A PSICOPATOLOGIA NA PSICANÁLISE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249302033


Luiz Carlos Rodrigues da Silva 1
Thayronne Rennon Lima Gomes 2
Gildeane Costa Mendonça Gomes 3
Raimunda Salete Sá de Morais Aquino 4
Ribamar Viana de Aquino 5
André Brasil da Silva 6
Isis Miridan Lopes de Sousa 7
Lays Karyne da Silva Mendes 8
Deusilene Fernades de Oliveira Sampaio 9
Joane Almeida Rabelo 10


Resumo

No artigo em trilha, objetiva-se realizar uma análise a partir das pesquisas acerca da psicopatologia e suas possíveis aplicações no âmbito da psicanálise pelo viés da subjetividade e alteridade hodiernas. Com tal escopo, abordam-se as profundas transformações no seio familiar ao longo do tempo e seus reais

impactos na imago paterna, distinguindo-a da função paterna. Faz-se também uma abordagem sobre o sintoma enquanto manifestação da verdade do inconsciente, bem como o inquietante paradoxo do diagnóstico psicanalítico. Propõe-se também o debate no que tange a relação do “estranho” com a alteridade. Além disso,  apresenta-se algumas considerações sobre o sintoma e o diagnóstico psicanalítico.

Palavras-chave: Psicanálise; Psicopatologia; Diagnóstico psicanalítico; Subjetividade.

Abstract

In the article in progress, the objective is to carry out an analysis based on research on psychopathology and its possible applications in the scope of psychoanalysis from the perspective of modern subjectivity and otherness. With this scope, the profound transformations within the family over time and their real impacts on the paternal imago are addressed, distinguishing it from the paternal function. There is also an approach to the symptom as a manifestation of the truth of the unconscious, as well as the disturbing paradox of psychoanalytic diagnosis. A debate is also proposed regarding the relationship between the “strange” and otherness. Furthermore, some considerations about the symptom and psychoanalytic diagnosis are presented.

Key-words: Psychoanalysis; Psychopathology; Psychoanalytic diagnosis; Subjectivity

1 INTRODUÇÃO

A psicopatologia psicanalítica tem suas raízes na obra de Freud que introduziu conceitos fundamentais, como o inconsciente, os mecanismos de defesa e a dinâmica entre o id, ego e superego. Ele postulou que os sintomas psicopatológicos são manifestações de conflitos inconscientes, muitas vezes oriundos de traumas ou experiências infantis reprimidas.   

Assim, refletir sobre a psicopatologia pelo viés da psicanálise tem sido um desafio cada vez mais intenso e presente, haja visto que o processo de “psicopatologização” vem atrelado à narrativa hegemônica  da saúde mental.  No atual contexto,

Psicopatologia contém a palavra grega pathos, que, em sua origem, possui vários significados. Dois conceitos, bastante diferentes, interessam-nos sobremaneira: o passional, a paixão, a passividade; e o patológico, a doença, presente no diagnóstico médico. A fronteira que separa estas duas perspectivas é frágil e varia de acordo com as épocas e as civilizações (Martins apud Ceccarelli, 2003, p. 13-25).

A partir dessa perícope, podemos deduzir que o homem não pode ser responsabilizado por suas paixões, visto que ele não tem o poder de escolha das mesmas. Porém, não podemos negar a responsabilidade das influências das mesmas nos seus atos, possibilitando assim emitir um julgamento na dimensão ética do sujeito. Esse pressuposto era acautelado pelo filósofo grego Aristóteles. Destarte, a prática da virtude pelo homem consistia em alcançar o equilíbrio entre o logos e a paixão. Nessa perspectiva, podemos colocar como exemplo o “crime passional”, bem como a realização de expressivas obras, onde a paixão emerge com força propulsora dessas extremidades.     

De acordo com a escola filosófica helenista conhecida como  estoicismo, que fazia oposição às ideias aristotélicas, as paixões deveriam ser domadas pelo fato de serem empecilhos ao logos. Elas seriam obstáculos ferrenhos ao desenvolvimento pessoal, mantendo o apaixonado arraigado ao seu pathos, assim sendo, nada poderia ser realizado para o ajudar. Nessa perspectiva, ele não poderia ser responsável por suas ações. O que fazer, então? Deveria evitar a manifestação da paixão e cortá-la pela raiz (Ceccarelli, 2003).

É possível identificar na literatura um intenso debate acerca dos dois pressupostos, ou seja,  o normal e o patológico. O pathos  entendido como razão dos atos do sujeito ou ainda como doença que o aprisiona e que gera dependência de determinados cuidados.

Quando abordamos a psicopatologia na psicanálise, não podemos esquecer a questão do desejo recalcado, que se apresenta imerso no sentimento de culpa e que é perceptível na interação relacional, que é o reflexo do imperativo original do sujeito. Outrossim, a psicopatologia compreendida como doença procura reduzir o mesmo no espectro de portador uma espécie de mal, ainda que seja apenas por um lapso de tempo.

Independente das situações, percebe-se que o “apaixonado” é o lócus por excelência das mazelas que o acompanham nas dimensões social e cultural, sendo um sujeito que anuncia a falta. Isso foi visível nos manicômios de outrora, e nos tempos hodiernos, estão presentes nas ruas e avenidas, de forma pública, nas vidas daqueles estigmatizados por uma sociedade que os invibilizam.

Ao longo do processo de elaboração da psicanálise, Freud trouxe à tona o inconsciente que é construído na lastro da realidade externa e supre a realidade interna do sujeito. Os reveses humanos no decorrer da história apresentam o enfrentamento do sujeito perante à castração que diz respeito à diferença, à força de superar as inúmeras frustações e à capacidade de ressignificar o desejo. Como forma de exemplificar essa narrativa, podemos citar o que presenciamos entre os adolescentes quando anunciam a ausência do simbólico, mas perscrutam, na ficção violenta, inserir-se em um laço social. Exibem a paixão à flor da epiderme, como algo parecido ao das histéricas de outrora. Salienta-se que o imprevisto da paixão, como foi descrito no exemplo anterior, pode ser explicado pelo Unheimliche (estranho), isto é, o estranho que não é desconhecido do sujeito, bem como pela alteridade que é inerente à estrutura subjetiva do mesmo.

2 UMA BREVE HISTÓRIA DA PSICOPATOLOGIA

De acordo com Ferreira (2002), a história da psicopatologia começa com o processo de estruturação na clinica médica nas últimas décadas do século XVIII. Ela nasce no lastro de uma narrativa científica, fazendo uso do método da observação para organizar a loucura, num viés estritamente racionalista. Assim, o escopo dos médicos era se apropriar da loucura no espaço da clínica, para poder tentar adestrá-la. Os aprendizes do método permaneciam em sintonia com o mestre, através da observação direta, para também dominar a forma de manejar os distúrbios mentais. Ressalta-se que este modelo de clinica atravessou todo o século XIX. No último quartel do século XIX, com as pesquisas oriundas de Charcot, é que a clinica do olhar ganhou espaço. Ele mostrou com propriedade aos seus seguidores que era possível inserir e retirar sintomas por meio de um novo método: o hipnótico. As demonstrações tinham como escopo apresentar, no que diz respeito às histéricas, as paralisias de membros não eram causadoras de lesões, dessa forma contraria o pensamento médico até então. A partir dessa descoberta, Charcot passou a ser considerado o mestre das histéricas.

É com Freud, no fim do século XIX e início do século XX, que se inova a perspectiva da psicopatologia, quando ele apresenta um conjunto de conceitos apropriados para identificar a histeria e a conversão histérica, bem como elementos precisos para se realizar a diferenciação visível da neurose obsessiva e da angústia.

Dessa forma, Freud desenvolve a metapsicologia e, por conseguinte, contribuiu de forma significativa para a contemporânea classificação das psicopatologias a partir da perspectiva estrutural, elencadas assim: (a) neuroses de defesa ou transferenciais, onde estão presentes as histéricas conversivas e fóbicas, as neuroses obsessivas e as neuroses de ansiedade; (b) as psicoses; (c) as perversões; e (d) as afecções psicossomáticas. Segundo Freud, as estruturas citadas são alicerçadas a partir das fixações em diferentes fases do desenvolvimento psicossexual. Tudo isso inicia desde os primeiros anos de vida.

3 O IMPACTO DA SUBJETIVAÇÃO HODIERNA NA FAMÍLIA 

Quando analisamos a obra Ética a Nicômaco, de Aristóteles, percebe-se que é uma ética direcionada para todos e propõe o questionamento sobre o que é bom ou o bem. Outrossim, a ética elaborada por Kant é uma ética do imperativo categórico universal, a ética pelo viés da psicanálise destina-se à singularidade da experiência humana, inerente a um imperativo original. Nessa nuance, pode-se assertivar que é uma ética do bem dizer gestada no ambiente da clinica psicanalítica, que reverbera no campo da linguagem. Essa prática passa pelo discurso do analista, onde o desejo traz uma implicação ética, não meramente compreendida como desejo de fazer o bem, mas como um realizador de um discurso e, na perspectiva do analisante, há uma estreita relação da ação do sujeito com o desejo que o habita. Portanto, o inconsciente, objeto de estudo da psicanálise, interfere fortemente em suas ações ao desvelar as inscrições do desejo presentes nos sintomas, atos falhos, chistes, sonhos, lapsos e esquecimento (Azenha, 2011). Nessas nuances estão representadas o desejo recalcado.  A esse respeito, Azenha ( 2011, p. 67), salienta que “para a psicanálise, o agente da castração simbólica é o pai e, sesse sentido, fica mais acentuada do que revelada a verdadeira função do pai que é, essencialmente, unir( e não opor)  um desejo à Lei”.

Quando analisamos as novas configurações familiares, observa-se claramente que a figura do pai configura-se num patamar de enfraquecimento. Essa realidade, de certa forma e equivocadamente, coloca em discussão a psicanálise, identificando-a como obsoleta. Nos tempos hodiernos, os novos modelos de relações familiares são apresentados como os motivos principais do declínio da função paterna, entretanto é a inserção do terceiro no relacionamento dual mãe-bebê que trava o gozo do sujeito e o transpõe para uma nova realidade e uma nova cultura.

Retomada por Lacan, em 1938, a hipótese freudiana da mudança de relações do homem com o pai, nas representações da função paterna e no lugar de filiação como núcleo do sintoma social em nossa cultura tem gerado discussões em torno do enfraquecimento do significante pai e de seus efeitos nas formas de subjetivação dos sujeitos modernos (Azenha, 2011, p. 67).

A partir do contexto analisado, faz-se necessário estabelecer a distinção entre os conceitos de “função paterna”, no âmbito da psicanálise, e de “imago social do pai”, na dimensão da cultura. Segundo Roudinesco (apud Azenha,2011), o que denominamos de imago está estritamente relacionada à representação internalizada da figura paterna, enquanto que a função está direcionada ao âmbito simbólico e não depende necessariamente da presença ou ausência do pai. Compreendemos função como a prática de uma nomeação que possibilite à criança obter uma identidade. A partir da compreensao de Rodulfo (apud Vitorello, 2011), as funções denominam os implicados no devir do sujeito, isto é, todos aqueles que estão no processo de constituição psíquica executam a função materna, a função paterna e a função de irmãos. Não podemos negar os impactos que as diversas metamorfoses da figura paterna sofreram ao longo do tempo. Podemos observar que no declínio do sistema patriarcal nos tempos modernos  reverberou de forma acentuada na perda da autoridade paterna e, dessa forma, alterou profundamente as relações sociais e subjetivas.

No sujeito existem diversas formas de subjetivar levando-se com consideração o meio, a família e a sociedade, em que ele se constitui como tal. Porém, não podemos esquecer de que a cultura e a época em que o sujeito vive insere nele determinadas formas de subjetivação. Ao longo da temporalidade da Antiguidade, o exercício do poder era associado exclusivamente ao homem, o qual ocupava um papel de centralidade no seio familiar e na sociedade, denominada de sociedade patriarcal. O direito atribuído às mulheres e às crianças era bastante limitado. No decorrer da época medieval, este cenário não sofreu alteração. As condições das crianças ficaram piores e as mulheres continuaram na dependência masculina. Na Idade Média,  a atividade bélica era a principal modalidade de relação social. Nesta perícope, a liberdade de expressão das pulsões, bem como do gosto dos impulsos ficaram exacerbados em um contexto em que as mulheres eram vistas apenas como objeto sexual, submetidas aos caprichos libidinosos dos homens. Outro ponto a ser analisado neste período é que não existia nenhum  impedimento de circulação das crianças nos espaços adultos, já que não havia ainda critérios que estabelecessem a diferenciação entre quem é adulto e quem é criança, muito menos a responsabilização das famílias pela educação delas.

No final do medievo e inicio da Modernidade, as significativas transformações advindas deste processo temporal atingiram o âmago da sociedade  e aos modos de estruturação da personalidade. A sociedade no contexto das monarquias, instauradas por volta do século XVII, coloca o pai como “o lugar tenente de Deus” (Badinter apud Vitorello, 2011, p. 9), fazendo com que o pai se tornasse o substituto real na família. A família que surge e se estrutura no sistema patriarcal, com sua forma hierarquizada e verticalizada, não estava alicerçada nas dimensões afetivas, tampouco as crianças tinham uma posição afetiva como possuem na atualidade para os adultos. Na percepção de Arriès (1981),  é nesse século que vai surgir, nas classes sociais mais abastadas, a primeira concepção real do que seja a infância. Os adultos passam paulatinamente a prestarem mais atenção à criança, vista agora como um ser frágil e dependente da proteção dos adultos. Dessa forma, a palavra “criança” passou a ser associada à primeira etapa da vida e, portanto, necessitada dos cuidados e atenção.

No século XVIII surge o Estado e com ele o patriarcado no seio familiar perdeu espaço, cedendo lugar para um novo tipo de patriarcado: o estatal. Assim, a autoridade pública se consolida na mesma proporção o poder do pai vai enfraquecendo. Vem à tona um processo de “humanização” da paternidade divinizado e, nessa dimensão, tanto a criança quanto a mãe passam a ser valorizados. Nos séculos vindouros a mulher passa a ser considerada  a “rainha do lar”, e a criança é elevada à categoria de “menino rei”. Com este cenário acima descrito, está devidamente instalado o que se passa a entender como família nuclear burguesa (Badinter apud Vitorello, 2011,p. 10). É imprescindível ressaltar que o surgimento e fortalecimento do Estado atrelado ao movimento iluminista são os responsáveis pelas transformações no tecido social da época, suscitando alterações radicais nas condutas sociais, bem como novas formas de subjetivar os sujeitos.

Fleig (2008) propõe o debate envolvendo as relações existentes entre as diversas formas de neuroses preponderantes e as transformações ocorridas nas condições familiares, a exemplo do que tinha acontecido na Idade Moderna a respeito da declinação do Nome-do-Pai. Mesmo após a constatação do processo de enfraquecimento do pai na modernidade, não é possível associar o declínio da imago ao mesmo processo histórico  da função paterna. Não podemos desvencilhar a função paterna da organização basilar da subjetividade e da cultura. A função paterna, enquanto estruturante seja para o sujeito seja para o social, pode ser visibilizada por inúmeros agentes.

Nos tempos contemporâneos, o que denominamos de funções parentais não se apresentam tão evidentes como eram na sociedade tradicional. Temos que levar em consideração que, independente da época, a cultura se encarrega de elaborar estratégias de recalque e repressão com o escopo de disfarçar o mal-estar existente. Também nos tempos atuais é possível perceber uma transformação no âmbito da percepção do espaço-tempo, fato este que acabou provocando um aumento do sentimento de desamparo na dimensão psíquica do sujeito. De certa forma, essa realidade pode ser explicada pelo fato de que a temporalidade e a alteridade do inconsciente, que não pode ser conciliado com  a temporalidade e objetividade do mundo externo, foram capazes de criar outras formas de subjetivação para fazer o enfrentamento ao desamparo e ao controle  da situação da cultura presente em mundo cada vez mais globalizado e globalizante.

Relatos das experiências realizadas por estudantes do curso de Pedagogia da Faculdade de Educacão Memorial Adelaide Franco – FEMAF, quinto período , na disciplina de Psicologia da Educacão, ao realizar um trabalho de observação das crianças e suas respectivas famílias, no ano de 2023, identificaram uma gama de diversidade nos modos de agrupamento familiar e de arranjos no que tange ao desempenho das funções parentais. As observações registradas pelos estudantes de pedagogia revelaram que em muitas situações as funções parentais nem sempre são exercidas pelo pai ou pela mãe. De acordo com Vitorello (2011, p. 11)

[ …] por vezes são os tios, os avôs ou são partilhadas por várias pessoas. Há também os casos em que a função parental está vazia, pois os pais denotam estar na posição de filhos e os filhos na posição dos adultos.   

A pesquisa e os resultados da mesma permitiram identificar na comunidade local um panorama da diversidade no que diz respeito às diversas configurações familiares, tal como assertiva e denomina Roudinesco (2003): famílias “recompostas”; famílias com a “guarda compartilhada dos filhos”; famílias “extensivas”, neste caso, convivem na mesma casa os pais, os filhos e os avós; “mães solteiras” ou “separadas” onde assumem sozinhas a árdua tarefa de cuidar da prole. A partir desse contexto, podemos levantar uma série de questões a respeito dos papeis e funções: como estão definidos? Quem define? Para quem fica a responsabilidade de cuidar das crianças? Quem passa a desempenhar essa função nessa nova configuração familiar? Assim, a mera presença do pai ou da mãe no seio familiar não assegura o múnus paterno ou materno. Outrossim, existem famílias “monoparentais” onde a mãe cuida sozinha dos filhos. Nesse sentido, as funções estão instaladas pelo viés do desejo materno ( Vitorello, 2011).

Fleig (2008) chama a atenção para o surgimento de uma espécie de matriarcado no cenário da contemporaneidade, já que observamos a existência de um número significativo de famílias centralizadas em torno da mãe. Nas últimas décadas têm-se presenciado o surgimento de novas formas de procriação e que reverbera diretamente na dispensação e participação do homem-pai na filiação. Outrossim, é importante salientar que o significante paterno possui uma força capaz de impedir a demanda envolvente da mãe e colocar a criança em relação ao desejo do Outro materno. Portanto, a existência da lei simbólica (lei do pai) impede a mãe e, concomitantemente, dá passe livre ao sujeito para ter acesso a um lugar sexuado. Na perspectiva de Fleig (2008), é evidente na cultura da contemporaneidade a manifestação de uma nova realidade psíquica que é consequência de uma certa suposição de se estar livre da referência paterna.

É impossível negar que a existência de novas e diversas configurações familiares no ocidente provocam impactantes transformações nos papéis sociais do homem e da mulher, bem como uma nova forma de relacionamento entre os sexos. A família contemporânea não é mais identificada pela “parentalidade”, mas sim pela ausência de um poder centralizado e por inúmeras e reais aparências. A preponderância do poder que tinha o homem na sociedade patriarcal foi submetida a um contexto em que a mulher passa a ocupar um lugar de destaque. Como afirma Roudinesco (2003), na maioria das vezes é em torno da mãe que estão concentradas as “famílias recompostas”. Nesse cenário de profundas mudanças, não podemos desconsiderar as famílias “homoparentais”, que é aquela constituída por um casal homossexual e seus filhos adotivos ou não. Ressalta-se que o próprio direito civil reconhece a união civil dos casais homossexuais, inclusive respeitando o direito de adotar filhos. Estes e outros aspectos vêm respaldar os processos de transformações nas configurações familiares.

4 A QUESTÃO DO SINTOMA E O DIAGNÓSTICO PSICANALÍTICO  

A psicanálise, desde a sua criação por Sigmund Freud, tem seu alicerce embasado na escuta com o objetivo de curar os sintomas que provocam no sujeito sofrimento. Os sintomas expressam, de forma metafórica, a verdade que compõe o sujeito. Dessa forma, existe uma estreita relação de afetos, que alimenta a geração de sintomas com a verdade e que serve de invólucro de um “saber” inconsciente sobre o sujeito. Assim, o sintoma desvela alguma coisa que tem significado e que também diz respeito à história de vida de cada sujeito. Dessa forma, jamais podemos deixar de lado o entendimento de que as relações do sintoma estão intimamente atreladas à estruturação subjetiva do sujeito( Vitorello, 2011).

Segundo Rodulfo (apud Vitorello, 2011), a narrativa que diz respeito à família significa para o sujeito o “tesouro de significantes”, uma espécie de lugar que serve de referência para a sua inserção no universo simbólico de significações. Importante ressaltar que o autor estabelece a importância do “mito familiar” para o sujeito e estabelece uma diferença da história familiar. O mito está relacionado ao lugar em que a criança ocupa na família, sua posição no que tange ao campo de desejo dos pais, onde estão também presentes os processos ou tramas imaginárias, como as fantasias e o ato de brincar, bem como as funções parentais (paterna, materna, dos irmãos). Nos tempos atuais muito se tem debatido sobre as funções parentais e, por extensão, sobre as novas configurações e reconfigurações familiares. Neste cenário de profundas mudanças, é fundamental questionarmos como iremos identificar os conflitos no sujeito.

Segundo o entendimento de Dor(1994, p.9), “o diagnóstico psicanalítico remete à dimensão de um embaraço técnico no campo do inconsciente” no momento em que há a confrontação com a prática psicanalítica e seu respectivo ato investigativo. Nessa perícope, vem à tona a dificuldade de estabelecer uma base na utilização de um método que depende de determinadas “ferramentas subjetivas. Justamente por isso é que o psicanalista trabalha em um mar de incertezas ao realizar a escuta da narrativa histórica do paciente. Às vezes essa narrativa entre em sintonia com sua própria história.

De acordo com Dor (1994, p. 13), o

[…] diagnóstico psicanalítico difere do diagnóstico médico. Existe no diagnóstico psicanalítico um paradoxo: por um lado, a necessidade de estabelecer um diagnóstico que balize o tratamento e, por outro, a impossibilidade de fazê-lo precocemente, uma vez que ele só poderá se delinear no tratamento da análise.     

          Dessa forma, podemos inferir que o diagnóstico médico tem como meta, a priori, identificar a natureza de uma doença a partir de uma semiologia. Por conseguinte, estabelece a classificação dos sintomas, que cria condições para localizar uma situação patológica dentro de um quadro nosográfico. Para o pesquisador, a ação psicanalítica não deve se apoiar imediatamente na identificação diagnóstica como tal. Outro ponto a ser analisado é que uma interpretação psicanalítica não pode se constituir como simplesmente consequência lógica de um diagnóstico, haja visto que o sintoma se apresenta multifacetado.

A técnica investigativa de que o analista dispõe é a associação livre do paciente e a atenção flutuante, lembrando de que é no âmbito do dizer e do dito que se estabelecerá o campo de investigação psicanalítica. O espaço da palavra encontra-se impregnado de  “mentira” e tem o imaginário como uma espécie de parasita; assim, a avaliação psicanalítica precisa ser fundamentalmente subjetiva para desvelar a verdade do desejo. No processo de consideração das incertezas ao longo do diagnóstico psicanalítico, deve-se sempre levar em conta a singularidade, a estruturação do mundo interno e do mundo externo, da realidade e da presença ou ausência do outro.

5 A ALTERIDADE E O ESTRANHO NA CONTEMPORANEIDADE   

Na proporção em que Freud avançava em suas descobertas analíticas, ele também manifestou curiosidade pela temática do “estranho”. Isso ocorreu nas primeiras décadas do século XX. Os estudos permitiram a Freud constatar que o estranho era  um assunto que não chamava a atenção no âmbito da estética, visto que o escopo, naquele recorte temporal, era voltado exclusivamente para o estudo da beleza. Dessa forma, o tema do estranho, cooptada por Freud, assume uma áurea de polêmica e de estranheza, já que a sociedade, de forma generalizada, não via com bons olhos e procurava evitar debater. O tema em análise, o “estranho”,  teve um cuidado especial por Freud em um texto intitulado Das Unheimliche, datado do ano de 1919. A pesquisa inicial de natureza etimológica em relação à palavra Unheimliche (estranho), não só em alemão, Freud chegou a definá-la como assustador e familiar, que pode se assemelhar como lugar estranho, estrangeiro, alguém vindo de outro lugar( Thones; Pereira, 2013).  

Salientamos que Freud pesquisou o significado de estranho nos diversos fenômenos que podem fomentar estranheza. A partir daí, ele pôde assertivar que entre as realidades assustadoras existe uma classe em que o elemento amedrontador se revela como algo recalcado que vem novamente à superfície. Assim, o estranho não é nenhuma novidade na existência do sujeito, mas algo nele instalado e, portanto, familiar, porém, devido o período de alienação na sua consciência por um processo de recalcamento, soava como estranho para ele( Thones; Pereira, 2013). É a partir dessa discussão que se pode pensar no entrelaçamento do estranho com a alteridade, isto é, há uma conexão do estranho com a diferença, com a alteridade, com o outro que se apresenta na relação.

 Quando abordamos o âmbito social, o sentimento do estranho se configura de forma pendular, relativo e relacional; se manifesta oscilando entre sentimentos amorosos e hostis, ora representando a si mesmo e ora fazendo a representação do outro. Dessa forma, percebe-se que o estranho é uma espécie de campo minado. Existem várias tentativas de se estabelecer as definições e as relações em torno desse paradoxo categorial, em torno da qual se busca entender a respeito de um afeto e uma representação. O estranho continua a realizar uma intima relação com o que é próprio, se apresentando, então, como a duplicação de si mesmo.

Freud, no seu ensaio sobre o estranho, compreende que o duplo é um componente psíquico de importância fundamental. Nessa mesma seara, Rank (apud Freud, 2006) também identifica que o duplo, aqui como a negação do poder da morte, vai se tornar uma âncora para o sujeito com o propósito de impedir a destruição do eu. Uma leitura criteriosa das produções literárias de ficção da época, analisadas por Rank, sob o olhar de Freud em 1914, apontavam a sintonia profunda do escrito com o psiquismo do escritor.

O pai da psicanálise pesquisou a fundo a noção de relações contra a castração utilizada na linguagem onírica e também presente no narcisismo primário. A partir desse momento, a psicanálise vem procurando desvendar a topologia do sujeito que atualmente podemos assertivar, com bastante segurança, que toda forma de expressão do sujeito tem uma íntima relação com o mesmo. Nesse sentido, Lacan afirma que todas as representações se manifestam utilizando o enunciado do discurso e no discurso do enunciado. Portanto, o duplo estaria ocupando o espaço da sombra, dos fantasmas que teimam em retornar, de sujeitos que na dimensão fictícia estariam procurando resistir ao Tânatos

Os autores Thones e Pereira (2003) expressam formas diferentes sobre a representação do estranho, de si mesmo em relação ao Outro não conhecido.  Para os autores citados, o sujeito só pode definir o outro a partir de si mesmo, bem como só será definido pelo outro a partir do alcance de seu próprio olhar. Dessa forma, fica evidente que as formas de relação do sujeito com o outro, e vice-versa, está agregado a essa condição, isto é, da incidência do Outro sobre o sujeito e da proporção que este conseguiu se tornar autônomo, reconhecendo-o.

As transformações que vêm ocorrendo na estrutura familiar nas últimas décadas, como também a crise na epistemologia e a propagação incisiva sobre o fim das certezas ou verdades absolutas se apresentam como possíveis causas da violência em patamares elevados e de uma certa desorganização da vida em sociedade. Temos a impressão de que há uma radical ruptura do laço social e o fim das referências simbólicas, e daí vem também a perda da imago paterna. Segundo Cecarelli (2010), cada momento histórico tem a sua leitura de mundo, sem que uma época seja melhor ou pior do qua a outra. Assim, uma determinada concepção de verdade ou um tipo de comportamento permanece até que outra verdade ou comportamento venha sobrepô-las. Em seu livro intitulado Totem e Tabu, datado de 1913, Freud   propõe o conceito de Weltanschauung, sendo compreendido como visões de mundo que os homens recorreram no decorrer da evolução: animista, religiosa e cientifica. Essas visões de mundo vieram ao encontro da necessidade de proteção pelo viés do amor com o intuito de amenizar a carga de sofrimento psíquico de cada momento da história.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A psicopatologia psicanalítica tem suas raízes na obra de Freud que introduziu conceitos fundamentais , como o inconsciente , os mecanismos de defesa e a dinâmica entre o id, o ego e o superego. Ele postulou que os sintomas psicopatológicos são manifestações de conflitos inconscientes, muitas vezes resultantes de traumas ou experiências infantis reprimidas.    

Com os estudos e pesquisas realizados por Freud, revelou-se a pseudo hegemonia da consciência assinalada pelas forças pulsionais que estavam submetidas às ordens do inconsciente. Assim, a psicanálise compreende a psicopatologia no contexto dos conflitos que são estabelecidos entre o inconsciente e o consciente do sujeito, advindo de seu imperativo original. E é por esse entendimento que recebe o nome de psicopatologia psicanalítica. A variação ou a intensidade desse conflito identifica o tipo de psicopatologia: as neuroses histéricas; fóbicas, obsessivas, de ansiedade; as psicoses; as perversões; as afecções psicossomáticas.

A psicanálise oferece uma abordagem terapêutica única para o tratamento dos transtornos mentais, centrada na escuta profunda e na interpretação dos conteúdos inconscientes. No setting analítico, o terapeuta e o paciente exploram, juntos, os significados ocultos dos sintomas, buscando a resolução de conflitos internos e a integração de aspectos dissociados da psique.   

É considerado que a singularidade no processo de subjetivação do sujeito corresponde ao ambiente familiar e social em que ele se encontra, como também a interferência cultural de seu espaço e de seu tempo. Nos tempos hodiernos, em um mundo cada vez mais globalizado, observa-se uma busca intensa de normatização de comportamentos e, com ela, uma tentativa de gerar padronização da normalidade e modificando a singularidade em anormalidade . Em razão disso, surgem determinadas  regras de procedimentos a partir referenciais que não observam a particularidade da dinâmica pulsional do sujeito. O badalado processo de globalização do mundo contemporâneo, ao gerar a subjetividade que lhe é especifica, leva consigo o adoecimento psíquico que se manifesta na forma de mal-estar, oriundo das inúmeras marcas da sociedade e das caraterísticas especificas deste momento da história. Dessa forma, é perceptível que o sofrimento psíquico impactado na sociedade pós-moderna atingirá uma nova reorganização e gestará uma nova forma de olhar o mundo.

A interface entre psicopatologia e psicanálise enfrenta desafios significativos no contexto atual. A globalização, a tecnologia e as transformações culturais têm impactado a subjetividade, resultando em novas formas de sofrimento psíquico. Transtornos como a depressão, ansiedade e os transtornos de personalidade parecem refletir essas transformações, exigindo novas abordagens teóricas e clinicas.         

Em síntese, o artigo em trilha sugere que a psicopatologia psicanalítica contemporânea desse ser adaptada às novas configurações da subjetividade e da alteridade, oferecendo novas ferramentas teóricas e práticas para lidar com os desafios atuais. 

REFERÊNCIAS

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1 Doutorando em Educação (UAA). Mestre em Ensino de História (UFT). Professor efetivo de História da Rede de ensino estadual (Maranhão).    https://orcid.org/0000-0003-4284-4757

2 Graduado em Pedagogia (FAM). Especialista em Educação Especial (FLATED). Bacharelando em Psicologia (FEMAF). E-mail: profthayronne@gmail.com

3 Graduada em Pedagogia (Facibra), Especialista em Psicopedagogia (Faculdade Horizonte), professora da educação básica em Lima Campos –Ma. Email: prof.gildeane@gmail.com

4 Graduada em Geografia (UEMA). Em Pedagogia (ISEPRO). Graduanda em Psicologia (FEMAF). Especialista em Educação Especial e Libras (ISEPRO). E-mail: salete.m.aquino@hotmail.com

5 Graduando em Psicologia (FEMAF). E-mail: rv.aquino@icloud.com

6 Graduado em História (UEMA). Mestre em Ensino de História (UFT). Professor da Educação Básica em Barra do Corda-MA. E-mail: andre.brasil@ifma.edu.br

7 Graduada em Psicologia (Universidade Santo Agostinho). Especialista em Saúde Mental e Políticas Públicas. E-mail: miridanisis@gmail.com

8 Licenciada em Pedagogia – UFPI. Pós- graduada em Atendimento Educacional Especializado (AEE) pela Universidade Cândido Mendes. Especialista em Educação Especial e Inclusiva. Bacharelanda em Psicologia FEMAF. Professora de AEE do Estado do Maranhão

9 Graduada em Letras – UEMA. Especialista em Língua Portuguesa com Ênfase em Literatura Brasileira pela Faculdade de Ensino Superior Dom Bôscoli. Graduanda em psicologia FEMAF. deusilenesampaio1@gmai.com

10 Graduada em Letras/Português (FAMICE). Graduada em Filosofia (FAEME). Especialista em Filosofia Contemporânea (FAEME). Especialista em Atendimento Educacional com Habilitação em LIBRAS e Braile (CERRADO). Bacharelanda em Psicologia (FEMAF). E-mail:  joanealmeida567@gmail.com