A PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: PRÁTICAS DE ELABORAÇÃO DE LIVROS NO PROJETO PIRAYAWARA

THE PRODUCTION OF DIDACTIC MATERIALS FOR INDIGENOUS SCHOOL EDUCATION: BOOKMAKING PRACTICES IN THE PIRAYAWARA PROJECT

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102501071025


Rossine de Souza Rodigues [1]


RESUMO:

O presente trabalho trata sobre um experiência de produção de livros artesanais no âmbito do Projeto Pirayawara, Formação de Professores indígenas em nível Magistério. A disciplina Língua Portuguesa e Conhecimento tradiconais ocorreu no Município de Santa Isabel do Rio Negro-AM e teve como premissa para aprodução das obras, as demandas em construção de materias didáticos bilíngues que refletissem sobre a realidade dos povos indígenas. Nesta produção verifica-se como as Legislações que amparam a Educação Escolar Indígena estão contempladas, assim como buscou-se refletir e analisar em torno das obras, sobre suas características, sempre de forma política crítica e reflexiva, demandas de educação escolar indígena.

Palavras-chave: Educação escolar; material didático; políticas linguísticas.

ABSTRACT:

The present work deals with an experience of producing handmade books within the scope of the Pirayawara Project, Training of Indigenous Teachers at Teaching level. The discipline Portuguese Language and Traditional Knowledge took place in the Municipality of Santa Isabel do Rio Negro-AM and had as a premise for the production of works, the demands in construction of bilingual teaching materials that reflected on the reality of indigenous peoples. In this production it is verified how the Legislations that supported the Indigenous School Education are contemplated, as well as an attempt was made to reflect and analyze around the works, about their characteristics, always in a critical and reflective political way, demands of indigenous school education.

Keywords: School education. courseware. language policies.

Considerações iniciais

A ausência de materiais didáticos para as Escolas Indígenas, de maneira geral, representa um dos grandes obstáculos para os processos de ensino-aprendizagem de sua língua, valoriação e conheciment de sua cultura. De acordo com a legislação, os Programas de formação de professores devem contemplar em seu currículo a construção/elaboração de materiais didáticos que reflitam sua realidade e possam contribuir para desenvolvimento dos projetos comunitários dos povos indígenas. De acordo com o Censo Escolar de 2015, 53,5% das escolas indígenas não possuem material didático específico ao seu grupo étnico.

Essa realidade nacional, da qual os Programas de Formação de Professores perseguem em busca de solução dentro dos seus Programas, é um dos fatores que favorecem o enfraqucimeto da cultura, das tradições e das línguas indígenas, pois os alunos e professores, em razão da falta de materiais específicos, infelizmente acabam adotando e absorvendo materiais que não são voltados à sua realidade histórica, social e cultural, fortalecendo desta forma a cultura hegemônica e majoritária que é a cultural nacional brasileira de língua portuguesa.

De encontro a estes desafios, o Projeto Pirayawara, sob execução e implementação da Secretaria de Educação e Desporto do Estado do Amazonas, forma, há mais de 20 anos, Professores Indígenas em Nível de Magistério, conforme Resolução CNE Nº1/2015:

Art. 3º São objetivos dos cursos destinados à formação de professores indígenas: I – formar, em nível da Educação Superior e do Ensino Médio, docentes e gestores indígenas para atuar na Educação Escolar Indígena com vistas ao exercício integrado da docência, da gestão e da pesquisa assumida como princípio pedagógico;

Essa demanda por formação em nível médio supre a carência e urgência de Professores dedicados à educação infantil e primeiros anos do ensino fundamental, que possam cumprir uma matriz intercultural, conforme Secretarias de Educação, assim como uma educação diferenciada condizente com a cultural indígena.

Desde a Constituição de !988, que garante aos povos indígenas o uso de suas línguas, a legislação em torno das causas indígenas, principalmente em elação à sua cultura, tradições e línguas, além de suas terras, têm sido cada vez mais fortalecida. O que a LDB 1996 também passa a propor em seu Art. 78 e 79:

 Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilingüe e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:

I – proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;

II – garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.

Nesse sentido, as entidades educacionais dos Estados e Municípios passaram a compor em suas Secretarias Núcleos e Gerências de Educação Escolar Indígena, de forma a garantir o cumprimento da Legislação, passando a atuar, inclusive, assim como a IES, na Formação Inicial e continuada de Professores. Ainda dá outros direcionamentos em relação à educação Escolar indígena o Artigo 79:

Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.

§ 1º Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas.

§ 2º Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais de Educação, terão os seguintes objetivos:

I – fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua materna de cada comunidade indígena;

II – manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades indígenas;

III – desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades;

IV – elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e diferenciado.

Além de tratar das responsabilidades de financiamento da Educação Escolar indígena, o Art. 79 apresenta em seu inciso quarto, a elaboração e publicação sistematicamente de material didáticos específicos e diferenciados em comunidades e para as comunidades indígenas.

Desenvolvimento

Nesse viés, este trabalho vem apresentar esboços de materiais didáticos desenvolvidos em uma das Etapas de Formação de Professores Indígena no âmbito do Projeto Pirayawara. A atividade ocorrida na comunidade Mafi, distante 6 horas de voadeira da sede do município de Santa Isabel do Rio negro. Esta localidade foi escolhida pelas lideranças da região para acolher os indígenas de diferentes etnias que se deslocaram inclusive do município de São Gabriel da Cachoeira, distante 3 horas de voadeira (lancha), e de outros lugares mais acima do rio, subindo as cachoeiras deste mesmo município.

A disciplina ministrada por mim naquela ocasião, novembro de 2019, era Língua Portuguesa e conhecimento tradicionais I, primeiro componente de língua portuguesa de um total de 6.

Os trabalhos foram sendo realizados primeiramente a partir de um levantamento linguístico da língua portuguesa, por meio de leitura e escrita, interpretação textual, pois é característica das turmas apresentarem diferentes níveis escolares, realidade prevista no Projeto Pirayawara, pois há a necessidade acolher e formar Professores que já atuam em suas aldeias, mas que ainda não obtém em formação específica. Estes Professores, na maioria das vezes, possuem o Ensino Médio, mas também podem ter concluído o somente o Ensino Fundamental I ou somente o Ensino Fundamental, mas sempre a partir da alfabetização concluída.

 Formação inicial e continuada de professores indígenas em nível médio (Magistério Indígena). Esses cursos têm em média a duração de cinco anos e são compostos, em sua maioria, por etapas intensivas de ensino presencial (quando os professores indígenas deixam suas aldeias e, durante um mês, participam de atividades conjuntas em um centro de formação) e etapas de estudos autônomos, pesquisas e reflexão sobre a prática pedagógica nas aldeias. O MEC oferece apoio técnico e financeiro à realização dos cursos. (Portal MEC).

No Amazonas, o Projeto Pirayawara está formulado para ser concluído em 4 anos e acontece em etapas intensivas e etapas de pesquisa, quando retornam às suas comunidades. Atualmente, o Projeto já conta com um número de mais de 1400 Professores formados pelo Projeto, atuantes no estado do Amazonas. Vários Territórios Indígenas já foram envolvidos pelo Projeto que conta sempre com a participação do Estado, por meio da Secretaria de Educação e Desporto e com o Município, por meio de sua Secretaria de Educação. Nesta parceria, formam-se os convênios que darão viabilidade à execução do Projeto, como alimentação, hospedagem, transporte de alunos e professores.

Em minha experiência, recebi apoio logístico para viajar de Manaus até Santa Isabel do Rio Negro em um barco regional, chamado de Jato, devido à potência dos seus dois motores, o que se permitiu chegar até o Município em 18 horas de viagem, subindo o Rio Negro, chegando até onde é conhecido como Alto Rio Negro. A viagem da sede do Município de Santa Isabel do Rio Negro até a comunidade Máfi,  possível somente por meio de um barco menor, ou lancha, como é conhecido esse tipo de embarcação, que levou até esta comunidade, 6 horas de viagem. Aportamos no domingo à tarde e iniciamos as atividades, no outro dia, segunda-feira pela manhã.

Com as atividades ocorrendo em meio à comunidade, pude trabalhar a língua portuguesa ao mesmo tempo em que se busca relacioná-la com a importância de suas línguas. Naquela turma de 41 alunos, havia três línguas vivas: baniwa, nheengatu e tukano. Todos falantes, mas nem todos tinham ainda o domínio de sua escrita. Havia apenas 1 aluno do povo tukano, um dos mais velhos que tinha domínio da oralidade, no entanto, pouco sabia da sua escrita. Deste aluno, apresente agora sua produção bibliográfica artesanal, partindo das orientações sobre construção de uma história ou contação de uma história.

O aluno indígena do povo Tukano, Ernesto, é um dos alunos que dominam a oralidade da sua língua. Por este motivo, sua produção monolíngue expressa um dos mitos sobre a origem do fogo. Percebe-se um bom domínio da língua portuguesa de maneira geral, quanto ao enredo, construção de diálogos, uso de voz passiva com partícula apassivadora, uso de pontuação, como a reticências, para demonstrar continuidade da história, uso de dois pontos para explicar, inserir uma informação, como em “uma velha chamada: avó das lenhas de fogo”.(fig. 4)

Senhor Ernesto é um adulto de aproximadamente 45 anos, liderança perante a turma, o que naturalmente enveredou-se como representante discente e não morava junto aos demais alunos, no mesmo alojamento ou na mesma comunidade, pois vinha todos os dias em sua canoa para as aulas.

A contação e nesse caso, a publicação de uma história/mito/lenda, faz parte das tradições e heranças indígenas, que, como em qualquer sociedade, existe para dar conta de explicações sobre determinados fenômenos. De acordo com (Ribeiro. Luna e Almeida, 2015, p. 1422):

Trata-se de uma narrativa utilizada desde a antiguidade para explicar fenômenos da natureza que não podiam ser compreendidos, bem como a origem do mundo, dos homens e dos animais, porém essa palavra pode conter inúmeras denominações e explicações.

A confecção de um livro artesanal que registre uma de suas histórias presentes em sua realidade local, que faz parte de sua infância e é transmitida a seus filhos e netos, compõe sua riqueza cultural e formas de ver o mundo de determinado povo em uma dada comunidade. Nesse mito trabalha-se, além da origem do fogo e como foi conquistado, sobre sua função/finalidade, pois, segundo a história, todos comiam cru, e apenas a velha vó comia seus alimentos cozidos ou assados.

Ao mesmo tempo nos surpreende o enredo em relação a toda trama/armadilha criada e pensada para burlar a vó, coisa muito comum entre a relação netos e vós, quando os menores desejam obter alguma vantagem. Mas os netos, pensaram e neste momento podemos observar como a cultura e os conhecimentos sobre a natureza se mostram presente e úteis diante de um planejamento, pois um dos netos foi enrolado em uma folha cruas (fig.6), ou seja, verde, que seria mais difícil de ser tomada pelas chamas e assim não queimar seu irmão, que naquele momento era um macaco transformado por eles. Observa-se o cuidado com o irmão após o sucesso da operação, enquanto um cuida do fogo, o outro cuida do irmão, o que representa o espírito coletivo e comunitário, tradição na maioria das sociedades indígenas.

Como em muitas histórias, se determinada regra é descumprida diante de acordos, há então que se arcar com as consequências, que seria o descontrole sobre o fogo, o que poderia causar muitas desgraças e muitas tragédias para a humanidade, pois a vó, antes, era a guardiã do fogo que o controlava sem que deixasse invadir a floresta, os campos e a cidade. Porque:

Os mitos eram – sobretudo, se não exclusivamente – histórias com funções sociais. Um mito, aventou ele, é uma história sobre o passado que, em suas palavras, faz as vezes de um ‘alvará’ para o presente. Ou seja, a história fictícia desempenha a função de justificar alguma instituição no presente e, desse modo, manter sua existência. (BURKE, 2002, 141-142)

 Desta forma, os netos, meninos desobedientes, porém espertos, pois queriam comer comida assada ou cozida, uma vez que não suportam mais comer comida crua, acabariam por receber uma lição que não atingiria somente eles, mas toda a sociedade. Os ensinamentos que carregam os mitos estão sempre ao lado de fato que se justifica por meio dele, por isso, cabendo a ele símbolo de reflexão diante de determinados atos, ou mesmo “traquinagem”, como no caso destes netos.

Outro ponto de destaque na obra produzida e elaborada pelo aluno são as ilustrações, que representam de forma bem definida o adulto, as crianças, com corpo em chamas ao ambiente natural, técnicas de perspectiva entre perto e longe em um mesmo plano.

As imagens presentes da história têm uma função, ilustrar ou reforçar aquilo que está escrito, pois elas complementam os sentidos do texto escrito e essa relação entre texto e imagem se faz por meio de uma relação dialógica. O uso de imagem para crianças durante o processo de ensino é fundamental. Ilustrar o que está sendo dito é uma das formas de reforçar mentalmente o que se quer que seja compreendido, assimilado ou compreendido, pois tem como característica a construção de sentido junto ao texto escrito.

O trabalho com os alunos desta turma foi uma experiência enriquecedora em diversos sentidos. Distante da cidade, em uma comunidade sem rede de energia elétrica, sem água encanada, sem banheiro convencional, tudo em experiência foi diferente. Mas naquela turma, somente com um quadro e pincel na mão, de 7h da manhã até que o sol sumisse no horizonte, era tempo de profunda reflexão sobre a sua língua, sobre língua portuguesa e para quê é necessário dominá-la, além de discutirmos sobre sua cultura e formas de preservação/fortalecimento. O planejamento do curso junto àquela realidade está ligada:

à importância da educação e do papel político do educador para a sociedade nos seus aspectos não somente culturais, mas também ideológicos, políticos e econômicos, ou seja, a educação e o papel político do educador têm grande peso na formação e consolidação do bloco histórico de uma nação. (LOPES e FILHO apud Antonio Gramsci, 1891-1937, p.2).

No momento de preparação de um curo voltado à formação de Professores Indígenas no Estado do Amazonas, sabe-se que é necessário um olhar voltado às realidades de cada comunidade, ao mesmo tempo em que muitos estudos sobre as línguas, em mais de 40 anos já dá conta de um desaparecimento crescente dessas línguas.

Por isso o trabalho e planejamento do Professor-formador tem um caráter político à medida em que seu exercício junto às minorias que sofrem com a crescente perda de suas tradições, saberes, cultura e principalmente da sua língua demandam uma abordagem reflexiva e crítica durante seu processo de formação, para em seguida, quando estiverem em sala de aula, compreenderem sobre a necessidade de se construir uma percepção crítica da sua realidade e da de seu povo.

A segunda obra a ser apresentada, escrita pelo aluno Silvio Alexandre, é escrita em língua portuguesa e em língua baniwa. Na turma, a língua baniwa tinha maior representatividade, com mais de 50% do total dos alunos. A obra escrita se encaixa no plano ideal das políticas educacionais previstas na legislação, pois ele foi construído em duas línguas, bilíngue, tal qual a Constituição e as Resoluções que norteiam a educação escolar indígena dispõem.

Conforme excerto extraído de Direitos indígenas na Constituição Federal de 1988:

A Constituição garante e eles, no artigo 210, o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, cabendo ao Estado proteger as manifestações das culturas indígenas. Esses dispositivos abriram a possibilidade para que a escola indígena se constitua num instrumento de valorização das línguas, dos saberes e das tradições. (PCN em Ação, p14.)

Esta primeira ideia de valorização das línguas nos processos próprios de ensino garantiu aos povos indígenas mais uma ferramenta de proteção de suas línguas, pois todos as ações e planejamentos em educação deverão estar pautadas nos artigos e Constituição que preveem o uso de suas línguas. De forma política, as línguas passam a contemplar um lugar significativo para qualquer base escolar. Assim, sua importância é sem medida incalculável, que passa a ser uma das características da Escola Indígena: Bilíngue ou multilíngue, pelo princípio de que:

Os conhecimentos acumulados, a educação das gerações mais novas, o pensamento e a prática religiosa, as representações simbólicas, organização políticas e projetos de futuro, enfim, toda reprodução cultural das sociedades indígenas são manifestados através do uso da língua. (RCNEI, 1998, p. 25).

Tudo gira em torno da língua, porque a ausência ou desparecimento de uma língua indígena também representa o desaparecimento de toda história, saberes, formas de enxergar o mundo. Assim como a história apresentada elo luno Ernesto, que outras histórias se pederam ao longo do processo que se iniciou desde  colonização até os dias atuais? Desta forma, a partir destas reflexões sobre a importância da língua indígena, apresentamos abaixo a obra “História de três minhocas”

A estória contada pelo aluno Silvio Alexandre tem um enredo muito semelhante à um dos enredos mais conhecidos do universo da literatura infantil não indígena. Trata-se da estória do lobo mau e dos 3 porquinhos. Aqui, nesta estória, há uma adaptação em seus personagens, bem mais próximos de sua realidade. No lugar do lobo-mau está a galinha e ao invés de três porquinhos, estão três minhocas.

As duas estórias, a primeira mais conhecida do universo infantil, e está das três minhocas revelam algumas lições de vida, conforme Bettelheim, em A psicanálise dos contos de fadas:

O menor dos porquinhos constrói sua casa com o menor dos cuidados – de palha; o segundo usa paus; ambos dispõem seus abrigos tão rapidamente e sem esforço quanto podem, de modo a poder brincar o resto do dia. Vivendo de acordo com o princípio do prazer, os porquinhos mais novos buscam gratificação imediata, sem pensar no futuro e nos perigos da realidade, embora o porquinho do meio mostre algum amadurecimento ao tenta: construir uma casa um pouco mais substancial do que o mais novo. Só o terceiro e mais velho dos porquinhos aprendeu a viver de acordo com o princípio da realidade: ele é capaz de adiar seu desejo de brincar, e de acordo com sua habilidade de prever o que pode acontecer no futuro. (BETTELHEIM, p. 44, 2002)

As histórias orais contadas em diversas sociedades, sejam ela indígenas ou não, sempre tivera, desde a Grécia antiga, um caráter reflexivo quanto as atitudes e decisões tomadas por seus personagens, que levassem à gloria ou à penúria, todos frutos de suas escolhas. A histórias das minhocas, assim como a história dos três porquinhos manifestam em seus leitores ou em seus ouvintes diversos sentimentos.

A criança que ouve tais histórias geralmente se coloca em lugar de algum dos seus personagens e de forma intencional, assim os adultos que contam as histórias buscam gerar um reflexão por parte dos ouvintes, trazendo para o enredo animais ou qualquer outro objeto inanimado, de forma a distanciar o ouvinte de qualquer outro ser humano, mas sim carregar este personagem de ações humanas que garantem a ele ou não um estado de felicidade ou de sucesso, a partir de suas ações, ou mesmo de fracasso e penúria, por meio de suas decisões.

A estória apresenta três  minhocas que seriam relativamente crianças e suas atitudes, como característica-chave, “as preguiçosas” que querem apenas diversão e realizar os deveres e afazeres de qualquer forma; ou ser aquela minhoca esperta e inteligente, que dispende de um maior tempo ao realizar algo concreto e mais eficaz, que mesmo demando tempo, dê origem a algo de qualidade, ao invés de construir qualquer casa frágil em uma busca rápida pela diversão. Ou seja, de um lado a diversão e de outro a responsabilidade.

Esses e outros enredos desenvolvem nas crianças a percepção sobre a realidade, sobre as suas atitudes, formas de viver em sociedade, medir as consequências de seus atos, decisões e investimentos, além de que são transmitidos de maneira simples, ilustrativa, sem agressividade, com personagens não humanos.

A criança, que através da estória foi convidada a identificar-se com um de seus protagonistas, não só recebe esperança, mas também lhe é dito que através do desenvolvimento de sua inteligência ela pode sair-se vitoriosa mesmo sobre um oponente muito mais forte.

As lições e aprendizados retirados destas histórias podem ser diversas e elas têm como princípio o ensinamento sobre valores essenciais que as pessoas devem ter.

Nessa atividade, pode-se perceber a escrita de uma estória em duas línguas, português e baniwa, que foi a primeira proposta apresentada aos alunos, para que fossem produzidos livros bilíngues e que ao mesmo tempo pudessem resgatar histórias orais de seu povo ou mesmo de sua comunidade. O objetivo primeiro desta atividade é que se resgatassem as tradições orais e pudéssemos registrar em forma de livros, artesanais, tudo aquilo que fosse e estivesse na memória deles. Por isso muitos alunos trouxeram histórias que trouxessem vozes que ecoam na floresta, cavalos que correm pelas lajes nas beiras dos rios, até sobre a história do macaco esperto, a tradicional e conhecida história da lebre e da tartaruga, reflexo também da entrada de livros não indígenas em suas escolas, além de obras, espécie de tutorial de como construir uma roça, com seu passo-a-passo, todos muito bem ilustrados.

Considerações finais

Os desafios diante da realidade das línguas indígenas em todo o estado do Amazonas, configura-se como um ato político em torno das demandas urgentes das línguas, da cultura, das tradições e dos saberes ancestrais.

Os aparatos legislativos contemplam a liberdade sobre o uso, ensino, aprendizagem, formas próprias de educar, currículo diferenciado a partir de suas diferenças e especificidades em detrimento da construção do ser indígena e do fortalecimento das sociedades indígenas, no entanto, diante do muito ainda a se realizar, ainda há um grande percurso a se construir, principalmente no que concerne às políticas públicas, que andaram fragilizadas em torno da causa indígena, mas que podem ter um novo fôlego diante do novo governo que inicia em 2023, pela criação de um Ministério dos Povos indígena, que estabelece com isso políticas e recursos direcionados aos povos indígenas, refletindo, espera-se, no atendimento de projetos e programa de formação inicial e continuada, publicação de obras e livros específicos aos povos indígenas, construção de escolas, contratação de professores indígenas etc.

Sabe-se que a instância escolar não é a única instituição a ser contemplada por esse novo fôlego, entretanto, é por ela que se criam lideranças, discutem-se ideias, pensa-se sobre o projeto de futuro de suas aldeia e comunidades, além do fortalecimento de suas línguas.

Muito tem sido realizado dentro dos programas de formação de professores, respeitando todas as características da educação escolar indígena e tem situado a demanda por matérias didáticos no centro das formações, inclusive garantidos nos currículos dos cursos como disciplinas de elaboração de matérias didáticos.

Referências bibliográficas

ALMEIDA, B. C. K. B., LUNA, J. F. RIBEIRO, R. C. A importância dos mitos para as sociedades indígenas. In. VII CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA. 2015.

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. Trad. Arlene Caetano. Ed. Paz e Terra, ed. 16ª. 2002.

BRASIL. Constituição Federal República Federativa do Brasil – 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 05 dez. 2022.

BRASIL. Parâmetros em Ação de Educação Escolar Indígena. Ministério da Educação, Secretaria de educação Fundamental, Brasília, 2002.

BRASIL. Referencial curricular nacional para escolas indígenas. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental, Brasília, 1998.

BRASIL. Lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB 9394/96. Brasil.

LESSA, Agla Mendes de Melo. Imagens e olhares: Povos indígenas e a construção/reforço de estereótipos através de imagens dos séculos XVI-XVII e XIX-XX utilizadas como complementos em conteúdos na sala de aula. UFRB, Cachoeira-BA, 2016.

LOPES, Fátima Maria Nobre. FILHO, Adauto Lopes da Silva. O papel político do educador. GRAMSCI e ADORNO. Revista LABOR ISSN: 19835000 nº 10, v.1, 2013.

Disponível em: http://portal.mec.gov.br/educacao-indigena. Acesso em: 23.mar.2023.


[1] Doutorando em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM.