A REPERCUSSÃO GERAL Nº 622 DO STF E OS EFEITOS DA MULTIPARENTALIDADE DO DIREITO DE FAMÍLIA FRENTE AOS DIREITOS E DEVERES INTRÍNSECOS À FILIAÇÃO¹

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7990711


Ana Beatriz Oliveira Souza2
Dalise de Abreu Lino3
Francisca Juliana Castello Branco Evaristo de Paiva4


RESUMO:  A multiparentalidade é conceituada como a possibilidade do reconhecimento da filiação socioafetiva em concomitância com a filiação biológica, recaindo ao pai ou mãe socioafetivo todas as particularidades inerentes à filiação biológica, como o dever de prestar alimentos,  o direito sucessório, e a guarda. Sendo a filiação socioafetiva respaldada na relação de afeto entre o menor e o pai ou mãe socioafetivo, devendo os indivíduos, possuírem uma relação de filiação em que se enxergam como pai ou mãe e filho. Dessa forma, apresenta-se a seguinte problemática: O que a falta de regulamentação específica poderá acarretar nos efeitos da multiparentalidade no Brasil? Nesse sentido, o objetivo geral do presente estudo foi analisar o conceito de multiparentalidade, sob a  ótica da socioafetividade, bem como sua origem e evolução. Além disso, discutir os seus efeitos  jurídicos no âmbito familiar no que tange aos alimentos, guarda e sucessão, levando em  consideração a sua aplicação ao caso prático em virtude da ausência de regulamentação.  Ademais, o estudo foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, por meio do método dedutivo, baseando-se através de artigos científicos, jurisprudenciais, doutrinas e recursos audiovisuais. Ante o exposto, conclui se que a falta de regulamentação específica, no que tange à multiparentalidade acarreta insegurança jurídica, visto que é aplicado ao caso concreto, por analogia,  somente regramentos do ordenamento jurídico já vigentes que regulam o direito de família, ignorando as peculiaridades da  multiparentalidade. 

Palavras-chave: Multiparentalidade. Filiação socioafetiva. Repercussão geral nº 622

ABSTRACT: Multiparentality is conceptualized as the possibility of recognizing socio-affective affiliation in conjunction with biological affiliation, with all the particularities inherent to biological affiliation falling to the socio-affective father or mother, such as the duty to provide maintenance, inheritance rights, and custody. Since the socio-affective affiliation is supported by the affectionate relationship between the minor and the socio-affective father or mother, individuals must have a relationship of filiation in which they see themselves as father or mother and child. Thus, the following problem arises: What can the lack of specific regulation have on the effects of multi parenthood in Brazil? In this sense, the general objective of the present study was to analyze the concept of multi personality, from the perspective of socio-affectivity, as well as its origin and evolution. In addition, to discuss its legal effects within the family with regard to maintenance, custody and succession, taking into account its application to the practical case due to the absence of regulation. In addition, the study was developed through bibliographical research, through the deductive method, based on scientific articles, jurisprudence, doctrines and audiovisual resources. In view of the above, it was concluded that the lack of specific regulation, with regard to multiparentality, entails legal uncertainty, since it is applied to the concrete case, by analogy, only rules of the legal system already in force that regulate family law, ignoring the peculiarities of multiparenthood.

Keywords: Multiparentality. Socioaffective affiliation. General repercussion Nº 622

1  INTRODUÇÃO

A multiparentalidade trata-se da possibilidade do reconhecimento jurídico de mais de um pai ou mãe no registro civil de um indivíduo, seguindo os pressupostos intrínsecos a socioafetividade, destarte, o presente projeto tem como tema os efeitos da multiparentalidade no direito de família frente aos direitos e deveres intrínsecos à filiação no Brasil.

Esses efeitos estão alicerçados na tese de tema 622 do Ministro Luiz Fux, na tese de repercussão geral, na qual declarou que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante com a biológica, com os efeitos jurídicos próprios.

Assim, a pesquisa abordará o resultado da multiparentalidade no que tange a guarda, os alimentos, direito sucessório e a relação de paridade do vínculo afetivo com o biológico levando em consideração a sua aplicação ao caso prático em virtude da ausência de regulamentação específica, visto que se aplica ao caso concreto apenas o direito equiparado.

Logo, é possível extrair, a partir deste, a problemática que norteará todo o estudo, qual seja: O que a falta de regulamentação específica poderá acarretar os efeitos da multiparentalidade no Brasil?

Na iminência de abarcamos as considerações finais, o estudo fora divido em três capítulos; previamente será feita uma breve análise da evolução histórica deste instituto, verificando como tais preceitos se consagraram e foram inseridos em nosso ordenamento jurídico, sob a luz da legislação doutrinária e jurisprudencial presentes.

Nos demais capítulos, também será esclarecido de que forma a multiparentalidade resguarda famílias que fogem a implicação dos genitores como os únicos que detêm direitos e deveres intrínsecos a filiação, como também, as mudanças dentro do núcleo familiar, que é alterado e readaptado constantemente e não se limita mais somente ao modelo de família patriarcal (mãe, pai e prole).

Dito isso, o desdobramento da pesquisa terá como orientação a revisão bibliográfica narrativa do Direito de Família no tocante a multiparentalidade, apresentando dispositivos do ordenamento jurídico que versam sobre o tema, ademais, será utilizado o método de pesquisa dedutivo agregado com a pesquisa bibliográfica narrativa para que o presente estudo seja realizado por meio de livros, artigos, jurisprudências e doutrinas. 

Portanto, objetiva-se, verificar de que forma multiparentalidade apresenta falhas quando não há regulamentação específica, havendo ainda lacunas a serem preenchidas, considerando que aplica-se ao caso prático apenas regulamentos que regem a filiação biológica, deixando de considerar as peculiaridades da multiparentalidade, e até mesmo limitando-a. 

2  EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA NO DIREITO 

O surgimento da “família” adveio diante das diversas formações ao longo dos anos, frente à necessidade do ser humano em estabelecer vínculos afetivos, sejam eles advindos de vínculos biológicos ou não. Dessa forma, as famílias sofreram diversas alterações em seu núcleo, sendo adaptadas e modificadas com o passar do tempo, de forma em que não mais se limitaram à formação de genitor, genitora e prole, sendo um modelo de família paternalista, podendo então se expandir por meio de vínculos afetivos tão fortes quanto os biológicos. 

Conforme exposto por Franco (2021), no século passado as famílias foram formadas em uma sociedade e sistema patriarcal, em que a autoridade familiar estava concentrada nas mãos do pai, sendo assim, o pai dessa família era quem tomava todas as decisões, sendo seu dever organizar, administrar e reger os atos da vida civil de seus filhos e até mesmo da esposa.  Nesse viés, é válido mencionar ainda que conforme o Código Civil de 1916, apenas os filhos oriundos do matrimônio deveriam ter direitos inerentes à paternidade, sendo denominados como os filhos legítimos. 

Penchel (2023) salienta que, antes da CRFB/88 a única família reconhecida no ordenamento jurídico era aquela advinda do casamento, assim somente por meio deste a família podia ter de fato a proteção e o respaldo jurídico do Estado.

Diante disso, a partir de 1988 com o advento da Constituição Federal foi possível o reconhecimento da filiação mesmo aos filhos concebidos fora do casamento: “Art. 227 § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (BRASIL, 1988). Dessa forma, concretizou-se o direito ao reconhecimento da paternidade àqueles filhos que até então seriam considerados como ilegítimos, dando-lhes situação jurídica igualitária em relação aos filhos havidos no casamento, notando-se uma drástica e necessária mudança que o instituto sofreu ao longo dos anos. 

Havendo ainda o surgimento das famílias constitucionalizadas, respaldadas no artigo 226 da Carta Magna em que se tem a proteção e o reconhecimento da família formada por qualquer um de seus pais e os descendentes, regularizando a família monoparental, e ainda o reconhecimento da união estável como uma entidade de cunho familiar, com a garantia do livre planejamento familiar (BRASIL, 1998). 

É válido salientar ainda que, a Constituição da República de 1988 e o Código Civil de 2002, discutem a respeito da estrutura do que é considerado família, porém, não são capazes de defini-la, visto que não há, no direito, uma definição homogênea quanto a esse conceito. Porém, observa-se que há inúmeras noções doutrinárias dispostas a defini-las (GONÇALVES, 2020). 

Segundo Soeiro (2023), deve-se considerar a importância da família, visto ser elemento insubstituível, tanto sob o aspecto funcional, considerando a transmissão dos valores sociais, quanto no ângulo emocional, pois o amor é primordial sendo característica essencial do indivíduo. Porém, deve-se salientar que grandes transformações estão ocorrendo no instituto familiar, resultando em necessárias adaptações e ajustamentos, levando em consideração aspectos cívicos, éticos, entre outros.  

Diante dos fatos, cumpre esclarecer que é a partir das famílias que o indivíduo se desenvolve e é inserido em sociedade perpetuando seus valores, que irão perdurar através dos fatos elementares da vida do ser humano, que o acompanharão por toda a sua existência.  Nesse sentido, além das relações de origem natural, biológico, também é a família o fundamental alicerce para os fenômenos culturais. 

Nesse intuito, aponta-se a família como principal alicerce da sociedade, pois é através delas que o indivíduo que integra a sociedade pode fundar sua base e se desenvolver, devendo ser papel do ordenamento jurídico vigente acompanhar estas evoluções. Corrobora com esse entendimento, o presidente nacional do IBDFAM, Rodrigo da Cunha Pereira, na qual o mesmo expôs no evento

“Direito de Família da Teoria à Prática” que o processo judicial voltado para a área de direito de família seria, de fato, a materialização de uma realidade subjetiva, sendo assim sua prática é um grande desafio aos operadores do direito, considerando a rapidez em que a sociedade se desenvolve e o desafio de acompanhá-la. 

Ante o exposto, dada a tamanha importância da família, podemos depreender que é função do Estado e do direito acompanhar suas constantes evoluções, devendo adequar-se à realidade na qual está inserido, e só então resguardar os direitos inerentes aos indivíduos, desempenhando adequadamente seu papel, abrangendo as novas formações familiares existentes, e as que estão por vir, garantindo que os indivíduos da sociedade estejam devidamente amparados. 

2.1.  Filiação biológica e socioafetiva 

É sabido que o ser humano necessita do afeto para a sua sobrevivência, sendo indispensável para o seu desenvolvimento emocional, moral e psíquico, e, ainda tal fato está intrinsecamente relacionado aos princípios que regem nosso ordenamento jurídico vigente, como o princípio da dignidade e até mesmo o princípio da afetividade (MAL; MALUF, 2021). 

A filiação, quando limitada somente ao vínculo biológico, se restringe àquela relação familiar entre os pais e seus filhos que se formaram decorrentes de uma relação consanguínea e registral, originando um posterior vínculo afetivo de filiação somente a partir desta. 

Diferindo da filiação socioafetiva, visto que a mesma é originada, tão somente da  relação de afeto entre os pais socioafetivos e a criança ou o adolescente, sendo este o principal  alicerce da relação de parentesco socioafetivo, guiados pelo princípio da afetividade, em natureza que conforme preceituado por Maria Berenice Dias, tal princípio é regido por uma de  convivência meramente familiar, ou seja o afeto seria a principal característica das relações  familiares, afastando a necessidade prévia do vínculo biológico  (DIAS, 2006). 

A filiação socioafetiva é demonstrada ainda por meio do estado da posse de filho, isto é, quando os indivíduos se reconhecem como pai e filho sócio afetivos, com todos os elementos intrínsecos a esta filiação, como por exemplo por meio da autoridade de pai ou mãe socioafetivos sob seu filho, também socioafetivo (ASSIS; SODRÉ, 2023).

 A relação familiar oriunda unicamente do vínculo afetivo ganha cada vez mais espaço  no cotidiano das pessoas, pois conforme Alquezar observou em seu artigo, a filiação  socioafetiva se encontra de forma significativa na vida dos indivíduos, mesmos que eles não  sejam capazes de perceber, visto que é cada vez mais comum pessoas que se relacionam com  indivíduos que já possuem filhos, e posteriormente se tornam seu padrasto ou madrasta, sendo  capazes de desenvolver relações afetivas ligadas à parentalidade com seus enteados, muitas  vezes se tornando um dos responsáveis e contribuindo pelo sustento, educação e criação da  criança ou adolescente, na qual estão vinculados afetivamente, sendo até mesmo reconhecidos  pela sociedade e os integrantes da relação de parentalidade oriunda do afeto, como pai ou mãe  legítima (SANTOS, 2022). 

Conforme observado por Maciel, o afeto e o amor como essência do núcleo familiar começaram a ser aparentes com a transição histórica que aconteceu após a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, com a chegada da Idade Contemporânea. (MACIEL, 2022). Ante o exposto, a necessidade da vinculação biológica tornou-se cada vez mais prescindível ao reconhecimento dos membros da família.

Penchel (2023), ressalta ainda que, o conceito de parentesco, assim como o de família, passou por transformações ao longo do tempo, destacando-se a ausência de exclusividade da ligação biológica, visto que tal conceito torna-se, atualmente, insuficiente.

Diante dos fatos, é válido esclarecer que o reconhecimento da filiação socioafetiva  implica em relação de equiparidade com a filiação biológica, de acordo com a aplicação da  multiparentalidade, sendo os pais ou mães responsáveis por todos os ônus e bônus oriundos  da filiação, não devendo haver diferenciação entre as espécies de filiação, como por exemplo,  ao que abrange os impedimentos legais para o casamento, aplicados à filiação biológica, ou  no que tange aos alimentos, direito sucessório e ao nome. Dessa forma, deve-se vislumbrar a entidade “familia” com pontos em comum vigentes na sociedade atual, como a afetividade e a solidariedade de seus membros, sendo tal fator primordial é intrínseco às famílias (PENCHEL, 2023).

3  MULTIPARENTALIDADE 

Observando-se a possibilidade da parentalidade socioafetiva, é possível a aplicação do fenômeno da multiparentalidade em que é reconhecida a filiação biológica em concomitância com a filiação socioafetiva, resguardando paridade de tratamento a todos os pais da criança ou adolescente, havendo ainda a possibilidade de um registro duplo. Conforme preceituado por Cassetari, tal hipótese é viável em várias oportunidades, tais como nos casos em que for possível somar a parentalidade biológica e a socioafetiva, sem que uma exclua necessariamente a outra (CASSETARI, 2017). 

Dessa forma, a partir do RE 898.060/SC, que gerou o tema de repercussão geral nº 622 do Supremo Tribunal Federal de 2016, passou a ser possível o reconhecimento de dupla paternidade, mantendo o registro e, por consequência, os deveres e direitos do pai biológico e o acréscimo da paternidade socioafetiva com seus devidos efeitos. Tal recurso foi interposto por um pai biológico contra o TJ/SC, em que foi debatido a respeito da prevalência da paternidade socioafetiva em face da biológica (GUILHERME; NUNES, MIGALHAS, 2016). Decisum esta que foi considerada um grande avanço, levando em consideração que até então haviam linhas de fundamentações completamente divergentes entre si, em que se buscava a prevalência de uma paternidade sobre a outra, sendo descartada a possibilidade de sua coexistência. 

Nesse viés, o relator Luiz Fux, em 2017 fixou a tese supracitada afirmando que, “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”, o que ocasionou mudanças significativas no ordenamento jurídico brasileiro (ANDREOTTI, CONJUR, 2022). Sendo assim, o voto Ministro Luiz Fux decidiu que é direito do filho a ser reconhecido socioafetivamente escolher, se irá conter em registro civil o nome do pai socioafetivo ou do biológico ou dos dois em concomitância (STOLZE; PAMPLONA, 2022). 

Nesse sentido, deve-se considerar ainda a discussão em relação a prática da multiparentalidade que, por muitas vezes, pode trazer sérios desafios oriundos da pretensão dos filhos ou dos pais a serem reconhecidos, visto que podem se utilizar da multiparentalidade para fins econômicos ou patrimoniais. 

Flávio Tartuce complementa denotando ainda que, claramente o reconhecimento da filiação socioafetiva concomitante com a filiação biológica serve para todos os fins, sendo eles, os alimentares ou sucessórios, dessa forma, considerando que a tese de nº 622 é vaga quanto a aplicação ao caso prático, é dever da doutrina, da jurisprudência e dos aplicadores do direito resolver os problemas que são oriundos dos casos concretos (TARTUCE, 2019). 

Dessa forma, a obrigação de prestar alimentos de forma recíproca, bem como o direito sucessório, e no que diz respeito a guarda quando se tratar de criança e adolescente, deverá ser aplicado em consonância ao que a doutrina, julgados e outros, determinam. Devendo ser exercido em observância ao melhor interesse da criança ou adolescente, pois, conforme salientado pela revista jurídica CONJUR, “o entendimento relativo à possibilidade da multiparentalidade é para além dos desdobramentos legais, a satisfação emocional e social tanto para o pai como para o filho socioafetivo, porque muito mais do que vínculo biológico, prevalece do vínculo de amor.” (ANDREOTTI, CONJUR, 2022). 

Conforme preceituado por Cassetari os efeitos da multiparentalidade são incontáveis e abrangentes, pois além dos já conhecidos e debatidos há outros a serem descobertos e que devem ser resguardados pelo instituto (CASSETARI, 2017). Dessa forma, a multiparentalidade nada mais é do que um efeito da nossa atual conjuntura social, que decorre de nossas variadas e complexas modalidades de família (MAL; MALUF, 2021). 

Considerando ainda que, conforme ressaltado por Freitas e Andrea em seu artigo publicado em 2023 a multiparentalidade, tem como guia o princípio do melhor interesse da criança, sendo este um princípio norteador, não somente do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) como também do nosso atual ordenamento jurídico. (FREITAS; ANDREA, 2023).

3.1.Tese de Tema no 622 e o Provimento de nº 83 do Conselho Nacional de Justiça

A Repercussão Geral foi incluída no nosso ordenamento jurídico por meio da Emenda Constitucional 45, esta emenda incluiu o parágrafo terceiro, no art. 102 da Constituição Federal, para aduzir que o Recurso Extraordinário julgado pelo STF tem que ter Repercussão Geral. Sendo assim, surgiu como um requisito de admissibilidade dos Recursos Extraordinários. Conclui-se assim, que todo Recurso Ordinário deve demonstrar a sua Repercussão Geral.

Em outras palavras, é uma demonstração de que o tema em discussão, ultrapassa os interesses comuns, existindo assim, uma notável repercussão econômica, social, jurídica ou política. Dessa forma, todo o julgamento de recurso extraordinário, antes passa por uma análise do próprio STF acerca da existência de uma suposta repercussão geral, e se houver aprovação de dois terços dos membros do STF, esse recurso é conhecido. Sendo dessa forma que o STF uniformiza as jurisprudências, firmando entendimentos firmes e consolidados para que os outros tribunais tenham como exemplo e sigam.

Dito isso, a Multiparentalidade exterioriza-se com solidez no direito através da Repercussão Geral 622, a tese que originou a aplicação da multiparentalidade se deu em decorrência de um caso concreto, qual seja: uma mulher havia sido registrada pelo marido da mãe, pela presunção de paternidade, seria este seu pai, naturalmente criando-a. Contudo, o matrimônio entre sua mãe e seu pai socioafetivo – que até então acreditava-se ser pai biológico, chegou ao fim, depois de mais de uma década. Após isso, a genitora revelou que ele não era seu ascendente genético; sendo seu genitor uma terceira pessoa na qual ela havia se relacionado extraconjugalmente na época de seu nascimento. Por conseguinte, a mulher ajuizou uma ação de investigação de paternidade contra o pai biológico, para que fosse reconhecida a filiação biológica, ganhando a causa devido a comprovação do DNA, entretanto, as visões anteriores excluíam o pai socioafetivo que ela já possuía. Cabe mencionar, que o pai socioafetivo foi ouvido durante o trâmite da ação, e deixou claro que mesmo havendo a separação do casal, ainda alimentava carinho e afeto com a filha (vínculo afetivo).

Em primeira instância julgou-se procedente a ação, reconhecendo a filiação somente com o pai biológico. Assim, houve o recurso extraordinário do pai biológico, que não queria ver reconhecida sua responsabilidade e filiação biológica, afirmando que ela já havia sido registrada por muitos anos; sendo esta que deveria prevalecer. Então recorreu, para que fosse revertida as decisões anteriores para manter-se somente o pai registral, chegando até o Supremo Tribunal Federal.

Conforme anteriormente mencionado, por meio de RE 898.060/SC que chegou ao Tribunal, foi decidido a respeito da prevalência da filiação socioafetiva em relação a biológica, visto que tal tema gerava decisões conflitantes, o que seria capaz de gerar insegurança jurídica a respeitos das filiações. Nesse viés, o STF entendeu, de maneira inovadora, que não seria necessário escolher apenas um destes, havendo uma terceira opção: manter as duas filiações.

Luiz Fux Ministro e relator, que deu origem ao voto vencedor defendeu a atual conjuntura dos tecidos sociais de nossa sociedade e sua constante evolução, utilizando-se dos princípios que atualmente norteiam a Multiparentalidade, quais sejam: o princípio da dignidade e o princípio da afetividade.

Haja vista que não existia nenhuma legislação prévia no Código Civil, tampouco na Constituição Federal, o Ministro baseou-se também no Art. 226, § 7 e Art. 227, § 6  da Constituição Federal que diz respeito à paternidade responsável e à igualdade na filiação, respectivamente. Como também fundamentou com o Art. 1593 do Código Civil que aduz que o parentesco é natural ou civil.

A partir daí, foi entendido a possibilidade a concomitância das filiações, a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede reconhecimento concomitante da paternidade biológica, com todos os efeitos jurídicos, ou seja, tornando possível a cumulação das filiações e colocando-as no mesmo patamar, sem que uma prevaleça sobre a outra.

O relator da tese de tema nº 622, articulou que a pluriparentalidade já era reconhecida internacionalmente, utilizando-se ainda de julgados estadunidenses, dessa forma, seria imprescindível o reconhecimento da multiparentalidade, visto que é dever do direito abranger e tutelar da forma mais completa possível todos os indivíduos.

Ante o exposto, a corte brasileira acabou deliberando a favor do reconhecimento da paternidade socioafetiva em concomitância com a biológico, assegurando todos os direitos e deveres intrínsecos à filiação, sendo assim, assegurou a existência e respaldo jurídico da dupla paternidade (FERREIRA; FREITAS, 2018).

O Conselho Nacional de Justiça – CNJ, alterou de forma significativa o seu texto do provimento de n. 63, que quedou-se no período de 21 meses na esfera inicial, o reformulando e dando origem em 14.08.2019, ao Provimento de n. 83, que aborda a multiparentalidade em relação aos Cartórios de Registros Civis. Dentre as reformulações realizadas se encontra a autorização em relação ao reconhecimento da paternidade/maternidade socioafetiva, vez que se o filho a ser reconhecido possuir idade igual ou superior 12 anos está autorizado o reconhecimento da paternidade na esfera extrajudicial perante o Cartório, porém caso o filho a ser reconhecido possua idade inferior a 11 anos, é necessário o reconhecimento por meio da via judicial. (MAL; MALUF, 2021).

No provimento de n.83 consta ainda a necessidade do vínculo afetivo e a relação de afeto paternal existente entre o pai/mãe e o filho socioafetivo, ser socialmente reconhecida, isto é, que os indivíduos tenham clara relação de afeto em que se reconheçam como pai ou mãe e filho, devendo tal relação ser pública, estável. Somado a isso, o registrador deverá atestar que existe uma relação de afeto por meio de elementos objetivos, através de documentos, devendo ainda haver a participação prévia do Ministério Público na via judicial (CALDERÓN, 2019).

Ante o exposto, existem requisitos a serem atendidos para o reconhecimento da filiação, sejam eles: que os candidatos a pai socioafetivo sejam maiores de idade; que sejam obrigatoriamente pelos menos 16 anos mais velho que o filho ser reconhecido, sendo tal direito vedado aos requerentes, quando foram irmãos ou ascendentes do filho que se busca reconhecer. (ANDREOTTI, CONJUR, 2022)

3.2.Código Civil de 2002 e a Constituição de 1988

A Repercussão Geral em comento reverbera o Artigo Científico do jurista João Baptista Villela (1979) –‘‘Desbiologização da paternidade’’, segundo ele, a paternidade em si não deve ser um dado da natureza e sim, um fato cultural.

Compreende-se o fato cultural como a evolução da família ao longo dos anos, vez que surge, por exemplo, a família mosaico, na qual une-se filhos de casamentos anteriores; com a convivência e o laço, nasce e fortalece os vínculos afetivos. Daí, é possível extrair o dito popular: ‘‘pai é quem cria’’. Portanto, a parentalidade socioafetiva é reconhecida hoje como forma de parentesco civil, ainda que o indivíduo reconheça um filho alheio como seu sabendo não sê-lo, não sendo possível quebrar este vínculo.

A razão pela qual este instituto é inovador se dá pelo fato que apesar de não constar expressamente no Código Civil de 2015, no Código anterior a este, era impossível até mesmo o genitor reconhecer um filho fora do casamento, sendo estes considerados com termos ofensivos (‘‘bastardos’’, ‘‘ilegítimos’’). Havendo uma grande evolução nesse quesito com a Constituição Federal, com o princípio da Igualdade entre os filhos, que expõem a igualdade dos filhos, sendo eles todos iguais, havidos ou não durante o casamento, sendo vedada qualquer forma de discriminação. Filho é filho.

E juntamente com o Princípio da Afetividade, transforma o afeto em valor jurídico, afeto este que origina-se através da interação entre as pessoas. Nesse panorama, podemos observar a evolução significativa bem como o desenvolvimento do instituto família, vez que, é possível o reconhecimento de filhos sem vínculo biológicos, o que antes era inviável.

Este entendimento não é extraído somente das jurisprudências, podemos encontrá-lo tanto na Constituição Federal, com nos princípios supracitados, como também no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em que em todos os artigos e princípios priorizam e buscam o melhor interesse da criança e do adolescente.

Apesar de se sobressair a Repercussão Geral 622, já haviam julgados anteriores que reconheciam a multiparentalidade, como por exemplo, a sentença prolatada pela MM. Juíza Deisy Crisyhian Lorena de Oliveira Ferraz, da Comarca de Ariquemes/RO, determinando o duplo registro da criança, em nome do pai biológico e do pai socioafetivo, diante do pedido de ambos para que a multiparentalidade fosse reconhecida. Contudo, ressalta-se somente com a retro mencionada Repercussão Geral, é que esclareceu dúvidas no que tange os efeitos jurídicos e a preponderância entre as filiações.

4  DOS EFEITOS DA MULTIPARENTALIDADE 

4.1.Direito aos alimentos

Ressalta-se que, uma vez determinado o acréscimo da filiação no registro civil, não cabe anulação do mesmo. Sendo possível a anulação somente em casos excepcionais, quando comprovado que houve fraude ou vício de vontade. Por conseguinte, com resultado da multiparentalidade, surtem efeitos em diversos âmbitos jurídicos, assim, a inclusão de mais uma filiação afeta não somente o registro civil, como também traz uma série de direitos, dentre eles, os alimentos, guarda e direito sucessório.  

De fato, o genitor consanguíneo (filiação biológica) possui a obrigação de prestar alimentos, quando necessário. Nesse sentido, observa-se que a filiação socioafetiva, ora instituto Multiparentalidade, equipara-se com a filiação biológica, concomitantemente.  Portanto, os filhos socioafetivos também possuem direito aos alimentos vez que possuem os mesmos direitos e deveres dos filhos biológicos, sem haver qualquer distinção, em consonância com o artigo 227, §6 da CF e com o princípio do melhor interesse do menor, havendo a chamada multiplicidade de direitos, o que segundo Gagliano não seria uma novidade no instituto da multiparentalidade (GAGLIANO, 2022). 

Ademais, no artigo 22° do Estatuto da Criança e do Adolescente ao referir-se que cabe aos pais “o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais” (BRASIL, 1990). 

4.2.Direito à Guarda e Convivência dos Filhos Socioafetivos 

O instituto da guarda é aplicado nos casos em que se há um rompimento da estrutura familiar, como ocorre por exemplo no divórcio ou dissolução da união estável dos pais da criança, devendo ser priorizado o melhor interesse da criança ou adolescente, em observância ao caso prático.  

A guarda poderá ser aplicada de forma compartilhada entre os pais do menor ou de  forma unilateral, sendo a compartilhada definida como a guarda em que os pais do menor tem  direito a tomar decisões a respeito da vida escolar ou criação de seus filhos, enquanto a guarda  unilateral deverá ser aplicada em situações excepcionais, em que apenas um dos pais poderá  tomar decisões sobre o menor, devendo ser concedido ao outro pai que não reside com a criança ou adolescente o direito de visitas, não devendo o filho ser privado de seu direito de  conviver com seus pais (FRANCO, 2021). 

Dessa forma, no caso da multiparentalidade, a guarda é um dos efeitos jurídicos mais complicados de se solucionar considerando a complexidade dos casos, mas ainda assim deve se considerar o princípio do melhor interesse da criança ou do adolescente, preceituado no art.  227 da Carta Magna (SCARIN, 2019). Rodrigo Cunha Pereira salienta ainda que, o “melhor interesse da criança” poderá sofrer alterações no tempo e espaço, devendo ser sempre analisado minuciosamente o caso concreto, reiterando-se o não uso de decisões abstratas. 

4.3.Direito à Sucessão 

As discussões quanto aos efeitos da multiparentalidade no âmbito sucessório são diversas e conflituosas, com entendimentos doutrinários que apontam para o reconhecimento da filiação socioafetiva para fins que se destinam exclusivamente ao caráter patrimonial, considerando a possibilidade sucessória ampliada (MAL; MALUF, 2021). 

Ante o exposto, levando em consideração que a sucessão, conforme o Código Civil em seu artigo 1.789, é uma forma de perpetuar os direitos do autor da herança para os seus sucessores, é sabido que através do reconhecimento da filiação socioafetiva, o filho reconhecido terá direito e concorrerá com os de origem biológica, sem qualquer discriminação entre os mesmos (BATISTA, 2022). Dessa forma, a sucessão na multiparentalidade deverá ser analisada com bastante cautela, porém sempre considerando que com o reconhecimento, os filhos socioafetivos terão direito a sucessão tanto quanto de origem biológica.

5  DA APLICAÇÃO DA MULTIPARENTALIDADE 

5.1.Quanto aos alimentos

A Jurisprudência pátria caminha para validar a tese de que a pensão alimentícia, quando for necessária, será obrigação de ambos os pais – sócio afetivos e biológicos – sendo sempre pautada pelo binômio necessidade/possibilidade. Passamos a analisar os seguintes casos, vejamos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIMENTOS. Fixação. Pai socioafetivo.

Alegação de existência de ação contra o pai biológico que impediria a fixação de alimentos em nome do agravante. Inadmissibilidade. A multiparentalidade não impede a fixação de pensão simultânea. Prevalência do superior interesse do incapaz. Conexão. Inexistência. Necessidade do menor que é presumida. Fixação das pensões, todavia, que também deve levar em consideração as capacidades financeiras dos alimentantes, pai biológico e socioafetivo, que não se confundem. Intervenção de terceiros. Inadmissibilidade. Instauração de lide paralela com prejuízo dos interesses do menor. Decisão mantida. Recurso a que se nega provimento.  

 (TJSP;  Agravo de Instrumento 2246243-18.2022.8.26.0000; Relator (a): Maurício Campos da Silva Velho; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro de Itapevi – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 02/03/2023; Data de Registro: 03/03/2023)

No caso retro, trata-se de agravo de instrumento no qual o agravante, ora pai socioafetivo, alegou não ser possível ofertar ação de alimentos em relação a ele, aduzindo que já havia processo distinto pleiteando alimentos em face do pai biológico. Contudo, a multiparentalidade, diversamente, salvaguarda o direito de requerer a pensão alimentícia de ambos os pais, razão pela qual o recurso não foi provido.

E ainda:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE C.C.  ALIMENTOS.Reconhecida paternidade biológica do autor. Conteúdo que não restou impugnado. Exigência, ex lege, do pagamento da pensão alimentícia. Emprego do art. 1.696 do Código Civil. Existência de paternidade socioafetiva, em relação ao corréu, que não afasta o dever de pagamento da verba pelo pai biológico. Multiparentalidade reconhecida pelo E. Supremo Tribunal Federal. Falta, outrossim, de insurgência relacionada ao percentual e base de cálculo fixados judicialmente. Presumida adequação da importância. APELO DESPROVIDO.  (TJSP;  Apelação Cível 1002332-14.2015.8.26.0319; Relator (a): Donegá Morandini; Órgão Julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Foro de Lençóis Paulista – 1ª Vara;Data do Julgamento: 18/08/2022; Data de Registro: 18/08/2022)

  Esta demanda trata-se de apelação do pai biológico, no qual ele buscou eximir-se de suas responsabilidades em virtude de não haver quebra do vínculo socioafetivo entre o menor e o pai registral. Contudo, o apelo fora desprovido, vez que o Magistrado, aplicando o princípio do melhor interesse do menor agregado com a Repercussão geral do tema no RE 898.060/SC, justificou que a existência de paternidade socioafetiva, não impede que a verba alimentar seja obrigação do pai biológico, pelo reconhecimento da multiparentalidade. Portanto, através da multiparentalidade, estabelece a competência do pagamento da pensão alimentícia de ambos os pais, sendo eles socioafetivos ou biológicos; vez que não deve haver distinção.

5.2.Quanto à Guarda e Convivência dos Filhos Socioafetivos

Ao tratar-se da família é necessário que seja reconhecido quanto a possibilidade do rompimento do núcleo familiar da criança, por meio da dissolução da sociedade conjugal, tornando se uma situação ainda mais delicada ao que diz respeito a multiparentalidade, em que se há a possibilidade de repartição da guarda entre os genitores da criança ou adolescente e o pai ou mãe socioafetivos, dessa forma, sabendo que no ordenamento jurídico vigente geralmente é aplicada a guarda compartilhada, visto que somente em casos excepcionais é fixada a guarda unilateral, o regime de convivência da criança ou adolesente geralmente é fixado na seguinte forma, a cada 15 (quinze) dias entre os genitores.

 No entanto, deve-se considerar a peculiaridade da multiparentalidade, visto que tratando de 03(três) pais indaga-se quanto a viabilidade de uma criança ou adolescente permanecer sem a convivência de um dos pais por mais de 30 (trinta dias). Diante dos fatos, a jurisprudência vem se desdobrando para a aplicação do instituto na prática, senão vejamos:  

“REGISTRO CIVIL E FIXAÇÃO DE GUARDA – Improcedência –Inconformismo – Acolhimento – Adolescente que identifica família nos nichos biológico e socioafetivo – Estudo social que retrata a multiparentalidade – Multiparentalidade admitida pelo STF, com tese de repercussão geral reconhecida (RE 898.060/SC) – Art. 1.593, CC – Pedido consensual entre mãe socioafetiva, filho socioafetivo e pais biológicos deste – Situação de fato que perdura há mais de 10 anos – Primazia dos interesses do menor, atualmente com 14 anos – Vontade do menor externada durante a entrevista – Guarda compartilhada – Fixação de residência na casa da mãe socioafetiva – Sentença reformada – DERAM PROVIMENTO AO RECURSO (TJSP;  Apelação Cível 1000644-20.2022.8.26.0077; Relator (a): Alexandre Coelho; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro de Birigui – 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 20/09/2022; Data de Registro: 20/09/2022)”

 “EMENTA:  AGRAVO  DE  INSTRUMENTO  –  AÇÃO  PARAREGULAMENTAÇÃO DE VISITAS – CONFLITO ENTRE OS GENITORES – PAI SOCIOAFETIVO – POSSIBILIDADE – MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA – CONFIRMAÇÃO DA DECISÃO. 1. Não existem regras rígidas para a regulamentação das visitas, devendo o Juiz fixá-las de acordo com as especificidades do caso, buscando um sistema que melhor concilie os deveres e direitos dos pais com o princípio da proteção integral do menor. 2. Tendo a menor laços com o pai socioafetivo que, por sua vez, pretende manter a convivência com a criança, deve ser privilegiada a visitação, evitando um corte abrupto, prejudicando o bem estar psicológico da menina. 3. Recurso desprovido.  (TJMG –  Agravo de Instrumento-Cv  1.0000.19.162072-3/002, Relator(a): Des.(a) Teresa Cristina da Cunha Peixoto, 8ª Câmara Cível Especializada, julgamento em 11/04/2022, publicação da súmula em 19/04/2022)”

Dessa forma, observa-se que a aplicação da guarda, bem como o exercício do direito de vistas, é fixado em consonância com o princípio do melhor interesse da criança, princípio norteador da multiparentalidade, pautando-se a importância do menor em  manter os vínculos paternos. Portanto, deve ser aplicado ao caso concreto, considerando a especificidade da demanda, a solução que garanta o pleno exercício e manutenção das filiações, buscando fortalecer os vínculos. 

5.3.Quanto à Sucessão

  No que concerne à sucessão, o reconhecimento da multiparentalidade, como exposto, também atinge o âmbito patrimonial em caso de morte de um dos pais.  Conforme assinala a doutrina e jurisprudência nacional, in verbis:

“APELAÇÃO CÍVEL – Ação declaratória de reconhecimento de paternidade socioafetiva post mortem – Sentença de improcedência – Irresignação da autora – Autora que pretende o devido reconhecimento da paternidade socioafetiva e inclusão do nome do pai na certidão de nascimento, com efeitos retroativos – Manifestação do Supremo Tribunal Federal no sentido de que é possível adotar os fundamentos do parecer do Ministério Público para solucionar a controvérsia – Paternidade socioafetiva post mortem reconhecida – Decisão reformada – Recurso provido.

(TJSP;  Apelação Cível 1000257-28.2021.8.26.0695; Relator (a): José Carlos Ferreira Alves; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Nazaré Paulista – Vara Única; Data do Julgamento: 07/03/2023; Data de Registro: 21/03/2023)”

Passamos a analisar as seguintes jurisprudências:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO – INVENTÁRIO – paternidade socioafetiva – decisão que indeferiu o filho biológico de participar da herança, em razão de ele ter sido adotado por terceiros – inconformismo de todos os herdeiros, que concordam com a inclusão deste filho como herdeiro – acolhimento – filho que, depois de adotado por terceiros aos três anos de idade, ainda adolescente voltou a residir com o pai biológico em razão da morte de seus pais adotivos – reconstrução de elo afetivo em razão da convivência familiar que se efetivou a partir de então – existência de filiação socioafetiva apesar de o vínculo jurídico com o pai biológico ter sido rompido anteriormente pela adoção – concordância dos demais herdeiros – possibilidade de participar da herança em igualdade de condições com os outros filhos – art. 1.596 do código civil – decisão reformada – deram provimento ao recurso. 

 (TJSP;  Agravo de Instrumento 2267731-63.2021.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Coelho; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Foro de Pindamonhangaba – 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 17/01/2022; Data de Registro: 17/01/2022)”

In casu, trata-se de agravo de instrumento interposto pelos herdeiros, em face da decisão que, nos autos de processo de inventário, não reconheceu um dos autores como herdeiro em virtude de ter sido adotado posteriormente à morte do de cujus. Ressalta-se, que o MM. Juiz indeferiu a participação do referido herdeiro, em razão dele ter passado por um processo legal de adoção. Entretanto, o recurso fora provido, segundo o Juiz ad quem, a existência da filiação socioafetiva, persiste, pois, de acordo com a multiparentalidade, o vínculo jurídico com o de cujus tenha sido não se rompe com a adoção, justificando a decisão com os pressupostos da repercussão geral tema 622 do STF.

Acresça-se que, MM. Juiz ad quem, afirmou que a existência de filiação socioafetiva pode ser reconhecida nos autos de inventário de forma incidental, pois, não se trata de questão de alta indagação, já que a prova documental é suficiente para o deslinde do caso.

Essa foi a linha de raciocínio, no que tange o reconhecimento da multiparentalidade nos autos de ação de inventário, utilizada em diversos julgamentos, vejamos mais um exemplo:

“AÇÃO DE INVENTÁRIO CC RECONHECIMENTO INCIDENTAL DE PATERNIDADE BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA POST MORTEM. Juízo universal. Inteligência do art. 612 do CPC. Princípios da instrumentalidade das formas e da economia processual. Possibilidade da cumulação objetiva dos pedidos, vez que o pleito de reconhecimento de filiação e multiparentalidade post mortem é consensual e de vontade de todos os envolvidos, maiores e capazes, não necessitando de dilação probatória ou encaminhamento às vias ordinárias. Ausência de prejuízo. Provimento. 

 (TJSP;  Agravo de Instrumento 2137542-60.2022.8.26.0000; Relator (a): Enio Zuliani; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santo André – 2ª.Vara de Família e Sucessões; Data do Julgamento: 10/08/2022; Data de Registro: 10/08/2022)”

Por conseguinte, colacionamos a seguinte decisão que fora distinta do entendimento retromencionado, vez que não permitiu o reconhecimento da multiparentalidade nos autos de inventário, vejamos:

“Relator: Des.(a) KILDARE CARVALHO

 Data da decisão: 26/08/2022  Data da publicação: 31/08/2022  Decisão:

 APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0106.14.002044-2/001 – COMARCA DE CAMBUÍ – APELANTE(S): R.M.T.S. E OUTRO(A)(S), P.T., T.M.T.L., R.T. – APELADO(A)(S): C.B.F.F.

 DECISÃO MONOCRÁTICA

AGRAVO DE INSTRUMENTO –AÇÃO DECLARATÓRIA DE FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA EM MULTIPARENTALIDADE POST MORTEM CUMULADA COM ABERTURA DE INVENTÁRIO E PEDIDO DE PROVIDÊNCIA CUMPLAÇÃO DE PEDIDOS – INCOMPATIBILIDADE DE PROCEDIMENTOS – SUSPENSIVIDADE INDEFERIDA. 1.A parte

recorrente requer na ação primitiva que se faça o reconhecimento de filiação socioafetiva e que se faça a abertura do inventário do de cujus, sendo que tais procedimentos são de natureza autônomas, ou seja, deveria primeiro haver o reconhecimento da filiação pleiteada, para que assim o mesmo pudesse ter direito ao inventário da mesma, e ou, pleitear a abertura do mencionado procedimento. 2. Decisão mantida.”

A decisão monocrática citada, retrata a decisão do agravo que havia sido interposto em razão do não recebimento do inventário, levando em consideração que, primeiramente haveria o reconhecimento da filiação socioafetiva, e, por conseguinte, a abertura do inventário nos autos de um mesmo processo, sob a fundamentação de concentrar em um único processo os pedidos para promover economia, celeridade e eficiência processual. Todavia, o recurso não teve seu provimento em razão do entendimento do desembargador(a), de que deveria haver processos autônomos para cada pedido.

Dito isso, observa-se que há uma certa insegurança jurídica prevalecendo na maioria dos casos, vez que não há legislação específica para a multiparentalidade. Em decorrência disso, percebe se com as decisões apontadas acima, que as diferentes decisões ocasionam uma instabilidade jurídica e, gera assim, surpresas para as partes da demanda, vez que não há grau de certeza das decisões, tendo como consequências a limitação da aplicação da multiparentalidade bem como dificultando-a sua aplicação e reconhecimento no caso prático.

6  CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Os arranjos familiares sofreram diversas transformações ao longo dos anos, sendo resultado das constantes alterações sociais já enfrentadas, tendo em vista que, as famílias são reproduções sociais. Dessa forma, como já ocorre há várias décadas, as famílias não se resumem a somente vínculos sanguíneos e com a estrutura patriarcal, sendo as mesmas diversas e que podem incluir em sua composição indivíduos com quem possuem somente significativo vínculo afetivo, sendo este suficiente para a inclusão deste membro à família. Ante o exposto, a multiparentalidade é resultado das diversas mutações familiares, demonstrando a necessidade jurídica em adaptar-se à sociedade na qual está inserido, com o fito de resguardar os direitos e deveres dos indivíduos que nela existem.

É fulcral o reconhecimento das peculiaridades que envolvem a multiparentalidade, visto que, apesar de tal possibilidade representar um grande avanço do nosso ordenamento jurídico, a aplicação de leis já existentes, por analogia, não se demonstra suficiente para a resolução das demandas que chegam ao judiciário, o que pode ocasionar insegurança jurídica em decorrência das lacunas ainda existentes e que merecem ser supridas. 

 O princípio do melhor interesse da criança demonstra-se como basilar no reconhecimento da filiação socioafetiva que pode coexistir com a filiação biológica, inovando na composição jurídica, pois ao contrário da adoção, a multiparentalidade não exclui o vínculo biológico anteriormente existente, somente acrescendo a composição familiar da criança ou adolescente. Levando em consideração ainda o princípio da afetividade. 

Dessa forma, com o advento da tese de tema nº 622, que pôs fim à discussão quanto à prevalência da filiação biológica sob a socioafetiva, assegurou a possibilidade da multiparentalidade trazendo ao judiciário casos em que há a necessidade da resolução dos conflitos, a quem resta aos magistrados com o apoio da doutrina a análise minuciosa do caso concreto,e a aplicação devida para a resolução adequada.  

Por fim, constata-se que a aplicação análoga é insuficiente, necessitando de uma legislação específica, que objetiva a resolução das demandas, levando em consideração a peculiaridades do instituto, com o fito de viabilizar e assegurar a prática da multiparentalidade, sendo indispensável projetos de lei que visem regulamentar a multiparentalidade, no intuito de finalmente suprir as lacunas que ainda persistem. 

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SOEIRO, Cristina Paula. A evolução da relação pais e filhos séc. XXI: o fenômeno do idadismo.  Repositório Institucional Camões, p.74-78, 2023.


1Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA, Teresina-PI, 22 de junho de 2023.
2Acadêmica do Curso de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail:
beatrizz.ana20@gmail.com
3Acadêmica do Curso de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. E-mail: daliselino@gmail.com
4Professora do Curso de Bacharelado em Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. Mestra em
Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) E-mail: evaristojuliana40@gmail.com