A PSICOTERAPIA FENOMENOLÓGICA-EXISTENCIAL E O CONSUMO COMPULSIVO: UMA POSSÍVEL VARIÁVEL PARA O TRATAMENTO

PHENOMENOLOGICAL-EXISTENTIAL PSYCHOTHERAPY AND COMPULSIVE CONSUMPTION: a possible variable for treatment.

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102412092302


Antônio Astério Rodrigues[1]


RESUMO

O homem, esse animal social, e ser gregário, com sua necessidade de pertencer, de ser aceito nos grupos sociais que pertence ou que sonha pertencer, cria falsas fantasias consumistas, transformando-se em escravo da oneomania, até na intenção, muitas vezes deliberada, de ser visto, curtido, comentado, aplaudido, aceito e incensado por outros igualmente vazios de vida interior que, como tal, também identificam nos objetos de consumo as particularidades que vão lhes transformar num ente desejado pela sociedade.

Ato contínuo, a análise da influência da fenomenologia-existencial numa nova e libertadora compreensão, por este mesmo homem, do fenômeno em si, desnudo da percepção distorcida, de uma mente doentia, de um oneomaníaco solitário. Pela relevância do assunto, e de forma específica, pretende-se expor o entendimento da fenomenologia como possibilidade para a reeducação do portador de oneomania, num ensaio visionário de um tratamento clinico-terapêutico. Esta pesquisa terá como base a metodologia inspirada no hipotético dedutivo acompanhada do caráter exploratório, numa revisão de literatura usando, para tal, artigos, livros, dissertações, teses e demais suportes de fundamentação teórica. Dentre os autores consultados, citamos Tommy Akira Goto, Yolanda Cintrão Forghieri, Edmund Husserl, Jean Marlos Pinheiro Borba, Mauro Martins Amatuzzi, João da Penha, Jean-Paul Sartre, Ana Beatriz Barbosa Silva, dentre tantos outros.

Palavras-chave: oneomania; fenomenologia; intencionalidade; percepção; epoché; redução fenomenológica.

ABSTRACT

Man, this social animal, and gregarious being, with his need to belong, to be accepted in the social groups he belongs to or dreams of belonging to, creates false consumerist fantasies, becoming a slave to oniomania, even with the often deliberate intention of being seen, liked, commented on, applauded, accepted, and exalted by others equally void of inner life who, likewise, identify in consumer objects the attributes that will transform them into beings desired by society. Consequently, the analysis of the influence of existential-phenomenology in a new and liberating understanding, by this same man, of the phenomenon itself, stripped of the distorted perception of a diseased mind, of a solitary oniomaniac. Given the relevance of the subject, and specifically, it intends to expose the understanding of phenomenology as a possibility for the re-education of the oniomania sufferer, in a visionary essay of a clinical-therapeutic treatment. This research will be based on the methodology inspired by the hypothetical-deductive method accompanied by an exploratory character, in a literature review using, for this purpose, articles, books, dissertations, theses and other supports of theoretical foundation. Among the consulted authors, we mention Tommy Akira Goto, Yolanda Cintrão Forghieri, Edmund Husserl, Jean Marlos Pinheiro Borba, Mauro Martins Amatuzzi, João da Penha, Jean-Paul Sartre, Ana Beatriz Barbosa Silva, among many others.

Keywords: oneomania; phenomenology; intentionality; perception; epoché; phenomenological reduction.

1 INTRODUÇÃO

A fenomenologia, essa expressiva forma de se reaprender a olhar as coisas; essa nova perspectiva; essa oportunidade de se ressignificar o que antes foi apreendido apenas de forma periférica, imediata, viciada pela nossa própria convicção impensada, impulsiva; e sua possível atuação no tratamento da oneomania, via psicoterapia da fenomenologia existencial, como uma terceira via de compreensão e atendimento clínico-psicoterápico.

A fenomenologia é o método desenvolvido por Edmund Husserl que busca o estudo da experiência consciente. No entanto, o homem tem sua própria estrutura de atos psíquicos como a percepção, a reflexão, a lembrança a imaginação e a fantasia, que são suas vivências. A partir dessas vivências, desse olhar interno, o homem apropria-se, sem duvidar, da concretude do que toca, vê, deseja, de tudo da externalidade e da cotidianidade em que ele age. Essa interação/vivência sofrerá ainda tantas interferências da instabilidade e do agito do dia a dia, da multiplicidade dos objetos trazida pela tecnologia, dos olhares cúmplices, ardilosos, que o sujeito, o subjetivo; se perderá em confins distantes nessa relação; será coberta e recoberta pelo pano espesso e escuro dos atos repetidos, das necessidades do desejo primeiro e impensado.

O consumo compulsivo (oneomania) é um transtorno do comportamento que inflige grande sofrimento ao indivíduo. Sua mente está embotada pelas repetições do adquirir o objeto sempre à primeira vista, sem nenhum questionamento sobre o fato tantas vezes repetido. Vai culpar-se por tal depois do ato que, aparentemente, lhe dá tanta satisfação. Mas, passados um tempo, estará outra vez consumindo, endividando-se, magoando-se emocionalmente e, sendo ato contínuo, terá crises de ansiedade que resultarão em quadro depressivo. Pode ser esse cliente que baterá à porta de sua clínica.     

A fenomenologia aponta à subjetividade, ao sujeito cognoscente; aquele que realiza um ato de conhecimento através do pensamento. Seu objetivo é saber como o sujeito exerce a capacitação para o conhecimento; como olhar o fenômeno – aquilo que aparece ou se manifesta, num cuidado consigo mesmo, oriundo do interesse na análise da relação entre consciência e experiência, reinterpretando essa relação como existência.

A presente pesquisa, de forma exploratória e de caráter hipotético dedutivo, numa revisão de literatura mergulhada em livros, artigos, dissertações, teses e outros suportes de fundamentação teórica, objetiva a análise e descrição de parte do universo da fenomenologia, na expectativa de tratamento clínico da oneomania, levando o cliente possivelmente à conscientizar-se em relação ao consumo compulsivo e sobre a existência da atitude natural, promover sua mudança para a atitude fenomenológica (a redução fenomenológica), assim como apresentá-lo à intencionalidade e epoqué, termos da fenomenologia de Husserl que ajudarão na consumação desse intento.

2. Fundamentos da fenomenologia e a possibilidade de apreender o fenômeno como aquilo que se apresenta

O homem e sua capacidade de observação sobre seus próprios passos na estrada dos tempos, tentando entender-se e contar esse entendimento para os que vierem depois, quando, ao seu turno, igualmente entenderão e contarão outras histórias fantásticas. Eis o movimento do ser.

Quando o século XX despontava nas calendas primeiras, a ciência positivista ditava as normas das pesquisas sempre sisudas, factíveis, repetidamente mensuradas e verificadas, e um boom tecnológico respaldava concretamente esta ciência de então. Ato contínuo, sem haver critérios objetivos ou quem arbitrasse as normas para se chegar a uma verdade, cada filósofo produzia sua própria proposta seguindo, cada um ao seu turno, suas convicções que insuflavam uma generalização de questionamentos e críticas sobre o conhecimento. E, como nos diz Amatuzzi (2009), enquanto a ciência ficava limitada ao âmbito permitido por seu método, o âmbito do empírico, do positivo, do imediatamente verificável, a questão do significado da realidade ou do sentido do mundo ficava fora disso, do método científico. Nas palavras de Merleau-Ponty (1951; 1973 apud Amatuzzi, 2009), a ciência faz muitas afirmações sobre a realidade, mas ela não sabe o que é essa realidade, e o sentido dessa realidade foi se perdendo.

Àquela época, entre os tantos de então, houve um desses observadores estudiosos chamado Edmund Husserl que, influenciado por Franz Brentano, formulou uma atitude ou método de conhecimento chamado de fenomenologia, que uns dez anos mais tarde já se tornara um movimento filosófico com o objetivo de conhecer os fenômenos tal como eles se apresentam na consciência humana. Esse homem imaginou, a despeito da ciência convencional, uma forma de resgate do sentido perdido, considerando a experiência sem a implicação do julgamento, a priori e espontâneo, tão costumeiro e conhecido, alcançando, dessa forma, conclusões seguras a respeito do conhecimento e de seu alcance. A experiência pura e por si mesma, livre e desnuda de nossos juízos de valor.

Esses apressados juízos de valor, juízos de realidade empregados quando não me abstenho para considerar a experiência em si mesma, Husserl denominou de atitude natural. Quando, ao contrário, me abstenho, considero, olho de fora minha experiência sem me deixar levar zumbioticamente à realidade, estarei fugindo da atitude natural e exercendo a atitude fenomenológica. Essa passagem da atitude natural para a atitude fenomenológica foi chamada de redução. Redução ao que imediatamente se apresenta; e a isso que se apresenta cunhou-se o termo de fenômeno, que nada mais é do que o aparecer das coisas. Portanto, quando praticamos a redução do fenômeno, estamos voltando às coisas mesmas, aocaminho fundamental da constituição dos objetos na consciência, ao cerne do sentido que havia se extraviado. Segundo Reale (2003 apud Borba, 2010), a fenomenologia não é a ciência dos fatos, e sim de essências. Para Husserl (2006, p. 48), a fenomenologia tem de ser uma “[…] ciência descritiva das essências das vivencias puras transcendentais”.  Laporte e Volpe (apud Silva, 2011) discutem que, enquanto a ciência positivista restringe seu campo de análise ao experimental, a fenomenologia abre-se a regiões veladas para esse método, buscando uma análise compreensiva e não explicativa dos fenômenos.

Para Husserl (2006), a imersão no mundo natural depende da consciência, e estar ou sair dele depende de uma atitude. O mundo natural permanece, então, à disposição de todos nós e nele permanecemos de modo irrefletido. A ciência fenomenológica, nos diz De Aguiar Weidmann (2015), antes do mais, possui o intuito de constituir um corpo de conhecimento descritivo acerca do mundo, tal como este se apresenta à consciência.

Se estamos, pois, pela redução, voltando às coisas em si, estamos também definindo a consciência como qualificada por estar dirigida para algo, ou de ser acerca de algo, possuída pela maior parte dos nossos estados conscientes, ou, como dizia Husserl (1958, p. 67), “[…] a consciência é sempre intencional”. Portanto, a intencionalidade é necessariamente dirigida para um objeto, seja real ou imaginário. Toda consciência, enquanto ato, é sempre de algo. Para Amatuzzi (2009), não existe consciência pura sem intencionalidade nenhuma, assim como não existe conhecimento puro sem intencionalidade nenhuma; e, para Husserl, a palavra intencionalidade significa apenas a característica geral da consciência de ser consciência de alguma coisa. Eis o ponto de partida adotado pelo filósofo alemão, diz Silva (2011): a análise dos fenômenos no âmbito da consciência, no intuito de se tentar apreender as coisas em si mesmas, isto é, como elas são.

A intencionalidade, uma vez introduzida, passa a ser o postulado básico da fenomenologia, característica primeira da consciência, pois será através da intencionalidade que aquilo que um objeto realmente é se constituirá espontaneamente na consciência: a real essência das coisas, captada, descrita a experiência tal qual se manifesta, atingindo a realidade da forma exata como ela é. Para tanto, segundo Penha (2001), Husserl propõe que o indivíduo suspenda todo juízo sobre os objetos que o cercam. Nada afirme nem negue sobre as coisas, adotando uma espécie de abandono do mundo e recolhimento dentro de si mesmo, o que, na linguagem de Husserl, é denominada de “redução fenomenológica” ou epoqué, (da filosofia medieval)palavra grega que significa suspensão, cessação. Trata-se, portanto, diz Husserl (1950), de nos colocarmos na atitude fenomenológica, de colocar entre parênteses as teses cogitativas que foram operadas, e, ao invés de vivermos nelas, de as operarmos, operemos atos de reflexão dirigidos a elas, a fim de captá-las como o ser absoluto que são. É Silva (2011) que nos lembra que a máxima de Husserl, “regressar às coisas mesmas“, só seria possível executando a redução fenomenológica. Portanto, ela se torna essencial para a fenomenologia, e inclui o sujeito-como-cogito como a mais original experiência do mundo vivido.

A epoqué fenomenológica nos apresenta o mundo como um aparecer de fenômenos. Assim sendo, analisar e descrever os objetos se fará pelo modo como se apresentam na e para a consciência e na forma como adquirem sua significação. O resultado da epoqué nos conduz ao horizonte dos puros vividos de consciência e isso se aplica, pois para Husserl (apud De Aguiar Weidmann, 2015), não é possível pensarmos um mundo que não seja aquele constituído pelo sujeito e que extraia deste a sua validade. E essa atitude passa por uma suspensão de nossos juízos de valor acerca dos fenômenos, de tal forma que o que nos reste seja apenas, e tão somente, aquilo que emerge à consciência em forma de evidência de caráter essencial e necessário. Portanto, prossegue o autor, nesse horizonte irá residir o interesse maior da investigação fenomenológica: resgatar a dimensão de constituição de sentido dos fenômenos antes irrefletida na atitude natural.

Por tudo isso, aquilo que se acredita ser no mundo a realidade de significados prontos precisa que seja suspenso através da epoqué e, dessa forma, iniciar a crítica ao conhecido. Observamos tão pouco, analisamos tão pouco, que geralmente somos hóspedes estagnados do mundo natural. Recorramos, pois, à suspensão via epoqué dessas crenças estagnadas, e olhemos a realidade como fenômeno existencial, voltando nosso foco para a real constituição dos objetos postos a partir dos atos de consciência de nível intencional.

Em fenomenologia, isso se alcança através do método fenomenológico, que convida-nos, portanto, para uma clarificação, segundo Tourinho (apud Oliveira; Borba, 2019), do que há de mais fundamental na coisa sobre a qual retornamos, deslocando-nos a atenção dos fatos contingentes para o seu sentido originário indissociável de uma intencionalidade, consolidando, com isso, uma espécie de ‘conversão filosófica’ que nos faz passar de uma visão ingênua do mundo para o ‘puro ver’ das coisas, no qual o mundo se revela em sua totalidade como fenômeno.

Estar presente, aberto para o fenômeno ora apresentado, despojado de suas verdades primeiras, deixar aflorar, nas palavras de Goto (2007), a essência humana, que consiste radicalmente em ser-sujeito (ou sujeito-conhecedor), porque é somente existindo assim que podemos ter conhecimento das coisas (entes). É por meio dos nossos atos da consciência – nas diversas maneiras de estar dirigida à – que captamos os fenômenos que saem à “luz”.

3. Oneomania e a força destrutiva do emocional

A solidão sem tamanho mesmo cercado por multidões, o não carregar consigo manual de sobrevivência para consultas, a obrigatoriedade da interação com o mundo externo a partir do ato de acordar pelas manhãs fazem do homem esse andarilho à procura de sua essência, exposto à leitura alheia, assim como, por sua vez, leitor dos significados da vida, num livro escrito em uma língua que ele geralmente não conhece. Eis a mundanidade cotidiana do estar-lançado.

O próprio termo existência exprime a ação de mostrar-se a que veio ao mundo, se expor a este mundo como se houvera saído de uma zona de proteção para agora existir para o mundo na busca de seus entendimentos, de sua essência. Para Sartre (2011), a existência é resultante das escolhas que fazemos e das condições em que estamos inseridos.

Agora, imaginemos esse homem sem entender a língua do livro das essências, sem ninguém para ajudá-lo nessa compreensão (lembremos que o autoconhecimento é solitário), guiado apenas pelos seus parcos cinco sentidos de aferição, tateando, amedrontado, por entre um balcão de miscelânea de sentidos/essências que ele tem que catalogar; e mais: constituir-se, enquanto experiência, de tal bêbada e trôpega leitura. Vejamos o que nos diz Sartre (2014) em seu existencialismo: “[…], mas se realmente a existência precede a essência o homem é responsável pelo que é. Assim, a primeira decorrência do existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é, e fazer repousar sobre ele a responsabilidade total por sua existência”.

Ora, é fácil imaginar onde encontra-se o homem comum, sob o domínio da inautenticidade de Heidegger, como nos diz Penha (2001), em que uma subjetividade degradada comanda a consciência individual, levando o homem a agir de acordo com o que dizem ser certo ou errado, obedecendo a ordens e proibições sem indagar suas origens ou motivações, e nem de longe, e nem em sonhos, imaginar-se possível árbitro de seu destino, responsável pela leitura clara das essências que o fará um acordado para a vida.

Esse homem comum está preso em olhares do imediato, sufocado pela necessidade construída a partir dos valores e costumes de seu grupo, lançado na cotidianidade, guiado pela impessoalidade, pelo ato de consumir e, por tal, está entregue a necessidade do ter, por não saber, ainda, que existe a dimensão feliz e livre do ser pela sua própria singularidade. Este homem entregou-se ao vício que o consome, a uma única visão do estabelecido, à concretude primeira do fenômeno, ao imediatismo dos prazeres fúteis e fugidios, ao olhar fixo, único, como se tivera viseiras laterais que o proibisse de ver além e aquém. Este homem está em sofrimento. Este homem é oneomaníaco. Continuemos a conhecer seu mundo!

Nos lembra o sociólogo americano Thorstein Veblen (2005 apud Borba, 2015) que o consumo conspícuo ou ostentatório pode ser entendido hoje como uma das maiores patologias sociais, que envolve atitudes nas quais aquele que consome para que o outro o veja, o aceite, o reconheça e o receba socialmente fica literalmente escravo dessa roda: trabalhar para consumir e consumir-se trabalhando.

É patológico o comportamento daqueles que, sem saber como suprir suas lacunas existenciais que lhes advém em suas interlocuções pontuais com suas angústias, se entreguem à ânsia de acumular, consumir, ter, possuir, para fugir dos tremores de suas ansiedades, frustrações, dúvidas, desconhecimento total do destino do trem da vida onde encontram-se embarcados.

Tentar atender aos anseios da sociedade de consumo, nas palavras de Borba (2015), põe os homens na busca pela satisfação que lhes é prometida pela posse de coisas, de objetos, e é como se houvesse um feitiço que gera, logo após a compra do objeto, uma insatisfação, e que em geral coloca novamente o homem diante do vazio existencial.

Todos os valores sociais, laboriosamente construídos ao longo da vida, são destruídos no homem oneomaníaco no desfilar dos dias de sua vida escrava, e isto tem um custo emocional muito grande, como depressão, atitudes suicidas, isolamento social, impotência diante das frustrações e privações sociais que contribuem para o adoecimento existencial. Eles acordam todos os dias para uma vida de costumes que não queriam ter, como nos diz Pinto (2012), que, ao tratar das compras compulsivas, lembra que os oneomaníacos são compulsivos, têm graves problemas de endividamento e geram modos de existir da maneira preocupada.

É Forgheiri (1996) que nos diz que a maneira preocupada consiste numa vivência global de insatisfação, varia de uma vaga intranquilidade por termos de cuidar de algo, até uma profunda sensação de angústia que nos envolve por completo e encontra-se presente em nossa vida cotidiana, intensificando-se quando sofremos grandes contrariedades, enfrentamos momentos de perigo, ou precisamos assumir decisões importantes para as quais não fomos preparados.

Acuado, esse homem vai procurar lenitivo para estes tormentos e, escapando daqueles que não são socialmente aceitos, como as drogas, por exemplo, que são combatidas pela saúde pública, resta-lhe, em primeiro plano, a sutileza, igualmente entorpecente, do ato de consumir, posto que não será perseguido por tal, mas até aplaudido e incentivado pela estrutura do próprio Estado, que depende desse círculo de consumo para a própria manutenção econômica.

Agora, a mente desse indivíduo, mergulhada na realidade espetacular das imagens impactantes, se entrega aos prazeres da compra de produtos rotulados com promessas de felicidade imediata, bem envernizados e de cores saltitantes das explosões dopaminérgicas. Diante da infinidade de produtos disponíveis no mercado, nos diz Bittencourt (2011), o indivíduo, dotado ou não do poder de compra, não é capaz de ater sua atenção para apenas um objeto, excitando-se assim com a miríade de marcas que flutuam perante sua consciência, submetida aos efeitos sedutores dos gêneros de consumo.

Incorrerá na oneomania com quadros semelhantes aos da dependência química, características comuns com a bulimia, a anorexia, o Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e, embora comprar não seja um ato ilegal, como nos diz Silva (2011), muitos se sentem culpados e escondem seus hábitos até das pessoas mais próximas, julgando que suas felicidades dependem da quantidade de coisas que compram para si e para os outros, conduzindo-os a uma escalada de consumo e endividamento sem fim na busca constante pelos efêmeros momentos de prazer proporcionados a cada aquisição.

Comorbidades como transtornos do humor, abuso de substâncias, transtornos alimentares e transtornos do controle do impulso vêm a reboque do Transtorno de Compra Compulsiva (TCC), e os oneomaníacos reconhecem seus comportamentos como repetitivos, com pensamentos intrusivos sobre comprar, aos quais eles tentam resistir, geralmente sem muito êxito. Registro aqui, en passant, esses pensamentos intrusivos como os estranhos hóspedes poderosos de Freud, responsáveis pelas neuroses. “Os pensamentos emergem de súbito, sem que se saiba de onde vêm, nem se possa fazer algo para afastá-los. Esses estranhos hóspedes parecem até serem mais poderosos do que os pensamentos que estão sob o comando do ego” (Freud, 1917, p. 176). Segundo Miltenberger et al. (apud Tavares, 2008), as emoções negativas, tais como raiva, ansiedade, tédio e pensamentos autocríticos, são os antecedentes mais comuns às compulsões de comprar, ao passo que euforia ou alívio das emoções negativas eram as consequências mais comuns. Exaurido em sua dor, escondido em sua solidão, escravo dos atos repetidos, carente de uma nova tradução de mundo, esse homem precisa de ajuda.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo nos permitiu navegar pelo mundo da oneomania, transtorno assombroso que tem o poder de ajoelhar o homem e torná-lo escravo de suas interpretações sobre a concretude aparente e imediata do fenômeno, e verificou-se o quão imperioso é um redirecionamento dessa compreensão.

Percebe-se, neste estudo, a possibilidade da abordagem da terapia existencial fenomenológica, que, interessada no modo como o conhecimento do mundo se dá e se realiza para a pessoa oneomaníaca, se propõe a ajudá-lo a descobrir seu poder de autocriação, assim como aceitar a liberdade de ser capaz de usar as suas próprias capacidades para existir, clarificando como agir no futuro em novas direções. A essência de todos os sofrimentos humanos, nos diz Boss (apud Forghieri, 1996), fundamenta-se no fato de que a pessoa perdeu a capacidade de se decidir livremente acerca de suas possibilidades de comportamento normal.

Navegando por artigos, livros, dissertações, teses, compreendendo o período de 1950 a 2019, fomos agraciados por achados de grande relevância para este artigo, como em Penha (2001), quando nos diz que Husserl propõe que o indivíduo suspenda todo juízo sobre os objetos que o cercam, nada afirme nem negue sobre as coisas, adotando uma espécie de abandono do mundo e recolhimento dentro de si mesmo, a denominada redução fenomenológica ou epoqué, que significa suspensão, cessação.

O eu puro, surgido como resultado do “pôr entre parênteses”, nas palavras de Depraz, (apud De Aguiar Weidmann, 2015), eu me ponho a mim mesmo em suspenso enquanto ego natural absorvido no mundo, eu crio a ficção de minha própria aniquilação, para renascer, inderme, enquanto ego transcendental. A epoqué, numa certa medida, proporciona o desocultamento das coisas mesmas, revelando-as em sua nudez imediata e original, resgatando a dimensão de constituição de sentido dos fenômenos antes irrefletida na atitude natural, tal qual o desvelo de um escultor que tira da pedra bruta a obra prima de sua escultura; o mundo, ancorando-se apenas sob o aspecto como se apresenta na consciência, reduzido à consciência, ou ainda em Forghieri (2002), quando a intencionalidade é, essencialmente, o ato de atribuir um sentido; é ela que unifica a consciência e o objeto, o sujeito e o mundo, e com ela há o reconhecimento de que o mundo não é pura exterioridade e o sujeito não é pura interioridade, mas a saída de si para o mundo que tem uma significação para ele.

Enfatizam Oliveira e Borba (2019) que, ao realizar a epoché, o oneomaníaco não ignorará a existência da realidade, mas direcionar-se-á à possibilidade de captar a evidência do fenômeno por ele mesmo. Para tanto, é somente através da suspensão temporária de suas concepções e interpretações diante do mundo que haverá uma autêntica relação de encontro e alteridade entre ele e o fenômeno. Atenta a esse princípio, a terapia fenomenológica existencial convida os oneomaníacos a terem um olhar de retorno às experiências em suas manifestações originárias e singulares, posto que a redução fenomenológica pelo exercício da intencionalidade capacita esta terapia à ressignificação do fenômeno, constituído sempre num horizonte de sentidos benéficos à recuperação desse oneomaníaco.

Entende-se importante para os psicólogos a autêntica e genuína concepção da abordagem fenomenológica porque, nas palavras de Goto (2007), é com o seu desenvolvimento que eles poderão resgatar a subjetividade como fonte originária da vida humana e a sua correlação com o mundo-da-vida. Para Guimarães (apud Goto, 2007), a fenomenologia não se interessa imediatamente pelos objetos ou pelos fatos, mas pelos sentidos que neles podem ser percebidos. Fenomenologia é o ato de perceber e descrever as essências ou sentidos dos objetos.

Defende-se, enfim, que o terapeuta, de forma segura, clara e compassada, indo onde o cliente se encontra, use os princípios da fenomenologia para a possibilidade de esclarecer ao oneomaníaco que ele pode sim interpretar de outra forma o objeto de consumo que se lhe apresenta, ajudando-o a conscientizar-se primeiramente de seu transtorno, oriundo de uma interpretação adicta, manifesta de uma compreensão inautêntica, para depois conduzi-lo, possivelmente, pelo conhecimento da passagem da atitude natural para a atitude fenomenológica (redução fenomenológica), guiado pela intencionalidade de uma consciência atenta que o levará à prática da epoqué, da suspensão do momento de então, da observação acurada, isenta, distanciada, consciente do verdadeiro sentido da coisa-em-si, da manifestação do fenômeno despido e puro.

Concorda-se com Forghieri (1996) quando diz que, numa perspectiva fenomenológica, a presença genuína do terapeuta diante do cliente propiciará as condições para que ele tenha coragem de enfrentar e superar as vivências de contrariedade. Como nas palavras de Buber (1982, p. 47 apud Forghieri, 1996, p. 6): “Afinal, o que esperamos nós quando desesperados, e mesmo assim, procuramos alguém? Esperamos, certamente, uma presença por meio da qual nos é dito que o sentido ainda existe”.

5. CONCLUSÃO

Acredita-se que a influência do novo pode não despertar o interesse do indivíduo se não lhe trouxer algo que lhe diga respeito, que não lhe toque enquanto ser humano. Verificou-se, no entanto que, se o novo despertar interesse, gritar para o mais guardado das subjetividades do homem, ele responderá. Reflete-se que o homem vive como se estivesse a esperar pelo novo mesmo que ele não saiba onde encontrá-lo, ou ainda quem o trará. Há um compasso de espera no inconsciente coletivo. Há uma promessa vazia e nunca feita, no entanto tão respeitada, de que algo de novo chegará para quem carrega o sofrimento por companhia. Considera-se que esse artigo demonstra com clareza este compasso de espera dos oneomaníacos sendo rompido pela possibilidade de uma nova visão psicoterápica, via fenomenologia existencial.

Entendendo-se e esperando-se que esse trabalho possa ser superado numa pesquisa mais abrangente, conclui-se, sem concluir, que nada detém o destemor contido na pergunta: Por que não? E se esse abençoado sopro da compreensão fenomenológica, que esclarece, reeduca, transforma e inova, já é entre nós, que a psicoterapia o aproxime, o apresente ao oneomaníaco sedento desse sopro e, a partir daí, o faça expressar-se, socializar-se, pertencer, dividir, misturar, comungar e comemorar, como homem livre, o ato do encontro.

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[1]Bacharel em Psicologia pela Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB). Associado do Instituto de Psicologia Fenomenológico-Existencial do Rio de Janeiro (IFEN) e Pós-Graduando na Especialização em Psicologia Clínica na Perspectiva Fenomenológico-Existencial do IFEN, Rio de Janeiro/RJ, Brasil. CRP 22/05970. Email: asteriopassarinho@gmail.com.ORCID: 0009-0004-3275-2415