A VEZ E A VOZ DOS PERSONAGENS NO CONTEXTO DA LITERATURA FANTÁSTICA: MARCAS DE UMA CONSTRUÇÃO

The characters’ turn and voice in the context of fantasy literature: marks of a construction

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11186857


Osana Santos Morais1
Orientador : Saulo Cunha de Serpa Brandão2


RESUMO

Este artigo apresenta um estudo de natureza crítico-analítica em torno dos personagens estruturantes dos contos A hora dos ruminantes de J. J. Veiga e o Seminário dos ratos de Lygia Fagundes Telles (1977). Seu propósito é investigar os mecanismos de construção dos personagens, bem como suas relações com o mundo fantástico em ambos os contos e parte da hipótese de que no contexto da literatura fantástica, embora todos os elementos da narrativa sejam importantes e decisivos para o alcance total de todo o imaginário por ela pretendido, são os personagens, aquelas figuras mais detidamente responsáveis para imortalizar todo o cenário de envolvimento capaz de verdadeiramente encantar o leitor. Diante disso, por meio de uma pesquisa bibliográfica de natureza interpretativa, foram recorridas as contribuições teóricas de Todorov (1972), Bosi (1987), Candido (1999), Fernandes (1992), Ceserani (2006), dentre outros. A pesquisa conclui que os personagens funcionam no corpo da narrativa fantástica como ferramentas indispensáveis para a construção bem articulada de todos os seus elementos e que sem eles a narrativa não se movimenta, não encanta, não deixa marcas no leitor.

PALAVRASCHAVE: Literatura fantástica; personagens; conto;

ABSTRACT

This article presents a study of a critical-analytical nature around the structuring characters of the short stories A hora dos ruminantes by J. J. Veiga and o Seminário dosrats by Lygia Fagundes Telles (1977). Its purpose is to investigate the construction mechanisms of the characters, as well as their relationships with the fantastic world in both tales and is based on the hypothesis that in the context of fantastic literature, although all elements of the narrative are important and decisive for the total reach of all the imagery intended by her are the characters, those figures most closely responsible for immortalizing the entire scenario of involvement capable of truly enchanting the reader. In view of this, through a bibliographical research of an interpretative nature, the theoretical contributions of Todorov (1972), Bosi (1987), Candido (1999), Fernandes (1992), Ceserani (2006), among others, were used. The research concludes that the characters function in the body of the fantastic narrative as indispensable tools for the well-articulated construction of all its elements and that without them the narrative does not move, does not enchant, and leaves no mark on the reader.

KEYWORDS: Fantastic literature; characters; tale;

Conversando com quem gosta de conversar

Que características podemos destacar como sendo aquelas que imortalizam a construção de um personagem fantástico? É sobre isto que abordaremos neste artigo. Conversaremos sobre a construção de personagens e suas relações com o mundo fantástico nas narrativas literárias contemporâneas e para ativar o caminho das nossas lembranças quanto aos contos e personagens que mais deixaram marcas na nossa vida de leitores, mergulhemos naquilo que Lygia Fagundes Telles nos ensina:

Um conto pode dar assim a impressão de ser um mero retrato que se vê e em seguida esquece. Mas ninguém vai esquecer esse conto-retrato, se nesse retrato houver algo mais além da imagem estática. O retrato de uma árvore é o retrato de uma árvore. Contudo, se a gente sentir que há alguém atrás dessa árvore, que detrás dela alguma coisa está acontecendo ou vai acontecer, se a gente sentir, intuir que na aparente imobilidade está a vida palpitando no chão de insetos, ervas – então esse será um retrato inesquecível (Telles, entrevista concedida a Clarice Lispector e publicada ao Templo Cultural Delfos, Elfi Kurten Fenske, Ano VIII, 2018).

Labutaremos na busca desse “algo mais” evidenciado na construção dos personagens de Telles no contexto do Conto Seminário dos ratos (1977) e a seleção desta obra para análise se justifica pela elevada habilidade de produção da escritora, dona das mais altas avaliações críticas, dentre elas:

Lygia tem a capacidade de fecundar a narrativa com uma composição que encanta e apreende a realidade pelos aspectos mais inesperados, traduzindo-a de modo harmonioso e tanto no conto quanto no romance, tem realizado um trabalho ainda em pleno desenvolvimento, sempre válido e caracterizado pela serena maestria (Candido 1999: 92).

Outra referência igualmente estruturante das discussões propostas neste estudo serão as contribuições do escritor José J. Veiga, considerado pela crítica como um dos mais importantes romancistas e contistas de ficção contemporânea do Brasil e do mundo. Dele traremos para o palco de análise o perfil dos personagens estruturantes do conto “A Hora dos Ruminantes” (1972), buscando investigar o inusitado perfil de seus personagens e de toda a sua trama tão bem avaliados pelos críticos, como explica o historiador Ramir Curado:

Veiga escreve suas obras como se fosse uma criança narrando, explora as lembranças de sua infância vivida na cidade de Corumbá de Goiás. Suas narrativas são estruturadas em ambientes fictícios, com nomes estranhos, inusitados, curiosos que acompanham perfeitamente o inusitado perfil de seus personagens e de toda uma trama, naturalmente reveladora de realidades interioranas, fiel aos costumes de um povo, quem conhece, sabe que aquilo é Goiás puro, flagrado com verdade e fidelidade (Curado 2018: s.p.).

Essa imagem mental que o leitor costuma fazer à medida que desenvolve a leitura dos romances veiguianos, de modo a fazê-lo visualizar as coisas e naturalmente dizer “é aquilo mesmo” encontra imediata explicação na forma como Veiga gostava de labutar seus textos:

Gosto de que todos os objetos e situações sejam visualizados por quem lê. Procuro dar o máximo de informações para que o leitor possa ver o objeto. E também olho muito para fixar a imagem dele e para tentar reproduzi-lo depois com palavras, de modo que o leitor o veja (Veiga 2015: s.p.).

Sinalizamos até aqui, os objetos norteadores de reflexão para a produção deste estudo cujo propósito basilar será a tarefa de relancear o olhar sobre a dinâmica de produção da literatura fantástica contemporânea na tentativa de ampliar o nosso horizonte de leitura em torno de seus temas e personagens.

Neste contexto, nosso foco de análise recairá sobre a construção dos personagens e suas relações com o mundo fantástico nas narrativas de ambos os contos. Serão elementos de estudo, portanto,  a especificidade dos enredos, a trama que produzem, a linguagem que empregam, as palavras escolhidas que tocam a emoção do leitor, que acabam por desarmá-lo e prepará-lo para uma nova forma de entender narrativas que falam do seu próprio mundo, conforme a compreensão de Calvino (2004: 09-10), quando ressalta que o tema da literatura fantástica é, na verdade, a relação entre a realidade do mundo habitado e conhecido pelos humanos, através da percepção e da realidade do mundo, do pensamento que mora em cada ser e que o comanda.

Priorizaremos como referência pontos de análises mais pormenorizadas a partir dos estudos de Todorov (1972), quando aborda as categorias da narrativa literária, compreendendo a lógica das ações, os personagens e suas relações, os acontecimentos que unem esses personagens, enfim, visualizar o personagem no qual o ato é centrado.

 Do ponto de vista metodológico, os procedimentos utilizados na estruturação do nosso objeto de pesquisa se caracterizam na especificidade da análise dos contos O Seminário dos Ratos (1998) e A Hora dos Ruminantes (1972) de José J. Veiga. Iremos ancorar a análise dos objetos na Análise Estrutural da Narrativa, como delimitada por Tzetan Todorov (1972). Buscaremos traçar características estruturais e temáticas nos contos de Veiga e Telles que evidenciem o mecanismo de criação do mundo dos personagens na literatura fantástica, na tentativa de investigar como acontece o processo de realidade e de sobrenaturalidade na atuação  dos personagens no universo desses contos, investigando, lendo, refletindo aquilo que a teoria coloca quanto ao fato de que cada personagem, no desenvolver das ações, sofre “transformações pessoais” (Todorov 1972: 60), ou melhor, buscar compreender o ciclo de transformações que movimentam a narrativa fantástica a partir das ações e dos sentimentos de seus  personagens. Bosi (1987), Candido (1999), Fernandes (1992), Ceserani (2006), dentre outros, também serão trazidos como forma de maior fundamentação do proposto.

A seguir, detalharemos a ação e o papel das personagens no contexto de ambos os contos, tendo como referência de análise a contextualização das ideias de Todorov ao orientar a importância de se relancear o olhar sobre esses dois eixos:  ação e personagem. Para tanto, valemo-nos da leitura do texto Os homens- narrativas, nele Todorov através de uma retomada dos estudos do escritor anglo- americano Henry James (1843-1916), contesta a supremacia do patamar de importância do personagem sobre as ações quando aquele instiga a ideia de que o personagem é determinante da ação e que a ação é mera ilustração da personagem, contesta também o destaque que Henry James confere aos caracteres psicológicos do personagem, ou seja, as forças ocultas que agem sobre o personagem, suas emoções, suas paixões e suas intenções e propõe um novo olhar de análise, levantando a bandeira de que devemos compreender a ideia de personagem como sendo uma história virtual da vida do próprio personagem e que a cada nova personagem criada no contexto da narrativa tem-se na realidade,  espaço aberto para novas intrigas. Ressalta ainda que quando nos deparamos com narrativas cheia de muitos personagens, estamos sim, no reino dos homens-narrativas e que esse fato afeta profundamente a estrutura da narrativa. Em suas próprias palavras:

A personagem não é sempre, como pretende James, o determinante da ação; e nem toda narrativa consiste numa “descrição de caracteres”. Mas o que é então uma personagem? As Mil e Uma Noites nos dão uma resposta muito clara, que retoma e confirma o Manuscrito Encontrado em Saragossa: a personagem é uma história virtual que é a história de sua vida. Toda nova personagem significa uma nova intriga. Estamos no reino dos homens-narrativas. Esse fato afeta profundamente a estrutura da narrativa (Todorov 2006: 122).

Observamos que embora Todorov conteste o total e permanente determinismo do personagem sobre a ação, conforme defendia Henry James (1843-1916), não desconsidera a sua importância enquanto pedra fundamental nas narrativas, uma vez que, na opinião do autor, é a partir do personagem que se organizam os outros elementos da narrativa.

É em meio a este reino dos homens-narrativas que embarcaremos no universo diversificado das intrigas que foram construídas por dois grandes enunciadores: Veiga e Telles. Buscaremos descrever a riqueza com que esses escritores encaixaram o “eu estou aqui agora” (Todorov 2006: 123) de cada nova personagem em ambos os contos dando completude a uma narrativa fantástica tão bem visualizada e produzida por esses grandes enunciadores.

Entre Ratos e Ruminantes: O trabalho criador dos personagens

A precisão com que Veiga e Telles empregam a linguagem em seus contos parece ser fruto de uma pesquisa detalhada de cada uma das palavras usadas para construir e caracterizar seus personagens, grande parte deles representada por animais antropomorfizados.

Observamos no estilo de cada escritor, a apresentação de um enredo fantástico, um recurso de vozes inquietantes, de figuras bizarras, enfim, da abordagem de acontecimentos inesperados, confusos que acontecem de forma gradual, começando sutilmente e terminando com densidade, com hiperbolismo, aproximando-se talvez do bizarro e alegorizando talvez, um momento histórico, tendo em vista que ambas as narrativas se assemelham ao apresentar ao público leitor uma espécie de interlocução simbólica entre a ideia de liberdade e opressão do homem em tempos de repressão e em tempos de paz, sobretudo, uma interlocução simbólica com aspecto da realidade circundante do Brasil e do mundo contemporâneo marcada por graves crises políticas e o desejo de revitalização da democracia a partir da sociedade.

É evidente que em ambos os contos, a literatura fantástica cumpre largamente um papel de firme contestação e, neste papel, a presença, o perfil e as ações dos personagens criados merecem uma abordagem mais alongada.

 Quando olhamos para a produção de Veiga, constatamos aquilo que Alfredo Bosi destaca quanto ao fato de que sua produção literária “encrava situações de estranheza em um contexto familiar, que evoca discretamente costumes e cenas regionais” (Bosi 1987: 20-21).

Esses traços de regionalismo são marcas que ajudam a contextualizar a criação de personagens cujas ações prendem-se à ideia de pertencimento à terra, à região. Em outras palavras, observamos que Veiga construiu uma linguagem caracterizadora de seus personagens fincada em dois parâmetros: realidade e fantasia. Ou seja, apesar de ter construído uma linguagem enriquecida de marcas identitárias de um espaço físico e histórico bem definido, explorou também, no desenvolvimento da sua fábula, uma espécie de suspensão de vínculos entre causa e efeito, instaurando uma constelação de acontecimentos perturbadores para os quais temos a presença de diferentes personagens personificando cada momento da narrativa, fazendo acontecer no corpo da narrativa a ideia todoroviana do “eu estou aqui agora” anunciativa de cada novo personagem tecido na costura do conto fantástico que se estrutura em três partes bem definidas:  A chegada, o dia dos cachorros e o dia dos bois.

Identificar, sentir e até mesmo entender o papel da personagem em um enredo fantástico permite ao leitor ampliar o leque de percepções em torno da criação de cada um deles, compreendendo no bojo da narrativa o viés de personificação passível de significados múltiplos e aspectos duais criativamente planejados no ato de sua criação.

Assim o processo criativo que inicia a narrativa de Veiga a partir  da personificação da cidade de Manarairema, figura de  construção simbólica, viva e atuante ao longo de toda a trama, exemplificando no ato criativo do escritor aquilo que Quelas (2005: 03) denomina de  constelação de acontecimentos perturbadores:  “Manarairema vai sofrer a noite” (Veiga 1972: 2);  “Manarairema esperou impaciente” (Veiga 1972: 4); “Manarairema foi dormir pensando nos vizinhos esquivos e fazendo planos para tratar com eles quando chegasse a ocasião” (Veiga 1972: 4);  “Manarairema já não se preocupava tanto com os homens, e quando alguém falava neles era como quem se refere a realidades familiares — o calor, doenças, a carestia — o acostumado, o absorvido” (Veiga 1972: 11); “— Quem havia de dizer que Manarairema ia mudar em tão pouco tempo?” ” (Veiga 1972: 36); “Manarairema estava condenada” (Veiga 1972: 36); “Manarairema já estava no limiar da morte, e só um milagre a salvaria” (Veiga 1972: 71).

Toda a ambientação da obra encontra-se ancorada na personificação de Manarairema e os demais personagens que movimentam o enredo, não menos alegóricos contribuem para o enriquecimento de cenas que perturbam os sentidos, de forma bem expressiva como são as passagens em que os personagens da história são obrigados a enfrentar duas estranhas invasões, a primeira por centenas de cães e a segunda por milhares de bois.

Novamente estamos diante da criação de novas personificações dentro da narrativa: cães e bois. Tudo isso narrado a partir da perspectiva de um realismo fantástico calcado no eixo da hesitação, na fabulação de um enredo estranho caracterizado pela interrupção da normalidade a partir da invasão de visitantes guiados por motivação secreta, por vezes, cruéis. O trecho a seguir destaca a invasão dos cães:

A vaga de pelos, de dentes, de patas, de rabos, de uivos chegou inteira e logo se espalhou por toda a parte farejando, raspando, acuando, regando pedras, barrancos, muros, raízes de árvores, unhando portas, choramingando, erguendo-se nas patas traseiras para ver se descobriam nas salas alguma coisa digna de atenção e era repelida pelos moradores a varadas, lambadas, pauladas, até a tapas e chineladas (Veiga 1972: 34-35).

 O trecho ilustra mais uma vez a marcas da fabulação do estranho, bastante evidenciadas na produção de Veiga através da ilustração precisa de um local ilhado, sitiado, oprimido, exemplo de espaço de imobilismo e insólita normalidade em que cães subjugam a população a condições de vida humilhante.

A personificação dos bois ambientada na terceira parte da obra acontece de forma gradual, começando sutilmente e terminando com densidade, com hiperbolismo, marcas características da construção do fantástico na produção de Veiga. A linguagem de seus contos às vezes encerra cenas bizarras, grotescas, por vezes absurdas capazes de suscitar reflexões de caráter existencial provocando desalentos.

Fazia dias que os bois vinham aparecendo aqui, ali, nas encostas das serras, nas várzeas, na beira das estradas, uns bois calmos, confiantes, indiferentes. As marcas que mostravam nada esclareciam, ou eram desconhecidas na região ou muito apagadas, difíceis de ser recompostas. Bom: são bois vadios, desgarrados de boiadas; qualquer dia os donos vêm buscar, ou eles mesmos desaparecem assim como vieram — sem aviso, sem alarde. Isso pensava-se, mas não foi o que aconteceu. Longe de ir embora, os bois se chegaram mais e em grande número. (…) Encheram os becos, as ruas, desembocaram no largo. A ocupação foi rápida e sem atropelo; e quando o povo percebeu o que estava acontecendo, já não era possível fazer nada (Veiga 1972: 83- 84).

Em ambos, as invasões, a presença dos animais, cachorros e bois simbolizam a ideia de uma violência que se instala sem resistência. Os animais aparentemente parecem não serem responsáveis direto pela violência, “foi ficando claro que os cachorros não estavam interessados em morder ninguém (Veiga 1972: 37)”, todavia, ao metaforizá-la imprimem-na e implantam na cidade um regime de opressão que, estranhamente, provoca um comportamento de subserviência em todos os seus habitantes: “nas ruas, se um cachorro se aproximava de um chafariz, não faltava quem corresse com as mãos em cumbuca para poupá-lo do incômodo de beber da boca.” (Veiga 1972: 37).

Causa espanto essa passividade coletiva que se instaurou na cidade, “cachorros estranhos” dormindo nas passagens eram mais valorizados que crianças ou velhos. Tentativas de afagos, palavras mansas, agrados de comida, estalos de dedos, inúmeras formas de boa convivência foram exercitadas pelas pessoas daquela cidade, instalou-se uma harmonia social entre a figura do opressor e a figura do oprimido: “De repente ficou parecendo que todo mundo adorava cachorro, quanto mais, melhor, e só tinha na vida a preocupação de fazê-los felizes” (Veiga 1972: 36). Talvez, aqui em Veiga, o oprimido (o povo) não tenha consciência de seu estado de opressão. Essa não consciência, associada a esse curioso espírito de passividade coletiva, sustenta a trama fantástica durante todo o conto, tanto na invasão dos cães, quanto na invasão dos bois.

Em meio a tudo isso, Veiga introduz personagens que retratam bem o povo das “cidades miúdas”, conforme destacam os estudos de Samira Campedelli:

O mundo que Veiga traz para as páginas de seus livros retrata bem esse povo das “cidades miúdas”, como ele fala.  Povo que ainda não foi atingido em cheio pela dita civilização moderna e sequer ouviu falar em capitalismo. E paradoxalmente, trabalha para ele: é esse povo que toca os latifúndios, planta a terra, tange o gado (Campedelli 1982: 95).

Nesse viés, Veiga passa a descrever seus personagens como sujeito da história narrada, ocupando diferentes espaços, estruturando uma narrativa balizada em uma linguagem bem característica do jeito de falar de cada um, da forma de expressão, modos e atitudes que retratam suas condições de existência e de vida e, que no interior da obra, são inseridos em um universo de insegurança e opressão. Assim, ao lado das personificações da cidade, dos cães e dos bois, também temos no conto personagens fundamentais que compõe a feição da comunidade manarairemense: o latoeiro (Sr. João José), o padre (Prudêncio) e seu ajudante (Balduíno), o carroceiro (Geminiano Dias), o comerciante (Amâncio), o caçador (Dildélio Amorim) , o moço do cartório (Marianito), o marceneiro (Manoel Florêncio), o ferreiro (Apolinário), o coronel da região (Dr. Nelório de Moura), o dono do pasto (Júlio Barbosa), o comprador de esterco (Justino Moreia), o padre professor de latim (tio Lindolfo), a mãe (D. Serena), as crianças (Mandovi, a única mencionada), o presidiário (Joaquim Rufino), o casal de namorados (Pedrinho Afonso e Nazaré), a madrinha (D. Bita), o louco das ruas (Velho Inácio), o burro serrote e, para completar o universo dos sujeitos envolvidos na trama, os invasores (dentre eles, três foram nomeados: Neiva, Chaves e Osório).

Em todas os momentos da narrativa, percebe-se claramente que se estabeleceu uma espécie de relacionamentos sociais instituídos sem a presença de uma liderança institucionalizada no contexto de um espaço problemático, Manarairema.  Neles, os personagens vão construindo um mundo de introspecção quase que individualizado pautado nas experiências vividas em todo um ambiente de insegurança e opressão. Fernandes (1992) esclarece a dimensão desse quadro:

Na obra de Veiga, as personagens são inseridas em um universo de insegurança e de opressão, em que o poder-ser e o poder-falar, imprescindíveis à práxis da história na condição de sujeito, são a notícia funesta o não-poder-ser. O silêncio proveniente da tirania e da prepotência […] constitui a pior forma de objetivação das personagens, porque não advém unicamente do confronto cultural, econômico e social […] mas da integral impossibilidade de expressar e concretizar a existência, uma vez que compreensibilidade e a essência do ser se manifestam como fala (Fernandes 1992: 278).

A lógica das ações evidenciadas na obra segue o traçado todoroviano quanto ao fato de que na narrativa fantástica “há uma tendência à repetição que concerne à ação, aos personagens ou mesmo a detalhes da descrição” (Todorov 1972:213). Ao longo de toda a narrativa, Veiga sinaliza para uma não consciência do estado de opressão do povo, assinalada nas falas, pensamentos, comportamentos e ações durante todas as invasões: dos forasteiros, dos cães e dos bois.

Há de se destacar porém que a luz da consciência de todos esses eventos insólitos surge no fim do túnel, na última parte do conto,  em meio aos  personagens após o sumiço dos bichos e a demandada dos forasteiros: Geminiano Dias, um dos personagens mais oprimido e explorado consegue por fim compreender que os forasteiros que invadiram Manarairema eram pessoas tão comuns quanto a gente da própria cidade, que possuíam as mesmas dificuldades de entendimento, a mesma dificuldade com a palavra, que também tinham medo e por este motivo partiram na calada da madrugada tão misteriosamente como quando chegaram, notícia que surpreendeu os moradores curiosos em saberem o motivo: “– Acho que foi medo. Andavam muito assustados.” “– Medo de quê?” “– Sei lá. De tudo. De nós. Quero dizer, de vocês” (Veiga 1972: 101).

Em Seminário dos Ratos, a ação dos roedores é diferente, ela incomoda, desarticula planos, desmonta ações. Ao contrário da forma como aconteceu a invasão dos cachorros metaforizados em Veiga, aqui, os ratos metaforizados por Telles se encontram em outro polo de poder (são os oprimidos) e assumem um papel de resistência, grande o suficiente para segurar toda a trama fantástica que se inicia no preâmbulo e percorre todo o conto. O trecho mostra o contra-ataque dos roedores: “- Mas quem comeu tudo? Quem?” “- Os ratos, doutor, os ratos!” “-Ratos?!… Que ratos?” (Telles 1977: 124).

O trecho refaz o primeiro contato com a ação de contra-ataque dos ratos que culminou com a completa destruição da casa e a implantação de verdadeiro pânico entre as pessoas do seminário. Em diferentes trechos evidencia-se o fato desse impacto, a exemplo deles, aquele em que o narrador declara a lividez do Cozinheiro-Chefe, “O jovem encostou-se na parede. A cara agora estava lívida” (Telles 1977: 125). Metaforicamente, o cozinheiro chefe associa o ataque dos roedores à ideia de nuvem, quando diz: “Quase morri de susto, quando entrou aquela nuvem pela porta, pela janela, pelo teto, só faltou me levar e mais a Euclídea!” (Telles 1977: 125).  Em meio ao caos, no conto em destaque, o narrador enfatiza os procedimentos do fantástico, articulando aproximações entre o leitor implícito e o leitor externo do texto, criando momentos de suspense, hesitação e diferentes personificações, inclusive comportamentais, em que atitudes naturalmente associadas à ação humana são deslocadas para o fazer dos roedores, conforme o a voz do Cozinheiro-Chefe, “Até os panos de pratos eles comeram, só respeitaram a geladeira que estava fechada, mas a cozinha ficou limpa, limpa!” (Telles 1977: 125).

Neste conto, os contornos da gradação são demarcados com imediato paralelismo às incertezas refletidas no plano da narrativa. De início, a epígrafe alusiva ao poema Edifício Esplendor de Carlos Drummond de Andrade (1955) coloca o leitor em estágio de alerta em relação aos embates entre roedores e humanos, anunciando de pronto, dois planos de ações, por um lado, o plano de organização do edifício para sediar o VII seminário que discutiria estratégias de erradicação da população de roedores e, por outro, a ação em curso desses roedores carcominando o edifício. 

Aqui tudo acontece naturalmente seguindo uma sequência natural de cenas em que os personagens são apresentados, conversam sobre o evento a ser realizado, seus participantes, a restauração do local do evento, as críticas em relação ao local escolhido e aos gastos para sua restauração, o crescimento desordenado dos ratos nas favelas e zonas de periferia, “temos agora cem ratos para cada habitante” (Telles 1977: 118), enfim, conversas aparentemente banais são travadas até que a narrativa apresenta o rompimento gradativo do clima de apreensão, inicialmente por parte do secretário que escuta um barulho esquisito, “tão esquisito como se viesse do fundo da terra, subiu depois para o teto… Não ouviu mesmo?” (Telles 1977: 119), a narrativa prolonga a conversa entre o Chefe das Relações Públicas e o Secretário, até que novamente o Secretário acusa o escutar do mesmo barulho, agora com maior intensidade “-Está ouvindo? Está ouvindo? O barulho ficou mais forte agora!” (Telles 1977: 120). Metaforicamente a narrativa articula um jogo de palavras que gradativamente remonta o nível de hesitação, tal como sente o próprio personagem quando assim diz: “- Aumenta e diminui, olha aí, em ondas, como um mar… Agora parece um vulcão respirando, aqui perto e ao mesmo tempo tão longe! Está fugindo, olha aí…” (Telles 1977: 120), mas o ponto mais alto do conflito não acaba aqui, novamente, após novo bloco de conversa, ambos os personagens se dão conta da persistência do barulho e sua intensidade cada vez mais forte, momento em que o Secretário emudecido, cara pasmada pergunta “-Está ouvindo agora, ouviu isso? Fortíssimo!” (Telles 1977: 120), ao tempo em que o Chefe das Relações Públicas, levando-se de um salto, cara ruborizada, apertada entre as mãos responde-lhe: “Mas claro, Excelência, está repercutindo aqui no assoalho, o assoalho está tremendo! Mas o que é isso?!” (Telles 1977: 120). A partir deste instante a gradação alcança seu ponto mais alto até culminar com a destruição final da casa, restando do Secretário somente o chinelo de debrum de pelúcia que estranhamente foi visto pelo olhar silencioso do Chefe das Relações públicas, o único sobrevivente do evento, passando a alguns passos do avental embolado no tapete da sala completamente invadida pelos ratos, conforme ilustra o trecho: “o chinelo deslizava, a sola voltada para cima, rápida como se tivesse rodinhas ou fosse puxada por um fio invisível” (Telles 1977: 125).

Com efeito, depreende-se que o recurso da gradatividade, aliado ao nível de criatividade e expressividade de ambos os autores imprime as marcas da narrativa fantástica contextualizada em ambas as obras aqui analisadas e este recurso sinaliza, de certa forma, uma passagem sistemática de limite e de fronteira que ficcionaliza as ações estruturantes do enredo no interior da narrativa, de forma que se evidencie com mais clareza essa passagem dimensional do cotidiano, da fantasia e do costumeiro para a fronteira do inexplicável e do perturbador, contextualização fática das personagens e suas ações dentro da narrativa.

Destaque deve ser dado ao objeto mediador que exerce o poder de questionar a realidade em ambos os contos, uma vez que eles rearticulam o universo e o horizonte de expectativa do personagem protagonista e do leitor, colaborando, enfim, para a construção de elos entre realidade e ficção, bem como desestabilizando certezas construídas de modo a conferir espaços para sobrevivência do universo fantástico.

Em outras palavras, os animais, no caráter simbólico da palavra, causam o estranhamento dos personagens que, até determinado momento, acreditam conhecer a realidade em que vivem. Por exemplo, em A Hora dos Ruminantes, após a chegada dos dez cargueiros repletos de homens, cães e bois, um clima de curiosidade se instala entre os moradores da cidade, queriam entender o que estaria acontecendo e quando observaram os primeiros animais pastando livremente pelos campos, julgaram o fato com explicações que demonstram verdadeiro desconhecimento da própria realidade local, conforme depreende-se da leitura do trecho: “-Também pode ser animais soltos pastando por aí. Saíram do mato, entraram no mato” (Veiga 1972: 3). Em Seminário dos Ratos, a crença de conhecimento da realidade por parte dos personagens protagonistas se observa logo no início da narrativa, quando o Chefe das Relações Públicas, desconhecendo presença e a ação dos roedores no local do evento, afirma ao Secretário do Bem-Estar Público e Privado que tudo estava na mais perfeita organização, conforme registra o trecho: “Tudo perfeito, Excelência. Perfeito. Foi no salão azul que é menor, Vossa Excelência sabe. Poucas pessoas, só a cúpula, ficou uma reunião assim aconchegante, íntima, mas muito agradável” (Telles 1977: 116).

Em Telles,os roedores também cumprem o papel de objeto mediador do fantástico, desfacelam a ideia de aparente perfeição na organização do evento planejado e o ato da invasão do casarão por eles empreendido desnivela o plano de realidade e ajuda na produção de um pacto ficcional fantástico, tal como propõe Ceserani (2006: 74). O trecho que retrata um diálogo entre o Chefe das Relações Públicas e o Cozinheiro Chefe após os ratos invadirem a cozinha do local do evento, bem ilustra esse desnivelamento da realidade:

 – Meu Deus, que loucura… E o jantar?!
– Jantar? O senhor disse jantar?! Não ficou nem uma cebola! Uma trempe deles virou o caldeirão de lagostas e a lagostada se espalhou no chão, foi aquela festa, não sei como não se queimaram na água fervendo. Cruz-credo, vou me embora e é já! (Telles 1977: 124).

Em ambos os contos, a forma do objeto mediador, metaforicamente apresentada em cada uma delas pelos animais (os cães, os bois e os ratos), exerce o poder de questionar a realidade no campo ficcional das narrativas, rearticula o universo e o horizonte de expectativa do personagem protagonista e do leitor implícito e, por conseguinte, constrói elos entre realidade e ficção, possibilitando assim, a compreensão de que no mundo ficcional da obra fantástica, a ideia de realidade pode ser naturalmente rompida de modo a conseguir remover a zona de segurança do leitor e, desta forma, tece no corpo da narrativa, momentos mais elásticos de manifestação do fantástico. Enfim, nas obras em análise, a presença dos animais e todas as ações construídas em torno deles se constituem ferramentas de manifestação do fantástico que ganham de Veiga e Telles um tratamento estilístico bem específico.

Considerações finais

O proposto neste estudo encaminhou nosso olhar para compreendermos um pouco mais o mecanismo de criação dos personagens ficcionalizados nas obras de Veiga e Telles.

Nesta tarefa, aspectos concernentes à ação, aos personagens e aos detalhes descritivos foram observados na letra criativa de ambos os contos. Observamos, ainda, elementos da gradação e do paralelismo, conforme tratam os estudos todoroviano, balizadores de toda essa criação fantástica.

Percebemos ainda que, em ambos os contos, os personagens foram inteiramente definidos pelas relações estabelecidas com outros personagens no bojo de cada enredo, bem como que suas ações foram determinantes das conexões assinaladas ora pelo desejo de servir, ora pelo desejo do contrariar, ora pelo desejo de amar, ora pelo desejo de odiar, ora pela ação participativa de prestar ajuda, ora pela ação de abster-se diante dos fatos, subordinando tudo na trama ao desejo de um ou de outro. Aqui hiperboliza-se a figura dos obstáculos, dos medos, das contradições e do insólito, elementos que quase sempre impotencializam os personagens envolvidos na trama, instaurando assim a ideia de um fantástico relacional, aquele que, conforme Santos (2008: 11), avoluma-se para além do insólito e repousa no “sentimento de uma incerteza existencial que os personagens experimentam diante de um mundo familiar em crise”.

Enfim, se pensarmos a narrativa fantástica como sendo uma máquina complexa cheia de válvulas e botões, os personagens são as alavancas de seu funcionamento. Sem eles, a narrativa não se movimenta.

OBRAS CITADAS

BOSI, Alfredo. (Org.) O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix. p. 20 -211987.

CALVINO, Ítalo. Contos fantásticos do século XIX: O fantástico visionário e o fantástico cotidiano. São Paulo: Companhia das letras, 2004. p. 09 – 10.

CAMPEDELLI,  Samira  Youssef.  Sertão,  sertões.  In:  José.  J.  Veiga  –  Literatura  Comentada. São Paulo: Abril Cultural, 1982.p.95.

CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira: resumo para principiantes. 3 ed. São Paulo: Humanitas / FFLCH/USP, p. 92, 1999.

CESERANI, Remo. O Fantástico. Tradução Nilton Cezar Tridapalli. Ed. UFPR, p. 74, 2006.

CURADO, Ramir. Criador incrível, incríveis criaturas. Entrevista concedida a Rogério Borges para o jornal virtual O popular em 28 de março de 2018. Disponível em < https://www.opopular.com.br/noticias/80-anos/jos%C3%A9-j-veiga-1.1490961

FERNANDES, José. Dimensões da literatura goiana. Goiana: Cerne, p. 278, 1992.

QUELHAS, Iza. No país do faz de contas: uma leitura da obra de José J. Veiga. In: Revista Recorte, ano 2, n. 3, jul – dez, p. 11, 2005.

SANTOS, Nedilson César Rodrigues dos. Adequação e impasses de uma narrativa: uma leitura de A hora dos ruminantes, de José J. Veiga. Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 11, 2008.

TELLES, Lygia Fagundes. Seminário dos Ratos. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1977.

TELLES, Lygia Fagundes. Lygia Fagundes Teles entrevistada por Clarice Lispector. Entrevista concedida ao Templo Cultural Delfos, Elfi Kurten Fenske, Ano VIII, 2018.

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2006.

VEIGA, José J. A hora dos ruminantes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.

VEIGA, José J. Entrevista concedida à revista Entretexto. Entrevistador: Fabio Weintraub, Sergio Cohn e Ruy Proença, 26 de fev de 1987. Disponível em < https://www.portalentretextos.com.br/post/a-ultima-entrevista-de-j-j-veiga.


1Endereço eletrônico: osanamorais@outlook.com
Link do ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2351-4229
Link do Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0935310240407123
Maior titulação obtida: Mestrado em Letras
Filiação institucional: Universidade Federal do Piauí

2Endereço eletrônico: saulo.brandao@ufrpe.br
Link do ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5091-2804
Link do Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3857487715990801
Maior titulação obtida: Doutorado em Letras
Filiação institucional: Universidade Federal Rural de Pernambuco