A REPRESENTAÇÃO DA CRIANÇA NA LITERATURA A PARTIR DA ANÁLISE DA OBRA O MENINO E A FLOR, CÉLIA CRIS SILVA, E O MENINO NITO, SONIA ROSA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7635795


Milena Aleknovic


INTRODUÇÃO

A Literatura revela a vida, é a arte de narrar, descrever as facetas da humanidade. Considerando a amplitude de definições que podemos encontrar para a Literatura, notamos que direta ou indiretamente todas elas apontam para a concepção, percepção de vida ou vidas. Ramos nos ajuda a refletir sobre as concepções de Literatura, afirmando que:

A Literatura, desde Aristóteles, um filósofo mais velho do que Jesus Cristo, é definida como a arte construída pela palavra e, com o tempo, esta palavra tende a estar escrita. No entanto, entendemos que ela pode se manifestar também através da oralidade. Desse modo, pertencem à literatura textos orais e escritos que contam ações humanas que aconteceram, mas sempre inventando um pouco, ou ações totalmente inventadas, a partir de algum elemento (da realidade). Assim, quando a vizinha conta um fato que ocorreu com seu marido, distorcendo-o um pouco, o relato tem alguns elementos de Literatura, pois representa uma ação humana e contém traços de invenção (RAMOS, 2010, p. 19).

Aprofundando a temática da Literatura, encontramos diferentes ramos pertencentes a esta mesma árvore, dentre eles, um colorido e fantástico que se entrelaça com os outros e consegue auxiliar na extensão, largura e comprimento dos outros, pois concentra-se em grande quantidade nas extremidades da árvore. Essa parte da árvore que mostra-se com seu colorido fortemente nas raízes e princípio do caule, mas que estende-se em outras ramificações, é a presença da Literatura Infantil.

Essa Literatura Infantil é de extrema importância para que os galhos se estendam e cresçam fortificando a árvore da leitura, afinal, a grande maioria das pessoas tem sua árvore germinada por sementes dessa Literatura infantil que encanta o imaginário nos primeiros anos de vida, antes mesmo da alfabetização convencional, permitindo que a árvore cresça e frutifique em novas experiências literárias.

A Literatura Infantil que encanta e fortifica nosso imaginário nos tenros anos de vida, é formada por múltiplas sementes, múltiplas histórias que não se limitam apenas às crianças, mas que marcam essa fase leitora e permeiam outras páginas da vida.

Considerando a beleza literária presente nas histórias infantis, neste trabalho analisaremos a representação da criança em duas obras: O menino e a flor (2012), de Célia Cris Silva e, O menino Nito (2008), de Sonia Rosa.

A CRIANÇA EM O MENINO E A FLOR

Antes mesmo de abrirmos o livro, na ilustração da capa conhecemos o menino, personagem principal da história e já conseguimos perceber, por sua expressão facial e corporal, traços característicos das crianças: a leveza no andar que revela a leveza da infância, o olhar curioso que busca conhecer e compreender o mundo, a alegria no sorriso que demonstra a vivência de uma fase da vida repleta de descobertas que trazem felicidades para quem as alcança e vivência.

No início da narrativa, encontramos a passagem de tempo que ocorre nos primeiros anos de vida, sendo retratado não só no texto visual, como também no texto verbal que acrescenta adjetivos para as fases da vida do personagem: “Ele foi um bebê fofinho, uma criança sorridente, um menino querido” (SILVA,2012, p.4)

(SILVA, 2012, p. 3)

Percebemos nas ilustrações e no texto verbal, novamente, a presença do ser criança, do viver a infância. 

Depois de conhecermos o menino, a narrativa nos mostra ele demonstrando concretamente sua alegria e felicidade, trazendo objetos ou movimentos para as pessoas que faziam parte de sua família. Primeiramente ele leva uma flor, depois começa a dançar e por fim, apresenta um pano de prato que havia pintado. Nesses momentos, a cada gesto do menino, ele recebe uma crítica do seu pai, apontando não ser condizente tal objeto ou ação com o que é considerado, do ponto de vista do pai, como atitudes de menino:

-Filho meu não anda catando flor para enfeitar o quarto. Filho meu tem que ser macho!
[…]
-Filho meu não fica cantando e dançando. Filho meu tem que ser macho!
[…]
-Filho meu não pinta pano de prato. Filho meu só faz trabalho duro, de macho. (SILVA, 2012)

Notamos que o menino tem suas ações e emoções “podadas” pelo pai, pois esse tinha suas considerações sobre o que era condizente para um menino, visando que esse deveria tornar-se “macho”. Desse modo, a criança deve obedecer as concepções da sociedade, daqueles que a cercam, nesse caso o pai do menino, objetivando tornar-se não aquilo que ela própria almeja, mas sim ser quem e como os outros determinam. Bernard Charlot (1979, p. 108-109) enfatiza que:

Se a imagem da criança é contraditória, é precisamente porque o adulto e a sociedade nela projetam, ao mesmo tempo, suas aspirações e repulsas. A imagem da criança é, assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade pensam de si mesmos. Mas este reflexo não é ilusão; tende, ao contrário, a tornar-se realidade. Com efeito, a representação da criança assim elaborada transforma-se, pouco a pouco, na realidade da criança. Esta dirige certas exigências ao adulto e a sociedade, em função de suas necessidades essenciais. O adulto e a sociedade respondem de certa maneira a essas exigências: valorizam-nas, aceitam-nas, recusam-nas e as condenam. Assim, enviam à criança uma imagem de si mesma, do que ela é ou do que deve ser. A criança define-se assim, ela própria, com referência ao que o adulto e a sociedade esperam dela. […] A criança é, assim, o reflexo do que o adulto e a sociedade querem que ela seja e temem que ela se torne, isto é, do que o adulto e a sociedade querem, eles próprios, ser e temem tornar-se.

O medo do pai de ver seu filho tornar-se alguém diferente das suas vontades e desejos, não o reflexo do que ele queria, faz com que ele acabe frustrando o filho, que se “encolhe em um canto” (SILVA, 2012, p.7), cala a música e a dança na sua voz e em seus pés (SILVA, 2012, p.8) e finda com a sua alegria (SILVA, 2012, p. 10). Essas experiências na infância, determinam quem esse menino viria a tornar-se: “Ele cresceu. Virou um adulto que não gostava de flores, que não gostava de música, que não gostava de dança, que não gostava de arte, que não sorria.” (SILVA, 2012, p.11)

(SILVA, 2012, p. 11)

Percebemos como ao tornar-se adulto, com essas características, o semblante modifica-se das ilustrações de como esse menino era no início da narrativa. Seu olhar agora revela tristeza; seu andar é pesado, sem vida. Toda a alegria e curiosidade que aquele menino cultivava, foi oprimida e assim, ele cresce e torna-se alguem diferente da criança que havia sido.

A narrativa prossegue, e esse menino que agora é adulto, apaixona-se por alguém com as características opostas da pessoa a qual ele havia se tornado. Quando tem seu filho, acaba rememorando muitas recordações: “Aquele filho o fazia sentir tantas coisas que ele não sabia explicar! Uma vontade de dançar, cantar…Mas ele não podia. Tinha de ser firme. Tinha de ser macho!” (SILVA, 2012, p. 17) 

A voz do pai, a recordação das reprimendas ao colher a flor, ao dançar e ao pintar um pano de prato, são revividas em sua memória e o fazem lembrar do que sentiu ao escutar aquelas palavras do seu pai. Quando ganha do filho uma flor de presente de aniversário, essa voz vem com força em sua cabeça: “Filho meu não colhe flor, Filho meu não pinta” (SILVA, 2012, p. 19)

A ilustração nos ajuda a compreender o efeito que o presente trouxe ao personagem: seu olhar volta a ser olhar de quando criança, com vida, com curiosidade.

Isso o faz calar e não verbalizar as memórias que trazia em sua cabeça. No abraço, o choro lavou a alma daquele homem que fora menino. Assim, ele deixa a infância participar da vida adulta: “Depois colocou a flor num copo e a levou para o quarto. Depois ouviu música e dançou” (SILVA, 2012, p.24) 

A obra finaliza mostrando que o homem conseguiu despertar o menino que havia sido adormecido a muito tempo dentro de si: “E então foi dormir, para depois acordar menino de novo”. (SILVA, 2012, p. 25)

A CRIANÇA EM O MENINO NITO

Outra obra que também apresenta um menino e as consequências das exigências externas é O menino Nito. A história começa contando sobre o dia do nascimento do personagem Nito: “Quando Nito nasceu, foi uma alegria só. Todo mundo ficou contente. De tão gracinha que era, logo, logo, começou a ser chamado de bonito: Bonito pra lá…bonito pra cá… Até virar apenas Nito. Todo mundo achava lindo!” (ROSA, 2008, p. 3)

A narrativa prossegue, apresentando-nos um “probleminha” do personagem: chorar por tudo. Por conta disso, seu pai tem uma conversa séria com o menino:

-Nito, meu filho, você está virando um rapazinho…Já está na hora de parar de chorar à toa. E tem mais: homem que é homem não chora! Você é macho! Acabou o chororô de agora em diante, viu?

O menino ouviu tudo calado, assustado, e ficou pensando nas frases […] (ROSA, 2008, p. 5)

A fala do pai revela uma percepção mediante a como um menino deveria comportar-se para ser considerado “macho”. O pai busca se preparar muito para crescer e ser um homem conforme os “padrões”, conforme os padrões da sociedade. Stearns ao falar dessa fase da vida, destaca que em:

 Todas as sociedades ao longo da história, e a maior parte das famílias, lidaram amplamente com a infância e a criança. Muitas características são padronizadas, independente de tempo e lugar. Sempre e em toda a parte, as crianças precisam receber alguma preparação para o estágio adulto. Necessitam aprender a lidar com determinadas emoções, como raiva ou medo, de forma socialmente aceitável. Sempre e em toda a parte, em vista do longo período de fragilidade na infância da espécie humana, crianças pequenas requerem que se lhes providenciem alimentação e cuidados físicos. As doenças infantis, sua prevenção, assim como os possíveis acidentes são preocupações dos pais desde os tempos mais remotos até os dias de hoje. Algum tipo de socialização para os papéis de gênero é parte inevitável do processo de lidar com a infância, mesmo nos mais igualitários cenários contemporâneos. A lista de características básicas comuns é longa (STEARNS, 2006, p. 11).

Notamos que o pai do personagem busca ensiná-lo a como lidar com suas emoções, porém os argumentos por ele utilizados possuem um peso de preconceitos em relação à figura masculina e por isso, causam tanto impacto no menino. A ilustração nos ajuda a interpretar os sentimentos de Nito em relação às falas do pai:

(ROSA, 2006, p. 5)

Nito demonstra ficar chocado com as palavras e expressões usadas pelo pai e podemos perceber por sua expressão que ele está contendo-se para não chorar por ser persuadido que homem não pode chorar para poder ser considerado macho. 

Desse modo, para poder ser homem, Nito resolve engolir todos os choros, construindo um muro para conter suas lágrimas. Porém, com o passar do tempo, por tanto engolir choros, o menino fica doente. Os pais chamam o doutor Aymoré para tentar descobrir o que aconteceu com o filho.

Nito relata ao doutor tudo que aconteceu e esse aconselha o menino a “desachorar”. Assim, Nito chora todos os choros engolidos:

(ROSA, 2006, p. 12)

O pai de Nito conversa novamente com o filho, esclarecendo que ele pode chorar, mas quando tiver razões para isso. A partir dessa conversa, Nito cresce, chorando quando há razões.

ANALISANDO AS OBRAS

Para fazer a análise das duas obras, consideramos alguns dos aspectos que Ramos e Rela (2018) destacam em seu artigo A infância na narrativa infantil brasileira: de Mário a Raquel. 

Os primeiros aspectos referem-se ao gênero, idade e função. Ambos os personagens são meninos que apresentam ações que perante a interpretação das figuras paternas, são incoerentes com o que deveria ser esperado deles, pois suas atitudes podem classificá-los como “não machos”, sendo necessário que os pais repreendiam para que eles façam o que representa a figura masculina. Hooks corrobora, afirmando que:

O patriarcado ensina uma forma de estoicismo emocional aos homens que diz que eles são mais viris se eles não sentem, mas que, se por acaso eles sentem e os sentimentos machucarem, a resposta mais máscula é empurrá-los goela abaixo, esquecê-los, esperar que vão embora. (HOOKS, 2018, p. 3)

Os meninos das obras escondem suas emoções, o primeiro reprime o que gostaria de fazer para poder agradar ao pai e consequentemente a sociedade e Nito, engole as lágrimas para satisfazer aos outros e ser “macho”.

Quanto à idade, em ambas as obras não é apontada a idade dos personagens, compreendendo-se que estão na fase da infância por conta de suas atitudes e ações e, pela passagem do tempo que aparece nas narrativas.

A função das duas obras, mostram-se por um lado revelando características das crianças, como a leveza e alegria do personagem em O menino e a flor, e a presença do choro como forma de demonstrar insatisfação, com o personagem Nito. Por outro lado, tem funções educativas, ao destacar que esconder as emoções e moldar-se conforme o que os outros desejam, gera frustrações.

Outros pontos destacados no artigo, dizem respeito a estrutura familiar e sociedade. Em ambas as obras os pais exercem papel determinante nas ações dos meninos e consequentemente na construção das narrativas. As falas dos pais registram-se nas memórias dos personagens e por serem palavras fortes, fazem com que eles levem essas expressões registradas, até que se tenha o desfecho das narrações. Depois dos pais, há menção às mães; no caso da primeira obra fala-se da pessoa por quem o menino se apaixona e seu filho e, na segunda obra há a presença do doutor e cita-se a vizinhança. Podemos perceber indiretamente, por conta do assunto abordado nas histórias, a presença em pano de fundo de uma sociedade patriarcal que explicam as falas dos pais, em suas preocupações em fazerem com que os filhos evitem determinadas atitudes para poderem ser considerados “machos”.

Nas duas obras, a palavra “macho” enfatiza o peso e cobrança que se tem, desde a fase da infância, para que os meninos ajam de acordo com o que se espera de um futuro homem, sob o ponto de vista dessa sociedade. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Viver a infância deveria ser poder viver plenamente a liberdade, a brincadeira, a alegria, desfrutar de uma fase sem maiores responsabilidades. Todavia, mesmo depois de as crianças terem passado a ser vistas como pertencentes a um período da vida diferenciado da vida adulta, ainda continuam sofrendo cobranças por serem ou se comportarem visando o que os adultos esperam delas.

Os meninos das duas obras e as narrativas que contam suas histórias, nos permitem refletir sobre o impacto que as palavras de um adulto, principalmente uma figura de autoridade como a do pai, influenciam na vida dos filhos na infância e, no caso da primeira obra, como isso reflete no seu desenvolvimento e idade adulta.

A representação das crianças nessas obras nos possibilitam pensar sobre o que é ser criança, nesse caso especificamente, o que é ser menino, em meio a um mundo, a uma sociedade que “engessa” as ações e impõem padrões desde os primeiros anos de vida. E, quando esses padrões não são seguidos, as palavras duras “obrigam” que essas crianças tornem-se o que esperam delas e não que sejam livres para viver a infância. 

A infância torna-se desse modo, uma peça de teatro que tem os adultos como diretores e, as crianças são marionetes que devem ser conduzidas nos mínimos detalhes.

Obras como essas auxiliam a de forma lúdica, compreender essas questões e buscar formar uma sociedade que dê liberdade para as crianças viverem plenamente suas infâncias, com suas descobertas e aprendizagens, não tendo que moldar-se nas expectativas sociais e/ou pessoais daqueles que presenciam seu crescimento.

REFERÊNCIAS:

BROCCHETTO, RAMOS, Flávia.;  RELA, Eliana. A  infância  na  narrativa  infantil brasileira:  de  Mário  a  Raquel. Revista  Ibero-Americana  de  Estudos  em  Educação, Araraquara,  v.  13,  n. 4,  p. 1742-1758, out./dez.,  2018.  E-ISSN:  1982-5587.  DOI: 10.21723/riaee.unesp.v13.n4.out/dez.2018.11152

CHARLOT, Bernard. A mistificação pedagógica. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

HOOKS, bell. A vontade de mudar: homens, masculinidade e amor. Tradução Ayodele e Ezequias Jagge. Rio de Janeiro: Coletivo Nuvem Negra, 2018. Disponível em: https://docero.com.br/doc/nxs815n. Acesso em: 11 de jun. 2020.

RAMOS, Flávia Brocchetto. Literatura infantil: de ponto a ponto. Curitiba: Editora CRV, 2010.

ROSA, Sonia. O menino Nito: então, homem chora ou não? Sonia Rosa; ilustrações Victor Tavares. 4. Ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.

SILVA, Célia Cris. O menino e a flor/ Célia Cris Silva; [ilustrações Daniel Cabral]. São Paulo: Centro de Estudos vida e Consciência Editora.2012.

STEARNS, Peter N. A infância. São Paulo: Contexto, 2006.