o direito de existir e de produzir poesia a partir da sua própria perspectiva, colocando em evidência as dificuldades enfrentadas por pessoas negras em uma sociedade historicamente excludente, que ainda perpetua o signo da violência e do racismo. Assim, esse estudo analisa as dimensões estrutural, linguística, interpretativa e literária do poema. Desse modo, buscou-se refletir sobre a voz da escritora Luna Vitrolira, a partir de sua poesia e linguagem poética, para compreender os efeitos provocados pelo prazer estético de sua poética, eminentemente contemporânea. Além disso, pretendeu-se explorar a dimensão linguística e a organização da linguagem utilizada por Vitrolira para proporcionar a fruição estética da confluência da poiesis, aisthesis e katharsis. Para alcançar esses objetivos, o estudo utiliza como aporte teórico os trabalhos de Jauss (1979), Culler (1999), Candido (2006), Oliveira e Castro (2006) e Agamben (2009), que contribuem para a reflexão crítica e aprofundamento da análise literária e estética do poema.

Palavras-chave: Poesia Negra; linguagem poética; contemporaneidade; prazer estético; Luna Vitrolira.

INTRODUÇÃO

Propõe-se analisar, neste artigo, o poema Poesia Negra, de Luna Vitrolira, em sua dimensão linguística, a partir da proposta de Antonio Candido (2006), que considera o nível fonético e fonológico na construção do poema, passando por outros elementos intrínsecos do texto na tentativa de se perscrutar em que medida os elementos extrínsecos à poesia nela se convertem em elementos intrínsecos. Dessa forma, a análise considera os sons, as palavras em sua função sintática, a forma em diálogo com a prática discursiva independente, como apoio para concretizar o discurso promovido. Dito de outro modo, trata-se de uma análise linguística, de forma, estrutura e produção de sentido, equivalendo à organização e sentido. A análise interpretativa se aporta nas teorias de Jauss (1979), que trata do prazer estético na confluência da poiesis, aisthesis, katharsis,da proposição de Culler (1999), acerca da organização da linguagem literária e daquela de Agamben (2009) sobre a contemporaneidade. Para melhor organizar o empreendimento de análise do poema, o artigo se divide em fundamentação teórica, análise estrutural, linguística, interpretativa e conclusão.

Segundo o website A Dita Curva,

Nascida no Recife, Luna Vitrolira é poeta declamadora, cantora, atriz, performer, arte educadora, professora de literatura brasileira, pesquisadora de literatura oral, produtora e idealizadora dos projetos de circulação nacional “Estados em Poesia”, “De Repente uma Glosa” e “Mulheres de Repente”. Desde que iniciou a carreira, a artista vem se apresentando em importantes eventos e festivais literários por todo Brasil como: a Balada Literária (SP), Festipoa Literária (RS), CLISERTÃO, Festival Internacional de Poesia do Recife, Jornada Literária Portal do Sertão, e Bienal do Livro de Pernambuco (PE). Vencedora da 6ª Recitata, e do Festival de Literatura A Letra e A Voz. Lançou o seu primeiro livro “Aquenda o amor às vezes é isso”, pelo selo LIVRE, de Marcelino Freire. (2023, s/p)

Fonte: Jornal Rascunho. Disponível em:
< https://rascunho.com.br/ficcao-e-poesia/luna-vitrolira/>,
acesso em 26/04/2023

Logo de início, observa-se que o poema em tela não segue a estrutura dos modelos tradicionais ao expor as ideias e imagens; pode-se dizer, precipuamente, que o poema não possui métrica regular e nem rima final apesar de, no entanto, sua forma e a combinação de algumas consoantes e vogais produzem sonoridade e sentido que despertam no leitor sensações de caráter sinestésico. Observe-se:

apanhei por ser gorda
menina preta e pobre
cresci ansiando pelo dia
em que minha pele aos poucos
começaria a clarear
deixei de ir à praia
de brincar na rua
usei mangas longas pra esconder os braços do sol
meu cabelo que não tinha gravidade
era crespo e se agarrava nas coisas
alisei
não era bonita
não era magra
não era branca
era gorda menina preta e pobre
ninguém me avisou que apanharia por isso
ninguém me avisou que não seria amada por isso
morri várias vezes e várias vezes sonhei ser mulata
mulher fruta dessas que ao menos é desejada
atrair olhar de homem branco que não me xingasse
que não me batesse a mão na cara
sai daí bombril
cabelo pixain
saci
carne de vaca
era eu
tudo isso era eu
e tinha gente que dizia
eita que essa menina deu sorte
vai sair da senzala
nasceu com nariz afilado e nem é tão escurinha assim
vai clarear quando crescer
é só ter paciência que vai ser parda
parda poderia ser
rainha
deusa
musa de poeta
sereia
poderia ter voz
lugar na mesa da sala
parda poderia ser
parda nada mudou
e eu gorda menina parda e pobre
continuei apanhando
até descobrir que deus
é uma mulher preta
e me aceita.
VITROLIRA (2017, s/p)

Assim, a estrutura de um poema pode ser analisada em duas dimensões principais: a estrutura interna e a estrutura externa. A estrutura interna diz respeito à organização dos elementos que compõem o poema, tais como as estrofes, versos, rimas, ritmos e figuras de linguagem. Esses elementos se relacionam entre si para criar um efeito estético e expressar um significado. Já a estrutura externa refere-se à apresentação visual do poema, ou seja, como ele é disposto na página. Isso inclui a divisão em estrofes, a disposição dos versos, a utilização de espaços em branco e a escolha da fonte e do tamanho da letra. Ambas as estruturas são importantes para a compreensão e a fruição do poema.

A estrutura interna permite analisar a construção do sentido da obra, enquanto a estrutura externa contribui para a leitura e a interpretação da obra como um todo. Ao se analisar a estrutura interna e externa de um poema, é possível identificar elementos como a métrica (que se refere à medida dos versos), a rima (que se refere à correspondência sonora entre os versos), a estrofação (que se refere à organização dos versos em estrofes), as figuras de linguagem (que se referem aos recursos utilizados pelo poeta para criar efeitos de sentido), entre outros elementos que compõem a obra.

Por essa razão, a análise do poema em tela não possui um caminho pensado com exatidão, visto que suas características podem produzir ideias ao longo da análise. Nele, percebem-se qualidades do contemporâneo, tal qual proposto por Agamben (2009). A voz poética pousa o olhar sobre o preconceito sofrido ao longo de sua trajetória de menina negra a mulher negra e, por meio das imagens construídas pela linguagem, o leitor acompanha a voz de um eu-lírico que sofre e que passa pelo processo de autoaceitação, empoderamento e autorreconhecimento.

A pesquisa realizada foi de natureza bibliográfica e teve um enfoque qualitativo- interpretativo. Para proceder às análises, foram utilizadas teorias e conceitos de autores renomados na área, buscando uma fundamentação sólida e consistente. Nesse sentido, as dimensões exploradas foram a estrutural, linguística, interpretativa, literária e estética, permitindo uma análise mais completa e profunda do poema escolhido. A metodologia utilizada permitiu uma análise crítica e reflexiva, buscando compreender as diferentes dimensões que compõem o poema e os efeitos provocados pela linguagem poética da autora. Por fim, a pesquisa contribui para a compreensão e valorização da poesia contemporânea e das vozes que lutam por representatividade e reconhecimento em nossa sociedade.

1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para Antonio Candido (2006), todo poema possui uma estrutura sonora, com uma melodia própria na organização de sons, podendo ser sutil a ponto de não se diferenciar da prosa. Entretanto, o poema escolhido para fazer parte desse ensaio possui sonoridade interna de forte expressão. Na esteira da proposição de Candido (2006, p. 70), “os elementos abstratos são legítimos quando parecem transpostos para o mundo das formas, ou quando vêm amparados em imagens e sequências que denotam a força sensorial”.

Originalmente, a criação de poemas exigia técnicas rigorosas relacionadas ao ritmo, uso de frases curtas, havia melodia, organização das palavras com ritmo e sonoridade, regras para declamar. Esses fatores que contribuíam “para encantar e envolver os ouvintes, e facilitar a compreensão e, de modo especial, a memorização” (OLIVEIRA; CASTRO, 2006, p. 31).

A evolução das formas de escrever poesia foi levando os poetas a escrever de modo cada vez mais livre. Eles descobriram que poesia é mais que um texto rimado, de sílabas contadas, com musicalidade ou esquema definido de composição. Atualmente referimo-nos à poesia como algo mais geral, com várias formas, o poema é apenas umas das formas de se fazer poesia. Um texto pode ser poético e não ter a forma de poema. A essência da poesia deixa de ser a forma e passa a se concentrar no uso da linguagem, na maneira especial de tratar das coisas, ideias e sentimentos (OLIVEIRA; CASTRO, 2006, p. 31).

Uma vez que estética dos poemas pode variar conforme a escolha do autor, que pode trabalhar a arte poética considerada tradicional envolta pela métrica e pela harmonia melódica das rimas, este também pode conferir ao poema uma configuração livre, sem medidas estanques e com formas diferentes de trabalhar a sonoridade e de enfatizar o uso da linguagem, o que muito enriquece sua organização e produção de sentido.

Há entre a literatura e o leitor uma relação íntima do indivíduo que interpreta com base em sua interpretação de mundo, pensada a partir da literatura que ele acessa (JAUSS, 1979). Nesse sentido, o texto literário prioriza o prazer estético como experiência individual, incluindo não somente as emoções, mas a capacidade de o leitor refletir também, podendo causar sensações várias, tais como o incômodo e o desconforto, que ultrapassam o deleite.

A experiência estética não se esgota em um ver cognitivo (aisthesis) e em um reconhecimento perceptivo (anamnesis): o espectador pode ser afetado pelo que se representa, identificar-se com as pessoas em ação, dar assim livre curso às próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazerosa, como se participasse de uma cura (katharsis). (JAUSS, 1979, p. 86).

Desse modo, há a passagem do prazer estético passível de sensibilidade para o intelectual, a razão. Conforme o autor, o prazer estético abarca poiesis, aisthesis, katharsis. A poiesis consiste no efeito em que o leitor se percebe como coautor de uma obra; a aisthesis refere-se às percepções novas da realidade e a katharsis está associada às transformações sofridas pelo leitor ao interagir com o texto literário, uma vez que podem ocorrer mudanças de convicções e de ações relacionadas ao mundo.

A literatura, nesse sentido, é uma linguagem que possui diversos elementos e componentes textuais, entrando em uma relação tensa e complexa em seus aspectos composicionais. Por isso, ao realizar a análise de textos literários, faz-se necessário olhar, acima de tudo, a organização de sua linguagem. Segundo Culler (1999, p. 66): “Uma parte crucial da poética é uma explicação como os leitores fazem para interpretar as obras literárias – quais são as convenções que possibilitam entender as obras como eles as entendem”.

O foco nas variações históricas e sociais dos modos de ler enfatiza que interpretar é uma prática social. Os leitores interpretam informalmente quando conversam com amigos sobre livros ou filmes; interpretam para si mesmos à medida que leem (CULLER, 1999, p.67).

Além disso, o modo poético do poema consiste no uso das metáforas, visto que a metáfora é considerada, por vezes, como a própria poesia, ainda que o texto não se alinhe a outras “características” consideradas tradicionais à poesia, como o emprego de rimas e de regularidade rítmica. Para analisar a arte literária, faz-se necessário, portanto, considerar não somente o tempo presente, pensando em uma prática atual, mas a articulação dos tempos construída a partir da materialidade da linguagem. A esse respeito, afirma Agamben (2009, p. 59):

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter o olhar fixo sobre ela.

Na adesão ao tempo por meio da dissociação, há uma perda de continuidade, pois a manutenção de um olhar estável e atento no presente, segundo Agamben (2009), consiste em não perceber a contemporaneidade. Nesse particular, ser contemporâneo constitui retirar o lugar-comum temporal na tentativa de entender se encontra fora e dentro de si, paradoxalmente.

Para o autor, a contemporaneidade possui uma relação individual com o tempo, em um movimento de aproximação e afastamento. O que configura que a imersão no próprio tempo não pode configurar o contemporâneo, porque, imersa nele, não consegue percebê-lo. Dito de outro modo, não há a adesão da pessoa com sua época, pois ela não realiza uma interpretação crítica, não considerando o cotidiano político e social, não sendo por isso uma prática contemporânea. O contemporâneo equivale a se posicionar criticamente, mostrando os problemas de uma época, buscando saídas para resolvê-los (AGAMBEN, 2009).

A contemporaneidade possui, desse modo, uma relação arcaica (da ordem da arkhé), pois, para ser contemporâneo, faz-se necessária uma relação com a origem, como a infância contínua presente, que se faz presente na vida adulta; o passado é a origem que acompanha a trajetória do sujeito, constitui-se seu histórico e por ele age e se atualiza. Nesse caminhar do tempo, pode ocorrer uma divergência, uma ruptura, rompendo a inércia do tempo linear presente, trazendo um olhar novo relacionado ao tempo passado e ao próprio presente.

Isso significa que o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá- lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de ‘citá-la’ segundo uma necessidade que não provém do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. É como se aquela invisível luz, que é o escuro do presente, projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de responder às trevas do agora (AGAMBEN, p.72).

Portanto, a contemporaneidade pode ser entendida como relação do indivíduo e seu tempo ou outro tempo que seu olhar vislumbra, produzindo e identificando pontos que vão se desenrolando em sua obra (poética, neste caso).

2 ANÁLISE ESTRUTURAL DO POEMA

Tendo nascido de um trabalho meticuloso de análise em uma disciplina de Introdução às Teorias do Gênero Poético, em nível de pós-graduação, optou-se, neste artigo, em segmentar a análise e descrever-se as etapas de sua realização, não apenas para colocar em cena o trabalho intelectual investido nesse processo, como também para tornar explícito seu caráter didático, expresso por esse procedimento metalinguístico de organização do texto do artigo.

Para realizar a análise que se apresentará a seguir, o poema, apresentado em sua íntegra na Introdução, se encontra agora reproduzido em uma versão escandida, com a numeração à esquerda dos versos na posição em que se encontram no texto poético, e, à direita, com a apresentação da quantidade de sílabas que compõem a métrica do poema, o que possibilitar perceber, logo de início, sua estrutura métrica irregular e suas estrofes com quantidade de versos variável. Segundo Candido (2006), a literatura moderna e contemporânea rompeu com os padrões clássicos de metrificação; houve uma dessonorização da poesia, esta tornou-se mais discreta e o poema se aproximou da prosa, optando os poetas, com maior frequência, pelo verso livre, que também proporciona o prazer estético ao leitor. O poema Poesia Negra, nesse sentido, possui essas qualidades.

POESIA NEGRA³
Luna Vitrolira

  1. a/pa/nhei/ por/ ser/ gor/da (6)
  2. me/ni/na/ pre/ta e/ po/bre (6)
  3. cres/ci an/sian/do/ pe/lo/ di/a (7)
  4. em/ que/ mi/nha/ pe/le/ aos/ pou/cos (8)
  5. co/me/ça/ria a/ cla/re/ar (7)
  6. dei/xei/ de/ ir/ à/ pra/ia (6)
  7. de/ brin/car/ na/ rua (5)
  8. u/sei/ man/gas/ lon/gas/ pra es/con/der os/ bra/ços/ do/ sol/ (14)
  9. meu/ ca/be/lo/ que/ não/ ti/nha/ gra/vi/da/de (11)
  10. e/ra/ cres/po e/ se a/ga/rra/va/ nas/ coi/sas (10)
  11. a/li/sei (3)
  12. não/ e/ra/ bo/ni/ta (5)
  13. não/ e/ra/ ma/gra (4)
  14. não/ e/ra/ bran/ca (4)
  15. e/ra/ gor/da/ me/ni/na/ pre/ta e/ po/bre (10)
  16. nin/guém/ me a/vi/sou/ que a/pa/nha/ria/ po/r i/sso (11)
  17. Nin/guém/ me a/vi/sou/ que/ não/ se/ria a/ma/da/ po/r i/sso (13)
  18. mo/rri/ vá/rias/ ve/zes/ e/ vá/rias/ ve/zes/ so/nhei/ ser/ mu/la/ta (16)
  19. mu/lher/ fru/ta/ de/ssas/ que/ ao/ me/nos/ é/ de/se/ja/da (14)
  20. a/tra/ir/ o/lhar/ de/ ho/mem/ bran/co/ que/ não/ me/ xin/ga/sse (15)
  21. que/ não/ me/ ba/te/sse a/ mão/ na/ ca/ra (9)
  22. sai/ daí/ bom/bril/ (4)
  23. ca/be/lo/ pi/xain/ (5)
  24. sa/ci/ (2)
  25. car/ne/ de/ va/ca (4)
  26. e/ra/ eu/ (3)
  27. tu/do i/sso/ e/ra/ eu/ (6)
  28. e/ ti/nha/ gen/te/ que/ di/zia/ (8)
  29. ei/ta/ que/ e/ssa/ me/ni/na/ deu/ sor/te (10)
  30. vai/ sa/ir/ da/ sen/za/la (6)
  31. nas/ceu/ com/ na/riz/ a/fi/la/do e/ nem/ é/ tão/ es/cu/ri/nha/ a/ssim/ (18)
  32. vai/ cla/rear/ quan/do/ cres/cer/ (7)
  33. é/ só/ ter/ pa/ciên/cia/ que/ vai/ ser/ par/da (10)
  34. par/da/ po/de/ria/ ser (5)
  35. ra/inha/ (2)
  36. deu/sa (1)
  37. mu/sa/ de/ po/e/ta (5)
  38. se/reia/ (2)
  39. po/de/ria/ ter/ voz/ (5)
  40. lu/gar/ na/ me/sa/ da/ sa/la (7)
  41. par/da/ po/de/ria/ ser (5)
  42. par/da/ na/da/ mu/dou/ (6)
  43. e eu/ gor/da/ me/ni/na/ par/da/ e/ po/bre (10)
  44. con/ti/nuei/ a/pa/nha/ndo (6)
  45. a/té/ des/co/brir/ que/ deus/ (7)
  46. é/ u/ma/ mu/lher/ pre/ta (6)
  47. e/ me a/cei/ta. (3)

2.1 Métrica

Para medir a métrica do poema, os versos foram numerados pelo lado esquerdo e consta que ele possui 47 versos e 16 estrofes que estão com a quantidade de sílabas do lado direito, entre parênteses.

A métrica diz respeito à forma de medir os versos de um poema para possibilitar sua classificação quanto ao número de sílabas. Há três formas de proceder à contagem poética das sílabas, é importante mencionar que a contagem da sílaba poética difere da contagem da sílaba gramatical.

A contagem poética vai até a última sílaba tônica do poema, se uma sílaba poética terminar em vogal átona e a sílaba seguinte se iniciar por vogal ou h (que não possua som), as sílabas podem se unir em uma só e quando há a presença de -rr e -ss, na contagem das sílabas poéticas, essas letras não se separam da vogal que vemem seguida.

2.2 Estrofes

O poema apresenta estrofes compostas, pois ele agrupa versos de medidas diferentes (heterométricos), fazendo com os versos do poema sejam livres.

2.3 Rimas e Ritmo

As rimas se relacionam à sonoridade dos poemas, por meio da aproximação sonora de palavras ou expressões. Todavia existem poemas cujos versos não rimam, por isso são denominados versos brancos. Quando as rimas que ocorrem no interior dos versos são chamadas rimas internas. Em se tratando de ritmo, ele se relaciona com a sonoridade e musicalidade dos poemas. É um elemento produzido intencionalmente conforme as palavras selecionadas pelo poeta.

O poema não possui rimas finais e possui ritmo irregular, contudo, combina consoantes que dão certa musicalidade ao texto. Seus versos são livres, não possuem medidas iguais, sendo, portanto, irregulares.

De acordo com Candido (2006), a rima não foi excluída no Modernismo em diante, entretanto, os poetas usaram liberdade em usar ou não. Eles empreenderam no uso do verso livre, por meio de ritmos pessoais. Na segunda fase do Modernismo houve mais frequência na liberdade para combinar. O autor conclui que o metro não é um aspecto superado, talvez nem seja superável completamente, pois a liberdade rítmica fez surgir nova musicalidade do verso, mais seca, beneficiada pelo movimento de desmelodiar e de aderir ao ritmo a ideia de ligação central, não sendo mais através do ritmo do metro que se tornou mais livre, se valendo das experiências do verso livre.

3 ANÁLISE LINGUÍSTICA DO POEMA

Poesia Negra é um poema narrativo, com voz poética que se expressa em primeira pessoa, sendo a narradora -personagem uma espécie de eu-lírico protagonista. Interpretar este poema, como interpretar qualquer obra de arte, constitui-se uma prática histórica e social, visto que ela trata da cultura de uma sociedade que, ao longo de sua história, insiste em sistematicamente posicionar o negro como um ser diminuído, pautados na história da escravização de negros desde a chamada época das descobertas que mudaram o mundo. Devido à extensão do poema, optou-se em organizar análise de cada estrofe separadamente para melhor apresentação das informações.

Estrofe 1

A primeira estrofe é um dístico que possui aliterações do fonema [p] bilabial que causa um som explosivo e a combinação do par labiodental surdo/sonoro [d]/[t]. Além disso, há a repetição de /r/ em coda2 = [por/ser], dado que prolonga a sílaba final, dependendo da pronúncia. Em seguida, ocorre a repetição de /r/ em sílaba complexa que parece encurtar a sílaba.

apanhei por ser gorda/Menina preta e pobre

A repetição das consoantes produz harmonia devido à sucessão de timbres.

Estrofe 2

Marcada por vogais altas [i/u], produz um efeito de elevação da voz. A palavra “ansiando” possui duas sílabas nasais /an/ que conferem melodia para o primeiro verso da estrofe.

cresci ansiando pelo dia/ em que minha pele aos poucos/ começaria a clarear

A repetição da vogal “a” nos verbos “cresci” e “clarear” cria uma assonância, que provoca no leitor uma sensação de melancolia e tristeza, pois a menina é forçada a desejar uma mudança em sua identidade para se sentir valorizada

Estrofe 3

Nos dois primeiros versos há assonância de vogais altas e no terceiro verso há a repetição de uma parte das palavras /-ngas/, a parte nasal dessa partícula sugere um deslisar suave, como se houvesse uma ação de discrição para praticar o ato de esconder; depois de esconder, por sua vez, há a repetição do som [s] como se fosse

uma escorregada.
deixei de ir à praia/de brincar na rua/
usei mangas longas pra esconder os braços do sol

Estrofe 4

Observa-se a repetição das labiodentais [t]/[d], a tepe /ɾ/ e a fricativa /s/ meu cabelo que não tinha gravidade/era crespo e se agarrava nas coisas. A aliteração [t]/[d] produz um som contido que se agrava com a aliteração da tepe /ɾ/. Parece conter o cabelo da mulher e em seguida a fricativa produz a ideia de esticar e o resultado encontra-se na próxima estrofe.

Estrofe 5

Trata-se de uma estrofe única, denominada monóstico, e que resume o que aconteceu com o cabelo da personagem, em forma de arremate, que, ao ser “esticado” na estrofe anterior, acaba se tornando “alisado”. A assonância da vogal alta /i/, traz a sensação da tensão que começa no primeiro [i], o som [s] promove o efeito de esticar que termina no segundo [i].

alisei

A estrofe resume uma transformação da personagem preta que vem se delineando ao longo das estrofes anteriores em seu processo de rejeição dos padrões impostos pela crítica social racista, ao tornar evidente os valores estéticos a que o sujeito negro, com destaque para a mulher, neste caso, tendem a ser submetidos pela razão da branquitude.

Estrofe 6

A repetição das palavras atrai o que foi dito na primeira estrofe, ao negar as características que a personagem não tem, além de enfatizar o problema que a protagonista pretende denunciar.

não era bonita/ não era magra/ não era branca

A terminação dos versos em -a é uma marca associada ao gênero feminino, demarcando fortemente o eu poético.

Estrofe 7

Há a retomada da primeira estrofe, confirmando que o físico da protagonista continuava o mesmo, reforçado pela sexta estrofe, o que promove uma redundância para a mensagem que o poema transmite. O uso das consoantes labiodentais [d]/[t] e da bilabial /p/ traz um ritmo explosivo à voz da protagonista.

era gorda menina preta e pobre

Esse recurso produz a sensação da vivência de um problema relevante para a constituição do ser mulher gorda, preta e pobre.

Estrofe 8

A repetição de palavras no início e no final dos dois versos que compõem a estrofe oitava produz o efeito de uma parada da voz poética para raciocinar sobre os sentimentos da personagem-protagonista, trazendo a sensação da falta de clareza sobre as condições relativas à sua autoestima e raça.

ninguém me avisou que apanharia por isso ninguém me avisou que não seria amada por isso

O reforço da constatação dessas condições pode ser expresso pelo uso da assonância da vogal alta /i/ que dá ênfase ao dito. Além da repetição do ditongo -ia formador do futuro do pretérito, parece aumentar a dor da alma da protagonista do poema narrativo.

Estrofe 9

A aliteração da consoante vibrante /r/ e a repetição da expressão /várias vezes/ enfatizam o sonho da protagonista; a assonância das vogais altas i/u, intensifica ainda mais essa ênfase em função do mecanismo de reiteração.

morri várias vezes e várias vezes sonhei ser mulata mulher fruta dessas que ao menos é desejada

Aqui, observa-se uma rima interna entre mulata e fruta, que usam a vogal -a, associada ao gênero feminino.

Estrofe 10

O uso das fricativas /s/ formadoras do pretérito imperfeito do subjuntivo resulta em rima interna:

atrair olhar de homem branco que não me xingasse/que não me batesse a mão na cara

O dígrafo /ss/ é um fonema sibilante que produz um som sussurrado que mais parece uma fala somente para si. Talvez porque o desejo da personagem busca a aceitação de sua condição de vida.

Estrofe 11

Percebe-se a fala imperativa do gênero masculino que usa metáforas para representar o que ele pensa sobre o físico da protagonista: bombril = cabelo crespo; pixaim = crespo, encaracolado; saci = negra; carne de vaca = gorda.

sai daí bombril/ cabelo pixain/ saci/ carne de vaca

A estrofe é uma fala direta do homem, em que se pode ler o homem como metonímia da sociedade, com suacultura preconceituosa e racista que vê o cabelo crespo como ruim, em contraposição com o do branco, considerado bom.

A estrofe inteira ecoa essa voz da sociedade e a assonância da vogal alta /i/ confere ênfase e força a ela.

Estrofe 12

O pronome indefinido /tudo/ acompanhado de /isso/ resume tudo o que a protagonista era, ela ainda repete /era eu/. Essa combinação morfossintática mostra que ela acabou aceitando ser o que a voz da sociedade gritou em seu ser. Ainda nessa estrofe, no último verso ela anuncia o que a sociedade dizia.

era eu/ tudo isso era eu/ e tinha gente que dizia

A vogal alta /i/ reforçou a voz mencionada.

Estrofe 13

Esta estrofe apresenta novamente a voz da sociedade. Aqui ela é, no entanto, representada por qualquer gênero, pois emprega o substantivo /gente/ que indica qualquer pessoa. O substantivo /sorte/ reforça a ideia de uma sociedade que não aceita a cor da pele da protagonista, fazendo uma analogia com a história através do substantivo senzala que representa a escravidão dos antepassados. Ademais, traz a tendência que a sociedade tem de não aceitar a pessoa como ela é, usando uma desculpa na tentativa de ver um ser a seu modo. Isso pode ser conferido nas expressões /narizafilado/, /nem é tão escurinha assim/, /vai clarear/ e /vai ser parda/.

eita que essa menina deu sortevai sair da senzala
nasceu com nariz afilado e nem é tão escurinha assimvai clarear quando crescer
é só ter paciência que vai ser parda

Com relação à sonorização, a sílaba /za/ do substantivo /senzala/ rima com junção das palavras nari/za/filado, na oralidade.

Estrofe 14

A décima quarta estrife possui sete versos, sendo três deles compostos por uma única palavra, todas terminadas com a vogal /a/, enfatizando o gênero feminino e trazendo papeis considerados positivos para a sociedade, destinados à mulher parda.

parda poderia ser/ rainha/ deusa/ musa de poeta/ sereia/ poderia ter voz/
lugar na mesa da sala

No entanto, os substantivos /sorte/ e paciência, indicam que provavelmente vai ser assim, conferindo um certo tom melancólico ao fado da voz.

Estrofe 15

Esta estrofe tem início com a última palavra do último verso da estrofe anterior, constituindo um paralelismo por repetição, o que acaba por reforçar a ideia de que, fosse parda, ela poderia ser o que foi elencado nessa estrofe, confirmando a probabilidade.

parda poderia ser

Nesse verso-estrofe há o uso da aliteração da tepe /ɾ/ que cria um efeito sonoro e rítmico na poesia. No verso-estrofe em questão, o uso da aliteração é uma forma de enfatizar a ideia de mudança física da menina, retratando a transformação que ela sofre ao longo do tempo para tentar se adequar aos padrões sociais impostos a ela.

Estrofe 16

A última estrofe mostra que, ao se tornar parda, a vida da menina continuou a mesma, houve apenas a substituição de preta para parda. Ela continuou nas mesmas condições e descobriu ao fim que não foi aceita pela sociedade, mas encontrou /deus/ minúsculo no poema, ele era mulher preta e a aceitou. Essa estrofe sugere que ela encontra não um ser superior, ela não grafa a palavra Deus com letra maiúscula, pois sua intencionalidade consiste em apresentar que encontrou um ser superior que a aceitasse e sim alguém que se iguala às suas condições.

parda nada mudou/ e eu gorda menina parda e pobre/ continuei apanhando/ até descobrir que deus/ é uma mulher preta/ e me aceita.

Observa-se que a ausência de pontuação no poema é um recurso estilístico que ajuda a criar um efeito de continuidade e fluidez na leitura, como se as ideias estivessem conectadas e em constante movimento. No entanto, o ponto final que aparece no final do poema tem um peso simbólico muito forte, pois representa a conclusão da jornada da protagonista em busca de sua identidade e aceitação na sociedade.

Ao afirmar que a protagonista foi finalmente aceita, o ponto final pode ser interpretado como um fim definitivo para a busca por aceitação, seja por ter encontrado a aceitação em si mesma ou por ter sido aceita pelos outros. Por outro lado, o ponto final também pode ser visto como um fim trágico, indicando a morte da protagonista, seja de forma literal ou simbólica, como a morte do sonho de ser aceita em uma sociedade que oprime os sujeitos marginalizados.

De qualquer forma, é importante destacar como a escolha de usar apenas um ponto final no poema ajuda a enfatizar a importância da mensagem transmitida pela voz da protagonista, que é a de resistência, luta e busca por identidade e aceitação.

4 ANÁLISE INTERPRETATIVA DO POEMA

O poema Poesia negra apresenta caráter narrativo e, por sua natureza discursiva, é proseado com a intencionalidade de dar voz ao sujeito oprimido pelo preconceito e que denuncia a discriminação social, racismo existentes na sociedade e os padrões de beleza impostos.

Já na primeira estrofe é apresentado o tema tratado no poema: a denúncia do preconceito contra a pessoa obesa, negra e pobre. Da segunda à sétima estrofe, a menina, personagem demonstra em sua narrativa que ela não se aceita, pois, espera que sua pele venha a clarear, evita ir a lugares públicos como a praia e a rua e usa mangas longas para seus braços não escurecerem mais com exposição ao sol. O seu cabelo afro foi alisado para se igualar com o do indivíduo branco. Não se achava bonita, não é magra e nem branca, está fora dos padrões impostos pela sociedade, visto que é gorda preta e pobre.

Ocorre um problema de identidade entre o corpo da menina e o padrão de beleza ideal para a sociedade, ao tentar ser como o branco, ela abdica de sua identidade, ainda que por certo tempo.

Da oitava à décima segunda estrofes, a menina lamentou que não foi avisada que apanharia e não seria amada por ser gorda, preta e pobre. Ela morreu várias vezes, sonhou ser mulata, mulher fruta desejada para atrair homem branco que a aceitasse sem xingar ou bater nela. Contudo, ela ouvia dele palavras que ofendiam sua etnia. Ela chegou à conclusão ela era tudo isso mesmo.

A estrofe treze traz novamente a voz da sociedade que considera que a menina vai deixar de ser escrava, porque nasceu com o nariz afilado e não era tão escurinha e que vai ficar clara quando crescer, tendo paciência, vai ser parda. Aqui se vê que a sociedade é hipócrita e ignorante ao pensar que dizer que a menina era parda, desconhecendo que continua afroascendente e que a discriminação não vai cessar.

Nas estrofes catorze e quinze, a menina acreditou que ao se tornar parda teria a importância de uma rainha, uma deusa, uma musa, uma sereia e poderia ter até voz e ter um lugar na mesa e tornou-se parda. Nesse trecho, há também perda de identidade pela crença de que mudou a cor da pele. Aqui há a consciência ou encobrimento da estética vivida através do corpo negro que marcou sua trajetória de vida.

Porém, na última estrofe, a menina constatou que ser parda não mudou sua condição de gorda e pobre, continuou apanhando da sociedade e descobriu isso quando encontrou Deus e ele era uma mulher negra que a aceitou. Aqui pode ser interpretada a morte da personagem ou a morte da mulher negra sem voz, renascendo uma mulher que denuncia e que luta por seu lugar na sociedade, e se assim for, o poema mostra a trajetória de uma menina negra, gorda e pobre que agora não aceita ser ignorada, desprezada, sem elevar sua voz para protestar contra uma sociedade preconceituosa e racista que acredita que melanina indica defeito moral e físico.

A análise do poema permitiu entender que os recursos estruturais poéticos, de natureza linguística, são muito importantes para se compreender um poema. Nessa obra literária, foi possível perceber a relevância da repetição, da metáfora, da aliteração e da assonância, por exemplo, na produção de sentido. Além disso, do uso de vocabulários na tentativa hipócrita de mascarar o problema do preconceito racial que em pleno século XXI está presente na sociedade.

A repetição permitiu atrair percepções de situações que estavam sempre incomodando a vida da protagonista   como as   expressões:   /gorda menina preta e pobre/, /era eu/, bem como o verbo /apanhar/ em mais de uma forma. Apanhar é uma metáfora de passar por situações de preconceito provenientes de uma sociedade que não aceita a diversidade.

Ao aproximar elementos repetidos ao longo do poema, há um efeito de mostrar que o problema segue a trajetória da menina. Também, a repetição enfatiza o problema apresentado pelo poema, mostrando sua permanência na vida dessa personagem. Essa técnica mostra regularidade, ritmo, atmosfera, e simultaneamente, chama a atenção para a situação vivenciada. Por isso, a repetição pode estar relacionada com mais de um nível, pois pode ser fonológico, sintático, semântico. A repetição pode ser uma redundância, mas no caso do poema foi espontânea e intencional para dar voz à menina que atendia a voz da sociedade e mostram como era seu cotidiano.

A utilização das palavras morena, parda buscam esconder esta situação social pela qual passam os negros, não somente no Brasil, mas no mundo. São palavras utilizadas por hipocrisia. Nesse contexto:

A estética corporal negra em um país que, apesar da miscigenação racial e cultural, ainda se apoia em um imaginário que prima por um ideal de beleza europeu e branco. Assim, considero que para o negro e a negra, a forma como o seu corpo e cabelo são vistos por ele/ela mesmo/a e pelo outro configura um aprendizado constante sobre as relações raciais (GOMES, 2019, p. 5).

A protagonista mostra em sua narrativa que ela própria tentou se adequar aos padrões da sociedade, por isso ela diz no verso 18 que morreu várias vezes. Isso porque ela deixava de ser ela mesma para atender às vozes da sociedade. No final, o leitor pode pensar em dois caminhos, a personagem está morta ou percebeu que ela deve seguir seu caminho, sem tentar mudar seu físico para atender ao sistema social que vê a beleza apenas nos padrões criados por ele, não permitindo a inserção de outros modos de ser e viver.

Dessa forma, a personagem passou pelo processo da contemporaneidade defendida por Agamben (2009), uma vez que ela vive o presente e volta à origem do problema que tem vivenciado em sua trajetória de vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O poema Poesia Negra, de Luna Vitrolira, representa a voz da mulher negra e gorda que, ao longo de sua vida, enfrenta o preconceito relacionado à cor de sua pele e à obesidade em que ela se encontra. Foi possível perceber que ao longo de sua trajetória de vida ela foi tentando encontrar sua identidade, enquanto se moldava para tentar seguir os padrões que a sociedade lhe impunha.

Cada mudança que ela fazia, anulava sua identidade, apagando o que ela era realmente. No final, ela entende que a menina preta ou parda recebia o mesmo preconceito, pois as tonalidades de pele não tiravam sua etnia, ela teria de ser ela mesma e denunciar através de sua voz individual em contraposição com as vozes da sociedade que a atacavam por meio do preconceito.

Os recursos linguísticos e estruturais do poema produzem sentido ao que foi denunciado pela menina, preta e gorda que se tornou uma mulher negra e determinada a ser o que é, sem calar sua voz. E assim a menina negra se tornou a mulher preta. O prazer estético no poema “Poesia Negra” de Luna Vitrolira pode ser encontrado em vários elementos presentes na obra.

Em relação ao prazer estético, observa-se que a escolha cuidadosa das palavras e a maneira como elas são arranjadas na estrutura do poema criam um ritmo e uma sonoridade que são agradáveis aos ouvidos. Além disso, a intencionalidade do uso de figuras de linguagem, como metáforas e aliterações, também acrescenta beleza e complexidade à obra.

Pode-se perceber na narrativa da protagonista que ela passou pela experiência estética de Jauss (1979) da poiesis, aisthesis, katharsis. No que diz respeito à poesis, o leitor pode se tornar coautor da obra de arte a partir que imagina detalhes em sua interpretação que pode não ser a mesma do autor. Quanto à aisthesis, ao longo da interpretação do leitor, ele percebe realidades novas que não segue o que parecia ser. No tocante à katharsis, ao longo do poema pode-se perceber as transformações sofridas pelo leitor em sua interação com o poema, resultando na percepção das mudanças ocorridas na vida da personagem, que ao final, deixou de viver esperando ser aceita pela sociedade, mas se aceita do modo como é realmente.

A obra é um exemplo de como a poesia pode ser utilizada como ferramenta de resistência e transformação social, sem abrir mão da beleza e da sensibilidade estética.


3Disponível em: < https://revistacontinente.com.br/secoes/video/-especial-poesia–luna- vitrolira>. Acesso em: 26/04/2023..

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. (trad.). Vinícios Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

CANDIDO, Antônio. O estudo analítico do poema. 5. ed., São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.

CULLER, Jonathan. Teoria literária. Uma introdução. São Paulo: Beca, 1999.

GOMES, Nilma Lino. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. BeloHorizonte: UFMG, 2019.

JAUSS, H. R. O prazer estético e as experiências fundamentais da poiesis, aisthesis e katharsis. In: LIMA, Luiz Costa (trad. e org.). A literatura e o leitor – Textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

OLIVEIRA, João Batista Araújo e; CASTRO, Juliana Cabral Junqueira de. Usando textos na sala de aula: tipos e gêneros textuais. Belo Horizonte: Alfa Educativa, 2006.

VITROLIRA, Luna. Aquenda – O amor às vezes é isso. São Paulo: V. de Moura Mendonça-Livros, 2018.


1 Doutoranda em Estudos de Linguagens (PPGEL/UFMS). Docente na Rede Estadual de Ensino de Mato Grosso do Sul.
2 Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul