REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202411161158
Iedo Ramos de Araújo
Joseane Alves dos Santos
Prof. Dr. Moisés Monteiro de Melo Neto
INTRODUÇÃO
Discutimos aqui a representação do indígena na obra Ubirajara, de José de Alencar e o escritor indígena, hoje. Trataremos da visão romantizada sobre o indígena na literatura brasileira, dos problemas ao silenciamento da voz indígena durante mais de 300 anos de literatura brasileira, no século XIX. Esse é um assunto que discutimos na aldeia, ainda hoje e também na Universidade, nossa vida real, nossa sua realidade cultural linguística ou de ensino. Queremos, também, fortalecer a literatura produzida por indígenas, inclusive em Palmeira dos Índios. Escolhi este tema por achá-lo muito apropriado para as discussões fundamentais sobre literatura, sempre. Somos norteados pelo estudo da mencionada obra de José de Alencar e a visão de mundo de Daniel Munduruku e Ailton Krenak. Analisaremos o que mudou na representação do indígena na nossa literatura.
Objetivamos promover a literatura indígena, hoje e fazer mais uma revisão crítica sobre como nós, indígenas, éramos representados pelos brancos que não conviviam conosco e só faziam pesquisa de gabinete. A importância do nosso estudo/pesquisa reside na importância da arte literária indígena. Nosso (a)estudo /pesquisa será muito importante para nosso povo. A relevância/importância do nosso estudo /pesquisa faz-se fundamental para o ensino de língua/linguagem, também.
Nossa pesquisa é bibliográfica dentro do gênero narrativo de ficção, com Alencar e Munduruku, e de cunho filosófico (Ailton Krenak)
Nossa fonte de informação serão basicamente 3 livros principais, sem contar com nossa base teóricas que incluem estudiosos como Massaud Moisés, Alfredo Bosi, Carlos Nejar e nossa categoria de abordagem passa pela leitora, mas também por nossa visão de mundo enquanto indígena
Nosso objetivo inclui aprimorar a investigação sobre literatura indígena e nosso método e nossos procedimentos de sua pesquisa passa, também. Pela conversa com nossos jovens e com os mais velhos, numa troca de experiência sobre nosso assunto e promover a leitura e mais discussões com indígenas e professores em Palmeira dos Índios.
Os discursos equivocados a respeito dos povos indígenas reportam-nos à literatura dos jesuítas, aos diálogos de Ambrósio Fernandes Brandão, as crônicas de Pero de Magalhães Gandavo, à poesia bucólica de Basílio da Gama e de Santa Rita Durão e aos romances de José de Alencar, entre outros exemplos que se seguem; em que o índio é visto superficialmente em sua identificação étnica. Sempre um marginalizado. Nesses moldes, a literatura brasileira tem se revelado mais excludente do que se caracterizado pela convivência solidária na abordagem de temas relacionados ao Índio, ao negro, ao judeu, a mulher, a criança, ao homossexual e ao idoso, entre outros segmentos que a sociedade dominante rotula de minorias. Passando o olhar pela geografia dos excluídos, por exemplo, as minorias são os milhões de desempregados, maiores e menores abandonados sem-teto, sem-terra, sem vez, sem voz, espalhados pelo país.
Quanto à imagem do índio na literatura e na cultura brasileira, a teoria da cultura e da literatura indígena alerta-nos para vários equívocos: um deles refere-se ao nome Pindorama, ou Terra das Palmeiras, assim denominada pelos índios da nação Tupi. Terra à vista: nos atropelos em torno da criação de um nome para legitimar a posse do lugar, os colonizadores chamaram-no de Monte Pascoal: um “monte mui alto e redondo” habitado por aborígenes. Acelerando o processo de desterritorialização, os portugueses batizaram o lugar, uma suposta Ilha, em 22 de abril de 1500. Deram-lhe o nome de Vera Cruz Posteriormente, por ordem de D. Manuel, mudaram o nome para Terra de Santa Cruz. Por fim, decidiram chamar o lugar de Brasil.
Ao longo de sua história, a literatura brasileira (em muitos casos) tem maltratado as vozes exiladas e a imaginação criadora com que os nativos nomes, lugares, pessoas e os elementos sonhados. Para ilustrar a questão, poucos se dão conta do preconceito que perpassa um discurso do escritor João Ubaldo Ribeiro, em torno do nome Pindorama. O escritor afirma o seguinte: “para substituir ‘Brasil’: “Pindorama, designação supostamente dada pelos índios ao nosso país. Não sou historiador, mas também não sou tão burro assim para acreditar que os índios tinham qualquer noção geopolítica, ou alguma ideia de que pertenciam a um “país” chamado. Pindorama. Não havia qualquer país, é claro, nem sequer a palavra Pindorama devia fazer sentido para os ocupantes que os portugueses encontraram aqui, se é que ela era usada mesmo. No máximo, significaria o único mundo conhecido deles.
Alencar defendia, para muitos, tardio e aparentemente anacrônico, com tal generosidade e amor à terra, com o colorido e musicalidade do estilo, a capacidade de tornar verossímil o inverossímil, sob uma prosa poética, que desaparecem os excessos mau gosto, o desmedido diante da energia prodigiosa, a atilada psicologia, discernimento das ambições civis, aliados a uma inabalável sinceridade. Cheio de imagens, ritmo avassalante, não só se manteve original apesar das ressonâncias de René Chateaubriand e James Fenimore Cooper, modelos na época da escrita de intenção histórica, possuindo engenho mais do que suficiente para superar a todos e nada dever a nenhum deles. (Nejar, 202011, p. 104)
As obras O Guarani (1856), Iracema, (1865) e Ubirajara (1874) exaltam o sentimento de nacionalidade por meio do índio como herói e ícone guerreiro. Destacam-se aí o Nacionalismo, a estética nativista, a exaltação da natureza, a idealização do índio como figura nacional, europeizado e quase medieval, os temas históricos, o resgate de lendas e, óbvio, o contato do índio com o europeu colonizador. O cearense José Martiniano de Alencar (1829-1877) é considerado o mais importante representante do Romance Indianista. A crítica considera que é um estilo criado por ele, que também é chamado de patrono da literatura brasileira. Filho de um padre, José de Alencar recebeu muito cedo influências que o levara à exaltação do sentimento nacionalista. É patrono da cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras por escolha de Machado de Assis (1839 – 1908). No romance indianista, a primeira obra a ser lançada foi O Guarani, um folhetim semanal que era divulgado em um jornal uma vez por semana. O folhetim causava uma corrida às bancas todas as semanas. Demonstrava o sentimento de literatura nacionalista do autor, que defendia o modo de pensar romantismo.
Alencar cultivou o romance histórico, o regionalista, o de costumes e o indianista […] variações ficcionais comparecem na obra, proporcionalmente à sua relevância […] evidencia-se na focalização dos albores da nossa história […] A tais ingredientes por si sós d caracterizadores do romance romântico, somam-se outros que ajudam a situar a obra nos quadros estéticos de uma época, a descrição da natureza pintada com o idealismo de quem mais imaginava a beleza paisagística do que a observava […] as personagens que se agitam diante desse cenário parecem igualmente idealizadas (Moisés, 2002, p. 148)
A narrativa produz ela própria um conteúdo cognitivo não diretamente subordinado ao objeto por ser representado e que não tem um valor próprio, mas tem um poder de sedução que pode ser explorado de modo a representar a visão possível da narrativa acerca de uma realidade. Por isso, a história é sempre relato. Mesmo quando pretende se desfazer da narrativa, a escrita da história é a memória de algo acontecido e tanto a narrativa histórica quanto a escrita da história tem uma função simbolizadora que permite que a sociedade possa situar-se, dando-lhe na linguagem um espaço próprio para o presente. A narrativa é um modo de representação natural da consciência humana e está integrada à fala cotidiana e ao discurso comum, devendo sempre ser questionada sobre se aquilo que os historiadores investigam é real. “Caberia a Alencar insistir nas doses de brasilidade”, como diz Alfredo Bosi (2015, p. 134), quando cita que tal autor fazia isso até nos seus textos para teatro.
Ao abordar a propriedade intelectual indígena, podemos considerar que alguns aspectos das possibilidades de periodização da literatura indígena passam, também, pela ótica dos escritores não indígenas que tratam desta literatura, ou pelo menos da cultura indígena narrada. Tal periodização das manifestações literárias de autoria indígena levam alguns autores a tratar essa divisão, assim: o período clássico seria a tradição oral (coletiva) que atravessa os tempos com as narrativas míticas e depois viria o período chamado contemporâneo (de tradição escrita individual e coletiva), com o entrelaçamento da história (do ponto de vista indígena) com a ficção (em fase de experimentalismo).
Ubirajara é, desse modo, um romance escrito por José de Alencar, livro publicado em 1874, como parte da trilogia indianista do autor, junto com Iracema e O Guarani, representando o primeiro deles, pois é o único livro que conta a história de um índio “puro”, que não teve interação com a cultura europeia e não foi corrompido por ela. Uma representação bastante problemática, já que traz uma visão conciliadora, típica do autor nesta área, ele um conservador de direita, escravocrata, dentre outras características.
Por exemplo, nessa obra, temos o índio como base da formação do povo brasileiro, que é idealizado (o que faz jus ao movimento romântico e sua falta de engajamento nesse sentido). Temos aqui, alguns de seus valores sendo hipocritamente sendo exaltados, como a valentia, a bravura e a lealdade. Além disso, o romance traz uma visão de defesa dos costumes indígenas e uma pretensa “crítica” à colonização dos portugueses, que teria destruído a cultura indígena e posteriormente tentando aniquilá-la com os costumes cristãos e eurocêntricos que foram impostos aos colonizados.
Os leitores de Alencar esqueciam que em abril de 1500, foi posta em prática uma ação de eliminar aqueles povos.
O simples contágio do encontro entre humanos daqui e de lá fez com que essa parte da população desaparecesse num fenômeno que depois se chamou epidemia, uma mortandade de milhares e milhares de seres. Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical, largava um rastro de morte por onde passava. O indivíduo não sabia que era uma peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento, um fim de mundo, tampouco o Sabiam as vítimas que eram contaminadas (Krenak, 2020, p.71)
A narrativa em terceira pessoa por um narrador se passa antes da predatória colonização do Brasil pelos portugueses e tem como cenário as matas do atual Tocantins.
Tudo gira em torno de Jaguarê, caçador araguaia que busca algum inimigo para lutar e levar para sua aldeia, com o objetivo de obter o título de guerreiro. Em sua procura por alguém com quem lutar, o caçador acaba encontrando Araci, uma índia tocantim que era filha do chefe de sua tribo e ela conta para ele que é disputada por cem guerreiros de sua nação e convida-o para também disputá-la, num típico exemplo de mulher-objeto, como Alencar, de certo modo colocou Iracema, na sua pretensa obsessão por um branco, no reverso do que o autor localiza Iraci, mesmo assim vemos um escamoteado viés preconceituoso do autor.
O jovem pede a Iraci retorne à sua tribo e mande o recado para os cem pretendentes de que ele iria combater todos eles e ela faz como pede Jaguarê e volta para a sua tribo com o objetivo de dar esse recado.
Depois de um tempo, o caçador encontra Pojucã, irmão de Araci, com quem luta. Jaguarê consegue vencer a luta contra Pojucã, recebendo o título de Ubirajara, que significa “senhor da lança”. Do mesmo modo que Peri, do romance O Guarani, na representação do indígena, o autor apela para a força física, nunca parecida com o intelecto branco. Vemos traços da exaltação das forças indígenas no diálogo abaixo:
— Guerreiros araguaias, quereis saber qual foi o campeão que Tupã enviou a Jaguarê para dar-lhe o nome de guerra?
— Ele aí está diante de vós.
— É o grande Pojucã, o feroz matador de gente, chefe da tribo mais valente da poderosa nação dos tocantins, senhores do grande rio.
“Vós que o tendes aqui presente, vede como é terrível o seu aspecto, mas só eu que o pelejei conheço o seu valor no combate.
— O tacape em sua mão possante é como o tronco do ubiratã que brotou no rochedo e cresceu.
— Jaguarê, que arranca da terra o cedro gigante, não o pôde arrancar de sua mão e foi obrigado a despedaçá-lo.
— Os braços de Pojucã, quando ele os estende na luta, não há quem os vergue; são dois penedos que saem da terra.
— Seu corpo é a serra que se levanta no vale. Nenhum homem, nem mesmo Camacã, o pode abalar.
— Pojucã era o varão mais forte e o mais valente guerreiro que o sol tinha visto até aquele momento.
— Foi este, guerreiros araguaias, o herói que ofereceu combate ao filho de Camacã; e Jaguarê aceitou, porque logo conheceu que havia encontrado um inimigo digno do seu valor.
— Ele vos contempla, guerreiros araguaias. Se alguém duvida da palavra de Jaguarê e da força do guerreiro tocantim, chame-o a combate e saberá quem é Pojucã.”
O chefe tocantim lançou um olhar ameaçador à multidão dos guerreiros; mas nenhum ousou aceitar o desafio. (ALENCAR, 1977, p. 52)
Ubirajara leva o vencido para a sua aldeia e oferece para ele sua antiga pretendente, a bela Jandira. Porém, Jandira não quer ficar com nenhum homem a não ser Jaguarê e, por isso, decide fugir para a floresta. Instaura-se um trio conflituoso num apelo ao sentimentalismo, nesse caso.
Em meio a isso, Ubirajara decide ir para a aldeia de Araci e não se identifica (pois a hospitalidade dos tocantins permitia isso), adotando o nome de Jurandir, que significa “aquele que veio da luz”. Lá, ele combate todos os pretendentes de Araci e vence todas as batalhas, ganhando a mão da jovem em casamento.
No entanto, para casar, ele teve que falar seu verdadeiro nome, o que causou uma grande confusão, pois ele havia feito o irmão de Araci de prisioneiro em sua tribo. Assim, começa uma grande guerra entre tribos, com Pojucã sendo libertado para lutar com seus irmãos tocantins e com a chegada dos tapuias, que atacam antes dos araguaias.
Itaquê, o líder tocantim, consegue vencer o líder dos tapuias, mas acaba ficando cego e perdendo sua liderança. Com isso, é preciso escolher um novo líder, que deveria conseguir pegar o arco de Itaquê, dobrá-lo e atirar com ele. O que nos faz pensar no herói grego, Ulisses, representado na Odisseia, de Homero, que ao voltar à sua Ítaca, dá exemplos de força e caráter. Isso também nos traz à mente um conto de Daniel Munduruku, A onça valentona e o raio poderoso.
Os velhos do povo Taulipang contam que, antigamente, lá no início dos tempos, quando nada ainda havia sido criado, a onça era muito metida a besta. Gostava de aparecer e amedrontar todo mundo, todos os animais. Fazia isso para poder se alimentar, mas fazia também para convencer a todos que ela era a mais poderosa do lugar.
Um dia ela encontrou um moço muito formoso à beira de um rio. Ele estava lá preparando um bastão. Sua distração era tanta que nem percebeu a onça aproximar-se às suas costas. Ela chegou, então, de supetão e lançou-se sobre o estranho.
Embora ela quisesse devorá-lo, não o fez naquele momento, pois antes queria humilhar sua presa. Por isso a onça apenas passou por cima do moço que permaneceu impassível.
Ele apenas levantou os olhos e a cumprimentou
– Olá, meu cunhado – disse a onça – queria saber se você é tão forte quanto eu. Eu quebro tudo o que vejo em minha frente. Você quer ver? Nem esperou a resposta de Raio, como se chamava o moço. Imediatamente subiu na árvore carimbé e a quebrou totalmente. Foi sobre a árvore paricá e a estraçalhou com sua força descomunal. Desceu ao chão e cavou com suas garras, destruindo tudo à sua frente. (Munduruku, 2005, p. 61)
Contudo, nenhum índio tocantim consegue o feito, nem mesmo Pojucã, filho do líder. Com isso, Ubirajara é convidado para tentar, e ele o faz com tanta habilidade que Itaquê fica emocionado.
Assim termina o livro: Ubirajara dobra os arcos das duas nações, tocantim e araguaia, unindo-as e dando origem à nação Ubirajara.
O que vemos é um emaranhado de estudos antropológicos/ “históricos” que Alencar fez em seu gabinete, misturou com ingredientes do romantismo, e temos a amor, aventura e idealização dos indígenas que nunca conheceu profundamente.
Os alunos que estudam tal literatura na escola compram isso por engano, falta de esclarecimento maior de muitos professores sobre os problemas indígenas, os de hoje e os de sempre, e são muito mal preparados em sua formação acadêmica. Não podemos negar o valor do cearense, mas também devemos lê-lo com os olhos de hoje, claro.
Valores e questionamentos que se fazem essenciais na literatura de e sobre indígenas
Alguns livros procuram contrapor as narrativas da tradição oral já existentes com narrativas (“memórias”) pessoais biográficas redigidas especialmente pelos professores/autores, como se aquelas fossem “mitos” com menor grau de veracidade, e portanto menos científicas, enquanto estas são vistas como documentos testemunhais tendo maior grau de veracidade e cientificidade.
Outros livros ainda contêm narrativas ditas ficcionais e até mesmo poesias escritas especialmente para esses livros pelos professores/autores, às vezes de autoria coletiva, outras vezes de autoria individual, criando uma nova modalidade de, ou talvez confundindo para sempre, o conceito de “autor”.
O índio não tem cara de branco, seu corpo é diferente, seu jeito de caminhar é diferente. Seu cabelo é liso, Não tem muita barba e nem pêlo enrolado no braço e na perna. Índio tem pêlo liso no suvaco e na canela. São iguais e diferentes. Diferentes na língua, jeito e costume. Igual no corpo, na inteligência, no respeito. Somos todos iguais: índios, negros, brancos. Lembramos aqui do grande pesquisador Roland Walter quando ele reflete que
Nas Américas, a brutalização das pessoas é ligada a brutalização do espaço e estas brutalizações são enraizadas no passado: o genocídio de tribos indígenas, a escravidão e o sistema de plantação e as várias formas de exploração da natureza, entre outros, caracterizaram as diferentes fases e processos de colonização e ainda continuam a ter um impacto sobre o pensamento e o agir das pessoas não somente com termos de como as pessoas se relacionam e tratam os diversos outros (penso, por exemplo, no racismo e no sexismo em suas formas tanto ideológicas quanto instintuais), mas de como as imagens eventos traumáticos perseguem estes pensamentos. Lembramos o pensador Roland Walter, professor do departamento de Letras da UFPE:
Ter uma histeria enraizada na terra roubada durante um processo colonial, como no caso das primeiras nações indígenas pan-americanas significa ter uma não identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada durante um processo colonial, como no caso dos colonizadores e seus descendentes, significa ter uma não identidade nutrida pelo remorso recalcado. Refletida nestas não identidades – identidades fragmentadas e/ou alienadas por condições de violência – é a importância da geografia e da memória enquanto elementos para se colocar como sujeito. Sem lugar a consciência e a subjetividade do ser humano sac. Inconcebíveis. Este lugar pode ser de natureza geográfica e/ou linguística, religiosa, cultural – um lugar. cosmovisão. O lugar-lar e sua construção na língua, portanto, é um dos meios pós-coloniais cruciais para lembrar (e assim juntar) os fragmentos de uma cultura/história/identidade estilhaçada e parcialmente perdida nos nacos nômades entre mares e (não) lugares, bem como entre os muitos dias e não ditos de diversos discursos. (in GRAÚNA, 2013, p. 9-10).
Qual é o papel da literatura e da crítica literária neste processo descolonizador? Gostaria de ligar esta pergunta com duas outras: qual é o papel da literatura no mundo? Qual a contribuição da literatura e dos escudos literários em ligação com a ecocrítica para a compreensão do mundo e da realidade?
A literatura é um dos meios privilegiados de construção mitológica coletiva. Como encruzilhada onde discursos e visões em conflito e competição se encontram e entram num equilíbrio muitas vezes precário e contraditório, a literatura constitui um lugar no qual diferentes valores, mitos, histórias e traduções estão sendo negociados. É por meio da literatura enquanto espaço mnemônico que escritores multiétnicos das Américas recriam os mitos necessários para se enraizar como sujeitos autóctones. A reapropriação do espaço via memória possibilita a colocação do sujeito na sua própria história. A renomeação do seu lugar e da sua história significa reconstruir sua identidade, tomar posse de sua cultura; significa, em última análise, resistir a uma violência epistêmica que, nas suas diversas formas e práticas, continua até o presente. Desta forma, a literatura molda ids, crenças e ideais históricos e éticos contribuindo para a constituição da episteme cultural coletiva. Mediante a crítica literária e sua problematização das representações culturais se ganham insight dos diversos tipos de identidade cultural que constituem sociedades, tribos, nações. (Roland Walter in GRAÚNA, 2013, p. 11)
Essa visão de Walter nos faz lembrar esse desejo tão indígena de um mundo novo, posicionado segundo valores da cultura indígena que é uma cultura essencialmente ligada ao cosmos, ao natural e ecologicamente correta em relação ao meio ambiente.
Dada a complexidade da situação do surgimento dessas narrativas no espaço problemático entre a oralidade e a escrita, é de se esperar que os gêneros textuais das narrativas reflitam tal complexidade, dificultando a sua identificação em termos dos gêneros da cultura escrita, tais como ‘poesia’, ‘conto’ ou ‘crônica’. Muitas vezes, são os editores não-indígenas dos textos que formatam os manuscritos atribuindo-lhes o gênero textual que mais lhes parece cabível nas circunstâncias, sem que os próprios autores tenham escolhido intencionalmente tais gêneros. Como se sabe, ‘poesia’, ‘conto’ e ‘crônica’ são gêneros da cultura escrita e têm mais a ver com a disposição do texto verbal no espaço bidimensional da página do que com o aspecto da performatividade e a interação narrador-audiência, mais característica da tradição oral, cujas distinções de gênero textual são menos definidas e mais situacionais. O ordenamento dos eventos é feito de acordo com uma experiência de vida de um sujeito; porém, esse sujeito da experiência, seja ele expresso explicitamente na narrativa ou não, mais do que um sujeito individual, é um sujeito social e coletivo. (Melo Neto, 2021, p. 63)
AUTORES INDÍGENAS, HOJE DANIEL MUNDURUKU
Daniel Munduruku, natural de Belém do Pará, Daniel é o principal representante do segmento literário indígena brasileiro. Autor de dezenas de livros, é escritor premiado nacional e internacionalmente, vive na cidade de Lorena, SP.
Não é à toa que os(as) escritores(as) indígenas apareçam no mercado editorial, em produções teatrais, em documentários mostrados em vídeo, em fundações culturais e organizações não governamentais representativas, com o objetivo de consolidar o resgate e a difusão da sabedoria atual e milenar dos povos indígenas no Brasil e, por extensão, difundir o saber ancestral e contemporâneo dos parentes indígenas na América. Desse modo, o escritor Kaka Werá Jecupé fundou, em 1992, com Roman Ketchua, Daniel Munduruku e outros parentes uma comissão intertribal para lutar pela cidadania cultural indígena. (Graúna, 2013, P. 74).
A origem do nome Munduruku está associada ao ruído que vem dos pés, nas expedições de caça e pesca, ou de guerra. Por isso, o grupo foi denominado de formigas gigantes. Essa é uma parte da história indígena contada e escrita por Daniel Munduruku em: Histórias de índio (1996), Coisas de índio (2000), As serpentes que roubaram a noite e outros mitos (2001), O diário de Kaxi: um curumim descobre o Brasil (2001). Esse autor procura atualizar a história dessa etnia, aproximadamente sete mil pessoas, que vivem em aldeias no sudoeste do Pará, na margem direita do Rio Tapajós. Apesar do contato com o mundo dos “brancos”, esse grupo mantém a sua cultura, principalmente a língua Munduruku, que é de tronco tupi. O grupo vive da caça, da agricultura e da exploração de ouro na reserva, uma área demarcada para evitar a invasão de mineradoras, garimpeiros e madeireiros, por exemplo.
Vivenciar a cultura indígena é estar conectado diretamente com a natureza, ou seja, falar, respirar, se alimentar, transcender e vibrar com a nossa mãe terra. Ter o privilégio de se comunicar com os nossos ancestrais através da fumaça que sai dos nossos cachimbos sagrados levados pelo vento. Diante de tanta perseguição e sofrimento pós invasão dos estrangeiros, o olhar indígena sempre será de desconfiança e medo, pois sempre estaremos na defensiva para lutar dia após dia pelos nossos direitos ao qual foram arrancados brutalmente pelos invasores. Que tipo de preconceito sofremos ?Todos os possíveis e absurdos que um ser neste mundo pode sofrer. Desde preconceitos com a nossa fisionomia até a forma com que lidamos com a nossa cultura e religião. A força de sentir e saber que você enquanto ser originário de um pertencimento diante de um povo com uma cultura cheia de especificidades.
O relaciona com os não indígenas, tentamos sempre conviver da melhor forma possível, pois hoje vivemos todos em uma sociedade pluralizada e não podemos interferir nem obrigar outros povos ou culturas a seguir a nossa. Assim como tentaram fazer com a nossa. O batizado do meu primogênito dentro da nossa cultura. Momento de muita alegria, beleza e respeito ao sagrado.
A partir da arte podemos quebrar tabus e preconceitos que a sociedade nos impõe, assim como é um momento de viajar nas diversas formas da imaginação, da criação e da emoção.
Referências
ALENCAR, José. Ubirajara. São Paulo: Ática, 1977.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2015.
CAMINHA, Pero Vaz. A carta. Rio de Janeiro: Agir, 1999.
GRAÚNA, Graça. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
MELO NETO. Moisés Monteiro de. Literatura de autoria indígena no Brasil e representação do índio em outras literaturas e artes. Recife: Libertas, 2021.
MOISÉS, Massaud. Literatura Brasileira através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2002.
MUNDURUKU, Daniel. Contos indígenas brasileiros. São Paulo: Global, 2005NEJAR, Carlos. História da literatura brasileira: do quinhentismo aos contemporâneos. São Paulo: Leya, 2011.