A UTILIZAÇÃO DE TEMPLOS RELIGIOSOS COMO MECANISMO PARA LAVAGEM DE CAPITAIS PROVENIENTES DO NARCOTRÁFICO SOB O DISFARCE DO DÍZIMO NO BRASIL: O PAPEL DAS IGREJAS NA OCULTAÇÃO DE RECURSOS ILÍCITOS E SEUS IMPACTOS NA SOCIEDADE BRASILEIRA

THE USE OF RELIGIOUS TEMPLES AS A MECHANISM FOR MONEY LAUNDERING OF DRUG TRAFFICKING PROCEEDS UNDER THE GUISE OF TITHING IN BRAZIL: THE ROLE OF CHURCHES IN CONCEALING ILLICIT FUNDS AND THEIR IMPACTS ON BRAZILIAN SOCIETY

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202505121512


Felipe Senna Carvalho Silva1
Filipe Xavier Borges Campos2


RESUMO: A utilização de templos religiosos como veículo para a lavagem de capitais oriundos do narcotráfico representa um fenômeno de elevada complexidade jurídica e social, caracterizado pela simbiose perversa entre o sagrado e o profano. Facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Terceiro Comando Puro (TCP) vêm instrumentalizando igrejas, em especial as de matriz pentecostal, como fachadas para legitimar recursos provenientes do tráfico de drogas. Tal prática é facilitada por uma lacuna legislativa notável: a inexistência de norma jurídica que obrigue as organizações religiosas a identificarem doadores ou dizimistas, o que inviabiliza a rastreabilidade das origens do numerário.  

O presente estudo propõe-se a analisar os mecanismos operacionais de tais facções, as fragilidades normativas que perpetuam a prática criminosa, e as consequências econômicas, sociais e éticas desse fenômeno. A pesquisa pauta-se na metodologia qualitativa, com ênfase na análise bibliográfica, documental e legislativa, objetivando propor alternativas regulatórias que não violem as garantias constitucionais da liberdade religiosa, mas que fortaleçam o combate à lavagem de dinheiro no Brasil.       Entre os casos analisados, destaca-se o de Valdeci Alves dos Santos, o “Colorido”, liderança do PCC que movimentou R$ 206,6 milhões por meio de sete igrejas pentecostais fundadas exclusivamente para esquentar recursos ilícitos. A partir dessa realidade, urge o debate sobre a regulação financeira do setor religioso, especialmente no que tange à identificação de doadores e à obrigatoriedade de prestação de contas, como instrumentos de proteção ao Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Facções criminosas. Lavagem de dinheiro. Dízimo. Templos religiosos. Lacuna legislativa.

ABSTRACT: The use of religious temples as vehicles for laundering proceeds from drug trafficking constitutes a phenomenon of considerable legal and social complexity, marked by a perverse symbiosis between the sacred and the profane. Criminal organizations such as the Primeiro Comando da Capital (PCC) and the Terceiro Comando Puro (TCP) have been instrumentalizing churches—especially those of Pentecostal origin—as fronts to legitimize funds derived from drug trade. This practice is facilitated by a significant legislative gap: the absence of a legal rule requiring religious organizations to identify donors or tithe contributors, which renders the traceability of financial origins unfeasible. 

This study aims to analyze the operational mechanisms employed by such factions, the normative weaknesses that perpetuate criminal practices, and the economic, social, and ethical consequences of this phenomenon. The research adopts a qualitative methodology, with emphasis on bibliographic, documentary, and legislative analysis, aiming to propose regulatory alternatives that do not infringe upon constitutional guarantees of religious freedom but rather strengthen the fight against money laundering in Brazil. 

Among the cases analyzed, the case of Valdeci Alves dos Santos, known as “Colorido,” stands out. He was a PCC leader who laundered approximately R$ 206.6 million through seven Pentecostal churches founded exclusively to legitimize illicit funds. In light of this reality, the debate on financial regulation of the religious sector becomes urgent—particularly concerning donor identification and mandatory financial accountability—as a means of protecting the Democratic Rule of Law.

Keywords: Criminal organizations. Money laundering. Tithing. Religious temples. Legislative gap.

INTRODUÇÃO 

A criminalidade organizada no Brasil desenvolveu, ao longo das últimas décadas, estratégias sofisticadas para a ocultação e integração de capitais ilícitos no circuito formal da economia, em especial os oriundos do tráfico de entorpecentes. Nesse cenário, a utilização de templos religiosos como instrumento de lavagem de capitais desponta como um fenômeno de alarmante relevância, cujas implicações ultrapassam os limites do Direito Penal e adentram o terreno da ética, da fé e da segurança pública. Com notável capacidade adaptativa, facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Terceiro Comando Puro (TCP) vêm instrumentalizando igrejas, notadamente de orientação pentecostal, como fachadas legítimas para “esquentar” recursos oriundos do narcotráfico, valendo-se de lacunas normativas que tornam praticamente impossível a identificação e o rastreamento de doadores. 

A invisibilidade dos recursos financeiros movimentados por tais organizações religiosas, amparadas na imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “b”, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (Brasil, 1988), e na ausência de normas que imponham obrigações mínimas de compliance financeiro, como a identificação de fiéis ofertantes, cria um terreno fértil para a prática de atos de lavagem de dinheiro sob o manto da fé. Não se trata de afirmar que todas as instituições religiosas participam de tal esquema, mas sim de lançar luz sobre um setor desprovido de fiscalização efetiva, cujas brechas normativas têm sido exploradas por organizações criminosas para legitimar vultosas somas. 

A denominada Operação Mafiusi, apelidada de “Lava Jato do PCC” pela mídia nacional, evidencia a complexidade dessa rede de transações ilícitas. Relatórios da Polícia Federal revelaram que nomes de proeminência pública, como o pastor Valdemiro Santiago (Igreja Mundial do Poder de Deus), foram citados em delações premiadas como beneficiários indiretos de esquemas de lavagem envolvendo milhões de reais, aviões registrados com valores fictícios e transferências bancárias injustiçadas que passaram por igrejas e empresas de fachada. As investigações apontam que, entre agosto de 2021 e abril de 2022, uma única igreja pentecostal transferiu mais de R$ 2 milhões para empresas ligadas ao “Concierge do PCC”, Willian Barile Agati, evidenciando o uso reiterado de templos religiosos como canais de dissimulação patrimonial (ESTADÃO, 2024). 

O presente artigo propõe-se a analisar criticamente a simbiose entre religião e crime organizado, examinando os mecanismos operacionais das facções criminosas, as fragilidades do ordenamento jurídico que permitem a impunidade das organizações religiosas envolvidas, e os efeitos econômicos e sociais de tais práticas na sociedade brasileira. A abordagem metodológica é qualitativa, alicerçada em pesquisa bibliográfica, documental e legislativa, com o intuito de propor medidas regulatórias que, sem afrontar a liberdade religiosa, fortaleçam o combate à lavagem de capitais no Brasil. 

Em face do avanço da “narco-religiosidade” como fenômeno social e jurídico, impõe-se o debate sobre a necessidade de maior transparência financeira no setor religioso e a responsabilização daqueles que, sob o pretexto da fé, contribuem para a perpetuação da violência e da desigualdade. 

1. FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA LAVAGEM DE CAPITAIS 

1.1 Conceito e evolução histórica da lavagem de dinheiro 

A prática da lavagem de capitais, também denominada lavagem de dinheiro, não constitui um fenômeno contemporâneo, tampouco resulta de ação deliberada de um agente específico em dado momento histórico. Trata-se de conduta que remonta à antiguidade, nascida da necessidade humana de conferir aparência lícita a bens ou valores oriundos de atividades criminosas, permitindo, assim, sua utilização no circuito formal da economia. O processo, portanto, está intrinsecamente ligado à engenhosidade humana e ao desenvolvimento de mecanismos voltados à dissimulação da origem ilícita de recursos, sendo sua repressão, até os dias atuais, desafio constante ao Estado. 

No que tange ao surgimento histórico da lavagem de capitais, ANSELMO (2013, p. 35) assevera que o fenômeno não é novo e já despertava preocupação em tempos antigos, citando como exemplo a máxima latina pecunia non olet (“dinheiro não tem cheiro”), atribuída ao imperador romano Vespasiano, o qual, ao instituir tributo sobre latrinas, teria sido questionado por seu filho Tito acerca da moralidade da medida. Em resposta, Vespasiano teria aproximado uma moeda no nariz do filho e perguntado se ela cheirava mal, recebendo resposta negativa, ao que retrucou: “no entanto, foi obtida da urina” — ilustrando que, independentemente da origem, o dinheiro adquire aceitação social ao ingressar nos meios lícitos. 

Ainda segundo ANSELMO (2013, p. 35), há registros bíblicos que remetem à tentativa de ocultação de bens de procedência ilícita, como o episódio envolvendo Ananias e Safira (Atos dos Apóstolos, cap. V, v. 1-11), que ocultaram parte dos valores obtidos com a venda de um imóvel, ofertando aos apóstolos apenas uma fração e mentindo sobre a totalidade da quantia. Tal narrativa evidencia que, historicamente, há registros da prática de ocultação patrimonial com vistas a fraudar a origem dos recursos. 

A doutrina identifica, na modernidade, marcos que contribuíram para a sistematização e repressão da lavagem de capitais. BARROS (2013, p. 33) menciona, entre os casos mais emblemáticos, o de Alphonse “Al” Capone, notório gângster norteamericano que, na década de 1920, auferiu vultosos lucros com a venda ilegal de bebidas alcoólicas durante a vigência da Lei Seca nos Estados Unidos. Incapaz de justificar a origem dos seus ganhos, Capone foi condenado não por suas atividades ilícitas, mas por sonegação fiscal, fato que evidenciou a fragilidade dos instrumentos estatais à época para enfrentar a criminalidade organizada. 

Outro episódio paradigmático citado por BARROS (2013, p. 33) envolve Meyer Lansky, também integrante do crime organizado, que atuava nos setores de jogos de azar, tráfico de entorpecentes e corrupção, ocultando lucros ilícitos por meio de instituições financeiras localizadas na Suíça, a partir de 1932. Tais práticas, durante décadas, restaram impunes, em virtude da ausência de legislação específica e da complexidade das operações, que escapavam ao controle dos órgãos repressivos. 

Cabe registrar que a lavagem de capitais está intimamente vinculada ao desenvolvimento da criminalidade organizada, cujo sustento econômico se dá, primordialmente, pelo êxito na inserção de recursos ilícitos no sistema financeiro formal. CALLEGARI (2003, p. 37) destaca que, historicamente, os criminosos sempre buscaram ocultar os frutos de seus atos, conscientes de que a descoberta de tais fundos conduziria ao desvendamento dos delitos que lhes deram origem. 

O termo “money laundering” (lavagem de dinheiro) passou a ser utilizado formalmente no âmbito judicial a partir de 1982, em tribunais dos Estados Unidos BARROS (2013, p. 34), e, com o advento da globalização, a preocupação com o combate a essa prática foi intensificada, sobretudo em razão dos riscos à integridade do sistema financeiro mundial. O crescimento da criminalidade organizada impulsionou a consolidação de uma cultura internacional voltada à repressão da lavagem de capitais, culminando na Convenção de Viena, em 1988, que recomendou a criminalização da prática pelos Estados signatários BARROS (2013, p. 35). 

Por fim, a evolução tecnológica e a virtualização das operações financeiras trouxeram novos desafios ao enfrentamento da lavagem de capitais. O ciberespaço, conforme adverte BARROS (2013, p. 36), permite a movimentação de valores, investimentos e abertura de contas bancárias por meio de dispositivos eletrônicos, dificultando a rastreabilidade dos recursos e ampliando as possibilidades de atuação dos agentes criminosos. 

Diante de tais considerações, infere-se que a lavagem de capitais é prática milenar, cujo enfrentamento exige constante atualização dos mecanismos de controle e repressão, em razão de sua complexidade, transnacionalidade e relação umbilical com a criminalidade organizada. 

1.2 A Lei nº 9.613/1998 e a (in)suficiência normativa 

A promulgação da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998 (Brasil,1998), representou um marco legislativo no ordenamento jurídico brasileiro, ao tipificar, de forma autônoma, o crime de lavagem de capitais e estabelecer mecanismos de prevenção e repressão à ocultação e dissimulação de bens, direitos e valores oriundos de infrações penais. Seu advento decorreu de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, notadamente com a Convenção de Viena (1988), voltada ao combate ao tráfico ilícito de entorpecentes e à lavagem de dinheiro dele decorrente, bem como da crescente necessidade de alinhar-se às diretrizes do GAFI (Grupo de Ação Financeira Internacional). 

A referida lei, atualmente com redação alterada por legislações posteriores, como a Lei nº 12.683/2012 (Brasil, 2012), apresenta em seu artigo 1º o núcleo do tipo penal, criminalizando atos que tenham por finalidade a ocultação ou dissimulação da natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. Ademais, elenca, em dispositivos subsequentes, medidas assecuratórias, deveres de comunicação por parte de pessoas físicas e jurídicas atuantes em setores vulneráveis à lavagem de dinheiro, e mecanismos de cooperação internacional. 

Entretanto, apesar dos avanços normativos e do arcabouço repressivo estabelecido, a Lei nº 9.613/1998 revela fragilidades relevantes, notadamente no que concerne à rastreabilidade de recursos financeiros provenientes de doações ou dízimos, especialmente aqueles destinados a entidades religiosas ou organizações sem fins lucrativos. Ao compulsar a legislação, constata-se a inexistência de dispositivos que estabeleçam mecanismos eficazes de controle ou exigência de identificação dos doadores, tampouco há menção expressa à obrigatoriedade de rastreamento da origem dos valores doados. 

Essa lacuna normativa propicia terreno fértil para práticas de lavagem de capitais, na medida em que a ausência de exigência legal de verificação da origem dos recursos doados a templos religiosos ou instituições congêneres dificulta a atuação dos órgãos de controle e fiscalização. Em outros termos, a normativa vigente, ao não contemplar a obrigação de verificar ou registrar a identidade dos doadores, tampouco a origem dos valores recebidos a título de dízimos, ofertas ou contribuições voluntárias, cria uma zona de opacidade que pode ser explorada por organizações criminosas para conferir aparência lícita a recursos ilícitos. 

Importante ressaltar que o artigo 9º da Lei nº 9.613/1998 enumera os sujeitos obrigados a adotar políticas de prevenção à lavagem de dinheiro, incluindo instituições financeiras, seguradoras, corretores de imóveis, comerciantes de bens de luxo, entre outros. Entretanto, não há qualquer menção à inclusão, no rol de obrigados, das entidades religiosas ou organizações que recepcionem vultosos montantes a título de doação, o que contribui para a desarticulação das medidas preventivas e facilita o ingresso de capitais de origem criminosa no sistema econômico, com posterior dissimulação de sua procedência. 

A lacuna legislativa torna-se ainda mais sensível diante do contexto jurídico brasileiro, que confere ampla liberdade às organizações religiosas, inclusive com a garantia de imunidade tributária prevista no artigo 150, inciso VI, alínea “b” da Constituição Federal (Brasil, 1988), e com proteção legal à não intervenção do Estado em seus assuntos internos. Essa realidade, embora fundamental sob a ótica da liberdade religiosa, tem sido instrumentalizada por agentes inescrupulosos para a prática de ilícitos financeiros, incluindo a lavagem de capitais, sem que o Estado disponha de ferramentas jurídicas eficazes para reprimir tais condutas. 

Dessa forma, pode-se afirmar que, embora a Lei nº 9.613/1998 tenha estabelecido um importante marco legal no enfrentamento à lavagem de dinheiro, sua (in)suficiência normativa revela-se patente ao não contemplar dispositivos específicos voltados à rastreabilidade das doações, especialmente no âmbito das entidades religiosas, o que compromete a efetividade do combate a práticas criminosas sofisticadas que se valem dessas brechas legais para legitimar recursos oriundos de atividades ilícitas. 

2. A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA E A INVISIBILIDADE DOS DÍZIMOS  

2.1 Análise do art. 150, VI, “b”, da Constituição Federal 

O ordenamento jurídico brasileiro consagra, no art. 150, inciso VI, alínea “b”, da Constituição Federal (Brasil,1988), a imunidade tributária concedida aos templos de qualquer culto, vedando expressamente a instituição de impostos sobre eles. Trata-se de garantia fundamental que visa assegurar a liberdade religiosa, princípio basilar do Estado Democrático de Direito, de modo a impedir que o exercício do culto seja onerado por exigências fiscais que possam comprometer ou limitar o seu desenvolvimento. 

A interpretação mais imediata desse dispositivo revela que a imunidade se refere aos impostos incidentes sobre os templos enquanto edificações destinadas à prática religiosa. Em sua acepção estrita, “templo” designa o local físico onde se realizam os atos de culto, abrangendo, portanto, tanto o terreno quanto as construções nele erguidas com tal finalidade. No entanto, uma leitura sistemática da Constituição, especialmente à luz do § 4º do mesmo artigo 150, permite uma ampliação do alcance da imunidade. 

Referido parágrafo esclarece que as imunidades previstas nas alíneas “b” e “c” do inciso VI “compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas”. Assim, torna-se possível estender a proteção imunizante não apenas ao imóvel em si, mas também à renda e aos serviços diretamente vinculados ao exercício do culto religioso. O que se busca proteger é, em última análise, a essência da prática religiosa, impedindo que ela seja atingida por encargos tributários que afetem sua sustentabilidade. 

Importante destacar que, sob o ponto de vista jurídico-formal, o templo em si não possui personalidade jurídica; quem detém essa capacidade são as organizações religiosas que administram tais espaços. Dessa forma, é a organização religiosa, enquanto sujeito de direito, quem se beneficia da imunidade tributária relativamente ao imóvel, aos rendimentos e aos serviços diretamente conexos com a atividade religiosa. 

Por outro lado, não se deve confundir a imunidade prevista no art. 150, VI, “b”, com a isenção de contribuições sociais disciplinada pelo § 7º do art. 195 da mesma Carta Magna. Este último dispositivo refere-se exclusivamente às entidades beneficentes de assistência social, desde que atendam às exigências legais específicas, e não abrange templos ou organizações religiosas em sua atividade estritamente cultural. Ou seja, a imunidade do art. 150 refere-se a impostos, enquanto o § 7º do art. 195 trata das contribuições sociais. 

Ressalte-se, no entanto, que muitas organizações religiosas desenvolvem atividades beneficentes paralelamente aos cultos, como a assistência social. Nestes casos, desde que cumpridos os requisitos legais, podem gozar da isenção das contribuições sociais prevista no art. 195, § 7º. Caso contrário, permanecem obrigadas ao recolhimento de tais contribuições, especialmente nas hipóteses em que se envolvem em relações jurídicas típicas da esfera trabalhista ou empresarial, como a construção civil ou a contratação de empregados. 

Em suma, a imunidade tributária dos templos de qualquer culto constitui proteção constitucional ao exercício da liberdade religiosa, abrangendo patrimônio, renda e serviços vinculados às suas finalidades essenciais. Contudo, tal proteção não se confunde com benefícios fiscais relativos às contribuições sociais, que possuem disciplina e destinatários distintos. 

2.2 Lacuna legislativa: a não exigência de identificação de doadores 

A ausência de exigência legal quanto à identificação dos doadores de recursos a entidades religiosas configura uma das mais notórias e perigosas lacunas normativas do ordenamento jurídico brasileiro. Diferentemente do que ocorre em setores regulados por normativas rigorosas de controle financeiro, o sistema jurídico atual — notadamente a Lei nº 9.613 (Brasil, 1998), que dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro — não estabelece qualquer obrigação de registro da identidade do doador ou da origem dos valores doados a instituições religiosas. Essa omissão normativa permite que doações — vultosas ou não — sejam realizadas sob total anonimato, alheias a mecanismos mínimos de rastreabilidade. Tal permissividade tem sido explorada de maneira sistemática por organizações criminosas como meio eficaz de mascaramento de ativos ilícitos, valendo-se da roupagem do dízimo para promover operações de lavagem de dinheiro sob o manto da liberdade religiosa. 

Ainda que se reconheça a importância constitucional da liberdade de crença e da separação entre Estado e religião, não se pode perder de vista que a ausência de critérios mínimos de transparência e controle sobre a movimentação financeira dessas entidades — especialmente no que tange às doações — constitui terreno fértil para abusos. Trata-se de um vácuo normativo que favorece não apenas a informalidade patrimonial, mas que compromete seriamente os mecanismos de prevenção e repressão a crimes financeiros. 

A prática do dízimo, como demonstrado no estudo de VINHAS “et al”. (2022), tem sua natureza jurídica próxima à de um contrato de doação regido pelo art. 538 do Código Civil (Brasil, 2002), envolvendo transferência voluntária de patrimônio com animus donandi. Nessa condição, o dízimo ultrapassa o mero dever de consciência ou obrigação moral, para ingressar na seara dos negócios jurídicos com efeitos patrimoniais concretos. Ainda assim, ao contrário do que ocorre em diversas formas de doação reguladas pelo direito privado ou pelo direito público — que exigem forma escrita, registro e, em certos casos, declaração à Receita Federal —, não há qualquer exigência legal para que as doações religiosas sejam formalizadas com a identificação do doador. 

O mais grave, todavia, é que nem mesmo no campo da legislação penal, civil ou tributária, foram encontrados dispositivos que imponham o dever de identificação mínima dos ofertantes. A lacuna legislativa é absoluta: não há lei em vigor, tampouco projeto de lei tramitando no Congresso Nacional, que proponha regulamentação nesse sentido. Este silêncio normativo revela-se incompatível com o atual estágio de desenvolvimento das tecnologias de rastreabilidade financeira e com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no combate à lavagem de capitais. 

Tal permissividade legal transforma determinadas entidades religiosas em verdadeiros “buracos negros fiscais”, nos quais ingressam recursos sem qualquer obrigação de transparência, rastreabilidade ou prestação de contas. Nesse cenário, torna-se não apenas possível, mas extremamente conveniente, que agentes criminosos se utilizem das doações religiosas — em especial do dízimo, em sua forma informal — para promover a inserção de dinheiro de origem ilícita no circuito financeiro lícito. Como será demonstrado em seções posteriores deste estudo, há casos concretos em que essa prática foi instrumentalizada por organizações criminosas para ocultar valores provenientes de atividades ilícitas, como o tráfico de drogas e a corrupção.

O tratamento legislativo conferido ao dízimo no Brasil difere radicalmente de modelos mais rígidos, como o do imposto eclesiástico (Kirchensteuer) alemão, no qual as contribuições dos fiéis são deduzidas diretamente da folha de pagamento, sob estrita supervisão do Estado, exigindo-se identificação e registro do contribuinte. No Brasil, por sua vez, as instituições religiosas, ainda que operem como verdadeiras entidades arrecadatórias, gozam de plena autonomia financeira, sem qualquer dever de prestar contas ao Estado, a não ser em caráter voluntário.

Desse modo, ao mesmo tempo em que a doutrina civilista caminha para reconhecer o dízimo como negócio jurídico do tipo doação — com todos os efeitos jurídicos daí decorrentes —, o legislador permanece inerte diante da necessidade de criar mecanismos legais de controle e identificação dos doadores. Essa dissonância entre o avanço doutrinário e a estagnação legislativa permite que a liberdade religiosa seja instrumentalizada como escudo jurídico para atividades criminosas, sem que o Estado disponha de instrumentos normativos eficazes para inibir tal prática. 

Impõe-se, pois, uma urgente reflexão crítica sobre a necessidade de regulamentação da doação religiosa no ordenamento brasileiro. A identificação do doador, especialmente em valores superiores a determinado limite legal, deve ser entendida não como violação da liberdade religiosa, mas como instrumento mínimo de transparência e responsabilidade fiscal. Enquanto tal providência não for adotada, as brechas normativas continuarão a ser exploradas por aqueles que veem na fé alheia uma oportunidade para perpetuar a impunidade financeira. 

3. MODUS OPERANDI DAS FACÇÕES CRIMINOSAS 

3.1 A instrumentalização das organizações religiosas pelo PCC e TCP 

A crescente sofisticação das práticas criminosas adotadas por organizações como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Terceiro Comando Puro (TCP) evidencia uma tendência preocupante: a instrumentalização de organizações religiosas, especialmente aquelas de vertente evangélica e natureza pentecostal, como vetores de lavagem de capitais oriundos do tráfico de drogas e outras atividades ilícitas. Tais facções identificaram nas igrejas um terreno fértil para a dissimulação de fluxos financeiros ilegais, conferindo aparência de legitimidade ao capital movimentado. 

O modus operandi dessas organizações consiste, em linhas gerais, na constituição ou coaptação de templos por membros das facções, que passam a utilizálos como fachadas para a inserção de recursos oriundos do crime organizado no sistema bancário. Essa dinâmica envolve doações em espécie ou via transferências eletrônicas feitas por “fiéis” vinculados ao tráfico, campanhas religiosas fictícias, eventos evangelísticos simulados, além da criação de empresas associadas às lideranças eclesiásticas com o intuito de camuflar a origem ilícita do dinheiro. 

Reportagens recentes apontam que o PCC, por exemplo, movimenta bilhões de reais por meio dessa estratégia, utilizando inclusive criptomoedas para dificultar o rastreamento dos valores. Estima-se que a facção tenha faturado, anualmente, aproximadamente R$ 5 bilhões valendo-se de igrejas como instrumento de lavagem de dinheiro, mediante a abertura de empresas de fachada e a utilização de “laranjas” em operações de crédito (ECONOMIC NEWS BRASIL, 2024). 

Em Mato Grosso, uma operação da polícia revelou a atuação de um “falso profeta”, ligado a uma facção criminosa, que operava templos e empresas em nome próprio, mas sob controle da organização, com o propósito exclusivo de lavar dinheiro do tráfico (CNN Brasil, 2024). No Rio de Janeiro, o TCP também tem recorrido a esse mecanismo, aliando-se a rádios comunitárias e igrejas em zonas periféricas para a lavagem de dinheiro e fortalecimento de sua base territorial (BBC Brasil, 2023). 

Essas práticas não apenas revelam a capacidade das facções de se infiltrar em ambientes tradicionalmente protegidos pela imunidade tributária e liberdade de culto, como também indicam o uso estratégico do discurso religioso para capturar legitimidade social e mascarar operações criminosas. A ausência de legislação que obrigue as organizações religiosas a identificarem seus doadores ou a comprovar a origem dos recursos recebidos tem sido um elemento facilitador crucial. 

Em declaração recente, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, relatou que durante uma reunião técnica presidida pelo ministro Luís Roberto Barroso, foi mencionado o surgimento de uma “narcomilícia evangélica” no estado do Rio de Janeiro — uma estrutura criminosa formada por narcotraficantes e milicianos integrados a redes religiosas evangélicas. Segundo Mendes, trata-se de um fenômeno de elevada sofisticação, cuja existência aponta para acordos funcionais entre lideranças do tráfico e representantes dessas organizações religiosas em territórios periféricos. O ministro também destacou que essa aliança tem potencial para agravar conflitos de intolerância religiosa em comunidades fluminenses, sobretudo por parte de grupos criminosos que instrumentalizam a fé para oprimir cultos de matriz africana (G1, 2024). 

O caso da Igreja Universal do Reino de Deus, embora não envolva diretamente o PCC ou o TCP, serve como exemplo emblemático da opacidade financeira que pode permear grandes instituições religiosas. Segundo relatório do Laboratório de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro (CAEx), vinculado ao Ministério Público de São Paulo, a Universal recebeu entre janeiro de 2011 e julho de 2015 cerca de R$ 33,3 bilhões apenas em doações bancárias. Corrigido pela inflação, o valor ultrapassa os R$ 42 bilhões. O levantamento foi possível após quebra de sigilo bancário determinada pela 4ª Vara Criminal de Ribeirão Preto, no âmbito de uma investigação que apurava crimes como lavagem de dinheiro, estelionato, associação criminosa e sonegação fiscal (The Intercept Brasil, 2022). 

A investigação teve como alvo o empresário Michel Pierre de Souza Cintra, condenado a mais de 70 anos de prisão, que afirmou ter operado um esquema de lavagem de dinheiro em benefício da Universal, com movimentações que ultrapassaram R$ 250 milhões entre suas empresas e contas da igreja. Parte dos valores foi depositada diretamente na conta da Universal e de suas empresas associadas, inclusive a TV e a Rádio Record. Cintra declarou que a maior parte do dinheiro arrecadado pela igreja em espécie — por meio de dízimos e ofertas — sequer era registrada nos sistemas bancários, sendo transportada fisicamente por pastores com escolta privada entre os templos das diferentes regiões do país. 

Embora o inquérito que investigava o fluxo financeiro da igreja tenha sido arquivado, o relatório do CAEx oferece um vislumbre da magnitude dos valores movimentados e da dificuldade institucional em controlar tais operações dentro do atual modelo normativo. Segundo afirmou o próprio empresário: “O que eu fazia era lavagem de dinheiro. Mas eu fui condenado sozinho e a Universal, não” (The Intercept Brasil, 2022). 

A análise desse panorama evidencia que a fragilidade na regulamentação sobre doações religiosas e a blindagem tributária oferecida às instituições religiosas constituem brechas exploradas não apenas por criminosos comuns, mas também por estruturas de poder econômico-religioso de grande envergadura. Em vista disso, é forçoso reconhecer que determinadas organizações religiosas — especialmente aquelas vinculadas a vertentes evangélicas de natureza pentecostal — converteram-se em peças estratégicas na engrenagem financeira do crime organizado contemporâneo. 

3.2 Estudos de caso: igrejas fictícias e movimentação financeira 

A instrumentalização da religião por organizações criminosas não se restringe à ocupação simbólica de territórios, mas atinge dimensões operacionais complexas, como a criação de instituições religiosas fictícias voltadas à movimentação de capitais ilícitos. Tal prática, amplamente documentada por investigações jornalísticas e estudos acadêmicos, revela um modus operandi eficiente para o escoamento e a dissimulação de recursos oriundos do tráfico de drogas, especialmente sob o manto de igrejas de confissão evangélica pentecostal. 

A imunidade tributária concedida às organizações religiosas, aliada à informalidade das doações em espécie e à falta de mecanismos eficazes de fiscalização, tem sido explorada por facções criminosas em todo o país. Os estudos de caso apresentados a seguir ilustram a variedade de métodos utilizados e a profundidade da infiltração do crime organizado no universo religioso. Além disso, demonstram como a retórica da fé pode ser mobilizada tanto para legitimar práticas ilícitas quanto para escapar à responsabilização penal, como se verá nos episódios descritos. 

3.2.1 Caso da igreja e rádio em Minas Gerais 

Em 2023, o Ministério Público de Minas Gerais revelou um esquema de lavagem de dinheiro operado a partir de uma igreja evangélica e uma rádio comunitária no município de Vespasiano. A quadrilha utilizava empresas de fachada e estruturas religiosas para movimentar cerca de R$ 80 milhões apenas em Minas Gerais, sendo que a estimativa nacional apontava para um total de R$ 6,7 bilhões. As investigações indicaram o uso de pessoas interpostas (“laranjas”) e documentos falsificados para legitimar a origem dos recursos ilícitos oriundos de crimes como tráfico de drogas e estelionato (G1 2023). 

3.2.2 Caso de Valdeci “Colorido” e igrejas de fachada 

Valdeci Alves dos Santos, o “Colorido”, liderança do Primeiro Comando da Capital (PCC), estruturou um sistema sofisticado de lavagem de dinheiro por meio da criação de sete igrejas evangélicas no Rio Grande do Norte. Sob o nome fantasia de “Assembleia de Deus para as Nações”, os templos funcionavam com cultos regulares e pastores contratados, mas, conforme apurado pelo Ministério Público, seu real propósito era legitimar a movimentação de mais de R$ 200 milhões em recursos provenientes do tráfico. O esquema utilizava duzentos e quinze contas bancárias de pessoas físicas e jurídicas associadas à organização criminosa, numa estratégia cuidadosamente montada ao longo de quase duas décadas (UOL 2023). 

3.2.3 Caso de Álvaro “Peixão”: religião como arma de guerra  

Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como “Peixão” ou “Aarão”, é um dos principais líderes do Terceiro Comando Puro (TCP) no Rio de Janeiro e representa um dos exemplos mais emblemáticos da fusão entre autoridade criminal, retórica religiosa e dominação territorial armada. Ordenado pastor por uma igreja pentecostal da Baixada Fluminense, Peixão nunca se desvinculou da prática do crime organizado. Ao contrário, sua ascensão no comando do tráfico veio acompanhada de um processo de autoatribuição espiritual, em que se apresenta como um “escolhido de Deus” com a missão divina de “restaurar o Reino de Israel” nos territórios sob domínio do TCP, conforme revelou em áudios enviados por WhatsApp. O conjunto de comunidades que controla foi simbolicamente batizado de “Complexo de Israel”, onde realiza cultos regulares e ministra preleções com base em versículos bíblicos, associando a guerra urbana a uma batalha espiritual. 

Documentos policiais e registros jornalísticos revelam que Peixão exerce seu poder com base em uma autoridade carismática e fundamentalista, impondo rituais religiosos a seus subordinados e instrumentalizando a Bíblia para justificar ações violentas, inclusive a perseguição a líderes religiosos de outras denominações. Em julho de 2024, integrantes armados de sua quadrilha abordaram padres e seminaristas da Sociedade das Divinas Vocações, impedindo a realização de missas e atividades sociais em paróquias historicamente atuantes nas comunidades de Vigário Geral, Parada de Lucas e Cordovil. A motivação seria de cunho espiritual e estratégico: consolidar o monopólio simbólico da fé sob domínio da facção, erradicando a presença de outras religiões vistas como concorrentes. O episódio foi classificado por estudiosos como um ato de intolerância religiosa com motivação político-criminal, travestido de purificação teológica. 

Peixão, segundo o pesquisador Bruno Paes Manso, enxerga-se como um instrumento divino para “representar os interesses de Deus na Terra”. Sua liderança é marcada por práticas simbólicas — como exorcismos públicos, uso de carros-pipa com “óleos ungidos” para purificar favelas e a proibição de imagens católicas e vestimentas religiosas em espaços públicos. Com essa construção mística da guerra, suas ações bélicas passam a ter uma justificativa sagrada, em que o domínio de território por armas se converte em suposta libertação espiritual. 

Contudo, para além da retórica de guerra santa, há um aspecto material que não pode ser negligenciado: a estrutura eclesiástica que Peixão controla — como a Assembleia de Deus Ministério de Portas Abertas — pode estar funcionando também como uma engrenagem de dissimulação patrimonial. Seria plausível supor que, para além da instrumentalização simbólica da religião, ele esteja utilizando os templos e cultos como rota de lavagem dos bilhões de reais movimentados por sua facção? A ausência de fiscalização sobre doações religiosas em espécie, somada à imunidade tributária e à informalidade contábil de muitas igrejas, cria um ambiente propício à ocultação de ativos ilícitos sob a aparência de fé. A conversão da religião em biombo para o tráfico, nesse caso, não se dá apenas no campo da crença, mas também no plano concreto da circulação de capitais (IHU 2024). 

3.2.4 Caso do pastor Silas Malafaia e a “doação como álibi” 

Em 2017, a Polícia Federal, no contexto da Operação Timóteo, indiciou o pastor evangélico Silas Malafaia sob a acusação de lavagem de dinheiro. O inquérito investigava a atuação de um grupo criminoso que desviava recursos provenientes de royalties minerais por meio de contratos fraudulentos. Segundo a apuração, Malafaia teria recebido cheques de um dos investigados e realizado saques vultosos em espécie logo em seguida. Em sua defesa, o pastor alegou que os valores recebidos eram “doações espontâneas” ao seu ministério religioso, excluindo, portanto, qualquer vínculo com os delitos investigados. 

O episódio é emblemático por ilustrar exatamente o eixo central deste estudo: a utilização da figura jurídica da “doação religiosa” como subterfúgio para a inserção de recursos ilícitos no circuito formal da economia, escudando-se na ausência de exigências legais quanto à identificação dos doadores. Em casos como este, a invocação da imunidade tributária e do caráter voluntário das contribuições religiosas pode representar uma barreira à efetivação da justiça penal (G1 2017). 

3.3 Resultados extraídos da análise dos casos 

Os casos expostos demonstram que a religião, longe de ser apenas instrumentalizada como escudo moral, tem se tornado também um elo operacional estratégico no circuito financeiro ilícito. As entidades religiosas, especialmente aquelas de estrutura flexível e financiamento autônomo, são particularmente suscetíveis à infiltração por redes criminosas, diante do vácuo regulatório e da resistência institucional a medidas de transparência. Nesse contexto, o presente estudo busca demonstrar que a ausência de normativas que exijam identificação dos doadores e rastreabilidade das chamadas “doações de fé” constitui um dos principais gargalos para o combate à lavagem de dinheiro com roupagem religiosa. 

4. INTERSEÇÕES ENTRE RELIGIÃO E CRIME ORGANIZADO 

4.1 Narco-religiosidade e legitimidade social do dízimo 

A interseção entre religião e crime organizado no Brasil apresenta contornos inquietantes, sobretudo nas regiões periféricas urbanas, onde emergem práticas de instrumentalização do sagrado por organizações criminosas. Um dos fenômenos mais marcantes nesse cenário é o chamado narcopentecostalismo — termo que designa a associação entre facções do narcotráfico e segmentos do cristianismo evangélico, especialmente de tradição pentecostal. Trata-se de uma reconfiguração simbólica e discursiva na qual a linguagem religiosa é utilizada não apenas como refúgio espiritual, mas como tecnologia de dominação social e legitimação moral de práticas ilícitas. 

A presença crescente de templos pentecostais em comunidades controladas por facções, a exibição de grafites com dizeres como “Jesus é o dono do lugar” e a celebração de cultos organizados por lideranças criminosas são expressões dessa simbiose entre espiritualidade e poder bélico. A narrativa religiosa, ancorada no Deus guerreiro e vingador do Antigo Testamento, é mobilizada para justificar execuções sumárias, castigos corporais e expulsões, travestindo a violência com roupagem divina. Como aponta COSTA (2023, p.129), não se trata de conversões genuínas que rompem com o passado criminoso, mas de uma reinterpretação do cristianismo que legitima a continuidade da violência sob um discurso de redenção e autoridade espiritual. 

Nesse contexto, o dízimo — prática central na cultura religiosa evangélica — adquire nova e inquietante dimensão. Tradicionalmente compreendido como oferta voluntária dos fiéis para sustento da igreja, o dízimo se torna, no âmbito do narcotráfico, um meio de inserção simbólica e de autopurificação moral. Entretanto, o que se observa é algo ainda mais profundo: a funcionalização do dízimo como instrumento de lavagem de capitais ilícitos, operando por meio da ausência de mecanismos legais que exijam a identificação dos doadores em transações religiosas. 

Diferentemente de instituições financeiras, ONGs e partidos políticos, que possuem obrigações declaratórias e mecanismos de rastreabilidade de doações, as entidades religiosas gozam de ampla liberdade para receber valores — inclusive vultosos — sem necessidade de informar a origem dos recursos ou os dados dos ofertantes. Essa lacuna legislativa, sustentada sob o manto da liberdade religiosa, transforma os templos em espaços vulneráveis à captura por interesses escusos. A pergunta que se impõe é: estariam as facções criminosas se aproveitando desse vácuo normativo para purificar bilhões de reais oriundos do tráfico de drogas, ao inseri-los no circuito religioso por meio de dízimos, ofertas e “campanhas” espirituais? 

A ausência de controle sobre essas movimentações financeiras não apenas fragiliza os princípios de transparência e prevenção à lavagem de dinheiro, como também contribui para a moralização de lucros criminosos, revestindo-os de um verniz ético perante a comunidade. O dinheiro do tráfico, quando canalizado por meio do altar, deixa de carregar o estigma da violência e se torna, paradoxalmente, expressão de fé e generosidade. A igreja, nesse arranjo, é elevada à condição de arena de purificação simbólica — espaço onde o sagrado absolve, santifica e reintegra o agente criminoso à ordem social por ele mesmo violada. 

Por fim, é imperioso destacar que essa prática compromete não apenas a integridade ética das instituições religiosas eventualmente envolvidas, mas todo o sistema de controle estatal. O fenômeno da narco-religiosidade exige, portanto, uma abordagem jurídica urgente, que respeite a liberdade de crença sem renunciar à responsabilidade fiscal, penal e institucional. A omissão legislativa — até então justificada por um temor de interferência indevida no campo da fé — deve ser revista à luz do princípio republicano da moralidade pública e do combate à criminalidade organizada. 

4.2 Relativização das fronteiras entre fé e delito 

Nas últimas décadas, observa-se um fenômeno sociológico que desafia paradigmas tradicionais da conversão religiosa: a convivência — e não a ruptura — entre universos considerados antagônicos, como a fé e o crime. O que antes era compreendido pela Teologia do Domínio como uma cisão definitiva entre o “mundo” e a “igreja”, é hoje reinterpretado pelas dinâmicas religiosas periféricas como uma negociação contínua entre o sagrado e o profano. 

A suposta fronteira rígida entre espiritualidade e criminalidade vem sendo relativizada nas favelas e periferias urbanas, particularmente nas experiências religiosas pentecostais que se articulam com o universo do tráfico de drogas. Nessas comunidades, não é incomum encontrar indivíduos que, simultaneamente, exercem atividades criminosas e ocupam funções de liderança espiritual. Essa dupla inserção revela uma forma de religiosidade flexível, em que a conversão não significa necessariamente abandono da prática delituosa, mas sim a adoção de um novo ethos, legitimado pela cosmologia pentecostal e pelos valores da comunidade local. 

Segundo CUNHA (2014, p.74), há uma “intensa disputa em torno da identidade evangélica” que se dá no interior das próprias igrejas, em razão da presença de sujeitos cuja trajetória de vida se insere em redes criminais, mas que se reivindicam evangélicos, promovendo uma sobreposição de papeis sociais e religiosos. Tais atores não são meramente tolerados: são reconhecidos por muitos como figuras de “resgate espiritual” e de autoridade moral nas comunidades onde atuam.  

O conceito de “fronteira”, nesse contexto, é ressignificado. A religiosidade nas favelas se manifesta precisamente nesse espaço liminar: entre o arrependimento e a reincidência, entre o culto e o comércio de drogas. Ao invés de uma separação nítida, nota-se a existência de “pontes entre universos simbólicos e rituais que se reconhecem mutuamente sentido e força”, como observa SANCHIS (1997, p. 109). Essa ambiguidade é ainda mais evidente nos relatos de comunidades como Acari, onde cultos evangélicos são patrocinados por traficantes e celebrados em praças e quadras públicas, com a presença de artistas gospel e líderes espirituais renomados. 

Bruno Paes Manso reforça essa convivência em sua obra A fé e o fuzil, ao narrar a história de líderes do tráfico que foram ordenados pastores e continuaram a exercer funções no crime, transformando a fé em uma linguagem de legitimidade comunitária MANSO (2023, p. 67).¹ Nessas comunidades, pastores e traficantes compartilham estratégias de gestão territorial e códigos de conduta, tornando-se “anjos de fuzil”, conforme expressão cunhada por Diogo Silva Corrêa em sua etnografia sobre a Cidade de Deus, CORRÊA (2021, p. 35).  

A fé, portanto, não apenas ressignifica o crime, como também é ressignificada por ele. Trata-se de um processo de mutualidade simbólica, onde o sagrado legitima o ilícito e este, por sua vez, dá suporte material e político à religião. Como resultado, surgem novas formas de autoridade e controle social, sustentadas simultaneamente pelo temor de Deus e pelo poder do fuzil. 

Essa realidade impõe à academia o desafio de compreender essas manifestações como expressões legítimas de religiosidade contemporânea, ainda que contraditórias em relação ao cânone teológico tradicional. A relativização das fronteiras entre fé e delito revela a capacidade do pentecostalismo em adaptar-se aos contextos mais adversos, reinventando seus próprios limites doutrinários e estabelecendo novas formas de pertencimento e mediação social. 

5. PROPOSTAS LEGISLATIVAS E REGULATÓRIAS 

5.1 Possibilidades de regulamentação sem afronta à liberdade religiosa 

A liberdade religiosa constitui direito fundamental consagrado pela Constituição Federal de 1988, sendo inviolável, nos termos do artigo 5º, inciso VI, a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos. No entanto, como todo direito fundamental, sua aplicação não é absoluta, devendo ser compatibilizada com outros valores constitucionais relevantes, como a moralidade, a segurança pública e a proteção da ordem econômica. 

É dentro dessa moldura jurídica que se insere o debate acerca da possibilidade de regulamentação das atividades financeiras de instituições religiosas, sobretudo diante de reiteradas denúncias de sua utilização para fins ilícitos, como a lavagem de dinheiro. A estrutura jurídica de muitas igrejas, aliada à imunidade tributária de que gozam, conforme previsão do artigo 150, inciso VI, alínea “b”, da Constituição (Brasil,1988), cria um ambiente propício para operações escusas, principalmente quando há ausência de controle efetivo sobre a origem dos valores arrecadados. 

As formas de obtenção de recursos por igrejas são múltiplas — dízimos, doações, eventos beneficentes e contribuições espontâneas da comunidade. Tais fontes, em princípio lícitas, tornam-se vulneráveis à infiltração de dinheiro de origem criminosa. Por exemplo, uma entidade pode registrar, em seus balancetes, que arrecadou R$ 100 mil em doações destinadas a uma quermesse, sem que haja qualquer exigência de identificação dos doadores ou comprovação material da origem dos valores. Isso facilita a introdução de recursos ilícitos no sistema financeiro formal, com aparência de licitude. 

Ainda que essas entidades sejam isentas de tributos como o Imposto de Renda e o IPTU, não estão dispensadas de prestar contas ao fisco. A obrigatoriedade de envio da Escrituração Contábil Fiscal (ECF) à Receita Federal — obrigação extensiva às pessoas jurídicas em geral — representa um mecanismo formal de controle. No entanto, a ausência de critérios rígidos de transparência e de fiscalização sistemática faz com que muitas igrejas apresentem balancetes contendo cifras supostamente oriundas de dízimos e ofertas, quando, na realidade, podem ter relação com o produto de crimes antecedentes, como tráfico de drogas, corrupção ou extorsão. 

O problema não se restringe à fase de ocultação de valores. A posterior simulação de contratos e despesas também integra a cadeia de lavagem. É possível, por exemplo, a celebração fictícia de contratos de prestação de serviços com empresas cúmplices, inflando valores para viabilizar o repasse do dinheiro a terceiros. Ou ainda, registrar contratações com salários artificialmente altos, beneficiando comparsas da organização criminosa. 

Diante desse cenário, é plenamente justificável a formulação de propostas legislativas e regulatórias que, sem interferir no conteúdo da fé ou nos rituais religiosos, visem a ampliar os mecanismos de controle e fiscalização das atividades financeiras das organizações religiosas. Tais medidas devem ter como premissa a preservação do núcleo essencial da liberdade religiosa, mas também a prevenção de abusos e o fortalecimento da transparência, compatibilizando o exercício legítimo da fé com os deveres de responsabilidade e lisura fiscal. 

Portanto, regulamentações que imponham, por exemplo, a identificação dos doadores, o exame cruzado entre movimentações bancárias e declarações contábeis, bem como a responsabilização penal e administrativa de dirigentes que participem de esquemas fraudulentos, não representam afronta à liberdade religiosa. Pelo contrário, atuam como salvaguardas do próprio sistema democrático, ao prevenir o uso indevido da imunidade tributária para acobertar práticas criminosas. 

5.2 A experiência comparada: modelos internacionais de controle 

A ausência de instrumentos normativos eficazes para rastrear a origem das doações religiosas no Brasil expõe vulnerabilidades estruturais que favorecem práticas de ocultamento patrimonial e lavagem de capitais sob o manto da liberdade religiosa. A despeito da garantia constitucional da não intervenção estatal nos assuntos internos das confissões religiosas (art. 5º, VI e VIII, CF/88), experiências internacionais demonstram que é possível compatibilizar a liberdade de culto com a responsabilidade fiscal e a transparência nas finanças eclesiásticas. 

Dentre os modelos institucionais mais emblemáticos, destaca-se o sistema alemão do Kirchensteuer — o chamado “imposto eclesiástico” —, tributo compulsório cobrado de cidadãos que se declaram membros de igrejas reconhecidas pelo Estado, como a Igreja Católica, a Igreja Evangélica (protestante) e comunidades judaicas. A legitimidade constitucional desse tributo remonta ao artigo 137, § 6, da Verfassung des Deutschen Reichs (Constituição de Weimar, de 1919), que expressamente autoriza as corporações religiosas de direito público a arrecadar tributos com base nos registros fiscais civis. Tal previsão foi integralmente recepcionada pela Lei Fundamental da Alemanha de 1949 (Grundgesetz), por meio do artigo 140, que incorporou os artigos 136 a 141 da Constituição de Weimar ao novo texto constitucional (Alemanha, 1919; 1949). O imposto é calculado com base no imposto de renda do contribuinte, variando entre 8% e 9% conforme o Estado federado (Länder), e sua arrecadação é operacionalizada pelo próprio Fisco estatal. Esse arranjo garante o pleno rastreamento das contribuições, a identificação dos doadores e a transparência das operações, mitigando consideravelmente os riscos de utilização de entidades religiosas para fins ilícitos. 

Por outro lado, o Vaticano — centro simbólico da cristandade — representa o contraponto desse modelo de accountability. Sua configuração jurídica sui generis, marcada por uma monarquia eclesiástica eletiva e pela inexistência de mercado ou economia aberta, favoreceu ao longo do último século uma cultura de sigilo extremo e permissividade institucional em matéria financeira. A sucessão de escândalos envolvendo o Instituto para as Obras de Religião (IOR), conhecido como Banco do Vaticano, tornou-se objeto de escrutínio internacional, revelando práticas incompatíveis com os padrões internacionais de integridade financeira (EUROPEAN CEO 2023). 

Dentre os episódios mais emblemáticos, destaca-se o colapso do Banco Ambrosiano, em 1982, cujo rombo de mais de US$ 3 bilhões envolvia diretamente o IOR como principal acionista. O então presidente do banco, Roberto Calvi, conhecido como “Banqueiro de Deus”, foi encontrado morto sob a Ponte Blackfriars, em Londres, em circunstâncias altamente suspeitas. Em 1987, três clérigos do Vaticano foram alvo de mandados de prisão por parte da Justiça italiana por participação na falência fraudulenta, mas os pedidos foram rejeitados com base em tratados bilaterais, e as ordens de prisão acabaram revogadas pela Corte de Apelação da Itália. 

Outro caso notório envolveu o Monsenhor Nunzio Scarano, preso em 2013 sob acusação de tentar contrabandear € 20 milhões da Suíça para a Itália utilizando avião particular, em conluio com um ex-agente secreto e um corretor financeiro. À época, Scarano exercia função de relevância no departamento de contabilidade do patrimônio da Santa Sé. Segundo o Financial Times, o escândalo foi catalisador de profundas reformas, impulsionadas pela pressão de bancos internacionais e da própria União Europeia, que culminaram na reestruturação do sistema de governança do IOR e na implementação de auditorias externas e protocolos de compliance (FINANCIAL TIMES 2013). 

Relatórios oficiais e investigações internacionais evidenciaram graves deficiências nos mecanismos de controle interno do Instituto para as Obras de Religião (IOR), especialmente em anos anteriores às reformas promovidas a partir de 2013. Entre os principais problemas estavam a falta de mecanismos rigorosos de identificação de clientes (know your customer), a existência de contas com titularidade obscura e a realização de transações financeiras vultosas sem justificativa documental clara. Segundo relatório do Moneyval — órgão do Conselho da Europa responsável pela avaliação de medidas de combate à lavagem de dinheiro —, o IOR apresentou, apenas em 2013, mais de uma centena de operações suspeitas, algumas das quais envolviam transferências internacionais incompatíveis com a finalidade institucional da entidade (REUTERS, 2025). Tais constatações foram determinantes para o início de reformas estruturais no banco do Vaticano, incluindo a implementação de auditorias externas, protocolos de compliance e acordos internacionais de troca de informações financeiras. 

Com a elevação do Papa Francisco ao pontificado, uma nova fase se instaurou. Medidas significativas foram implementadas, incluindo a nomeação de especialistas em governança financeira, como Ernst von Freyberg e René Bruelhart, além da adesão à rede Egmont e da celebração de acordos de troca de informação financeira com diversos países. Segundo a Reuters, apenas em 2024, o número de atividades financeiras suspeitas no Vaticano caiu em um terço, com onze casos sendo encaminhados para possível persecução penal (REUTERS, 2025). 

A experiência comparada evidencia que a opacidade financeira no âmbito religioso não apenas compromete a integridade das instituições eclesiásticas, como também pode fomentar redes criminosas transnacionais. Por outro lado, modelos como o alemão demonstram que é possível compatibilizar liberdade religiosa com controle fiscal e transparência institucional. Em face do crescente uso indevido de organizações religiosas por facções criminosas, como se verifica inclusive no contexto brasileiro, urge o avanço de mecanismos de rastreabilidade financeira como medida de proteção da ordem econômica e da moralidade pública. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A simbiose entre práticas religiosas e esquemas de ocultação patrimonial constitui, nos tempos atuais, um dos mais intrincados desafios à repressão da criminalidade organizada no Brasil. A presente investigação evidenciou que, embora o ordenamento jurídico brasileiro disponha de arcabouço normativo para o enfrentamento da lavagem de capitais, permanece omisso quanto à regulamentação das doações religiosas, criando um espaço de opacidade fiscal e institucional que favorece a atuação de agentes criminosos sob o escudo da fé. 

O estudo demonstrou que facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Terceiro Comando Puro (TCP) têm explorado essa lacuna de forma sistemática, utilizando templos religiosos — reais ou fictícios — como vetores de inserção de capitais ilícitos no sistema econômico formal. A ausência de exigência legal de identificação dos doadores, aliada à imunidade tributária garantida pelo art. 150, VI, “b”, da Constituição Federal (BRASIL, 1988), converte determinadas organizações religiosas em canais privilegiados de dissimulação patrimonial, sem que sobre elas recaia qualquer dever concreto de transparência ou accountability

A análise empírica de casos emblemáticos — como os de Valdeci “Colorido”, Álvaro “Peixão”, e os pastores Silas Malafaia e Valdemiro Santiago — permite constatar a gravidade do fenômeno: não se trata de meras hipóteses teóricas, mas de práticas reiteradas que tangenciam crimes financeiros, alimentam estruturas de poder paralelo e ameaçam diretamente a moralidade pública e a paz social. Em todos esses episódios, a religiosidade deixa de ser expressão de fé para se transformar em biombo jurídico de ocultação de ativos. 

Nesse contexto, a experiência internacional — em especial o modelo alemão do Kirchensteuer — apresenta-se como paradigma regulatório digno de reflexão. Ao atrelar a contribuição religiosa ao sistema tributário estatal, exigindo a identificação do contribuinte e a rastreabilidade dos valores, o Estado alemão logra compatibilizar a liberdade de crença com os princípios da responsabilidade fiscal e da moralidade administrativa. Embora tal modelo não possa ser transplantado de forma acrítica para o contexto brasileiro, oferece valiosas lições quanto à possibilidade de implementar mecanismos de controle sem incorrer em violação à autonomia das confissões religiosas. 

O presente trabalho não propugna pela criminalização da fé, tampouco pela intervenção indevida do Estado nas práticas religiosas legítimas. Ao contrário, defende que a liberdade religiosa deve caminhar pari passu com os deveres de integridade, transparência e responsabilidade social. Em uma República fundada na laicidade, o sagrado não pode ser utilizado como excludente de ilicitude ou zona franca para práticas delituosas. 

Em face do exposto, conclui-se que a regulamentação das doações religiosas, mediante imposição de obrigações mínimas de identificação dos ofertantes e prestação de contas por parte das entidades receptoras, é medida que se impõe com urgência. Trata-se de passo necessário para a proteção não apenas da ordem econômica e da segurança pública, mas também da própria legitimidade das instituições religiosas, que não podem ter sua credibilidade corroída por aqueles que, sob o manto da fé, perpetuam esquemas de criminalidade organizada. 


¹ Nota: a numeração da página corresponde à versão digital (PDF) da obra.

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INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS – IHU. O traficante fundamentalista que usa a Bíblia para justificar a violência contra padres no Complexo de Israel. São Leopoldo: IHU, 21 fev. 2024. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/641307-otraficante-fundamentalista-que-usa-a-biblia-para-justificar-a-violencia-contra-padresno-complexo-de-israel Acesso em: 5 abr. 2025. 

JOSINO, Josmar. “Chefe do PCC abriu 7 igrejas evangélicas com dinheiro do tráfico, diz MP”. UOL, 14 fev. 2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/josmar-jozino/2023/02/14/chefe-do-pcc-abriu-7igrejas-evangelicas-com-dinheiro-do-trafico-dizmp.htm#:~:text=O%20preso%20Valdeci%20Alves%20dos,im%C3%B3veis%2C%20f azendas%20e%20rebanhos%20bovinos Acesso em: 21 set. 2024. 

JOSINO, Josmar. “Núcleo de pastores do PCC movimentou R$ 206 milhões em 18 anos, diz MP-RN”. UOL, 28 maio 2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/josmar-jozino/2023/05/28/nucleo-de-pastores-dopcc-movimentou-r-206-milhoes-em-18-anos-diz-mp-rn.htm Acesso em: 21 set. 2024. 

REUTERS. Suspicious financial activity at Vatican falls by a third, watchdog says. Londres, 9 abr. 2025. Disponível em: https://www.reuters.com/world/europe/suspicious-financial-activity-vatican-falls-bythird-watchdog-says-2025-04-09/  Acesso em: 16 abr. 2025. 

SCIELO. Oração de traficante: uma etnografia. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ha/a/GH9gjD3WrptL4QpMFfMxp4L/ Acesso em: 21 set. 2024. 

THE INTERCEPT BRASIL. Universal embolsa R$ 33 bilhões em doações bancárias. 20 jul. 2022. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2022/07/20/universalembolsa-33-bilhoes-em-doacoes-bancarias/ Acesso em: 29 mar. 2025. 

UOL. PCC e as igrejas: por que templos funcionam para lavar dinheiro? 17 fev. 2023. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimasnoticias/2023/02/17/por-que-o-crime-usa-igrejas-para-lavar-dinheiro.htm Acesso em: 29 mar. 2025.


1Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário UNA de Bom Despacho, Minas Gerais. felipe22senna@gmail.com
2Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário UNA de Bom Despacho, Minas Gerais. filipeaurora@hotmail.com