A REDE DE ATORES HUMANOS E NÃO HUMANOS NA UTILIZAÇÃO DO PÂNCREAS ARTIFICIAL POR DIABÉTICOS

THE NETWORK OF HUMAN AND NON-HUMAN ACTORS IN THE USE OF THE ARTIFICIAL PANCREAS BY DIABETICS

LA RED DE ACTORES HUMANOS Y NO HUMANOS EN LA UTILIZACIÓN DEL PÁNCREAS ARTIFICIAL POR LOS DIABÉTICOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12571607


Flávia Prado Rocha1
  Regina Consolação dos Santos2
Georgery Ciceron3
Maristela Cabral de Freitas Guimarães4
Alinne Nogueira Silva Coppus5
Ricardo Bezerra Cavalcante


RESUMO

Objetivo: descrever a rede de atores humanos e não humanos na utilização do pâncreas artificial por diabéticos.Método:Estudo de abordagem qualitativa, utilizando-se da Teoria AtorRedecomo referencial teórico e a Cartografia de Controvérsias como referencial metodológico, realizadaem um município do Oeste de Minas Gerais, onde realizamos entrevistas abertas e observações com pacientes usuários da tecnologia, familiarese profissionais de saúde envolvidos. Foram coletados documentos e outros materiais que emergiram do campo ao seguir os atores pela rede. Realizamos a descrição a partir da narrativa dos fatos e acontecimentos, seguindo as proposições definidas pelosreferencialisteórico e metodológico.Resultados:Encontramos uma rede de humanos e não humanos influenciadores da utilização da tecnologia. A própria inovação é um actante emissor de efeitos sobre as interações tecidas em rede. A capacitação dos humanos envolvidos com a tecnologia emergiu como um desafio no sentido de fortalecer a rede de apoiadores. Por não haver uma política pública de acesso à tecnologia, a judicialização foi reconhecida como um ponto de convergência obrigatório. Além disso, constatamos o reconhecimento da inovação como um actante emissor de efeitos sobre o próprio corpo.Conclusão:Concluímos que a rede de utilização do PA é híbrida, tecida a partir da emissão de efeitos entre humanos e não humanos. Tal conformação deve ser considerada com vistas ao aprimoramento da própria inovação tecnológica e de suas repercussões sobre a rede e sobre o corpo de seus usuários.

DESCRITORES:Diabetes Mellitus Tipo 1. Pâncreas Artificial. Sistemas de Infusão de Insulina. Teoria Ator Rede. Cartografia de controvérsias.

ABSTRACT

Objective: to describe the network of human and non-human actors in the use of artificial pancreas by diabetics.Method: a qualitative study, using the Actor-Network Theory as a theoretical reference and the Cartography of Controversies as a methodological reference, carried out in a municipality in the west of Minas Gerais, where we conducted open-ended interviews and observations with patients who use the technology, family members and the health professionals involved. We collected documents and other materials that emerged from the field as we followed the actors through the network. The description was based on a narrative of the facts and events, following the propositions defined by the theoretical and methodological frameworks.Results: we found a network of humans and non-humans influencing the use of technology. Innovation itself is an actor that has an effect on the interactions woven into the network. Training the people involved with the technology emerged as a challenge in terms of strengthening the network of supporters. As there is no public policy on access to technology, judicialisation was recognised as a mandatory point of convergence. In addition, innovation was recognised as an actor that has an effect on the body itself.Conclusion: we conclude that the network of PA use is hybrid, woven from the emission of effects between humans and non-humans. This conformation should be considered with a view to improving technological innovation itself and its repercussions on the network and on the bodies of its users.

DESCRIPTORS:Type 1 Diabetes Mellitus. Artificial Pancreas. Insulin Infusion Systems. Actor Network Theory. Cartography of controversies.

RESUMEN

Objetivo: describir la red de actores humanos y no humanos en el uso del páncreas artificial por diabéticos.Método: estudio cualitativo, utilizando la Teoría del Actor-Red como referencia teórica y la Cartografía de las Controversias como referencia metodológica, realizado en un municipio del oeste de Minas Gerais, donde realizamos entrevistas abiertas y observaciones con pacientes usuarios de la tecnología, familiares y profesionales de salud involucrados. Recogimos documentos y otros materiales que surgieron en el campo a medida que seguíamos a los actores a través de la red. La descripción se basó en una narración de los hechos y acontecimientos, siguiendo las proposiciones definidas por los marcos teórico y metodológico.Resultados: encontramos una red de humanos y no humanos que influyen en el uso de la tecnología. La propia innovación es un actor que incide en las interacciones que se tejen en la red. La capacitación de las personas involucradas con la tecnología surgió como un desafío en términos de fortalecimiento de la red de partidarios. Al no existir una política pública de acceso a la tecnología, la judicialización fue reconocida como un punto de convergencia obligatorio. Además, la innovación fue reconocida como un actor que incide en el propio organismo.Conclusión: concluimos que la red de uso de AP es híbrida, tejida a partir de la emisión de efectos entre humanos y no humanos. Esta conformación debe ser considerada con vistas a mejorar la propia innovación tecnológica y sus repercusiones en la red y en los cuerpos de sus usuarios.

DESCRIPTORES:Diabetes Mellitus Tipo 1. Páncreas Artificial. Sistemas de Infusión de Insulina. Teoría del Actor en Red. Cartografía de las controversias.

INTRODUÇÃO

Calcula-se que 463 milhões de pessoas vivam com Diabetes Mellitus em todo o mundo e que, no Brasil,cerca de 16,8 milhões estejam diagnosticados. Assim, diante dos números consecutivos de casose do histórico da patologia, este é considerado um problema de saúde mundial.(1)

O Diabetes Mellitus Tipo 1 (DM1) é uma doença crônica não transmissível, autoimune, que se caracteriza pela destruição das células β do pâncreas produtoras de insulina, causando hiperglicemia crônica, podendo levar aoóbito.,(2,3,4) Representa em torno de 10% dos quase 500 milhões de adultos com Diabetes Mellitus (DM) no mundo e a taxa de mortalidade é duas vezes maior do que na população geral.(3-4)

A insulinoterapia é o tratamento indicado para a DM1 e pode ser feita com Bombas Infusoras de Insulina (BII), combinada com sensores implantados, também denominados de Pâncreas Artificial (PA).(5) Com o PA faz-se a monitorização contínua da glicose, proporcionando melhoria no nível da Hemoglobina glicada A1c (HbA1c) e redução no risco de hipoglicemia.(6) Sugere-se que a terapêutica com o PA seja efetivamente vantajosa no controle metabólico e na prevenção de hipoglicemias em pacientes com DM1, podendo ser, no futuro, considerado como tratamento de primeira linha.(7-8)

Por se tratar de uma doença de natureza crônica, a gravidade das complicações e os meios utilizados para seu controle, tornam o DM1 uma enfermidade muito onerosa não somente para os indivíduos afetados e suas famílias, mas, também, para o sistema de saúde. Por isso, é de suma importância buscar tratamentos que alcancem um controle glicêmico adequado, prevenindo o desenvolvimento de complicações crônicas da doença e com melhoria na qualidade de vida. Neste sentido, tecnologias como o PA precisam ser avaliadas com vistas a proporcionar alternativas terapêuticas que visam maior conforto, comodidade e com maiores possibilidades de aceitação.(9)

Assim, é preciso investigar o uso do PA entre pacientes diabéticos, e propusemosesta investigação,numa perspectiva sociotécnica, ou seja, para além do entendimento do PA apenas como um artefato técnico. É preciso compreender a inovação tecnológica a partir de suas relações em rede, como aparatonão-humano, porémdotado de capacidade de agência, emissor de efeitos sobre uma rede de humanos e não-humanos.(10)

Dispusemo-nos a “seguir os atores humanos” envolvidos e deixá-los falar, mapeando a dinâmica das associações que se encontram em ação na rede, com a compreensão de que os próprios atores produzirão seus referenciais, suas teorias, seus contextos.(11)Isto posto, a questão que norteou esta investigação foi: como é a rede de atores humanos e não-humanos na utilização do Pâncreas Artificial? Objetivamos, portanto, com este artigo descrever a rede de atores humanos e não humanos na utilização do pâncreas artificial.

MÉTODO

Pesquisa qualitativa orientada pelaTeoria Ator-Rede (TAR) epela referência métodológica da Cartografia de Controvérsias, desenvolvidos por Bruno Latour e Venturine. Estes referenciaispropõem ao pesquisador seguir a rede de atores humanos e não humanos para se apropriar das ligações e negociações que nela vão se formando ao longo da caminhada.(11,14)

Para tanto, utilizamos os quatro movimentos do pesquisador cartográfico: buscar uma porta de entrada na rede e começar a seguir os atores; identificar os porta-vozes concordantes ou discordantes que falam pela rede; acessar os dispositivos de inscrição que possibilitam a exposição da rede; mapear as associações entre os actantes (conflitos, acordos, sinergismos e divergências).(11,14)

O primeiro movimento foi definir o ponto inicial da rede. A porta de entrada foi o Almoxarifado da Secretaria Municipal de Saúde (SEMUSA) de um município de médio porte do Oeste de Minas Gerais. Esta escolha ocorreu de forma intencional, por se tratar do primeiro município da região citada a apresentar pessoas com DM 1 utilizando o PA. O referido almoxarifado é o local onde os insumos relacionados ao PA são distribuídos para os pacientes.

O segundo, foi o de ouvir as vozes concordantes e discordantes, ou seja, a recalcitrância que também circula na rede11,12. Desta forma, os porta-vozes foram emergindo no campo, chegando a doze atores humanos envolvidos com a utilização do PA: seis com o PA implantado; um que já fez uso do PA e interrompeu; uma médica endocrinogista; uma enfermeira responsável pela implantação e que também auxilia os pacientes no uso do aparelho (respresentante da empresa que fabrica o PA utilizado por todos pacientes da pesquisa), a responsável pelo almoxarifado da SEMUSA;um familiare um advogado que representou um dos usuários do PA em um processo de judicialização.

Num terceiro movimento, nósacessamos os dispositivos de inscrição da rede, ou seja, tudo que pudesse trazer informações sobre a tessitura da rede, seus atores e suas relações.(13) Para tanto, foram coletados documentos, protocolos e outros materiais que emergiram do campo ao seguir os atores pela rede, representando inscrições relacionadas ao uso do PA.

No ato de seguir os atores realizamos observações não participantes, buscando descrever as condições de uso do PA, o contexto em que os atores estavam envolvidos e sua relação com a tecnologia. Os dados provenientes das observações foram registrados em um diário de campo compondo as Notas de Observação (NO).

Entre novembro de 2018 e setembro de 2019, pesquisadora em formação de mestrado, com experiência em pesquisas qualitativas, realizou entrevistas abertas, áudio-gravadas, com os doze atores envolvidos na utilização do PA. Na TAR, a entrevista aberta se apresenta como pertinente fonte de evidência, uma vez que proporciona ao pesquisador uma maneira de certificar-se de que suas percepções estão em conformidade com a dos atores, proporcionando uma maior exposição das traduções interpessoais e das relações com os dispositivos não humanos.Após realizadas, estas iam sendo transcritas, pré analisadas e organizadas em um banco de dados no word. O roteiro elaboradopara guiar as entrevistas seguiu a orientação de não ser longo minimalista, pois muitos questionamentos emergem durante o ato de se seguir a tessitura da rede.(14)

No quarto movimento do pesquisador cartográfico, mapeamos as associações entre os actantes para delinear as relações que se estabeleciam entre os diversos atores e que compõem a rede em estudo. Isto, pois, no processo de caminhar pela rede e seguir os atores, émeta de o pesquisador descrever o modus operandi das negociações e suas conformações. (13)

A descrição é considerada essencial por Latour para a compreensão da rede de atores, onde não se deve tentar buscar explicações, mas apenas seguir a filosofia de vida dos atores, descrevendo ao máximo seus movimentos. Na intenção de sistematizar a descrição, a partir da narrativa dos fatos e acontecimentos, seguimos as proposições definidas por Latour, onde o pesquisador deve observar os elementos que interagem entre si e por flashback descrever: (1) como são feitas as atribuições de causas e efeitos; (2) quais pontos (actantes) estão interligados; (3) quais dimensões e que força têm essas associações; (4) quais são os mais legítimos porta-vozes (mediadores); e (5) como todos esses elementos são modificados durante a controvérsia.

 Venturinipropõe a possibilidade de usar três escalas analíticas visando a composição cartográfica: Escala menor (maior amplitude e menor detalhamento); Escala intermediária (amplitude e detalhamento intermediários); Escala maior (menor amplitude e maior detalhamento).(13)

Para este artigo apresentamos os resultados consequentes da análise a partir da terceira escala.Neste nível, realizamos uma descrição detalhada das principais controvérsias que emergiram do campo da pesquisa seguindo os procedimentos: evidenciar os actantes envolvidos nos debates, seus argumentos, defesas e decisões; atentar aos actantes que ocupam posições de maior influência e as minorias; destacar cenas observadas; realizar comentários analíticos à luz da TAR atribuindo significado aos achados.

Desta feita, a partir do uso da Escala maior e dos procedimentos descritos anteriormente, evidenciamos duas controvérsias a serem apresentadas e discutidas neste artigo: Controvérsias sobre indicações do PA e a judicialização; Controvérsias sobre o uso do PA e seus significados.

A pesquisa obedeceu à Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.Foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal de São João Del Rei – Campus Centro-Oeste Dona Lindu, parecer de nº: 2.952.897.Buscando preservar o anonimato dos participantes, os mesmos receberam códigos nos resultados deste estudo.

RESULTADOS

Controvérsias sobre as indicações do PA e a judicialização

Ao entrar na rede, buscamos acompanhar e entender como funcionava o processo de aquisição e distribuição do PA e o primeiro ator humano que emergiu na rede foi a responsável do almoxarifado da SEMUSA que realizava o cadastramento destes pacientes e fazia toda a compra e distribuição do PA e seus insumos: […] A minha função é de comprar o material médico cirúrgico do município, e também do PA […] uma vez que o processo judicial chega ao almoxarifado, vem dizendo a que o paciente tem direito e traz, em anexo, uma receita recente […]. a entrega do material para o paciente é feita para dois meses e nova compra é feita novamente para dois meses. Portanto, toda vez que um paciente busca seu material, é feita nova reposição[…].

Como a judicialização foi recorrente entre os porta-vozes, incluimos um advogado, pela indicação de um dos usuários do PA. Quando foi contratado para representar seu cliente junto à justiça para obtenção do aparelho, o advogado declarou: […] não conhecia essa tecnologia. Nunca tinha ouvido sequer falar sobre ela. Entretanto, em setembro de 2011 fui procurado por um paciente que me apresentou o seu caso e sua necessidade […] Meu cliente anexou provas de sua real necessidade daquela alternativa de tratamento, através de vasta documentação. A sentença saiu na Primeira Instância em janeiro de 2012 e foi rápido na Segunda Instância […].

O adovagado ainda comentou que o Estado de Minas Gerais tem a lei estadual 14533, de 28/12/2002, que instituiu uma política estadual de prevenção ao diabetes, e esta lei emergiu como um não humano na rede, utilizada como respaldo para o trâmite judicial: […] Se existe uma política Estadual de prevenção ao diabetes a partir da Lei 14533/2012, por que esses medicamentos e insumos não entram na lista de uma jurisprudência nesse sentido? O maior problema é conseguir uniformizar essa jurisprudência. Não que todas as causas sejam ganhas, mas uma vez comprovada a necessidade desse recurso para controle da doença e maior qualidade de vida do paciente com diabetes, sem sombra de dúvida, o melhor a fazer é buscar a saída judicial[…] .

Além da decisão judicial, outro actante que emergiu na rede foi a “receita” prescrita pelo médico com a indicação para o uso do PA. A funcionária responsável pelo almoxarifado comentou que […] as receitas variam entre os médicos que as prescrevem, nem sempre as receitas são dos médicos que indicaram o PA. Muitos atendem os pacientes em consultas apenas particulares, outros por consultas pelo plano de saúde ou pelos serviços disponibilizados na rede do Sistema Único de Saúde, garantindo assim as receitas e os insumos necessários para implantação e uso do PA[…].

Após a entrada na rede e o levantamento inicial das informações, o próximo passo foi entrar em contato com a endocrinologista responsável pelo encaminhamento do uso do PA a alguns pacientes com DM1. Ela foi a médica citada pelo encaminhamento da maioria dos usuários do PA cadastrados na SEMUSA, e, portanto, foi entrevistada na busca por alguns esclarecimentos sobre a tessitura da rede. 

Quanto aos critérios usados para o uso desta tecnologia, a médica afirmou: […] Sua maior indicação é para o paciente diabético insulinizado intensivo, que está tendo muita hipoglicemia assintomática, desde que tenha preparo para usar a bomba, porque às vezes, a pessoa tem o desejo, mas não consegue usar. Às vezes a pessoa insiste, o profissional prescreve o teste durante um mês e ela não dá conta […] Nem sempre eu acato o pedido do paciente porque cada um deles tem uma história a ser avaliada […].

  Além da judicialização e da indicação médica, a necessidade da adaptação prévia do paciente ao uso do PA e a capacitação realizada por uma enfermeira: […] Um mês de teste é crucial, porque alguns, com dois dias de uso já não querem continuar. É um período de preparação de como vai ser na realidade o uso. A empresa empresta o equipamento e os insumos para o teste por um mês, treina o paciente através de uma enfermeira[…]. (Endocrinologista)

Controvérsias sobre o uso do PA e seus significados

O primeiro paciente usuário do PA seguido será chamado de paciente um (P1). Este porta-voz destacou seu processo de indicação para o PA: […] A indicação foi por causa das crises severas de hipoglicemia que eu tinha, ficando semiconsciente e passando muito mal. Depois que eu comecei a usar o PA eu não tive mais estas crises. (P1)

Neste contexto, o PA é reconhecido como um não-humano que garante a vida, mesmo diante de certa dificuldade de adaptação inicial: “[…] Esta tecnologia é muito importante pra mim e acredito que não sei mais viver sem ela. Estou tão costumado com a forma como devo utilizar a insulina, com a rotina, que consegui controlar muito o meu diabetes. Meus exames hoje apresentam bons resultados, melhoraram significativamente […] (P1).

Estimulado a narrar suas interações com outros atores envolvidos com o PA, apontou a médica aqui citada como um importante mediador na conformação da rede: […] passei por vários endocrinologistas desde que fiquei diabético há 22 anos e há aproximadamente quinze anos comecei o acompanhamento com a esta médica. Foi ela quem fez a indicação desta tecnologia desde que os episódios de hipoglicemia severos começaram […] (P1).

Outros atores humanos apontados por este primeiro usuário do PA foram: uma nutricionista, uma enfermeira e um advogado. Conformaram-se como importantes mediadores na tessitura da rede: […] Eles me ajudaram desde o início até hoje. A nutricionista me acompanha na alimentação, a enfermeira me ensinou tudo sobre a bomba e o advogado foi quem conseguiu que a prefeitura disponibilizasse os recursos […] (P1).

Emergiram ainda outros atores importantes no suporte a utilização do PA: […] Sua esposa (que convive com ele diariamente e participou desde o início da implantação do PA), seus familiares, irmãos, pais que sempre o apoiaram no tratamento e na dieta. (NO) Também alguns amigos que têm conhecimento que ele usa o PA e o auxilia quando há necessidade […]. Entretanto, a importância destes atores está relacionada ao apoio emocional e na dieta específica, e não foram ensinados a manusear o PA caso o P1 não o pudesse fazer: […] Apesar de tantos anos já usando esta tecnologia nunca ensinei ninguém a usar. O PA desperta curiosidade em todos que vêem o sensor, perguntam, “o que é isso no seu braço?”, então eu tento explicar (P1).

Continuando a seguir a rede, buscamos ouvir a esposa do paciente um (EP1), muito citada por ele como um suporte importante e que o acompanhava em seu tratamento desde que se conheceram, há aproximadamente quinze anos. Em sua narrativa emocionada, destacou a importância do PA como uma tecnologia transformadora da realidade de saúde de seu marido, além de salvá-lo de situações de eminência de morte: […] Ele chegou a cair num rio enquanto estavam pescando, um amigo que pulou na água e o salvou de afogamento. Também sofreu um acidente de trânsito após desmaiar com uma crise de hipoglicemia severa. O que o salvou desta vez foi estar passando um conhecido no local e saber sobre o diabetes. Atualmente o autocuidado é todo feito por ele a partir do PA. (EP1)

Apesar do reconhecimento dos benefícios que a tecnologia tem proporcionado, ainda emergem inseguranças sobre o seu uso, e principalmente acerca de repercussões futuras. Porém, as inseguranças acabam sendo amenizadas pela confiança depositada na rede de atores humanos envolvidos na assistência: […] Sempre que ele se alimenta, o PA permite que ele faça correções com a insulina, permite que ele coma coisas como se não tivesse diabetes, até o doce, uma coisa impensável até alguns anos atrás. Ao mesmo tempo fico insegura, será que ele pode mesmo comer tudo que está comendo? Mas fico tranqüila em saber que ele é acompanhado por ótimos profissionais […]. (EP1).

A enfermeira da empresa que fornece o PA aos usuários e os treina surgiu como importante mediadora na tessitura da rede, descrevendo o processo de distribuição do PA: […] O paciente ao receber a sua bomba definitiva, ele é assistido por 30 dias por um educador certificado pela empresa, após esse acompanhamento, o paciente é acompanhado pelo Programa de Especialista Clínico e tem Assistência 0800 24h para qualquer dúvida […] (enfermeira). Também reconheceu as contribuições do PA para a saúde dos seus usuários: […] Os pacientes após a tecnologia têm uma qualidade de vida enorme, quando comparada com o tratamento anterior […] a bomba suspende automaticamente a insulina na previsão da hipoglicemia. Além disso, facilita muito para administrar insulina várias vezes ao dia […] (enfermeira).

Continuando a seguir a rede, acompanhamos outra paciente (P2) usuária do PA, indicada na lista disponibilizada pela responsável do almoxarifado na SEMUSA. […] fuidiagnosticada com DM1 aos seis anos de idade, há vinte e três anos fez uso de insulina humana com três aplicações diárias. Depois foi aumentando as aplicações e fazendo uso de outros tipos de insulina, mas sem obter bons resultados. A aplicação da insulina foi provocando abcessos e a insulina voltava inteira após a aplicação […]. Uma vez indicado o uso do PA, deu-se início ao processo de judicialização, que […] foi relativamente rápido. Foi agendada uma visita após contatos e a enfermeira veio, mudou tudo para melhor. (P2).

Há quatro anos, submeteu-se a um transplante por hepatite medicamentosa. Nesta experiência relatou situações que demonstraram o desconhecimento de muitos profissionais sobre a utilização do PA. Sua recuperação e a manutenção de sua saúde dependeram da interação entre vários atores em diversos cenários de atuação. Além disso, seus familiares também foram reconhecidos como um ponto de apoio importante da rede, e desta feita aprenderam a utilizar o PA: […] Entrei em coma induzido. Os profissionais desconheciam o PA. Quando acordei do coma, estava com as pontas dos dedos roxas e a médica me disse que iria me aplicar insulina porque a taxa de glicose estava alta. Perguntei sobre o meu PA e a médica disse que lá ninguém sabia usá-lo. Fizeram contato com minha família e resolveram tirá-lo. A médica do HC entrou em contato com minha endocrinologista e foram trocando informações para reprogramarem o PA. Percebo que até hoje a maioria dos profissionais de saúde desconhecem esta tecnologia […] Até hoje há uma rede de profissionais que me assistem: hepatologistas do HC que conhecem meu caso, a endocrinologista, os médicos dos postos de saúde que me dão receitas para os insumos e os enfermeiros […] praticamente todos da minha família sabem sobre o uso do PA, os mais próximos, que são meus pais, meu marido e os irmãos sabem manuseá-lo, principalmente meu marido”. (P2).

Com o caminhar na rede, encontramos a paciente três (P3), que relatou ser diabética há dezesseis anos e há oito faz uso do PA. Novamente, outra usuária destaca as contribuições do PA para sua saúde e também o apontamento do processo de judicialização como fundamental para conseguir a tecnologia: […] Considero o PA essencial por ter me dado uma qualidade de vida melhor. A indicação do PA foi feita pela endocrinologista (citada acima), devido a hipoglicemias assintomáticas que eu apresentava. Foi uma boa opção, pois a partir daí a glicemia ficou bem controlada. Já parei no CTI antes do PA, minha glicose tinha caído para quatro […].(P3)

            Quanto à sua rotina com o uso do PA alegou algumas dificuldades em relação […] às roupas e o encaixe do PA pelo fato de eu ser mulher. Ainda enfatizou: chama a atenção das pessoas, me fazem perguntas. Ficar dando explicações me incomoda bastante, principalmente por eu ser tímida[…] (P3). Esta usuária também reforçou o apoio da equipe multidisciplinar como fundamental para o seu acompanhamento: Tenho um endocrinologista, nutricionista, educador físico e psicólogo. Eles me ajudam muito. Além disso, a sua família também emergiu como importante parceira neste processo: pai, mãe e irmãos. Eles participaram das orientações dadas pela enfermeira[…].

Outra usuária do PA, a paciente quatro (P4) também foi relacionada na listagem, sendo acompanhada. Ela enfatizou: há oito anos fiz o teste para uso do PA e conseguiu mantê-lo por trinta dias, o tempo estipulado. A partir do momento em que fez o teste, não ficou mais sem ele. O processo transcorreu e em trinta dias ela já estava com o PA, que segundo ela o considera essencial por ter lhe dado uma qualidade de vida melhor e desde então faz uso constante dele: […] O aparelho é minha vida e sem ele eu morro. Eu já tentei vários outros tipos de tratamento com insulina e não deu certo. Quando coloquei o PA, eu estava com baixo peso, porque aplicava dois tipos de insulina […]. (P4). Está “diabética há vinte anos” e “durante doze anos não conseguiu ter bom controle da glicemia”.

A sua família também emergiu como um ponto importante de apoio na rede. É casada, mas mora com os pais. Seu pai não sabe manusear o aparelho e seu marido não tem o domínio completo de como este funciona. À noite ela disse “apagar” e tem “hipoglicemias assintomáticas”. Em suas palavras: Quando o aparelho apita, o meu marido acorda, olha a glicose e me chama para comer. Minha mãe ajuda a fazer as correções oferecendo alimentos. Recebo ajuda mais no monitoramento no controle do meu diabetes, se for preciso manusear o PA, nenhum deles [os familiares] sabe(P4).

Além de sua família, os colegas de trabalho também compuseram parte desta trama de relações no sentido de viabilizar o sucesso no uso do PA: […] sempre que eu mudo de trabalho explico aos colegas como funciona o PA. Já teve um episódio, mesmo usando o PA. Não cheguei a desmaiar, mas fiquei paralisada, sem conseguir responder nada. Meus colegas já sabiam, me levaram para o hospital. (P4)

Importante ressaltar que a P4, assim como outros usuários, explicitou incômodos por ser usuária do PA. A aceitação do outro, em seu caso o “marido” foi uma preocupação que emergiu em seus relatos: Tive muito preconceito contra o PA. Quando fui iniciar o tratamento era casada e minha preocupação era a aceitação do meu marido. Superei isso com o tempo […] outra situação é que farei uma cirurgia e ficarei no CTI por aproximadamente três dias e meu médico demonstrou preocupação porque a maioria dos profissionais de saúde não conhece esta tecnologia e não conseguem manuseá-la.(P4).

Como o uso do PA, para esta paciente esteve relacionado a sentimentos de medo e de sua autoimagem (NO). Tais sentimentos despertaram-lhe o desejo de fazer uma tatuagem com os dizeres “Diabetes Tipo 1”, um rótulo impregnando o seu corpo: […] Tenho medo de ficar sozinha, de me sentir uma aberração pelo uso do PA, de ir para o hospital e precisar ser socorrida e os profissionais desconhecerem a tecnologia, medo de passar mal e sem a identificação de ser diabética as pessoas não conseguirem me ajudar, por isso fiz esta tatuagem. (P4)  

Continuando a seguir a rede, aqui chamado de paciente 5 (P5), ex-usuário do PA foi citado por dois atores da rede (Enfermeira e Médica). Foi necessário acompanhá-lo para entender os motivos de sua dissidência. Ao acompanhá-lo o descrevemos: Júlio éum idoso com DM1 e foi usuário do PA por quatro anos. Indagado sobre o uso do PA ele relatou a sua experiência como um ator da rede: […] em 2011 meu médico me falou: não dou mais conta de seu diabetes, está sempre descompensado e variando entre glicose alta e hipoglicemia. Meu caso estava fora de controle e assim fui encaminhado para o Centro de Diabetes em Belo Horizonte. Lá, o médico que me atendeu indicou o uso do PA (P5).

Entretanto, em 2015 seu aparelho começou apresentar problemas técnicos, mas já havia perdido a garantia, não consegui outro novo […] Não quis deixar de usar o aparelho, tentei novamente, porém não consegui. Então desisti, uma pena! Pois o PA me deixou mal-acostumado a uma qualidade de vida melhor (P5).

DISCUSSÃO

Na rede reagregada, constituída por humanos e não humanos que se mobilizavam visando a indicação, implantação, utilização e manutenção do PA, destacaram-se os profissionais que se inter-relacionavam nas diferentes esferas da rede de atenção a saúde no sentido de mobilizar a assistência e garantir o acompanhamento dos usuários. Os familiares, amigos e colegas de trabalho constituíram-se pontos da rede de atores humanos apoiadores da utilização da tecnologia.A rede foi, portanto, tecida por actantes mediadores do processo de saúde-doença-cuidado, humanos e não humanos coparticipantes na mobilização do cuidado e no apoio à utilização da tecnologia.

Os artefatos tecnológicos são componentes de uma rede dinâmica, influenciando-a e sendo por ela influenciados, pois estão, ambos, em constante movimento.(13) Isso nos remete a entender o uso do PA no contexto do processo saúde-doença-cuidado de pessoas com do DM1 como um fenômeno, não apenas biológico, mas social e coletivo, em que actantes se mobilizam, se relacionam, se ajudam ou de forma contrária fragilizam os processos. A utilização do PA, com isso, não deve ser aprimorada apenas em seus aspectos técnicos, considerando, também, as respostas ao seu uso pelos múltiplos actantes e as variadas interações tecidas entre eles em uma rede complexa.

Existe uma fronteira simbólica e enraizada nos campos da ciência e da tecnologia, com a premissa de que esta última seja apenas um produto da sociedade, uma ferramenta inerte a ser utilizada. Entretanto, a sociologia das associações defendida por Latour (2012), Callon (1986) e outros cientistas, vem demonstrando que existe uma articulação entre ciência, tecnologia e sociedade, quando o social ao se reagrear revela as profundas associações entre humanos e não-humanos no sentido de tecer o coletivo. Suas conexões são fundadas em inter-relações que se entrelaçam.(15)

Em relação aos atores humanos (profissionais de saúde, familiares e outros) emergiu a necessidade de se fornecer conhecimentos, a fim de capacitá-los sobre a utilização e funcionamento do PA. O estudo de Silva et al (2017)(9) evidenciou que os profissionais que operam o PA desconhecem a inovação tecnológica, o que causa a insegurança no manuseio e/ou falta compromisso com a atividade. Este estudo também mostrou que, além da monitorização do PAé fundamental, para o sucesso do tratamento, ter uma equipe multidisciplinar e um programa educacional estruturado sobre o cálculo de carboidratos e treino do uso de bolus de correção. Neste sentido, defendemos a relevância da qualificação de usuários e rede de apoio ao tratamento,por meio de ações educativas que os empoderem, no sentido de se viabilizar a aceitação da tecnologia, a adesão e, sobretudo, a utilização de forma adequada.

A Judicialização destacou-se como um ponto de convergência obrigatório aos pacientes indicados para o uso do PA, um não humano com emissão de efeitos importantes sobre a rede em tessitura. Sua indicação tem sido feita, predominantemente, a partir de profissionais de saúde (médicos e enfermeiras), sobretudo os que atuam na esfera privada de assistência a saúde. Neste sentido, o Estado representado por políticas de prevenção e assistência ao diabético, necessita ser acionado a partir de seus próprios dispositivos de inscrição (normativas), com vistas a prover cuidado, sendo responsabilizado pelo direito a vida e a saúde.Entretanto, apesar da judicialização mostrar-se como uma via obrigatória com vistas ao direito de se ter acessoao PA, nem todos os usuários conseguem, conforme descrito neste estudo.

Apesar de asaúde estar prevista como “um direito de todos e dever do Estado” na Constituição de 1988, identifica-se a existência de restrição do acesso a esta tecnologia e a judicialização é vista como alternativa, mas nem sempre uma garantia de direitos. Isto, pois, não está legislada a indicação e a distribuição do PA e seus insumos no Brasil, não há uma política pública específica de disponibilização da inovação tecnológica. Os achados de nosso estudo reforçam que é preciso empoderar esta rede no sentido de legislar e formalizar os critérios para indicação, bem como as vias a serem seguidas pelos pacientes garantindo acesso à tecnologia.

No Brasil, a maioria dos casos de acesso ao PA resulta de ações judiciais contra o estado, município e governo federal. É proveniente de prescrições médicas em consultórios particulares, provavelmente de pequena parcela da população com melhores condições socioeconômicas.(16)A judicialização conforma-se, portanto, como instrumento legítimo de se pressionar o Estado, mas que tem efeitos secundários relevantes, com significativo impacto nos custos e aumento das desigualdades no acesso e uso dos serviços de saúde. Considerando-se outras demandas, encontra-se em tramitação poder Judiciário, em torno de 1.349.931 processos relativos a judicialização. (17) O Ministério da Saúde informou que em 2016 o governo federal gastou 7 bilhões de reais, sem previsão orçamentária, para garantir serviços e produtos de saúde fruto de processos judiciais.17É também significativo o custo da judicialização no setor privado.(18)

Considera-se que o reconhecimento pelo Estado brasileiro dos benefícios do PA no que tange ao controle da doença e qualidade de vida dos usuários poderia servir de base para adotar o tratamento e a reduzir a quantidade de processos judiciais para sua obtenção.(16) O estudo de Pozzilliet (2017)(17) destacou uma superioridade do PA comparado com a terapêutica de múltiplas doses de insulina (MDI). Houve redução da hemoglobina glicada A1c (HbA1c) tanto em adultos (com redução da HbA1c de 0,29%) como em crianças (redução de 0,22% da HbA1c) com diabetes DM1. Além disso, a melhoria no controle glicêmico após introdução do PA, que é mais marcado em indivíduos com pior controle glicêmico prévio, está associada a menores doses diárias de insulina comparativamente com a MDI.

Em estudo realizado no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), confirmou-se a frequência reduzida de cetoacidose e hipoglicemia severa com o PA.20No estudo de Karges (2016).(21) o uso de análogos de insulina de ação rápida com o PA permite maior flexibilidade terapêutica com menor variabilidade glicêmica, levando a menores taxas de complicações agudas e a longo-prazo, incluindo hipoglicemia.

Ressaltamos ainda que as demandas judiciais têm sido utilizadas para encurtar a distância que o Complexo Médico Industrial da Saúde precisa percorrer entre o investimento em novas tecnologias e sua posterior incorporação pelo SUS, o que, em termos comerciais, significa garantia de acesso a um enorme mercado consumidor.(18) Dessa forma, a judicialização, ao invés de estar contribuindo para a melhoria do nosso sistema de saúde, estaria de fato incentivando uma visão de saúde como mercadoria, diferente do que a Constituição Federal prevê.

A consequência disso é o surgimento de uma cadeia de negócios em torno da judicialização da saúde, envolvendo vários atores, como médicos, advogados, o complexo industrial e econômico da saúde e Organizações não-governamentais (ONG’s) de apoio aos usuários, que é bastante constitutiva do quadro da judicialização da saúde no Brasil. Essa cadeia de negócios gera uma forte atividade de lobby, que dissemina no seio da sociedade através da mídia, dos políticos, dos médicos, dos formadores de opinião, dentre outros interesses comerciais e mercadológicos, como se fossem interesses de saúde pública, A judicialização da saúde tem mostrado que a disputa sobre a saúde como valor se mantém viva e pulsante, ou seja, não cessou com a promulgação da constituição, que estipulou a saúde como um direito e não como uma mercadoria.(18)

O PA foi reconhecido na rede como um actante emissor de efeitos importantes sobre a saúde de seus usuários. Verificamos nos discursos o reconhecimento da promoção de saúde, prevenção de complicações, minimização e eliminação de riscos proporcionados aos usuários do PA. Uma tecnologia sinequa non para a manutenção da vida de seus usuários, apesar de algumas necessidades de aprimoramentos.

Observamos aqui a relação do humano com a tecnologia e suas associações, enfatizando o PA como um actante intrínseco ao próprio corpo, emitindo efeitos sobre o corpo e sobre outros humanos nas relações tecidas em rede: o despertamento da atenção e questionamentos do outro; a mudança do próprio corpo; a autoimagem; os medos e inseguranças diante da necessidade de aceitação na rede; o corpo rotulado e melhorado. Em outras palavras, o corpo se mostra ciborguizadoevidenciando-se o acoplamento vivo-máquina, ou seja, corpos tecnologicamente modificados – construídos, aumentados ou aprimorados – demonstrando no cotidiano a existência de elementos fusionais biológico-artificiais.(22-23)

Nesta perspectiva, o uso do PA não significa apenas “melhora na performance” clínica de seus usuários, e nem uma extensão do corpo, mas compõe o corpo e inscreve nele os seus efeitos que primeiramente provocam reações, mas também influenciam a relação deste corpo com outros humanos e não humanos na rede em tessitura. Assim, aprimorar a utilização do PA requer (re) conhecer as subjetividades que emergem da relação entre homem-máquina e fortalecer os laços de interação, potencializando os efeitos contributivos deste tratamento sobre a saúde dos usuários.

Na cibernética, não somente no organismo tudo é máquina, mas o organismo é apenas máquina, retomando, dessa forma, o essencial da tese do animal-máquina.(24) Não se trata de dizer que os processos físicos, químicos e espirituais relacionadas à vida possam ser os mesmos das máquinas, mas que cada vez mais o “biológico” e o “mecânico” se fundem em interrelações. Endossando tais afirmações, Le Breton (2013)(22) destaca que “as tecnologias não são mais exclusivamente percebidas como exteriores ao corpo, mas vindas para assumir seu lugar, para transformá-lo em instrumento mais eficaz, eliminando definitivamente suas funções inúteis e suprindo as indispensáveis”.(22)

Assistimos aos avanços científicos da informática, dos modos de comunicação e da biotecnologia aliarem-se às intermináveis sortes de desejos de aprimoramento do corpo. Estamos dando vida às criaturas que apenas habitavam nossos sonhos, especulações desmedidas e histórias de ficção. Nossa outrora pura organicidade parece estar sendo superada por uma condição híbrida, resultado da combinação de uma série de apetrechos maquínicos com a dimensão biológica.(25)

CONCLUSÃO

Neste estudo identificamos e descrevemos a rede híbrida, de atores humanos e não humanos, os mediadores do processo saúde-doença-cuidado relacionados à tecnologia no que tange à utilização do PA. Encontramos que humanos e não humanos influenciam a utilização do artefato, bem como a própria inovação emite seus efeitos sobre as interações tecidas em rede. A capacitação dos humanos envolvidos com o PA também emergiu como um desafio visando o empoderamento dos apoiadores (profissionais, familiares, amigos, dentre outros). A judicialização foi reconhecida como um ponto de convergência obrigatório para o uso do PA, mas não uma garantia de direitos, visto que o acesso à tecnologia ainda não está institucionalizado como uma política pública governamental. Além disso, constatamos o reconhecimento do PA como um actante emissor de efeitos sobre o próprio corpo, transformando-o e o ciborguizando.

Reconhecemos a dinamicidade da rede estudada em seus movimentos contínuos, que evoluem com a temporalidade, limitando a descrição completa e finalizada das interações entre os atores. Tal descrição é também uma narrativa própria das histórias do lugar, dos humanos e não humanos naquele contexto, não permitindo generalizações. Apesar disso, o referencial teórico e metodológico utilizado contribui para a compreensão de processos sociotécnicos envolvendo a utilização da inovação tecnológica estudada.

Por fim, identificamos a necessidade de outras pesquisas que descrevam a evolução das narrativas da rede em tessitura, nossos achados sinalizam que é relevante se investir na busca de compreensão dos efeitos do PA sobre a saúde de seus usuários; a percepção da rede de apoiadores com foco no entendimento da adesão e as repercussões da ciborguização. Além disso, o processo de incorporação (institucionalização) desta tecnologia na saúde pública brasileira deve ser incentivado e analisado.

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1Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Nutricionista.Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia . Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-4093-6343

2Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia . Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. Coordenadora do curso de Enfermagem da Universidade de Itáuna.MG https://orcid.org/0000-0002-7393-3210

3Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).Mestrado em Psicologia.Programa de Pós-graduação em Psicologia . Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. https://orcid.org/0009-0005-26244251

4Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Núcleo Clínico de Psicanálise e Singularidades. Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. https://orcid.org/0009-0000-6009-0907

5 Universidade Federal de Juiz de Fora(UFJF). Núcleo Clínico de Psicanálise e Singularidades. Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-4278-3707

6 Universidade Federal de Juiz de Fora Juiz de Fora(UFJF). Programa de Pós-graduação em Psicologia. Núcleo Clínico de Psicanálise e Singularidades,Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-5381-4815