THE CIVIL LIABILITY OF CHILDREN FOR REVERSE AFFECTIVE ABANDONMENT
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202505231745
Leidiane Nicomedes Severo1
Resumo: Este estudo tem como objetivo analisar a possibilidade de responsabilização civil dos filhos pelo abandono afetivo de pais idosos, com ênfase nas obrigações legais e morais envolvidas. Um assunto pouco reputado na atualidade, apesar de ser bastante recorrente e representar um verdadeiro problema social que afeta diversos idosos. Se é da família que se espera o exercício do dever de cuidado em relação aos pais, qual a responsabilidade civil dos que deixam os pais em fase senil abandonados?! É fundamental conduzir uma investigação aprofundada para garantir uma proteção abrangente e estabelecer um amparo jurídico adequado às pessoas em idade avançada expostas a esses conflitos. A presente pesquisa utiliza o método dedutivo, com abordagem qualitativa, baseada em revisão bibliográfica e análise de jurisprudências sobre o tema. São examinadas legislações pertinentes, como a Constituição Federal, Código Civil, Estatuto da Pessoa Idosa, com fim de embasar a tese da responsabilização civil dos filhos. O artigo aborda o conceito de família sob uma perspectiva histórica e constitucional, destacando os princípios da afetividade, solidariedade familiar e da dignidade da pessoa humana, com foco específico na relação com os idosos.
Palavras-chaves: Abandono afetivo. Dano moral. Filhos. Idosos. Responsabilidade Civil.
Abstract: This study aims to analyze the possibility of holding children civilly liable for the emotional abandonment of elderly parents, with an emphasis on the legal and moral obligations involved. This is a subject that is not widely regarded today, despite being quite recurrent and representing a real social problem that affects many elderly people. If it is the family that is expected to exercise the duty of care towards parents, what is the civil liability of those who abandon their elderly parents?! It is essential to conduct an in-depth investigation to ensure comprehensive protection and establish adequate legal support for elderly people exposed to these conflicts. This research uses the deductive method, with a qualitative approach, based on a bibliographic review and analysis of case law on the subject. Relevant legislation is examined, such as the Federal Constitution, Civil Code, and Elderly Statute, in order to support the thesis of holding children civilly liable. The article addresses the concept of family from a historical and constitutional perspective, highlighting the principles of affection, family solidarity, and human dignity, with a specific focus on the relationship with the elderly.
Keywords: Emotional abandonment. Moral damage. Children. Elderly. Civil liability.
1. INTRODUÇÃO
A família configura-se como sendo uma das principais instituições da
sociedade, sendo responsável tanto pela reprodução biológica, quanto também pela transmissão de valores, afeto e proteção. Em suma, a estrutura familiar e os deveres recíprocos entre seus membros têm sido objeto de constante evolução no ordenamento jurídico brasileiro.
Um dos temas que vem ganhando destaque nos últimos anos é o “abandono afetivo inverso”, que ocorre em situações que os filhos adultos negligenciam ou abandonam os cuidados e suporte a seus pais na fase idosa, atitude na qual, entra em contradição com as expectativas tradicionais de que os filhos devem cuidar dos pais à medida que envelhecem.
Tais atos, podem assumir várias formas, desde o distanciamento emocional até a recusa em fornecer assistência financeira ou física, resultando em consequências adversas para os idosos.
No entanto, o descumprimento desse dever muitas vezes resulta em abandono afetivo, uma forma de violência silenciosa que pode causar sérios danos emocionais e psicológicos aos idosos. Ressalta-se ainda, que o abandono afetivo expõe não só uma falha nas relações familiares, mas também uma violação de direitos fundamentais.
Portanto, surge o questionamento principal deste projeto: Os filhos podem ser civilmente responsabilizados pelo abandono afetivo de seus pais idosos nos termos da legislação vigente? Para tanto, será analisada o de abandono afetivo e sua aplicação nas relações familiares, bem como, apurar o dever de cuidado e assistência familiar aos pais nos termos da legislação vigente.
Este estudo busca conferir em que circunstâncias a legislação brasileira permite esta responsabilização, elucidando-se a omissão no cuidado e no suporte emocional aos pais, podendo configurar ato ilícito passível de indenização por danos morais.
Além disso, pretende-se contribuir para o debate jurídico e social sobre a responsabilidade e o fortalecimento da proteção aos idosos, especialmente no contexto do envelhecimento populacional no Brasil.
2. ABANDONO AFETIVO
No âmbito jurídico, o termo “abandono” está intrinsecamente ligado à ideia de uma ação ou prática que resulta em uma falta de cuidado, seja no aspecto afetivo, econômico ou familiar. Essa falta de cuidado pode manifestar-se de diversas formas, como negligência emocional, ausência de suporte financeiro e falha no cumprimento das responsabilidades familiares.
Assim, a compreensão do abandono afetivo no contexto legal envolve tanto atos de omissão quanto ações deliberadas que prejudicam a capacidade de acolhimento e proteção de uma pessoa.
Nos últimos anos, o abandono afetivo tem suscitado discussões importantes, tendo em vista que se tornou um problema bastante ocorrente. Caracterizado pela ausência de cuidados emocionais e afetivos, dos pais para com os filhos e dos filhos para com os pais, o ordenamento jurídico brasileiro reconhece a importância da afetividade, tratando-a como um direito da pessoa que deve ser garantido pela família.
O artigo 229 da Constituição Federal dispõe: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
Destaca-se ainda, o disposto no art. 3º do Estatuto da Pessoa Idosa:
“É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.”
A imposição do dever de amparo dos filhos em relação aos pais não se limita ao aspecto material, mas alcança também o cuidado emocional, afetivo e psicológico. Assim, a omissão injustificada dos filhos quanto à presença, apoio e cuidado com os pais idosos pode configurar não apenas um descumprimento ético e moral, mas também uma violação jurídica dos deveres constitucionais.
Os idosos podem se sentir abandonados não apenas em casas de repouso ou asilos, mas também em suas próprias residências. Nessas circunstâncias, não há um verdadeiro convívio familiar, e não há espaço para compartilhar, dar e receber afeto. Em muitos casos, o idoso é deixado à própria sorte por seus filhos, familiares e amigos, sendo esquecido até mesmo em datas importantes, ficando à espera de um telefonema ou de uma visita que nunca chega.
Logo, as consequências deste abandono são profusas, podendo ocasionar implicações criminais (abandono de incapaz), perda de direitos sucessórios (exclusão da herança) e responsabilidade civil (reparação por dano moral e material).
3. DIREITO DA FAMÍLIA
O Direito de Família é o ramo jurídico que trata das relações familiares, regulamentando tanto o convívio quanto seus efeitos pessoais e patrimoniais, especialmente em situações de ruptura, sendo considerado o campo mais humanizado do direito.
Nele, há princípios fundamentais que integram o ordenamento jurídico em sua composição total, quais sejam, o princípio da dignidade da pessoa humana, solidariedade familiar e afetividade.
Juntos, esses princípios promovem a proteção integral da pessoa no seio familiar, garantindo não apenas direitos, mas também deveres que preservem a dignidade, o afeto e a solidariedade nas relações familiares.
Em relação à família, afirma Gustavo Tepedino (199, p.326): “ponto de referência central do indivíduo na sociedade; uma espécie de aspiração à solidariedade e à segurança que dificilmente pode ser substituída por qualquer outra forma de convivência social”.
Com isso, é importante o estudo dos princípios jurídicos que norteiam as relações familiares para melhor compreensão desta transformação social.
3.1 Princípio da solidariedade familiar
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 3º, I, estabelece a solidariedade social como um dos objetivos fundamentais do Brasil, entretanto, o princípio da solidariedade familiar pode ser considerado um desdobramento da solidariedade social.
Essa norma tem por objetivo a construção de uma sociedade justa, mais igualitária, com intuito de tornar realidade o pretendido na constituição. Esse dever da solidariedade, não é somente das pessoas, devendo ser do Estado também, visando o bem-estar social.
Assim, temos a seguinte doutrina de Maria Berenice Dias, (Manual de Direito das Famílias):
“A solidariedade familiar é expressão do dever de mútua assistência entre os membros da entidade familiar, traduzindo-se em um vínculo de cuidado, apoio e cooperação recíproca. Esse princípio decorre diretamente da Constituição Federal, especialmente dos artigos 1º, III (dignidade da pessoa humana), e 229, que estabelece obrigações entre pais e filhos. A família, portanto, não se estrutura apenas sobre direitos individuais, mas também sobre deveres éticos e jurídicos de responsabilidade recíproca, orientados pelo ideal de convivência solidária.”
Melhor dizendo, o princípio da solidariedade familiar constitui um dos pilares do Direito de Família, fundamentando-se na ideia de que os membros da entidade familiar devem prestar apoio mútuo, tanto no aspecto material quanto no emocional.
A vista disso, o abandono afetivo inverso viola este valor básico, dado que quando os filhos se omitem de forma injustificada em relação aos pais idosos, especialmente no aspecto emocional, afetivo e de presença, há uma quebra do dever jurídico de solidariedade familiar, o que pode ensejar responsabilização civil, inclusive por danos morais.
3.2 Princípios da dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento essencial do ordenamento jurídico brasileiro, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.
Ele segue de fundamento para a proteção dos direitos fundamentais, assegurando a todos o acesso a condições mínimas para uma existência digna, como saúde, educação, moradia, trabalho e liberdade. Além disso, orienta a interpretação das leis e a formulação de políticas públicas, funcionando como limite contra abusos, arbitrariedades e tratamentos degradantes.”
Para Rolf Madaleno (MADALENO, 2018, p.61):
Com o advento da Constituição Federal de 1988, houve uma quebra de paradigma que resultou em mudanças significativas no Direito de Família. Por força do princípio da dignidade da pessoa humana, a família passou a ser instrumento de proteção e promoção da dignidade humana, tanto que dispositivos normativos esparsos não podem ser dissociados da ótica constitucional.
Por conseguinte, sua aplicação é especialmente relevante em casos que envolvem crianças, idosos, pessoas com deficiência ou em situação de vulnerabilidade, exigindo do Estado e dos demais membros da família uma postura ativa na promoção da dignidade pessoal.
À vista disso, o abandono afetivo inverso constitui violação direta a este fundamento, uma vez que priva o idoso do respeito, do cuidado e da proteção necessários para uma vida digna.
3.3 Princípios da afetividade
Na esfera jurídica, especialmente no Direito de Família, a afetividade passou a ser reconhecida como um princípio fundamental que orienta decisões judiciais e relações familiares, em virtude de valorizar os vínculos emocionais e o cuidado mútuo.
Melhor dizendo, ele se baseia na ideia de que o afeto, o cuidado e a convivência são tão importantes quanto, ou até mais importantes, do que os laços biológicos e legais.
Flávio Tartuce se posiciona do seguinte modo:
[…] do ponto de vista do afeto, do amor que deve existir entre as pessoas, da ética, da valorização da pessoa e da sua dignidade, do solidarismo social e da isonomia constitucional. Isso porque, no seu atual estágio, o Direito de Família é baseado mais na afetividade do que na estrita legalidade, frase que é sempre repetida e que pode ser atribuída a Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. (TARTUCE, 2017, p.17).
Desta maneira, ele reconhece que o afeto é um elemento essencial na construção das relações familiares, garantindo proteção jurídica a vínculos que se formam pela convivência e pelo carinho, independentemente da consanguinidade.
No contexto do abandono afetivo inverso, o princípio da afetividade ganha relevância ao reforçar o dever dos filhos de proporcionar assistência emocional e material aos pais idosos, destacando a importância dos laços de cuidado, respeito e convivência familiar, que vão além das relações puramente biológicas ou patrimoniais.
4. O ENVELHECIMENTO POPULACIONAL E A NECESSIDADE DE TUTELA DA PESSOA IDOSA DIANTE DO ABANDONO AFETIVO INVERSO
O Brasil vem enfrentando um processo acelerado de envelhecimento populacional, decorrente da queda na taxa de natalidade e do aumento da expectativa de vida.
Segundo dados do IBGE divulgados em 2025, a população idosa, com 60 anos ou mais, representa atualmente 15,1% da população brasileira, o que equivale a mais de 32 milhões de pessoas. Esse percentual tende a crescer rapidamente nas próximas décadas, sendo projetado que o número de idosos ultrapasse o de crianças e adolescentes já na próxima década.
Esse fenômeno demográfico tem provocado transformações profundas nas estruturas familiares e nas demandas sociais, exigindo do Estado e da sociedade civil mecanismos eficazes de proteção às pessoas idosas.
Nesse contexto, destaca-se a necessidade de reforçar a tutela jurídica da pessoa idosa, principalmente em face do chamado abandono inverso, situação em que os filhos, que foram cuidados e sustentados pelos pais ao longo da vida, passam a negligenciar o dever legal e moral de ampará-los na velhice. Esse abandono pode se manifestar de forma emocional, financeira ou social, colocando o idoso em situação de extrema vulnerabilidade.
O Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003) já prevê, em seus artigos 3º, 4º e 12, o direito à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, bem como o dever dos filhos de assegurar o sustento e o cuidado necessários aos pais idosos. Contudo, diante da crescente incidência de abandono inverso, surgem iniciativas legislativas voltadas ao aprimoramento dessa proteção.
Dentre essas iniciativas, destaca-se o Projeto de Lei nº 4.229/2019, que visa alterar o Estatuto da Pessoa Idosa para tipificar o abandono inverso como forma de violência contra o idoso. A proposta tem por objetivo responsabilizar de maneira mais clara e eficaz os filhos que se omitem no cumprimento de suas obrigações, incluindo, se necessário, medidas de natureza civil, administrativa e até penal. O projeto também pretende ampliar os mecanismos de fiscalização e denúncia, facilitando a atuação dos órgãos de proteção e do Ministério Público.
A inclusão do abandono inverso no rol das formas de violência previstas no Estatuto, representa um importante avanço na proteção da população idosa, reconhecendo a complexidade das relações familiares contemporâneas e promovendo uma cultura de responsabilização e cuidado intergeracional.
Diante desse cenário, o Poder Judiciário é chamado a atuar de forma proativa, garantindo que a legislação existente, e aquela em discussão, seja aplicada de maneira eficaz, assegurando o respeito à dignidade da pessoa idosa e coibindo práticas de negligência que comprometam seu bem-estar e seus direitos fundamentais.
5. RESPONSABILIDADE CIVIL
A responsabilidade civil diz respeito à obrigação de indenizar uma pessoa por danos causados por ação ou omissão, seja de forma intencional ou por negligência. Ela pode ser classificada em subjetiva e objetiva, dependendo da necessidade de comprovação de culpa.
Na responsabilidade civil subjetiva, a reparação depende da comprovação de culpa do agente, seja por dolo ou negligência. Esta modalidade está prevista no Art. 186 do Código Civil:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Por outro lado, a responsabilidade civil objetiva não exige a comprovação de culpa. Basta que haja a demonstração do dano e do nexo causal. Essa modalidade é regulada pelo Art. 927, parágrafo único, do Código Civil:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
No caso do abandono afetivo, a reparação civil visa minimizar os danos emocionais e psíquicos causados pela falta de cuidado e afeto. A possibilidade de reparação surge como uma forma de mitigar parte do sofrimento da vítima, ao reconhecer o impacto que a ausência de afeto parental teve em sua vida.
É importante destacar, que a reparação civil não pode restituir o afeto perdido nem apagar os traumas resultantes da falta de cuidado emocional. Dessa forma, para que a responsabilidade civil seja atribuída, alguns elementos essenciais devem estar presentes: ato ilícito, dano, nexo causal, e, no caso da responsabilidade subjetiva, a presença de culpa ou dolo.
5.1 Ato ilícito
A conduta do ato ilícito é um dos pilares fundamentais da responsabilidade civil, sendo essencial a sua análise detalhada para a correta determinação do dever de indenizar, uma vez que é a partir da caracterização do ilícito que se estabelece a obrigação de reparação pelos danos causados.
Pode decorrer de ações dolosas ou culposas, sendo indispensável para a configuração da responsabilidade subjetiva, mas dispensável em alguns casos de responsabilidade objetiva.
No que tange o abandono afetivo inverso, a omissão dos filhos em prestar cuidados emocionais aos pais idosos pode ser interpretada como descumprimento dos deveres familiares, estabelecidos pelo art. 229 da Constituição Federal. Assim, a falta de afeto, atenção e suporte emocional pode ser configurada como um ato ilícito, passível de responsabilização civil.
Essa omissão não se limita à negligência material, mas se estende ao dever de cuidados emocionais. Ademais, as consequências do abandono afetivo inverso podem engendrar não apenas a obrigação de reparação civil, mas também obrigações alimentícias, conforme o art. 1.694 do Código Civil, e, em alguns casos, sanções penais, dependendo da gravidade da omissão e do sofrimento causado ao idoso.
Assim, a omissão afetiva não só caracteriza um ato ilícito, mas também é passível de repercussões jurídicas abrangentes, que buscam proteger a dignidade humana e os direitos fundamentais dos membros da família.
5.2 Dano
O elemento “dano”, é crucial para configurar a obrigação de reparar os prejuízos sofridos pelo membro da família, podendo se manifestar de diversas formas, como dano moral, dano material ou dano psicológico, dependendo da natureza da violação.
No caso do presente artigo, um dos tipos mais frequentemente abordados no Direito de Família, é o dano moral, pois refere-se ao sofrimento emocional, à angústia, à solidão e à perda da dignidade, decorrentes do afastamento e da falta de cuidado afetivo por parte dos filhos.
A ausência de suporte emocional no contexto familiar pode agravar significativamente quadros de depressão, ansiedade e outros transtornos psicológicos, exacerbando o sofrimento psicológico do idoso. Esse distúrbio emocional resultante da negligência afetiva compromete não apenas a saúde mental, mas também a qualidade de vida do indivíduo, prejudicando seu bem-estar geral e contribuindo para o aumento de sua vulnerabilidade social e física.
Para que haja a responsabilização, é imprescindível demonstrar o nexo causal entre a conduta omissiva dos filhos (abandono afetivo) e os danos efetivamente sofridos pelo idoso.
Essa conexão pode ser estabelecida por meio de provas que evidenciem tanto o sofrimento emocional, como o impacto psicológico decorrente da negligência, quanto os prejuízos financeiros que possam ter resultado dessa situação de abandono, configurando, assim, a responsabilidade civil pelos danos causados.
5.3 Nexo causal
O nexo causal no abandono afetivo inverso é o elemento essencial que estabelece a conexão direta entre a conduta omissiva dos filhos e os danos experimentados pelos pais idosos, funcionando como elo entre o ato ilícito e o prejuízo efetivamente causado.
Para que haja responsabilização civil, é indispensável demonstrar que a negligência no dever de cuidado, seja afetivo ou material, foi a causa direta e determinante dos danos sofridos pelos pais. Esses danos podem se manifestar tanto na esfera moral (sofrimento emocional, tristeza, isolamento, depressão) quanto na esfera material (ausência de apoio financeiro, falta de assistência para subsistência, saúde e moradia).
A comprovação do nexo causal demanda uma análise aprofundada da realidade familiar, considerando as condições de saúde física e mental do idoso, a situação socioeconômica, e a omissão concreta dos filhos em prestar a assistência devida.
Dentre os meios de prova que podem ser utilizados para evidenciar o nexo entre a omissão e o dano, destacam-se: Relatórios médicos e psicológicos: Documentos técnicos que podem comprovar o impacto psíquico da negligência afetiva, identificando quadros como depressão, ansiedade, estresse emocional crônico e outros transtornos decorrentes do isolamento e da falta de suporte familiar; depoimentos testemunhais: Relatos de pessoas próximas, como vizinhos, amigos ou outros familiares, que presenciam ou têm conhecimento da situação de abandono e podem atestar tanto a omissão dos filhos quanto o sofrimento vivenciado pelo idoso; provas de omissão material: A ausência de cumprimento de obrigações alimentares, a falta de ajuda com despesas médicas, ou o desinteresse em prover cuidados básicos são elementos que reforçam o caráter ilícito da conduta e sua relação com os danos causados; documentos de convivência ou ausência de contato: Registros que demonstrem a inexistência de visitas, a falta de comunicação ou ausência de vínculo afetivo entre pais e filhos, os quais podem evidenciar a omissão afetiva e seu reflexo no sofrimento do idoso.
Em síntese, a identificação e demonstração do nexo causal são fundamentais para o reconhecimento da responsabilidade civil por abandono afetivo inverso, pois apenas por meio dessa comprovação é possível imputar juridicamente aos filhos a obrigação de reparar os danos causados pela violação do dever de cuidado para com os pais.
5.4 Dano moral
A indenização por dano moral decorrente do abandono afetivo é uma construção recente e ainda em processo de consolidação no âmbito do Direito de Família e da Responsabilidade Civil.
A lesão moral, nesse contexto, pode manifestar-se de diversas formas, como sentimentos de rejeição, sofrimento psíquico, humilhação e até a perda do sentido existencial. Quando esses impactos se revelam intensos e duradouros, ultrapassam o mero aborrecimento cotidiano, configurando um dano moral passível de reparação.
É fundamental destacar que o reconhecimento do dano moral no abandono afetivo inverso – ou seja, aquele praticado pelos filhos em relação aos pais – reflete o entendimento de que, embora o afeto não seja juridicamente exigível, o cuidado e o amparo são, especialmente no seio das relações familiares.
Assim, a omissão dos filhos no cumprimento de seu dever legal e moral de cuidar dos pais pode, sim, ensejar responsabilidade civil, desde que comprovado o sofrimento profundo e injusto experimentado pelo idoso.
Portanto, a reparação por esse tipo de dano moral possui caráter não apenas compensatório, visando atenuar o sofrimento da vítima, mas também pedagógico e preventivo, funcionando como um alerta para que o ofensor não reincida em conduta tão lesiva.
Colhe-se, da obra “Novo Curso de Direito Civil – Responsabilidade Civil”, de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a seguinte passagem, que se revela especialmente pertinente ao tema em questão.
“A afetividade, enquanto valor jurídico, impõe aos membros da família o dever de solidariedade, cuidado e assistência mútua. A omissão grave e injustificável desses deveres, quando causadora de sofrimento psíquico, pode configurar ilícito civil passível de reparação por dano moral.”
— GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
Nesse sentido, a evolução da doutrina e da jurisprudência aponta para uma necessária ampliação da proteção jurídica à pessoa idosa, sobretudo diante da crescente realidade de abandono familiar. Esse movimento reafirma o papel da afetividade como expressão concreta dos deveres familiares e promove uma consciência jurídica mais sensível à importância da solidariedade intergeracional.
6. A JURISPRUDÊNCIA NO ABANDONO AFETIVO INVERSO
A jurisprudência brasileira tem avançado na responsabilização civil por abandono afetivo tradicional (de pais em relação a filhos), mas ainda atua com cautela nos casos de abandono afetivo inverso (de filhos em relação a pais), por receio de banalização do tema. Essa postura, embora prudente, acaba por desconsiderar princípios constitucionais e legais, ao exigir prova quase absoluta da omissão e do sofrimento do idoso.
A responsabilização, porém, não se baseia na obrigatoriedade do afeto, mas na omissão injustificada do dever legal de cuidado, cujo impacto pode ser profundamente prejudicial ao bem-estar emocional do idoso. Exigir prova inequívoca do desamor, enquanto se presume o afeto, gera um desequilíbrio probatório incompatível com a solidariedade familiar prevista em lei.
Nesse sentido, é pertinente mencionar o Acórdão 1746756 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), cujos fundamentos podem ser aplicados, por analogia, às situações de abandono afetivo inverso, especialmente no que diz respeito ao dever de prestação de alimentos entre ascendentes e descendentes:
DIREITO CONSTITUCIONAL, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. PENSÃO ALIMENTÍCIA EM FAVOR DE ASCENDENTE. GENITOR IDOSO COM SAÚDE FRAGILIZADA. SUPOSTO ABANDONO AFETIVO PRETÉRITO PELO PAI. NÃO EXONERAÇÃO DOS FILHOS DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR. DIREITO FUNDAMENTAL. APLICAÇÃO. BINÔMIO NECESSIDADE E POSSIBILIDADE. DEVER DE OBSERVÂNCIA. VALOR FIXADO. ADEQUAÇÃO. REDUÇÃO. NÃO CABIMENTO. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.MAJORAÇÃO.
1. O dever de mútua assistência entre ascendentes e descendentes é uma garantia fundamental consagrada no art. 229 da Constituição Federal. À luz desse preceito constitucional, princípio da solidariedade familiar, os alimentos podem ser requeridos reciprocamente entre pais e filhos.
2. Na concepção da jurisprudência a alegação de suposto abandono afetivo pretérito pelo genitor, por si só, não constitui óbice para eximir os descendentes de prestar alimentos ao pai na velhice, por se tratar de uma obrigação emoldurada no princípio da solidariedade familiar que é um direito fundamental salvaguardado pela Constituição Federal (art.229 da CF).
3. Em conformidade com a norma do § 1º, do art. 1.694 do Código Civil, na fixação de alimentos deve ser considerado o binômio necessidade/possibilidade, a fim de que o alimentando receba o necessário para garantir a própria subsistência e o alimentante não seja obrigado a arcar com prestações superiores às suas forças contributivas.
4. Ausentes elementos probatórios robustos que demonstrem a incapacidade de os Alimentantes arcarem com o valor da obrigação alimentícia fixada na sentença, a redução da prestação alimentar não merece acolhimento.
5. Recurso de apelação conhecido e desprovido. Majoração dos honorários advocatícios. (Acórdão 1746756, 0718225-05.2021.8.07.0007, Relator(a): ROBERTO FREITAS FILHO, 3ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 17/08/2023, publicado no DJe: 15/09/2023.).
Em suma, a decisão supracitada decorre de ação de alimentos ajuizada por genitor idoso em face de suas filhas, tendo como pano de fundo a fragilidade de saúde do autor e a ausência de recursos próprios para sua subsistência. O recurso de apelação foi interposto pelas rés, descendentes, que buscaram a redução da pensão alimentícia fixada na sentença, alegando, entre outros pontos, suposto abandono afetivo por parte do pai no passado.
O TJDFT firmou o entendimento de que o dever de prestação de alimentos entre pais e filhos é recíproco e possui natureza de direito fundamental, nos termos do artigo 229 da Constituição Federal. Esse dispositivo constitucional estabelece a mútua responsabilidade entre ascendentes e descendentes no amparo recíproco, especialmente quando um dos polos da relação se encontra em situação de vulnerabilidade, como é o caso do genitor idoso.
Outrossim, o acórdão destacou que o princípio da solidariedade familiar é norteador das relações entre parentes, e que a obrigação alimentar está amparada por esse princípio. Em situações em que o genitor está em condição de necessidade, como idade avançada e saúde debilitada, os filhos têm o dever jurídico de prestar assistência material, independentemente da existência de vínculos afetivos harmônicos ou passados de abandono emocional.
A tese defensiva das rés se sustentou, em parte, na alegação de abandono afetivo anterior praticado pelo pai. O Tribunal rechaçou esse argumento, consignando que a existência de abandono afetivo, ainda que verificada, não exonera os filhos da obrigação alimentar, pois esta decorre de norma constitucional e infraconstitucional de ordem pública, que visa à preservação da dignidade da pessoa humana e da assistência entre familiares.
Portanto, este julgamento representa um marco importante na consolidação do entendimento de que o dever de assistência familiar possui natureza objetiva e independe da qualidade da relação afetiva entre os envolvidos. A jurisprudência, embora ainda em processo de consolidação quanto ao abandono afetivo inverso, caminha no sentido de reconhecer a omissão dolosa ou culposa como fato gerador de responsabilidade civil, afirmando o valor jurídico da afetividade como expressão concreta dos deveres familiares.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fenômeno do abandono afetivo inverso, representa uma das faces mais sensíveis e desafiadoras do Direito de Família contemporâneo. Em uma sociedade marcada pelo envelhecimento populacional e pelo enfraquecimento de laços intergeracionais, torna-se urgente refletir sobre os deveres decorrentes das relações familiares, especialmente no que se refere ao cuidado, à assistência e ao amparo mútuo.
Ainda que o afeto, enquanto sentimento, não seja juridicamente exigível, os deveres dele decorrentes encontram respaldo normativo sólido no ordenamento jurídico brasileiro. A Constituição Federal consagra a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o princípio da solidariedade familiar (art. 3º, I) e impõe aos filhos o dever de amparo aos pais na velhice, carência ou enfermidade (art. 229). Esses comandos ganham concreção nos artigos 1.694 e seguintes do Código Civil e, de forma ainda mais específica, no Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003), que reafirma o dever de cuidado como uma obrigação jurídica e não meramente moral.
A responsabilidade civil por abandono afetivo inverso insere-se, assim, em uma nova lógica jurídica: a da afetividade como valor jurídico e vetor interpretativo das obrigações familiares.
É preciso, portanto, superar o receio de uma suposta “judicialização dos sentimentos” e compreender que a responsabilização civil, nesse contexto, não busca compelir o amor, mas garantir o cumprimento de deveres mínimos de convivência, respeito e proteção. Quando esses deveres são reiteradamente violados e causam sofrimento aos pais, principalmente em situações de vulnerabilidade, a reparação do dano moral mostra-se não apenas legítima, mas necessária.
Assim, conclui-se que o reconhecimento do abandono afetivo inverso como gerador de responsabilidade civil representa um avanço no processo de constitucionalização do Direito Privado, promovendo a justiça intergeracional e reafirmando a dignidade da pessoa idosa como valor central na ordem jurídica brasileira.
REFERÊNCIAS
Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Código Civil, Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.
Estatuto da Pessoa Idosa, Lei n° 10741, de 1 de outubro de 2003. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm.
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1Graduanda em Direito em Centro Universitário Una.