REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7069028
Autor:
Gabriel Perrone1
RESUMO
A temática do exorcismo se confunde com a história da humanidade e exerce grande fascínio e curiosidade na sociedade ocidental. Usufruindo de tamanha popularização, a indústria cinematográfica hollywoodiana se apropriou do tema e lança, em 1973, O Exorcista (The Exorcist), desenvolvendo formulas narrativas e procedimentos de construção fílmica, que garantiu o êxito nos regimes de espectatorialização desenvolvidos e, consecutivamente, o sucesso comercial. A película atingiu tamanha influência no imaginário popular, que sua concepção serve, até hoje, de modelo para diversas outras obras que remontam o plot, configurando-o como um subgênero do horror. O presente artigo se concentra no estudo dos recursos funcionais que insere a obra, conceitualmente, no horror de espetáculo de Richard Lowenstein (2011), entreposto na abordagem do cinema de atrações de Tom Gunning (1986). A análise da obra serve de ponto de partida para uma investigação que se direciona às concepções narrativas e questões de ordem simbólica e representativa da exploração do corpo e do melodrama familiar como estratégias dos processos de atratividade. Também, tenciona levantar tópicos sobre a cultura dos medos coletivos e sistemas de valor abordados por Andrew Tudor (1989) para a obtenção de um recorte sobre as codificações e experiências na arte cinematográfica.
Palavras-chave: O Exorcista. Análise fílmica. Horror de espetáculo. Cinema de atrações.
Introdução: a cultura do fascínio à dúvida
O Exorcista é um filme de horror sobrenatural dirigido por William Friedkin baseado no best-seller homônimo de William Blatty publicado em 1971. Narra a história de Chris MacNeil, uma jovem mãe interpretada por Ellen Bursntyn, na luta para salvar sua filha Regan (Linda Blair), possuída pelo demônio Pazuzu. Para isso, conta com a ajuda dos padres Merrin (Max von Sydow) e Karras (Jason Miller), que realizam uma cerimônia de exorcismo a fim de expulsar o mal que invadiu o corpo da jovem (KINDERSLEY, 2011, p. 264).
Em 2023, O Exorcista (The Exorcist, 1973) completa cinquenta anos de seu lançamento e continua a ser um dos filmes mais influentes no cinema de horror. A obra inspirou diversos outros similares que tentaram e tentam replicar e capitalizar o sucesso de bilheteria do antecessor. De lá para cá, mais de cem produções foram lançadas pelo globo, percorrendo os caminhos similares ao original de William Friedkin. Na sua etnografia do exorcismo, o sociólogo Michael Cuneo (2001) argumenta que o filme incitou um interesse sem precedentes sobre o tema como forma de entretenimento e, também, estimulou o imaginário urbano sobre as forças do mal, que ultrapassam o conhecimento racional e, portanto, abriu caminho à aventura alimentada pelo medo do desconhecido. Este fenômeno revela uma das naturezas humanas de atração pelo medo em estado distanciado que o cinema garante pelo ritual de “se sentar em confortáveis poltronas e assistir à exibição das imagens projetadas em tela grande de vasto repertório ficcional criado pelos cineastas” (p.174). É o prazer em se estar seguro diante de um écran e não das situações nele exibidas, mas, também, próximo do horror amparado pela dúvida que o assunto instiga e tangencia a realidade. O grau sugestivo de realismo, entretanto, atingiu intensidades superiores às, até então, experienciadas pela audiência e o que se viu não há precedentes. Zinoman (2011) descreve as reações extremas relatadas:
Pessoas gritavam em estado de pânico diante da tela. Vários foram os casos de desmaios e vômitos nas salas de projeção. Uma mulher teve um aborto espontâneo na cidade de San Diego e um homem sofreu um ataque cardíaco em Dallas. A polícia foi chamada para reprimir motins em Kansas e Nova Iorque. Um homem jura ter visto o demônio em Berkley. A histeria causada por O Exorcista, lançado em 26 de dezembro de 1973, alimentou-se de si mesma, gerando ainda mais sustos, pânico e raiva (p. 101).
A obra influenciou tamanha atração que, em 1999, o Vaticano publicou um guia revisado dos rituais de exorcismos como esforço em remover o estigma propagado pelas obras cinematográficas que, até então, retratavam o ritual. Em efeito contrário, novamente trouxe à tona o tema e reacendeu o mote que, nos anos seguinte, serviu de motor a novos e inúmeros lançamentos (VAN SLYKE, 2006). Teóricos dos estudos sobre religião argumentam que os Estados Unidos, aparentemente, sofreram uma mudança cultural na qual
o relativismo moral e cultural é cada vez mais favorecido pelo descrédito em relação às instituições científicas, que angariam fracassos ante suas posturas como fonte inquestionável para todas as respostas às indagações do mundo. Situações particulares e próximas às questões espiritualistas em ascensão na sociedade contemporânea sofrem o desprezo da ciência, que as considera inadequadas às formulações empiristas (WRIGHT, 2006, p. 67).
FIGURA 1 – CINEMAS LOTADOS E FILAS EXTENSAS: O PÚBLICO SE RENDE À ATRATIVIDADE ESPETACULAR
Andrew Tudor (1989), conhecido por sua historização cultural do gênero horror, argumenta que essas obras são reflexos diretos dos males sociais. Segundo o autor, “a grande gama de filmes de horror fornece pontos de investigação para a elaboração de uma cultura sobre os medos coletivos e sistemas de valor” (p.164). Em conexão, Joshua Gunn (2004), em suas abordagens sobre religião e experiências afetivas humanas, observa um fascínio contínuo pelo demoníaco no discurso popular, bem como suposições de sua prática no mundo real. Tais considerações apontam que são as bases culturais que suportam a adequação social à obra. Partem pelo fascínio aos dramas familiares, seguem com os jogos nas encenações físicas apoiadas na exploração do corpo e se assentam no êxito do horror em correspondência ao espetáculo e o cinema como show de atrações. O Exorcista levanta questões que permeiam o entendimento da própria expressão cinematográfica. Entretanto, como compreender tamanha atração?
Como possuir o público?
O horror como evento espetacular é “a encenação do exótico e explícito para efeitos de admiração do público, provocação e aventura sensorial ao medo, em momentos de intensa alegorização” (DAY, 2013, p. 85). A encenação em intensidade com dinâmicas alegóricas muitas vezes expressas pelos corpos em contorção, acrescidas pelo trabalho impactante da caracterização da personagem possuída é característica muito específica dos filmes de possessão demoníaca como visto em O Exorcista. Tal metodologia de composição incentiva um envolvimento diferenciado do espectador. Assim, como acontece em outros modelos onde o horror é apresentado de modo espetacularizado, a participação requer menos identificação e mais interação.
O horror de espetáculo é diferente porque é construído não pelo uso excessivo do gore2, mas por uma relação íntima do realizador com o espectador. Lowenstein (20011) esclarece que esse relacionamento se diferencia dos modelos tradicionais de identificação empregados nas formulações dos filmes de horror. O horror de espetáculo se desenvolve a partir do conceito de cinema de atrações de Tom Gunning (1986), que destaca sua predominância nos momentos inaugurais da história do cinema, antes da dominação dos modos ficcionais de composição. Nesses moldes, são notavelmente empregados truques e ilusões, concebidos como forma de visualidade atrativa, ao invés do investimento maior na história. Por meio do espanto pelo uso de performances cênicas acrobáticas, a exibição se direciona para fora da tela, rumo ao espectador (GUNNING, 1986). Com efeito, as atrações estão na visibilidade franca e desejada e, por isso, se distinguem de modos de visualização discreta ou voyeur.
Em uma primeira instância, estabelecendo significativa relação ao ato, à exposição e ao aproveitamento dos quesitos estilísticos e estéticos, o cinema de atrações celebra a capacidade de exibir algo espetacular e apresenta à plateia uma série de performances fascinantes devido ao seu arrojado poder exótico e ilusório. É possível estabelecer conexões comparativas à ilusão perturbadoramente realista das primeiras projeções realizadas pelos irmãos Lumière ou aos ilusionismos mágicos de um dos pioneiros do cinema ficcional, Georges Méliès (GUNNING, 1986). A ênfase no convencimento ilusório é o ponto central para a obra.
Filmes de horror não são pensados a serem assistidos de forma indolente. Se alguns espectadores negam experimentar qualquer ansiedade pessoal, existe aí alguma falha no processo de emissão e/ou recepção da mensagem contida na obra. A construção desses filmes é realizada visando, explicitamente, o engajamento pleno e ativo do público. As fitas são projetadas a violar a sensibilidade da audiência e, especificamente, gerar envolvimento por parte do espectador. Entretanto, as obras sobre exorcismos solicitam um nível distinto de participação. Embora estudiosos sugiram que o envolvimento aconteça pela cooperação lúdica, muitos variam em suas definições de grau ou tipo de participação em que esse envolvimento ocorre. Nos textos dedicados ao gênero, é perceptível uma ampla concordância sobre espectatorialização e identificação para o êxito das propostas que alimentam e sustentam a viabilidade das obras. Entretanto, atualmente, os estudos a respeito dos procedimentos de identificação têm gerado um grande volume de discussões teóricas, que posicionam a questão em um patamar de reformulações (CLOVER, 1992). Lowenstein (2011) cita Brophy e Sconce, atribuindo a estes autores “uma noção de modelos de identificação simplista em seus principais métodos de análise” (p.58). Em termos básicos, esta discussão reage ao modelo reducionista de identificação de Metz (1982), que compreende dois leveis: “identificação primária (com a câmera e sua posição ante a ação e a maneira que que o olhar define sua participação) e identificação secundária (o caráter de escolha empática, o que está dentro e fora do enquadramento) (p.113).
A identificação como alicerce básico para produção de sensações não abrange todas as questões relacionadas para ser possível compreender totalmente e descrever a percepção do público de forma ampla e significativa. Não é recurso fundamental para promover meios narrativos que incitam as atrações oferecidas e que caracteriza o horror de espetáculo. O tom de atratividade está no apelo, a exemplo, pela curiosidade incitante e excitante ao extraordinário, sob condução manipulativa do realizador (GUNNING, 1989). A estruturação dos procedimentos atrativos, organizada pelo autor, de forma a produzir efeitos, não implica que haja necessariamente o envolvimento imediato do espectador aos trabalhos de câmera, montagem, entre outros itens da composição narrativa. Jagose (2008) reforça a visão de Gunning ao sugerir que o esquema de atratividade está relacionado à experiência de espectatorialização sensorial nas salas de exibição e, por esta razão, a discussão precisa ser ampliada às novas formas de solicitação participativa do público nos filmes de atração do horror como espetáculo, em especial, nos que a temática do exorcismo é explorada.
FIGURA 2 – A CÂMERA POSICIONADA EM ALTURA TRAZ A ATRAÇÃO AO PRIMEIRO PLANO: O OLHAR DEFINE A PARTICIPAÇÃO ATIVA. O PÚBLICO É CONVIDADO AO INTERIOR DO QUARTO DE REGAN
O horror de espetáculo demanda o visionamento através da construção do filme. Se direciona diretamente ao público, manifestando-se pelo aspecto do cinema como show em uma conjunção de números que apelam à pura emoção. A começar, pela análise a trailer original de O Exorcista, é possível identificar o caráter da obra. Um narrador aborda de maneira franca os espectadores: “Em algum lugar, entre a ciência e a superstição, vive um outro mundo. Um mundo das trevas. Ninguém o espera, ninguém acredita e nada pode detê-lo.”3 Desta maneira, o narrador apreende a atenção da audiência com a promessa de proporcionar um vislumbre desse mundo de escuridão. Com uma edição ágil e fragmentada que ascende ao clímax composto por flashes das cenas no quarto de Regan, onde objetos são arremessados pelo ar, o trailer promete um show espetacular que incita a curiosidade e estimula o espectador a pagar o preço para ser testemunha dos acontecimentos representados no filme. Nesta pequena peça de divulgação, já é possível ilustrar as técnicas associados ao cinema de atrações. Esta modalidade cinematográfica é fortemente caracterizada pela criação de um relacionamento interativo com o membro do público. “As atrações” estabelecem contato com a audiência através de uma infinidade de dispositivos e estratégias, tais como o “olhar para a câmera” recorrente dos atores. A dinâmica cênica transforma o espectador de agente passivo a participante ativo.
Dos comediantes que sorriem para as câmeras às constantes gesticulações das sátiras nos filmes de magia, que remontam os primórdios do cinema em releituras dos teatros de variedades da época, o Vaudeville4, este é um cinema com características que voltam a ser aplicadas nos tempos atuais. O realizador identifica o potencial destes recursos para efeitos de aproximação ao espectador e os retoma e atualiza, criando, assim, o show, a espetacularização do gênero. Nesta configuração, o objeto causador do medo é posicionado nos primeiríssimos planos, como se estivesse no proscênio teatral. Personagens, elementos de caracterização visual e narrativos se tornam, como o próprio Méliès, precursor do espetáculo ficcional, afirmou: “um pretexto para os efeitos de palco, para os truques ou para uma boa composição do quadro” (GUNNING, 1986, p. 64).
Reconhecendo que as funcionalidades do cinema de atrações podem operar de forma eficaz o horror que pretende realizar, tendo como objetivo primordial a promoção de uma experiência impactante, Friedkin apela à eficiência do tom de espetáculo. O realizador incorpora o melodrama familiar, elemento bem-sucedido e fortemente estabelecido no cinema, fracionando-o e em conjugação com as representações constantes e sucessivas das cenas espetaculares de possessão demoníaca e exorcismo. Assim, o melodrama ganha intensidade, com as bruscas intercessões do conteúdo extraordinário, e o sobrenatural se apodera de realismo por ser contextualizado no drama familiar. O êxito deste engendramento permite compreender como os filmes de exorcismo, desde O Exorcista, alcançam o sucesso nos processos de espectatorialização, utilizando a iconografia familiar em flexão com sequências de impacto: a cada abertura da porta do quarto de Regan, abrem-se as cortinas para um novo show de dinâmicas, tendo o espectador em mira e mantendo a lembrança do público à mãe desesperada do outro lado da porta.
O uso do corpo; a decadência familiar; ou a mulher como palco do demônio
O Exorcista é um marco na regulação do horror em níveis de atratividade intensa, explícita e visual. Seus remakes, sequências, prequelas e similares seguem a mesma rotina narrativa no trabalho da produção imagética. É, portanto, mais eficiente a análise através do uso dos conceitos que caracterizam a visualidade como espetáculo. Neste caso, a espetacularização reorienta a investigação pela abordagem do uso do corpo como palco para o desenvolvimento dos eventos extraordinários da possessão demoníaca devido à eficácia da encenação física fortemente amparada no aspecto visual-visceral. “O corpo quando manipulado em movimentos espasmódicos, contorcidos, que se assemelham às atrações circenses, gera a atratividade de verdadeiros shows que permeiam a obra” (DAY, 2013, p. 99-100). Entretanto, a diversão ante ao estranhamento dos contorcionismos alegóricos dos artistas de circo dá lugar ao espanto em configuração de anomalia com ares sobrenaturais na matéria humana.
Grande parte da narrativa de exorcismo prospera, localizando a ameaça no corpo. Entretanto, para uma compreensão abrangente do triunfo da película, é necessário ampliar as questões relativas ao diagnóstico do uso do corpo como elemento de composição. O Exorcista se nutre do corpo feminino. O embate espiritual é situado no corpo da adolescente Regan e a destruição tem efeitos no campo de batalha que é a matéria feminina em fase das transformações da puberdade em progressão sincrônica às mutações deformadoras causadas pelo demônio Pazuzu. Doane (1987) se refere ao filme no domínio do discurso anatômico, no qual o corpo da criança, em vias de se tornar mulher, decai à matéria mundana:
A exploração da matéria feminina é peça fundamental em O Exorcista. O ato de oportunizar o espetáculo no corpo feminino alimenta o inefável. Assim como, aproveita dos mistérios biológicos e sexuais da mulher para atrair o público-alvo do filme: masculino e jovem (GUNN, 2004, p. 88).
FIGURAS 3, 4, 5 – O HORROR COMO ESPETÁCULO, A IMPOTÊNCIA FEMININA E A HISTERIA MATERNA
Embora a ameaça em si seja invisível, a possessão demoníaca se manifesta através do comportamento desequilibrado, inquieto, despudorado em possível adequação a visões masculinas conservadoras em relação ao gênero feminino em diversas posturas de emancipação. A obra, como qualquer filme que almeja o sucesso comercial, estabelece formulações de atração pública e almeja a sincronia às ideologias de seu tempo. Assim como, utiliza de maneira consciente todos os recursos de estímulo à espetacularização de conteúdos polemizantes.
Em um caminho de exemplificar a estratégia da absorção da polêmica, como componente popularizante, encontra-se a polêmica gerada em resposta. Filmes do gênero conceituam controle das mais diversas ordens. Uma área principal de discórdia é se a jovem é influenciada a mover seu corpo ou ela que possui o controle completo. Em sentido oposto às leituras críticas da exploração do feminino como objeto de consumação, há ainda uma visão oposta de tons feministas, sugerindo que a mulher se engaja no mau comportamento para abrir espaço libertário de possibilidades. Paul (1994) argumenta que um organismo é codificado como revoltante “precisamente porque se revolta e começa a agir de forma autônoma” (p.196). A contorcionista possuída, neste aspecto, convoca a audiência e afirma o controle do seu corpo. Assim, o papel feminino é lido como uma potente estrutura, expandindo as possibilidades interpretativas do espectador em relação ao lugar e às significâncias do corpo.
Entretanto, pelo aspecto do drama familiar, a desarmonia feminina é um tópico latente na obra. Assim como a exploração do corpo da mulher assume aspecto de natureza instável e, consequentemente, exótico. A desagregação familiar revela a leitura de dependência do indivíduo feminino em proporção à ocupação da sua função na instituição familiar, em especial, nas demandas maternas e de carências afetivas. A relação mãe e filha possui valor referencial para a composição narrativa. Creed (1993) argumenta que, em O Exorcista, o horror emerge pela relutância de Regan e Chris em se separar. A possessão é o resultado do isolamento da filha devido às consequências do distanciamento de uma mãe independente com rotina profissional e social intensa. A evolução do problema, a intensificação do caos, pode ser compreendida, também, pela exclusão da figura materna do quarto da filha à medida em que a jovem desenvolve os sintomas da possessão. Essa exclusão está relacionada à “fórmula, onde a visão masculina autoritária dita as regras do posicionamento hegemônico do homem como único portador do recurso de salvação” (p.108). Também, a desagregação familiar não vem exclusivamente do afastamento materno, mas, também, da ausência paterna e o consequente colapso da família. Essa é a tradicional configuração ilustrativa da visão patriarcal sobre a decadência da instituição familiar, fonte dos desequilíbrios emocionais da película e presente nos contextos das histórias apresentadas nas mais diversas obras de terror, que vão além do subgênero dos filmes de exorcismo.
O papel de Chris é caracterizado pela impotência ao combate em subordinação à prevalência masculina, personificada pelas personagens dos padres Merrin e Karras. O filme segue, então, o padrão narrativo mais comum, onde a mulher é posicionada tradicionalmente como ser vitimado à dependência do homem e palco propício à histeria consequente da expectativa alucinante do resgate da filha. Em O Exorcista, a representação do histerismo feminino, que permeia a maior parte da história e somente é amenizada nos momentos finais, se revela, também, como recurso melodramático de dimensão intensificadora das características que insere a película no modelo do horror de espetáculo. O desequilíbrio das relações familiares e o arranjo da figura feminina em conexão com a neurose proporciona uma espécie de desordem eficaz para o desenvolvimento do plot. A desordem esculpe o ambiente fragmentado com rupturas propícias para a usurpação e ocupação insidiosa do demônio na personagem fragilizada de Regan. A este respeito, as considerações de Tudor (1989) sobre ordem e desordem, nos padrões de conflito cinematográfico, apura a análise. O autor exemplifica, pela desconstrução da estrutura básica de um filme, com seu conceito de ordem-desordem-ordem: “A trama se constrói na normalidade” (p.161). Na usual narrativa dos filmes de exorcismo, a história começa pela apresentação, suposta, do estabelecimento da família ou do corpo em estado natural de regularidade. Então, uma ameaça compromete a ordem a um estado de desordem. Finalmente, através do confronto com a ameaça, a ordem é restaurada. Em narrativas mais paranoicas e distópicas, caso em que O Exorcista se desenha, a ordem não é restaurada e volta ao estado de caos ou desordem.
O transtorno acontece, significativamente, em dois níveis: pelo coletivo (família) e pelo indivíduo (sujeito à ameaça ou personificação maléfica). […] Grande parte do filme é localizado na origem da doença e implementa métodos para restaurar o indivíduo, reposicionando o coletivo de volta ao estado de ordem” (TUDOR, 1989, p.163).
Essa formulação exige que o espectador privilegie a instituição familiar em detrimento do próprio indivíduo vítima da possessão. A estrutura do filme de exorcismo codifica performances de possessão como representação do abominável em razão da aptidão em sensibilizar o público pela identificação da desordem, manipulando o espectador pela aproximação dos acontecimentos projetados na tela aos terrores da vida real. Contudo, o abominável pode ser, também, ordem perante os olhares opressivos das instituições tradicionalistas em razão dos seus conceitos de desordem como característica intrínseca natural de uma humanidade em perdição.
Seguindo por uma apreciação alternativa, pode-se oferecer uma forma generativa conceitual de valores que ultrapassam a leitura típica. Embora a narrativa do exorcismo favoreça um estado em que o homem encarna o herói salvador da mocinha indefesa, o espetáculo do contorcionismo sugere que o papel feminino sempre esteve no controle da batalha, encontrando consonância em Tudor (1989) que ressalta a visão do sujeito feminino como personagem ativo para seu resgate. Por essa perspectiva, Regan, mesmo sob a influência do mal, ainda é a representação da resistência, mantém em si a capacidade da luta, mesmo sendo caracterizada pela dependência alheia para sua salvação. É nessa linha ideológica que Legutko (2010) traz informações folclóricas do judaísmo de maneira exemplificadora: “nas narrativas feministas do dybbuk5, a performance da possessão atinge estágio de negação à posição de autoridade suprema exercida pelo homem. A performance corporal abre ruptura para novas ordens ou nova ordenação emergente” (p. 22). A solução que se mostra eficaz, portanto, está na aliança, na combinação dos esforços dos exorcistas à resistência heroica da vítima possuída, garantindo, assim, a vitória na batalha contra o mal.
O olhar de Regan
Conhecemos a história. Já está integrada ao imaginário popular. A jovem manifesta sintomas irregulares que progridem para os espasmos e movimentos corporais que ultrapassam o comportamento natural. Certamente, a ciência explica. A psiquiatria pode diagnosticar e solucionar. Mas, os olhos da menina se movem fora de órbita e ela pronuncia palavras irreconhecíveis, se contorce, desafia os limites do corpo e a própria gravidade física. A situação evidencia o traço da sobrenaturalidade. A mãe, diante de sua impotência e dependência, se exaspera e se depara ao que antes representava o infundável, o embate espiritual é o que lhe sobra. O desespero a faz solicitar o auxílio da religião, representada pela figura, antes improvável, dos sacerdotes exorcistas. Existe um mundo de trevas e um tipo maléfico corrompendo a integridade da vítima. A conjunção progride e o que antes era sinônimo de descrédito se edifica como realidade vivida.
Enquanto as imagens apelam à sensibilidade e curiosidade do público, amparadas pelos enquadramentos não usuais, pelo posicionamento das personagens em planos próximos e pela interpretação acentuada dos atores, que olham e gesticulam em direção à câmera, se direcionam em rumo à audiência. O Exorcista joga com a peculiaridade singular. A utilização desses recursos recorre à atração de ordens múltiplas e congruentes. O cineasta atrai o público por meio dos elementos atrativos do espetáculo: a fórmula desenvolvida, além das técnicas de envolvimento, comumente utilizadas nos filmes, se sustenta pelo cinema de atratividades, que remonta o teatro de atrações de postura aproximadas ao circense. Os espectadores, assim, desempenham um papel diferenciado. A identificação é reduzida na proporção em que a participação interativa ganha destaque. A obra desenvolve suas próprias relações com a audiência na aplicação de elementos exóticos e de envolvimento ilusório, embora, com especificidades que a aproxima da realidade, já que o exorcismo não tem origem na ficção, mas sim, nas práticas do mundo real. Com elementos lúdicos e de interatividade, fortalece o estabelecimento do mote, desenhando de maneira integral o subgênero e abre espaço para reutilizações em diversas outras obras. Neste caso, o filme se enquadra no conjunto de pressupostos do horror de espetáculo e serve à análise para a assimilação pela espetacularização das dinâmicas estéticas e expressivas da exuberância.
O Exorcista apresenta uma fórmula cultural significativa que envolve a manipulação cinematográfica e historiciza possibilidades discursivas para o corpo feminino em um mundo dominado pelos valores masculinos. Isto posto, se verifica que o desempenho do exorcismo tangencia as questões de gênero. A mulher incorpora um certo grau de iconografia relevante: a jovem possuída, vitimada, assume relevâncias lascivas devido à complexidade íntima do corpo feminino. Logo, no que afeta as questões de gênero, o filme, assim com outros filmes que aludem à matéria da possessão demoníaca, explora uma maneira para o público lidar com o mundo social. A família também é tópico regulador do papel feminino como base de exame. O ceio familiar e a diferenciação sexual é caracterizada pela desagregação familiar. A obra desafia as noções estabelecidas da família tradicional. O público americano assistiu de forma inquieta a configuração infantil, a desconfigurarão do casamento e o dever materno como responsáveis pelo afeto à fragilidade. O rompimento da família facilita a possessividade pela maldade. O meio sagrado instável e uma criança vulnerável levam à crise familiar. A narrativa da filha possuída pode, em muitos aspectos ideológicos, ter menos significados com a figura inocente e mais relação com a ausência parental, no caso, o afastamento da mãe em relação a sua filha. Assim, a decomposição familiar e a luta em resgate da jovem possuída dão ênfase a uma crise institucional de base tradicionalista e social com visões conservadoras. Desse modo, O Exorcista, além de emergir do rompimento do corpo normalizado, privilegia o núcleo familiar tradicional e aponta para a possessão como resultado do declínio da instituição. Circunstâncias de ruptura produzem frestas de entrada para a força invasora, cria lacunas, deixando a criança vulnerável à influência do demônio.
Embora narrativas de horror retornem a um estado de suposta ordem, frequentemente, não perdem a oportunidade de se apoderar com finais abertos, negando o alívio final, dissimulando uma aparente ordenação conclusiva. Regan restaurada parecer ignorar toda a aflição acontecida e recupera a identificação com seu corpo e sua identidade original e, assim, a família retoma a coesão. Ainda assim, no momento final, pronta a entrar no táxi, volta seu olhar suspeito para sua janela e rapidamente entra no automóvel.
FIGURA 6 – A IRONIA DO PAVOR E A EXPRESSIVIDADE EM PRIMEIRO PLANO
2 Gore é um subgênero do cinema de horror que se concentra em representações gráficas de sangue e violência. Disponível em: https://blog.editoradraco.com/2014/10/voce-sabe-a-diferenca-entre-terror-horror-e-gore/. Acesso em: 31 de ago. de 2022.
3 Texto em voice over (narrador) do trailer de O Exorcista, exibido nas salas de cinema meses antes de seu lançamento em 1973. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YDGw1MTEe9k. Acesso em 23 de ago. de 2022.
4 Gênero teatral de entretenimento popular que misturava diversas atrações distintas série de atos que não possui ligação um com o outro (enredo ou história), cujo os únicos objetivos em comum eram o de entreter, chamar a atenção e obter lucro financeiro. cf. PRISCILLA, R. Vaudeville: A história do famoso teatro de variedades. Disponível em: http://www.vintagepri.com.br/2015/12/vaudeville-historia-do-famoso-teatro-de.html. Acesso em 19 de ago. de 2022.
5 No folclore judaico, um dybbuk, ou dibbuk, é um espírito humano que, devido aos seus pecados pregressos, vagueia incansavelmente até que encontre refúgio no corpo de uma pessoa. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Dybbuk#cite_note-britanica-3. Acesso em: 13 de ago. de 2022.
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1Doutor em comunicação (Universidade Anhembi Morumbi – SP), mestre em cinema e audiovisual (Universidade Católica Portuguesa – Portugal) e atua como professor de cinema e audiovisual na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e como realizador de cinema.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2967-4100
E-mail: gabrielperrone@gmail.com