PARENTAL CIVIL LIABILITY IN THE CONTEXT OF PARENTAL ABANDONMENT
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10248122152
Gabrielly Letícia Siqueira Xavier[1]
Grazielly dos Anjos Fontes Guimarães[2]
RESUMO
O presente artigo examina a responsabilidade civil no contexto do abandono parental, abordando os fundamentos jurídicos e as implicações sociais dessa prática. A pesquisa adota uma metodologia de revisão bibliográfica com abordagem qualitativa, analisando legislações, doutrinas e jurisprudências pertinentes para compreender a evolução e a aplicação do conceito de responsabilidade civil em casos de abandono material e afetivo. O estudo revela que a jurisprudência recente tem reconhecido a possibilidade de indenização por danos morais e materiais decorrentes do abandono parental, destacando a importância da presença afetiva e do sustento adequado para o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes. A responsabilidade civil emerge como um instrumento crucial para a proteção dos direitos dos filhos, promovendo a reparação dos danos sofridos e incentivando comportamentos parentais que respeitem e valorizem a dignidade e o bem-estar das crianças. Conclui-se que a responsabilização civil por abandono parental é fundamental para assegurar a justiça e a equidade nas relações familiares, garantindo que os direitos das crianças e adolescentes sejam efetivamente protegidos e respeitados.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Abandono Parental. Afeto. Estatuto da Criança e do Adolescente. Código Civil.
1 INTRODUÇÃO
O abandono parental se configura como uma das mais graves violações aos direitos fundamentais das crianças e adolescentes, gerando profundos impactos emocionais, sociais e jurídicos. No contexto do Direito de Família, a responsabilidade civil por abandono parental emerge como um mecanismo essencial para a proteção e reparação dos direitos violados, estabelecendo a obrigação dos pais de indenizar os danos causados por suas omissões.
Esse tema adquire crescente relevância à medida que a jurisprudência e a doutrina evoluem para reconhecer a importância das relações socioafetivas e a necessidade de garantir um ambiente familiar que promova o desenvolvimento integral dos filhos.
O Código Civil brasileiro e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) formam o arcabouço jurídico que fundamenta a responsabilidade civil no contexto do abandono parental, impondo deveres de sustento, guarda e educação que, quando negligenciados, podem resultar em severas consequências legais.
A negligência material, caracterizada pela falta de provisão das necessidades básicas como alimentação, vestuário e cuidados médicos, e o abandono afetivo, manifestado pela ausência de apoio emocional e presença efetiva, configuram atos ilícitos que comprometem o bem-estar físico e psicológico dos filhos, justificando a reparação dos danos sofridos.
Nesse sentido, o presente artigo se propõe a analisar a responsabilidade civil por abandono parental sob uma perspectiva jurídica e social, explorando os fundamentos legais e as interpretações jurisprudenciais que orientam a indenização por danos materiais e morais causados por essa omissão.
A análise é ancorada na interpretação do artigo 927 do Código Civil, que estabelece a obrigação de reparar danos resultantes de atos ilícitos, e no artigo 3º do ECA, que assegura os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, promovendo a responsabilidade parental como elemento crucial para o seu desenvolvimento integral.
O estudo da responsabilidade civil por abandono parental se reveste de importância no cenário jurídico atual, onde a proteção dos direitos das crianças e adolescentes se destaca como um imperativo moral e legal.
2 REVISÃO DE LITERATURA
A responsabilidade civil por abandono afetivo parental tem sido um tema amplamente debatido na literatura jurídica e no campo das ciências humanas, refletindo a crescente preocupação com os direitos e o bem-estar das crianças e adolescentes.
O abandono afetivo, que ocorre quando um dos pais negligencia suas responsabilidades emocionais e afetivas, pode gerar danos psicológicos profundos, justificando a busca por reparação por meio de ações judiciais.
O conceito de responsabilidade civil no contexto do abandono afetivo parental se fundamenta na obrigação de reparar os danos causados pela omissão dos deveres de cuidado e afeto. A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 227, o dever de a família, a sociedade e o Estado assegurarem à criança e ao adolescente o direito à convivência familiar, essencial para o seu desenvolvimento integral (BRASIL, 1988).
O Código Civil Brasileiro, em sua versão atual, reforça essa obrigação, especialmente no artigo 186, que define a responsabilidade civil por ato ilícito, incluindo as omissões que causem dano a outrem (BRASIL, 2002). Esta base legal é complementada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n.º 8.069/1990, que dispõe sobre a proteção integral da criança e do adolescente, enfatizando a importância da convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990a).
O supracitado precedente abriu caminho para a consolidação de entendimentos similares em tribunais inferiores, destacando a relevância da responsabilidade civil como instrumento de proteção dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes.
Diversos estudos acadêmicos têm analisado as implicações do abandono afetivo e a fundamentação da responsabilidade civil neste contexto. Almeida, Alencar e Rego (2024) discutem os aspectos legais e emocionais envolvidos, argumentando que a falta de afeto e cuidado parental pode causar sérios danos psicológicos, justificando a indenização como forma de reparação e dissuasão (ALMEIDA; ALENCAR; REGO, 2024).
Oliveira e Melo (2017) exploram a evolução histórica e jurídica do conceito de responsabilidade civil por abandono afetivo, destacando a importância de uma abordagem que considere tanto os aspectos legais quanto os psicossociais. Eles defendem que a indenização não é apenas uma medida punitiva, mas também uma forma de reconhecer e mitigar o sofrimento da vítima (OLIVEIRA; MELO, 2017).
A compreensão do abandono afetivo parental e sua repercussão jurídica também requer uma análise da evolução histórica e social da instituição familiar. A família, ao longo dos séculos, passou por transformações significativas, desde as estruturas patriarcais das sociedades antigas até as configurações mais diversas e inclusivas da contemporaneidade.
Historicamente, a família era vista principalmente como uma unidade econômica e de reprodução social. No Brasil, o Código Civil de 1916 refletia essa visão tradicional, onde a autoridade paterna era predominante e os deveres parentais se concentravam mais na provisão material do que no cuidado afetivo (BRASIL, 1916).
A Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002 trouxeram avanços significativos, reconhecendo a igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges e enfatizando a importância do afeto e do cuidado emocional como elementos essenciais da convivência familiar (BRASIL, 1988; BRASIL, 2002). Essas mudanças refletem uma evolução na percepção da família, que passa a ser valorizada não apenas como unidade econômica, mas também como núcleo de apoio emocional e desenvolvimento pessoal.
As mudanças nas estruturas familiares e nas expectativas sociais em relação ao papel dos pais impactaram diretamente o desenvolvimento das normas jurídicas sobre responsabilidade civil por abandono afetivo. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor, apesar de tratarem de temas diferentes, compartilham a preocupação com a proteção dos vulneráveis e a promoção de relações justas e equilibradas (BRASIL, 1990a; BRASIL, 1990b).
Estudos como os de Silva (2020) e Vieira (2022) aprofundam a análise da responsabilidade civil no contexto do abandono afetivo parental, explorando casos concretos e discutindo a adequação das indenizações como forma de justiça e reparação. Silva (2020) argumenta que o reconhecimento jurídico do abandono afetivo é um passo importante para garantir os direitos das crianças e adolescentes, enquanto Vieira (2022) destaca a necessidade de uma abordagem mais humanizada e menos punitiva, que considere as complexidades das relações familiares (SILVA, 2020; VIEIRA, 2022).
A fundamentação teórica sobre a responsabilidade civil no contexto do abandono afetivo parental revela uma área complexa e multifacetada, onde os aspectos legais, sociais e emocionais se entrelaçam.
A evolução da jurisprudência e as mudanças na percepção da família refletem uma sociedade em constante transformação, buscando equilibrar a proteção dos direitos das crianças e adolescentes com a realidade das relações familiares.
A análise da literatura existente, incluindo estudos acadêmicos e precedentes judiciais, fornece uma base sólida para compreender a importância da responsabilidade civil como instrumento de reparação e justiça no contexto do abandono afetivo parental.
3 METODOLOGIA
Para a confecção do presente artigo, foi utilizada a revisão bibliográfica, a qual consiste na coleta, análise e síntese de informações provenientes de materiais já publicados, como livros, artigos científicos, teses, dissertações e documentos institucionais.
A primeira etapa da revisão bibliográfica envolveu a definição dos critérios de inclusão e exclusão dos materiais a serem analisados. Foram selecionadas publicações relevantes, preferencialmente dos últimos dez anos, que tratam do tema da indenização no contexto do abandono afetivo parental, bem como textos clássicos que fundamentam o entendimento jurídico e social da instituição familiar.
Posteriormente, realizou-se uma leitura exploratória dos materiais selecionados para identificar os principais conceitos, teorias e abordagens pertinentes ao tema. A leitura analítica permitiu a organização das informações de maneira sistemática, facilitando a identificação de lacunas no conhecimento existente e a definição de um marco teórico consistente.
A abordagem qualitativa foi escolhida por sua adequação ao objetivo de explorar e compreender fenômenos complexos e subjetivos, como as implicações jurídicas e sociais do abandono afetivo parental.
Neste trabalho, a abordagem qualitativa permitiu uma análise aprofundada dos textos selecionados na revisão bibliográfica, possibilitando a identificação de padrões e tendências teóricas e práticas.
Por conseguinte, a metodologia adotada neste trabalho, baseada na revisão bibliográfica com abordagem qualitativa, mostrou-se adequada para alcançar os objetivos propostos e fornecer uma compreensão abrangente e aprofundada do tema da indenização no contexto do abandono afetivo parental.
4 RESULTADOS E DISCUSSÕES
Historicamente, a legislação brasileira, especialmente até a primeira metade do século XX, refletia uma visão conservadora da família (OLIVEIRA & MELO, 2017). O Código Civil de 1916, por exemplo, baseava-se em uma estrutura que valorizava o casamento como único meio legítimo de formação de uma família e estabelecia um modelo hierárquico onde o marido era considerado o chefe da família, com amplos poderes sobre a esposa e os filhos (BRASIL, 1916).
Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 representou um marco na evolução do conceito jurídico de família no Brasil, tendo em vista que esse documento reconheceu a pluralidade das formas de constituição familiar, atribuindo proteção constitucional a diferentes arranjos familiares (BRASIL, 1988).
A partir de então, a família deixou de ser vista apenas como uma unidade matrimonial heterossexual e patriarcal, passando a ser reconhecida como uma entidade socioafetiva que poderia ser formada por outros vínculos afetivos. A Carta Magna de 1988, em seu artigo 226, definiu que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado, e ampliou essa proteção aos diversos tipos de união, incluindo as uniões estáveis e monoparentais (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
Outro avanço significativo ocorreu com a introdução do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, que consolidou a visão da família como um núcleo de afeto e cuidado. O ECA reforçou a importância do vínculo afetivo na constituição da família, ressaltando que a convivência familiar é um direito fundamental das crianças e adolescentes, independentemente da configuração familiar (BRASIL, 1990a).
A lei consagrou o princípio do melhor interesse da criança, colocando a necessidade de proteção e o bem-estar do menor como prioridade em todas as questões relativas à família (BRASIL, 1990a).
A jurisprudência também desempenhou um papel crucial na expansão do conceito de família, haja vista que em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, ampliando a definição de família para incluir casais homoafetivos (OLIVEIRA & MELO, 2017).
Esse reconhecimento formalizou a equiparação de direitos para casais homoafetivos e possibilitou que esses casais tivessem os mesmos direitos e deveres que os casais heterossexuais, incluindo a adoção e a sucessão.
Mais recentemente, a noção de família continua a evoluir com o reconhecimento de outros arranjos familiares, como as famílias reconstituídas, onde os membros têm filhos de relacionamentos anteriores, e as famílias anaparentais, compostas por indivíduos que não possuem vínculo biológico entre si, mas que convivem como uma família (SILVA, 2020).
Portanto, a evolução jurídica do conceito de família no Brasil demonstra uma trajetória de abertura e inclusão, que reconhece e legitima a diversidade de estruturas familiares que emergem na sociedade contemporânea.
Esse desenvolvimento reflete um movimento progressivo em direção ao reconhecimento da dignidade e dos direitos individuais dentro de um contexto familiar, onde o afeto, o cuidado e o compromisso mútuo são os elementos centrais, independentemente da forma específica que a família assume.
4.1 Princípios norteadores
O Direito de Família é regido por princípios fundamentais que orientam a aplicação das normas e asseguram a proteção dos direitos individuais dentro das relações familiares, de modo a refletir a evolução das concepções de família, tendo como objetivo promover a dignidade, a igualdade e o bem-estar de seus membros, garantindo uma abordagem inclusiva e solidária.
De início, tem-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é a base do Direito de Família e permeia todas as relações jurídicas familiares. Consagrado pela Constituição Federal de 1988, este princípio reconhece que cada indivíduo possui um valor intrínseco que deve ser respeitado e protegido em todas as circunstâncias (BRASIL, 1988).
No contexto familiar, isso significa que todas as decisões e políticas devem respeitar a integridade, autonomia e os direitos fundamentais de cada membro da família, assegurando um ambiente de respeito e proteção às suas necessidades emocionais, físicas e morais.
Por sua vez, o princípio da solidariedade familiar complementa essa abordagem ao enfatizar a importância das responsabilidades mútuas entre os membros da família. A solidariedade familiar implica um dever de assistência, cooperação e cuidado recíproco, refletindo uma visão de interdependência que é fundamental para o apoio e a coesão do núcleo familiar (SILVA, 2020).
Esse princípio se manifesta em diversas obrigações legais, como a prestação de alimentos entre cônjuges e parentes, e o dever de sustento, guarda e educação dos filhos. A solidariedade é vista não apenas como uma obrigação jurídica, mas como um valor moral que fortalece os laços familiares e promove o bem-estar coletivo (VIEIRA, 2022).
O princípio da igualdade é outro pilar essencial do Direito de Família, posto que garante que todos os indivíduos sejam tratados de forma justa e equitativa, independentemente de gênero, orientação sexual, origem ou qualquer outra condição (SILVA, 2020). A igualdade no contexto familiar se manifesta na equiparação de direitos e deveres entre homens e mulheres, na proteção contra discriminação e na promoção da equidade nas relações entre pais e filhos (OLIVEIRA & MELO, 2017).
Dessa forma, compreende-se que esse princípio foi fundamental para a evolução das normas que regulam o casamento, a guarda compartilhada e a sucessão, assegurando que todos os membros da família tenham suas vozes e interesses igualmente considerados.
Ademais, o princípio do pluralismo familiar reflete a realidade contemporânea da diversidade das formas de constituição familiar, ao passo que reconhece e legitima a existência de diferentes arranjos familiares além do modelo tradicional de pai, mãe e filhos (SILVA, 2020).
Esse princípio abrange uniões estáveis, famílias monoparentais, homoafetivas, reconstituídas e anaparentais, assegurando que todas as configurações baseadas em laços afetivos, responsabilidade e convivência sejam respeitadas e protegidas juridicamente (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
O pluralismo familiar é um reconhecimento da evolução social e cultural, adaptando o Direito às diversas realidades vivenciadas pelas pessoas (SILVA, 2020).
Noutro ponto, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente é central no Direito de Família e orienta todas as decisões e ações que afetam menores, tendo em vista que ele prioriza o bem-estar, o desenvolvimento integral e a proteção dos direitos das crianças e adolescentes em qualquer situação de disputa ou decisão familiar (OLIVEIRA & MELO, 2017).
Além disso, ele exige que todas as medidas adotadas sejam direcionadas a promover a saúde física e emocional, a educação, a segurança e o desenvolvimento social da criança, considerando suas necessidades específicas e respeitando sua individualidade (VIEIRA, 2022).
O melhor interesse da criança orienta questões como guarda, visitação, educação e proteção contra abusos, sempre com o objetivo de assegurar o ambiente mais favorável para o seu crescimento e desenvolvimento saudável (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
Por conseguinte, é correto afirmar que os referidos princípios norteadores do Direito de Família trabalham em conjunto para assegurar que as relações familiares sejam conduzidas com respeito, equidade e proteção aos direitos fundamentais de cada indivíduo.
A dignidade da pessoa humana oferece a base ética para todas as relações e normas, enquanto a solidariedade familiar promove a responsabilidade e o apoio mútuo. A igualdade garante justiça e equidade nas interações familiares, o pluralismo reconhece a diversidade das formas de família, e o melhor interesse da criança assegura que as necessidades dos menores sejam sempre priorizadas.
Juntos, esses princípios moldam um quadro jurídico que busca proteger e promover o bem-estar de todos os membros da família, adaptando-se às complexidades e transformações da sociedade contemporânea.
4.2 O afeto na perspectiva jurídica
A natureza jurídica do afeto no Direito de Família é uma questão de crescente relevância e complexidade, refletindo a evolução das normas e princípios que regem as relações familiares. A Constituição Federal de 1988, em seus artigos 1º, III e 3º, I, estabelece os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade como fundamentos das relações intersociais, os quais sustentam implicitamente o princípio da afetividade, que dá primazia às relações socioafetivas baseadas na comunhão de vida (BRASIL, 1988).
O princípio da afetividade emerge como um elemento central no Direito de Família, diferenciando-se do mero fato psicológico do afeto. O afeto, como emoção, é subjetivo e variável, enquanto a afetividade é compreendida como um dever jurídico imposto nas relações familiares (VIEIRA, 2022). A afetividade exige que as interações entre pais e filhos sejam orientadas pelo cuidado, pelo apoio emocional e pela presença efetiva na vida do outro, mesmo na ausência de sentimentos positivos como amor ou afeição (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
A Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente delineiam uma nova concepção do poder familiar, anteriormente conhecido como pátrio poder. O poder familiar, conforme o artigo 227 da Constituição e o artigo 21 do ECA (BRASIL, 1990a), impõe aos pais ou adotantes a responsabilidade de exercer suas funções em respeito ao melhor interesse da criança. Este poder-dever se manifesta em obrigações que vão além da provisão material, abrangendo também as necessidades psíquicas e emocionais dos filhos (OLIVEIRA & MELO, 2017).
A afetividade, portanto, transcende o cuidado meramente material e implica uma responsabilidade integral dos pais para com seus filhos, ao passo que este dever de cuidado inclui o sustento, a guarda e a educação, mas também envolve a manifestação de apoio psicológico e de afeto. A falha em prover tais elementos não apenas viola as obrigações materiais, mas também afeta profundamente o desenvolvimento emocional e moral da criança, constituindo o que se denomina de abandono afetivo (SILVA, 2020).
O dever de sustento, que tem um caráter patrimonial, garante que os filhos recebam os meios necessários para sua sobrevivência e desenvolvimento, como alimentação e vestuário. O não cumprimento dessa obrigação pode resultar em sanções legais severas, incluindo a prisão civil por inadimplemento de pensão alimentícia, conforme assegurado pelo artigo 5º, LXVII da Constituição (BRASIL, 1988).
Contudo, o sustento abrange mais do que as necessidades físicas, incluindo o suporte emocional e o acompanhamento no crescimento e formação dos filhos (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
De forma complementar, o dever de guarda estabelece que os pais são responsáveis por manter os filhos sob sua proteção e convivência, assegurando-lhes um ambiente estável e seguro. Esse dever se desdobra em situações de separação ou divórcio, onde o direito de visitas e a guarda compartilhada visam preservar a convivência e os laços afetivos, sempre considerando o melhor interesse da criança (VIEIRA, 2022).
O dever de educação, por sua vez, incumbe aos pais a tarefa de fornecer aos filhos uma formação moral e intelectual adequada. Esta responsabilidade envolve não apenas a instrução formal, mas também o ensinamento dos valores e normas sociais dentro do contexto familiar, proporcionando um ambiente propício para o desenvolvimento integral da criança (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
Portanto, a natureza jurídica do afeto no Direito de Família é uma construção que reflete a necessidade de reconhecer e valorizar as dimensões emocionais e psíquicas das relações familiares. Este reconhecimento está em consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, que demandam uma abordagem holística e humanizada no tratamento das interações familiares.
O afeto, enquanto elemento fundamental dessas relações, é cada vez mais valorizado nas normas e na jurisprudência, reforçando a importância de uma convivência baseada no respeito, cuidado e apoio mútuo.
5 O ABANDONO E OS SEUS DESDOBRAMENTOS
O abandono, no contexto das relações familiares, é um fenômeno de ampla repercussão, tanto do ponto de vista emocional quanto jurídico. Caracteriza-se pela omissão voluntária ou negligente dos deveres de cuidado e assistência que são intrínsecos às relações parentais e familiares, podendo se manifestar de várias formas, cada uma com implicações específicas para o desenvolvimento dos indivíduos afetados e para as responsabilidades legais dos responsáveis.
Uma das características principais do abandono é a omissão dos deveres essenciais de sustento, guarda e educação, que são responsabilidades fundamentais dos pais ou responsáveis, os quais não se restringem apenas ao fornecimento de meios materiais para a subsistência, como alimentos, vestuário e abrigo (VIEIRA, 2022).
Incluem também a provisão de apoio emocional, orientação moral e acompanhamento no desenvolvimento integral da criança ou adolescente. A ausência desses elementos pode afetar seriamente o crescimento e a formação da personalidade do indivíduo, comprometendo sua capacidade de se integrar e participar plenamente na sociedade (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
O abandono material é um aspecto frequentemente destacado, caracterizando-se pela falta de provisão das necessidades básicas do filho, o que ocorre quando os pais ou responsáveis falham em fornecer alimentação, vestuário, cuidados médicos, educação e moradia adequados (SILVA, 2020).
A lei impõe a obrigação de sustento, e seu descumprimento pode levar a sanções legais, incluindo a prisão civil em casos de inadimplemento da pensão alimentícia. O abandono material, ao privar o indivíduo de condições mínimas de sobrevivência e desenvolvimento, pode causar danos irreparáveis à sua saúde física e ao seu bem-estar geral (SILVA, 2020).
Em complemento ao abandono material, existe o abandono afetivo, que se caracteriza pela falta de afeto, presença e apoio emocional por parte dos pais ou responsáveis. Este tipo de abandono é marcado pela ausência de um vínculo emocional estável e seguro, essencial para o desenvolvimento psíquico saudável da criança ou adolescente (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
A falta de afeto e de envolvimento emocional pode resultar em sentimentos de rejeição, insegurança e baixa autoestima, prejudicando o desenvolvimento social e emocional do indivíduo. O abandono afetivo é mais complexo de ser mensurado, pois envolve aspectos subjetivos da experiência humana, mas suas consequências são igualmente graves e duradouras.
Outro aspecto importante do abandono é a sua persistência ao longo do tempo. O abandono não se configura apenas em atos isolados de negligência, mas em um padrão contínuo de omissão dos deveres de cuidado e assistência (OLIVEIRA & MELO, 2017).
A persistência desse comportamento reflete uma falta de compromisso e responsabilidade com o bem-estar do indivíduo abandonado, exacerbando os danos causados e dificultando a sua recuperação emocional e social. Esse padrão contínuo de omissão distingue o abandono de outras formas de falha parental que podem ser pontuais ou circunstanciais (VIEIRA, 2022).
Além disso, o abandono pode ser entendido como uma violação dos direitos fundamentais da pessoa abandonada. Sobre o assunto, o ECA e a Constituição Federal garantem o direito ao desenvolvimento integral, à convivência familiar e à proteção contra negligência e abuso.
O abandono, ao privar o indivíduo desses direitos, representa uma violação grave que compromete a dignidade e o potencial de desenvolvimento da criança ou adolescente, de modo que tal violação pode justificar a responsabilização civil e até mesmo penal dos responsáveis, visando à reparação dos danos sofridos e à proteção dos direitos violados.
Outrossim, o abandono também pode ser analisado sob a perspectiva da solidariedade familiar. Este princípio jurídico e ético implica um dever de assistência mútua entre os membros da família, baseando-se na interdependência e na cooperação para o bem-estar coletivo (SILVA, 2020).
O abandono representa uma ruptura dessa solidariedade, evidenciando uma falha em honrar os compromissos e deveres inerentes às relações familiares. Essa falha compromete a coesão e a estabilidade do núcleo familiar, refletindo uma quebra dos laços de responsabilidade e cuidado que deveriam sustentar a convivência familiar (OLIVEIRA & MELO, 2017).
Finalmente, o abandono tem implicações legais e sociais significativas. Legalmente, pode resultar em ações judiciais para a reparação dos danos, determinação de pensão alimentícia, ou até mesmo a perda do poder familiar em casos extremos de negligência.
Socialmente, o abandono afeta a capacidade do indivíduo de formar e manter relacionamentos saudáveis e de se integrar de forma produtiva na sociedade. Os efeitos psicológicos e emocionais do abandono podem perdurar ao longo da vida, influenciando a autoestima, a capacidade de confiar e se relacionar com os outros, e o desenvolvimento de uma identidade positiva (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
Por conseguinte, o abandono no contexto familiar é caracterizado pela omissão contínua dos deveres de sustento, guarda e educação, pela falta de afeto e apoio emocional, e pela violação dos direitos fundamentais do indivíduo.
Suas consequências são profundas, afetando tanto o desenvolvimento físico e emocional quanto a integração social e os direitos legais dos abandonados. A compreensão dessas características é essencial para a aplicação adequada das normas jurídicas e para a promoção de um ambiente familiar que assegure a proteção e o bem-estar de todos os seus membros.
6 A RESPONSABILIDADE CIVIL
A responsabilidade civil é um princípio jurídico fundamental que visa reparar os danos causados a outrem, estabelecendo uma relação entre a ocorrência de um prejuízo e a obrigação de repará-lo. Ela se baseia na ideia de que toda ação ou omissão que cause dano a outra pessoa deve ser compensada de alguma forma, garantindo a justiça e a equidade nas relações sociais.
A responsabilidade civil tem suas raízes no direito romano e evoluiu significativamente ao longo dos séculos, adaptando-se às complexidades das sociedades modernas e integrando-se de forma profunda nos sistemas jurídicos contemporâneos (VIEIRA, 2022).
A base da responsabilidade civil é a reparação do dano. Quando alguém sofre um prejuízo, seja ele material, moral ou físico, a responsabilidade civil determina que o causador do dano deve compensar o lesado (BRASIL, 2002).
Esse princípio está presente em diversas legislações, como o Código Civil brasileiro, que estabelece em seu artigo 927 que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. O objetivo central da responsabilidade civil é restaurar a situação do lesado ao estado anterior ao dano, tanto quanto possível, por meio de compensações financeiras ou outras formas de reparação (BRASIL, 2002).
Faz-se importante destacar que existem dois tipos principais de responsabilidade civil, a saber: objetiva e subjetiva. A responsabilidade subjetiva, também conhecida como responsabilidade com culpa, requer a demonstração de que o dano foi causado por negligência, imprudência ou imperícia do agente (OLIVEIRA & MELO, 2017).
Nesse modelo, é essencial provar que houve uma conduta culposa ou dolosa que resultou no prejuízo. Por exemplo, em um acidente de trânsito, se o motorista estava dirigindo de forma imprudente, ele pode ser considerado responsável pelo dano causado.
Em contraste, a responsabilidade objetiva não exige a demonstração de culpa, mas sim a prova do nexo causal entre a ação ou omissão e o dano sofrido. Este tipo de responsabilidade é baseado no risco e é aplicado em situações onde a lei ou a jurisprudência entendem que certas atividades são inerentemente perigosas ou envolvem um risco aumentado (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
A teoria do risco, associada à responsabilidade objetiva, postula que aquele que se beneficia de uma atividade potencialmente danosa deve arcar com os custos dos danos que ela possa causar. Um exemplo clássico é a responsabilidade de fabricantes por defeitos em produtos que causam danos aos consumidores (SILVA, 2020).
O nexo causal é um elemento crucial na responsabilidade civil. Para que alguém seja considerado responsável por um dano, é necessário estabelecer um vínculo direto entre a conduta do agente e o prejuízo sofrido pelo lesado. O nexo causal assegura que a reparação seja justa, imputando a responsabilidade àquele cuja ação ou omissão foi efetivamente a causa do dano (OLIVEIRA & MELO, 2017).
A jurisprudência e a doutrina têm desenvolvido diversos critérios para avaliar o nexo causal, como a teoria da causalidade adequada, que analisa se a conduta foi apta a produzir o dano, e a teoria da equivalência das condições, que considera todas as condições que contribuíram para o resultado.
Outro aspecto relevante da responsabilidade civil é a extensão da reparação. A reparação deve ser integral, abrangendo todos os danos sofridos pelo lesado, incluindo os danos emergentes, que são as perdas diretas, e os lucros cessantes, que representam os ganhos que o lesado deixou de obter em decorrência do dano (SILVA, 2020).
Além disso, a responsabilidade civil também pode incluir a reparação de danos morais, que se referem ao sofrimento emocional e à violação de direitos da personalidade. A fixação do valor da indenização por danos morais busca compensar o sofrimento do lesado e atuar como medida de justiça e satisfação pessoal, embora não elimine o sofrimento experimentado (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
A responsabilidade civil desempenha um papel preventivo na sociedade, desestimulando comportamentos lesivos e incentivando a adoção de medidas de segurança e precaução. Ao impor a obrigação de reparar os danos, ela promove a responsabilidade social e incentiva a diligência e o cuidado nas relações interpessoais e comerciais. Este caráter preventivo é essencial para o funcionamento harmônico das relações sociais e para a manutenção da ordem e da justiça (OLIVEIRA & MELO, 2017).
Dessa forma, a responsabilidade civil é um princípio jurídico dinâmico e fundamental que busca garantir a reparação dos danos causados, promovendo a justiça e a equidade nas relações sociais (BRASIL, 1990b).
Ela se baseia na obrigação de reparar o dano, seja por meio da responsabilidade subjetiva ou objetiva, e envolve a análise do nexo causal, a extensão da reparação e a adaptação às novas realidades tecnológicas e sociais. Ao cumprir seu papel de reparar e prevenir danos, a responsabilidade civil contribui para a proteção dos direitos individuais e para a manutenção de uma convivência social justa e equilibrada.
6.1 A responsabilidade civil no contexto do abandono parental
A responsabilidade civil por abandono e a correspondente indenização se configuram como mecanismos jurídicos para reparar os danos causados pela omissão no cumprimento dos deveres de cuidado, sustento e afeto, que são essenciais nas relações familiares e parentais. Esse conceito se insere no contexto mais amplo da responsabilidade civil, que busca restabelecer a justiça e a integridade dos direitos violados, tratando especificamente da negligência afetiva e material que pode ocorrer no seio familiar.
O abandono, em termos de responsabilidade civil, refere-se à omissão dos deveres legais que os pais ou responsáveis têm em relação aos filhos, ou entre cônjuges, parceiros ou mesmo idosos (SILVA, 2020).
Esse abandono pode manifestar-se de forma material, quando não são providos os meios básicos de subsistência como alimentação, vestuário, moradia e educação; ou de forma afetiva, quando há ausência de apoio emocional, carinho, presença e orientação. Ambas as formas de abandono têm profundas repercussões na vida do abandonado, podendo causar danos que vão além do físico, atingindo o emocional e o psicológico (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
A caracterização do abandono como uma falha nos deveres parentais é amplamente reconhecida pela legislação e jurisprudência brasileiras. O Código Civil, em seu artigo 1.634, estabelece que compete aos pais dirigir a criação e educação dos filhos, entre outros deveres.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990a) reforça esse dever, garantindo o direito ao desenvolvimento integral da criança em um ambiente de afeto, amor e compreensão. A omissão no cumprimento desses deveres constitui uma violação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, e pode gerar a responsabilidade civil dos pais ou responsáveis.
O referido Estatuto estabelece direitos e garantias específicas para crianças e adolescentes, enfatizando a responsabilidade dos pais em assegurar o desenvolvimento integral de seus filhos.
Para que haja a responsabilização civil por abandono, é necessário demonstrar o nexo causal entre a omissão dos deveres e os danos sofridos pelo indivíduo, de modo que esse nexo causal estabelece que o dano emocional ou material sofrido é diretamente decorrente da negligência ou omissão de quem tinha o dever de cuidado. Destaca-se que a comprovação desse vínculo é crucial para fundamentar a indenização, pois assegura que a reparação seja justa e proporcionada à extensão dos danos causados (SILVA, 2020).
Os danos decorrentes do abandono podem ser amplamente variados. No caso do abandono material, as consequências podem incluir desnutrição, falta de acesso à educação, problemas de saúde e condições de vida inadequadas.
Já o abandono afetivo pode resultar em baixa autoestima, problemas de relacionamento, dificuldades emocionais e traumas psicológicos. Ambos os tipos de danos requerem uma abordagem adequada na determinação da indenização, considerando as circunstâncias específicas e o impacto do abandono na vida do indivíduo (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
A indenização por abandono busca reparar os danos sofridos pela vítima, oferecendo uma compensação financeira que reflita o sofrimento, a perda e os prejuízos experimentados. No caso do abandono material, a indenização pode abranger custos associados à provisão das necessidades básicas que foram negligenciadas, como despesas com alimentação, vestuário, educação e saúde (OLIVEIRA & MELO, 2017).
Já no caso do abandono afetivo, a indenização por danos morais é calculada com base na extensão do sofrimento emocional, na perda do vínculo afetivo e nas consequências psicológicas para a vítima.
A fixação do valor da indenização por abandono é um desafio que envolve a análise das circunstâncias específicas de cada caso. A jurisprudência brasileira tem reconhecido a importância de uma abordagem sensível e individualizada, que considere a gravidade da omissão, o grau de sofrimento da vítima e as consequências a longo prazo do abandono (SILVA, 2020).
Por exemplo, em casos de abandono afetivo parental, os tribunais têm avaliado a profundidade da ausência emocional e suas repercussões no desenvolvimento psicológico e social da criança ou adolescente, fixando valores que reflitam adequadamente esses fatores.
O caráter punitivo e pedagógico da indenização por abandono é também uma consideração importante. Além de proporcionar reparação à vítima, a indenização serve como um instrumento para desestimular comportamentos negligentes e promover a responsabilidade parental (ALMEIDA, ALENCAR & REGO, 2024).
Ao impor consequências financeiras pela omissão nos deveres de cuidado, a responsabilidade civil por abandono incentiva os pais e responsáveis a cumprirem seus compromissos e a manterem um ambiente de apoio, presença e afeto.
No contexto das relações familiares, a responsabilidade civil por abandono também tem implicações no que diz respeito à redefinição das obrigações e dos vínculos familiares. Em casos extremos, a falha em cumprir os deveres parentais pode levar à perda do poder familiar, com a consequente adoção de medidas que visem à proteção do bem-estar da criança ou adolescente, como a transferência de guarda ou a determinação de visitas supervisionadas.
Assim, é correto afirmar que a responsabilidade civil por abandono e a indenização são mecanismos essenciais para a proteção dos direitos das pessoas vulneráveis no âmbito familiar. Elas refletem a importância de garantir que todos os membros da família recebam o cuidado e o apoio necessário para seu desenvolvimento integral, e que a omissão desses deveres seja adequadamente reparada.
Por meio da indenização, busca-se não apenas compensar a vítima pelos danos sofridos, mas também promover uma cultura de responsabilidade e cuidado nas relações familiares, assegurando a justiça e a dignidade das pessoas afetadas pelo abandono.
6.2 A indenização no contexto do abandono afetivo parental
Conforme já explicitado, o abandono afetivo parental se refere à negligência emocional e afetiva por parte dos pais em relação aos filhos, que se manifesta pela falta de cuidado, apoio, atenção e amor necessários ao desenvolvimento saudável da criança ou adolescente.
Essa omissão parental pode resultar em danos psicológicos profundos, afetando o desenvolvimento emocional, social e até físico dos filhos. No contexto jurídico, a questão central é a possibilidade de se pleitear uma indenização por danos morais em decorrência desse abandono afetivo.
Historicamente, o direito brasileiro focou mais nos aspectos materiais da responsabilidade parental, como o dever de sustento, guarda e educação, previstos no Código Civil. No entanto, a evolução social e a crescente valorização dos direitos da criança e do adolescente, especialmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do ECA, trouxeram à tona a necessidade de se considerar também os danos emocionais causados pela omissão afetiva dos pais (VIEIRA, 2022).
Sobre o tema, é correto afirmar que a jurisprudência brasileira tem avançado na direção de reconhecer a indenização por abandono afetivo. Um dos marcos importantes nesse sentido foi o julgamento do Recurso Especial 1.159.242/SP pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2012, onde se reconheceu a possibilidade de indenização por danos morais decorrentes do abandono afetivo paterno (BRASIL, 2012):
EMENTA: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leiase, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática – não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido (STJ – REsp: 1159242 SP 2009/0193701-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 24/04/2012, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/05/2012 RDDP vol. 112 p. 137 RDTJRJ vol. 100 p. 167 RSTJ vol. 226 p. 435).
No acórdão, o ministro relator destacou a importância do afeto no desenvolvimento humano e a responsabilidade dos pais em propiciar um ambiente familiar saudável e amoroso.
Entretanto, a aplicação prática desse entendimento jurídico enfrenta vários desafios. Um dos principais é a dificuldade em mensurar o dano emocional sofrido pelo filho abandonado, uma vez que este tipo de dano possui uma natureza subjetiva e complexa (OLIVEIRA & MELO, 2017).
O processo de reconhecimento e quantificação do dano moral por abandono afetivo exige uma análise criteriosa e detalhada de cada caso concreto. Nesse sentido, o judiciário tem buscado um equilíbrio entre a necessidade de responsabilizar os pais negligentes e a preservação dos laços familiares, promovendo uma abordagem que prioriza a mediação e a busca por soluções que favoreçam a reconstrução das relações familiares, sempre que possível, conforme é possível depreender, também, da jurisprudência colacionada a seguir (VIEIRA, 2022):
(…) Quando se discute abandono afetivo, é sempre importante frisar que o dever descumprido não é o de afeto, porque não pode ser imposto ou medido. Exigem-se as manifestações externas de cuidado e atenção, primeiramente como consequência do poder familiar e, em seguida, como consequência dos deveres mínimos que as relações familiares exigem, enquanto base da sociedade (art. 226, CF). Assim, se essa legítima expectativa é quebrada e causa ofensa à integridade psíquica, configura-se o dano moral passível de compensação financeira. (…) 14. Os atributos psíquicos do ser humano estão relacionados aos sentimentos de cada indivíduo. A própria noção de saúde passa pela higidez mental. A ideia de dignidade humana carrega em si um desejado equilíbrio psicológico. São ilícitas, portanto, as condutas que violam e afetam a integridade psíquica, que causam sentimentos negativos e desagradáveis, como tristeza, vergonha, constrangimento etc. Em conclusão, o dano moral se constitui a partir de ofensa a direitos da personalidade, entre os quais está o direito à integridade psíquica. A dor – afetação negativa do estado anímico – não é apenas um dado que serve para aumento do quantum indenizatório. 15. No caso, está demonstrada a negligência paterna caracterizadora do abandono afetivo com relação ao filho, que tem, atualmente, 28 anos de idade. Embora alegue que não possuía conhecimento do filho, o autor demonstrou que, desde 1994, buscou o reconhecimento da paternidade do réu. É inequívoco que o pai tinha conhecimento da existência do filho. O autor ainda demonstrou que sua irmã já participava de festas de aniversário, mesmo antes do reconhecimento da paternidade do réu, o que corrobora com as afirmações do abandono efetivo. 16. Em que pesem os argumentos apresentado pelo pai, o dano – ofensa à integridade psíquica – suportado pelo filho pelo abandono parental é presumido (in re ipsa) em face do contexto fático. Em outros termos, o abandono (quadro fático) do pai ao filho que cresce sem a figura paterna gera presunção de dor psíquica sofrida. A obrigação dos pais cuidarem dos filhos é dever que independe de prova ou do resultado causal da ação ou omissão. Os argumentos utilizados para justificar o abandono afetivo não são suficientes para tornar lícita a negligência paterna. 17. A quantificação da verba compensatória deve ser pautada nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, com a compensação do mal injusto experimentado pela vítima. Ponderam-se o direito violado, a gravidade da lesão (extensão do dano), as circunstâncias e consequências do fato. A quantia, ademais, não pode configurar enriquecimento exagerado da vítima. 18. Na hipótese, o valor foi devidamente justificado com base no tempo e intensidade do abandono e na ausência de tentativas de reaproximação. Desse modo, em razão de tudo o que foi dito e em observância aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, impõe-se a manutenção da verba compensatória fixada pelo juízo, em razão dos danos morais sofridos, no importe de R$ 30.000,00, que bem atende aos critérios e objetivos acima indicados e não se configura excessiva a ponto de caracterizar enriquecimento sem causa.” Acórdão 1673416, 07023398120218070001, Relator Designado: LEONARDO ROSCOE BESSA, Sexta Turma Cível, data de julgamento: 1º/3/2023, publicado no DJE: 20/3/2023 (TJDFT, 2024).
Faz-se relevante destacar necessidade de provas robustas quanto ao nexo causal. Isso porque, os Tribunais têm exigido a apresentação de evidências que comprovem o impacto psicológico do abandono, como laudos periciais, testemunhos e registros históricos que demonstrem a ausência do genitor e suas consequências no desenvolvimento do filho.
Sem essa comprovação, a alegação de dano moral por abandono parental corre o risco de ser indeferida, pois o Judiciário não pode presumir o sofrimento ou dano apenas com base na ausência parental.
Em um exemplo específico, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul analisou um caso em que se pleiteava indenização por abandono afetivo. O apelante argumentou que havia provas suficientes de que o pai nunca prestou auxílio material ou moral à filha, e requereu uma indenização no valor de R$ 300 mil. Contudo, a decisão de primeira instância foi mantida, negando o pedido de indenização (ADFAS, 2024).
O relator do caso, desembargador Ary Raghiant Neto, destacou que, para a reparação por abandono afetivo, é necessário demonstrar o descumprimento do dever de cuidado para com a prole. Ele explicou que, conforme o entendimento atual da jurisprudência, é preciso observar os requisitos para a reparação civil previstos no Código Civil: ato ilícito, dano e nexo de causalidade (ADFAS, 2024).
No caso em questão, o genitor rompeu abruptamente a relação com a filha após a dissolução da união estável com a mãe, mantendo apenas relações protocolares com a criança, o que foi considerado insuficiente para caracterizar o indispensável dever de cuidar. Todavia, o relator enfatizou que, embora a falta de convívio com o pai pudesse ter acarretado inseguranças ou traumas, o dano alegado deve ser comprovado de maneira incontestável (ADFAS, 2024).
A decisão unânime pela negativa do pedido de indenização ilustra a importância de uma prova robusta do nexo causal entre o abandono parental e o dano moral alegado, haja vista que, sem essa comprovação, mesmo a demonstração de uma conduta omissiva por parte do genitor pode não ser suficiente para fundamentar a condenação (ADFAS, 2024).
Assim, para o êxito de ações judiciais desse tipo, é essencial a apresentação de provas técnicas e circunstanciais que evidenciem de forma clara a ligação entre a omissão do dever parental e os danos psicológicos ou emocionais sofridos pela criança.
Destarte, a indenização no contexto do abandono afetivo parental representa um avanço na proteção dos direitos das crianças e adolescentes, reconhecendo a importância do afeto no desenvolvimento humano e a responsabilidade dos pais em proporcionar um ambiente familiar saudável e amoroso.
Apesar dos desafios e controvérsias, a evolução jurisprudencial e doutrinária aponta para uma maior sensibilidade e compreensão das necessidades emocionais dos filhos, reforçando a ideia de que o amor e o cuidado são elementos essenciais na construção de uma sociedade mais justa e solidária.
7.CONCLUSÃO
A análise da responsabilidade civil no contexto do abandono parental revela a importância crescente desse instituto como meio de proteção e reparação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes. O abandono parental, seja material ou afetivo, constitui uma violação grave dos deveres legais dos pais, comprometendo o desenvolvimento integral dos filhos e causando danos que vão além das necessidades básicas, abrangendo também aspectos emocionais e psicológicos.
A jurisprudência e a doutrina têm evoluído para reconhecer a complexidade dessas violações e a necessidade de reparação integral, tanto pelos prejuízos materiais quanto pelos danos morais e afetivos sofridos pelos filhos.
A revisão bibliográfica conduzida evidencia que a aplicação da responsabilidade civil no abandono parental é fundamentada em princípios sólidos do Direito de Família, como o dever de sustento, guarda e educação, conforme disposto no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente.
A omissão dos pais em cumprir esses deveres resulta em uma obrigação legal de reparação, que visa não apenas compensar os prejuízos causados, mas também servir como um incentivo para a adoção de comportamentos que respeitem os direitos dos filhos e promovam um ambiente familiar saudável e protetor.
As decisões judiciais recentes refletem uma tendência jurisprudencial de reconhecer a indenização por abandono parental, especialmente no que tange ao abandono afetivo, demonstrando um entendimento mais sensível e humanizado da responsabilidade parental.
A atribuição de danos morais em casos de abandono afetivo representa um avanço significativo, destacando a importância do afeto e da presença emocional dos pais no desenvolvimento equilibrado e saudável das crianças e adolescentes.
Outrossim, percebeu-se que a caracterização do dano afetivo em ações de indenização por abandono parental não pode ser presumida, sendo imprescindível que o requerente demonstre, de forma concreta, a existência de um prejuízo emocional ou psicológico decorrente da omissão do genitor. Para tanto, a produção de provas é fundamental, sendo essencial a apresentação de documentos que evidenciem o impacto do abandono na vida do filho.
Exemplos de provas relevantes incluem atestados e laudos emitidos por profissionais da saúde mental, como psiquiatras e psicólogos, que possam atestar a existência de transtornos emocionais, traumas ou outras consequências psicológicas resultantes da ausência de cuidado e afeto por parte do genitor. Esses documentos devem detalhar não apenas o estado mental do requerente, mas também estabelecer uma ligação clara entre o comportamento omissivo do genitor e o dano sofrido.
Portanto, a responsabilidade civil por abandono parental não apenas garante a reparação dos danos causados, mas também reforça a centralidade da proteção dos direitos das crianças e adolescentes na dinâmica familiar. Este estudo contribui para o aprofundamento do debate jurídico sobre a aplicação da responsabilidade civil no abandono parental e para a construção de uma prática jurídica que valorize a dignidade e o bem-estar dos filhos.
Conclui-se que a responsabilização civil é um mecanismo essencial para assegurar que os direitos das crianças e adolescentes sejam efetivamente protegidos e respeitados, promovendo a justiça e a equidade nas relações familiares e estimulando uma convivência mais harmônica e responsável entre pais e filhos.
REFERÊNCIAS
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[1] Discente do Curso Superior de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: gabsiqueiraa11@gmail.com
[2] Docente do Curso Superior de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: fontes.grazielly@gmail.com