REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th102410300931
Artur Henrique Gomes de Oliveira[1]
Yana Madalena Pessoa Pardinho[2]
Orientador: Profª. Msc. Flávia Madeira da Silva[3]
RESUMO
O direito processual penal é pautado na busca pela verdade real. No entanto, é plausível discutir em que medida essa “verdade” é, de fato, alcançada pela justiça penal. Esta pesquisa trouxe à lume a questão das falsas confissões serem embasadas em falsas memórias, e, consequentemente, fazerem com que pessoas ligadas à investigação criminal terminem por expressar informações não verídicas. Essa situação é potencialmente capaz de fazer com que vítimas sejam culpabilizadas por atos que, na verdade, não deram causa. Por isso, a tutela psíquica e emocional, durante a investigação e desenrolar processual, são importantes e desafiam a existência de uma interdisciplinaridade, afinal, não é apenas à ciência jurídica que esse assunto interessa, mas, sim, também, à psicologia. Nesse sentido, a investigação científica enfatizou a necessidade de realizar um interrogatório constituído no respeito aos direitos fundamentais do interrogado, afastando torturas, abusos e arbitrariedades. Para isso, o papel do psicólogo forense é essencial, já que ele tem condições de verificar se a confissão e o interrogatório foram feitos licitamente, ou, se, ao contrário disso, prejudicou jurídica e psicologicamente alguma das partes, inclusive com possíveis danos às testemunhas do caso. A metodologia empreendida foi a revisão de literatura bibliográfica, com foco em artigos, livros, leis nacionais e jurisprudência pátria, com preferência para os materiais produzidos nos últimos 06 (seis) anos.
Palavras–chave: Psicologia. Confissão. Interrogatório. Tortura. Dano.
ABSTRACT
Criminal procedural law is based on the search for real truth. However, it is plausible to discuss to what extent this “truth” is in fact achieved by criminal justice. This research brought to light the issue of false confessions being based on false memories, and, consequently, causing people linked to criminal investigation to end up expressing untrue information. This situation is potentially capable of causing victims to be blamed for acts that have not actually given cause. Therefore, the psychic and emotional protection, during the investigation and procedural development, are important and challenge the existence of an interdisciplinarity, after all, it is not only to the legal science that this subject matters, but to psychology. In this sense, scientific research emphasized the need to conduct an interrogation constituted in respect of the fundamental rights of the interrogated, removing torture, abuse and arbitrariness. For this, the role of the forensic psychologist is essential, since he is able to verify whether the confession and the interrogation were made lawfully, or, if, on the contrary, harmed legally and psychologically any of the parties, including possible damage to witnesses in the case. The methodology undertaken was the review of literature, focusing on articles, books, national laws and national jurisprudence, with preference for materials produced in the last 06 (six) years.
Keywords: Psychology. Confession. Interrogation. Torture. Damage.
1 INTRODUÇÃO
Os conceitos de falsas confissões e a criação de falsas memórias estão intrinsecamente ligados, sendo ambos fenômenos psicológicos complexos que podem levar a equívocos judiciais significativos. Ambos ocorrem quando a mente humana é submetida a pressões ou manipulações, seja pela pressão dos interrogatórios policiais, seja pelo poder sugestivo de reminiscências implantadas. Desse modo, eles representam uma intersecção crítica entre o sistema de justiça criminal e a psicologia, exigindo abordagens multidisciplinares para a sua adequada compreensão e manuseio.
Nessa correlação, a psicologia criminal surge como disciplina catalisadora, desempenhando um papel crucial na análise e compreensão desses fenômenos. Ao identificar as condições sob as quais falsas confissões e falsas memórias são geradas, a psicologia criminal pode informar práticas mais éticas e eficazes no sistema judiciário, como técnicas de interrogatório mais apropriadas e a formação de profissionais mais capacitados para identificar esses casos.
Esses conhecimentos, por sua vez, podem ajudar a prevenir condenações injustas, contribuindo para um sistema de justiça mais justo e preciso. Por conta disso, questiona-se: “Qual o impacto das técnicas de interrogatório atuais na incidência de falsas confissões e na criação de falsas memórias no sistema judiciário brasileiro?”. Em relação aos objetivos, são estas as escolhas: descrever o impacto das técnicas de interrogatório atuais na incidência de falsas confissões e na criação de falsas memórias no sistema judiciário brasileiro (geral). Os específicos: investigar os principais fatores psicológicos, sociais e institucionais que influenciam a ocorrência de falsas confissões; examinar os mecanismos cognitivos e emocionais que contribuem para a criação de falsas memórias; e
Destacar a eficácia das técnicas de interrogatório atualmente usadas no sistema judiciário brasileiro no que diz respeito à prevenção de falsas confissões e criação de falsas memórias. A análise do tema “Falsas confissões e falsas memórias na perspectiva da psicologia criminal” se justifica socialmente pela relevância que tem no contexto jurídico-penal.
A frequência com que tais fenômenos ocorrem aponta para uma problemática social que pode resultar em injustiças graves, como a condenação de indivíduos inocentes baseada em confissões falsas ou memórias criadas. Compreender essas questões é essencial para auxiliar no aprimoramento dos sistemas de justiça e na prevenção de erros judiciais. Faz-se necessário investigar e enfrentar as falhas dos processos de obtenção de confissões e do tratamento dado às memórias de acusados e testemunhas.
Academicamente, este estudo justifica-se por promover o avanço do conhecimento na área da psicologia criminal. O campo de estudo ganha profundidade à medida que se desvendam as nuances dos processos psicológicos que envolvem as falsas confissões e as falsas memórias. Através de uma análise criteriosa desses fenômenos, contribui-se para a formação de um corpo teórico mais sólido e fundamentado, que pode orientar futuras pesquisas.
Profissionalmente, o estudo em questão assume significativa importância na prática de profissionais que atuam tanto na psicologia quanto no direito. Prover aos profissionais de ambas as áreas um entendimento mais acurado sobre falsas confissões e falsas memórias permite que esses sejam capazes de identificar, lidar e atuar de maneira mais ética e eficiente quando deparados com tais situações. Ademais, os conhecimentos adquiridos nesta pesquisa propiciam um maior embasamento para a elaboração de políticas de treinamento e capacitação de profissionais ligados à justiça, ao sistema prisional e à psicologia criminal.
A metodologia é fundamental para a produção de pesquisas de qualidade, garantindo ao pesquisador uma padronização na coleta e interpretação dos dados (Barbosa, 2023). Por isso, o tipo de pesquisa a ser realizada escolhida é revisão de literatura bibliográfica, em que são pesquisados livros, dissertações e artigos científicos selecionados através de busca nas seguintes bases de dados (livros, sites de banco de dados etc.) Scielo, Plataforma Sucupira e Periódicos da Capes. O período dos artigos pesquisados são os trabalhos publicados nos últimos 06 (seis) anos e as palavras-chave utilizadas na busca nas plataformas de pesquisa são: “Falsas confissões”, “Falsas memórias”, “Psicologia criminal”, “Interrogatório” e “Sistema judiciário”.
2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE FALSAS MEMÓRIAS NO PROCESSO PENAL
A investigação dos principais fatores psicológicos, sociais e institucionais que influenciam a ocorrência de falsas confissões é de extrema relevância para compreender e prevenir esse fenômeno complexo no campo da psicologia criminal. Diversas pesquisas têm sido realizadas com o objetivo de lançar luz sobre essas questões, utilizando metodologias variadas e trazendo contribuições significativas para o conhecimento nessa área.
Segundo Di Gesu (2021), as falsas confissões podem ocorrer devido a uma série de fatores psicológicos. A pressão psicológica e física exercida sobre o indivíduo durante o interrogatório pode influenciar seu comportamento, levando-o a confessar um crime que não cometeu. Isso ocorre especialmente quando são utilizadas técnicas manipulatórias de interrogatório, que podem induzir falsas memórias e confundir a percepção do suspeito. Além disso, a vulnerabilidade psíquica do indivíduo em questão também desempenha um papel importante, tornando-o mais suscetível a confessar em uma situação de pressão.
O que é que decide um acusado a mentir contra si próprio? A prestar uma confissão falsa, sabendo mesmo que esta sua confissão o levará a sofrer uma pena não merecida? Examinai as hipóteses, e vereis que nunca vos encontrais perante uma razão ordinária, que leve a confessar-se culpado de um crime não cometido (Malatesta, 1927, p. 487).
No contexto social, diversas dinâmicas contribuem para a ocorrência de falsas confissões. Conforme Cremon (2023), a influência social exercida pelas autoridades policiais e pela figura de autoridade presente no processo de interrogatório pode levar o suspeito a acreditar que é culpado, mesmo que não tenha cometido o crime. O medo de sanções, a preocupação com a opinião pública e o desejo de encerrar o interrogatório podem influenciar a decisão de confessar, mesmo que isso seja falso.
Além disso, as instituições também têm um papel significativo na ocorrência de falsas confissões. Segundo Silveira (2022), a forma como os procedimentos de interrogatório são conduzidos, a falta de treinamento adequado dos profissionais envolvidos e a ausência de salvaguardas legais podem contribuir para a obtenção de confissões falsas. A falta de registro adequado dos interrogatórios e o não cumprimento de direitos fundamentais do suspeito são aspectos institucionais que podem influenciar negativamente a busca pela verdade no processo penal.
Dessa forma, a investigação dos principais fatores psicológicos, sociais e institucionais que influenciam a ocorrência de falsas confissões é fundamental para a formulação de estratégias de prevenção e detecção desses casos. De acordo com Pereira (2021), a análise minuciosa das circunstâncias em que ocorrem as falsas confissões, considerando a influência de cada um desses fatores, é essencial para o desenvolvimento de técnicas de interrogatório mais éticas e eficientes, a capacitação de profissionais de justiça e a implementação de salvaguardas legais que evitem a ocorrência desses erros judiciais.
É importante ressaltar que a compreensão dos principais fatores que contribuem para as falsas confissões não só auxilia na prevenção de condenações injustas, como também promove uma reflexão sobre a própria natureza do sistema de justiça criminal. Conforme destaca França e Pinto (2021), ao investigar e analisar tanto os aspectos psicológicos, sociais e institucionais envolvidos nas falsas confissões, a psicologia criminal contribui para uma visão mais ampla e crítica do funcionamento do sistema de justiça, buscando garantir a proteção dos direitos individuais e a busca pela verdade nos processos penais.
Portanto, a investigação dos fatores psicológicos, sociais e institucionais que influenciam a ocorrência de falsas confissões é uma área de estudo relevante no campo da psicologia criminal. As pesquisas realizadas até o momento têm contribuído para uma compreensão mais aprofundada dessas questões, permitindo o desenvolvimento de estratégias mais eficazes na prevenção e combate das falsas confissões, em prol da justiça e da busca pela verdade nos processos penais.
A criação de falsas memórias é um fenômeno complexo que tem despertado grande interesse no campo da psicologia criminal. Diversas pesquisas têm se dedicado a examinar os mecanismos cognitivos e emocionais que contribuem para esse processo. Segundo Di Gesu (2021), a nossa memória não é um registro preciso e fiel dos acontecimentos passados, mas sim uma construção que pode ser influenciada por diversos fatores. Nesse sentido, a autora ressalta que a criação de falsas memórias pode ocorrer quando somos expostos a informações enganosas ou quando damos significado errado a eventos reais.
Algumas vezes, pois, o que se julga ser mentira não é senão um equívoco, e por vezes também os perigos e os sofrimentos, que se acham sempre ligados a um julgamento criminal, perturbam por tal forma o espírito do acusado, ainda que inocente, que lhe ofuscam a memória e fazem-no cair involuntariamente em inexatidões e contradições. Eis outros tantos motivos que enfraquecem o indício de criminalidade que se faz consistir na mentira (Malatesta, 1927, p. 269).
Um dos mecanismos cognitivos que contribui para a criação de falsas memórias é a imaginação. De acordo com Cremon (2023), a imaginação pode desempenhar um papel crucial na formação de memórias falsas, uma vez que ela nos permite visualizar eventos que nunca ocorreram de forma vívida e detalhada. Além disso, a autora destaca que a reconsolidação da memória também pode contribuir para essa criação, uma vez que cada vez que recordamos um evento, a memória original pode ser modificada e atualizada com informações novas.
No âmbito do processo penal, a criação de falsas memórias pode ter implicações significativas. Segundo Silveira (2022), a produção de falsas memórias pode levar a erros judiciais, como a condenação de pessoas inocentes. A autora argumenta que testemunhas oculares, por exemplo, estão sujeitas a criar memórias falsas, especialmente quando são influenciadas por técnicas de interrogatório sugestivas.
Além dos aspectos cognitivos, os fatores emocionais também desempenham um papel importante na criação de falsas memórias. Pereira (2021) destaca que emoções intensas, como medo e estresse, podem afetar a formação e a recuperação da memória. A autora ressalta ainda que as emoções podem influenciar a interpretação e a atribuição de significado aos eventos, podendo levar à criação de memórias falsas.
É importante salientar que a criação de falsas memórias não deve ser vista como um sinal de má-fé por parte do indivíduo. De acordo com França e Pinto (2021), o fenômeno das falsas memórias é um processo complexo e involuntário, que pode ocorrer até mesmo em pessoas com boa intenção. Portanto, é fundamental que o sistema jurídico esteja ciente dessas limitações da memória humana e seja cauteloso na avaliação de evidências baseadas em relatos de memórias.
Em suma, os mecanismos cognitivos e emocionais que contribuem para a criação de falsas memórias são objeto de estudo da psicologia criminal. Compreender esses mecanismos é essencial para o desenvolvimento de práticas mais éticas e eficientes no sistema de justiça, evitando a condenação injusta de inocentes e garantindo a aplicação correta da lei. É necessário, portanto, investir em pesquisas contínuas nessa área, a fim de aprimorar os conhecimentos sobre a mente humana e sua complexidade no contexto jurídico.
Avaliar a eficácia das técnicas de interrogatório atualmente usadas no sistema judiciário brasileiro no que diz respeito à prevenção de falsas confissões e criação de falsas memórias é um objeto de estudo relevante no campo da psicologia criminal. Diversas pesquisas têm sido desenvolvidas com o intuito de compreender os fatores psicológicos, sociais e institucionais que contribuem para a ocorrência desses fenômenos e também para a formulação de técnicas mais éticas e eficientes de interrogatório.
Uma das referências utilizadas, o livro “Prova Penal e Falsas Memórias”, de Cristina Di Gesu, aborda a importância de compreender as falsas memórias no contexto do processo penal. A autora destaca a necessidade de o sistema judiciário brasileiro considerar a falibilidade da memória humana, uma vez que a produção de falsas memórias pode impactar negativamente o processo penal. Portanto, a avaliação da eficácia das técnicas de interrogatório utilizadas torna-se fundamental para mitigar esse problema.
Em sua dissertação de mestrado, Gabriella Aveiro Cremon analisou as falsas memórias no âmbito do processo penal. A pesquisa demonstrou um aumento preocupante na criação de memórias falsas em testemunhas. Isso reforça a importância de investigar a eficácia das técnicas de interrogatório utilizadas no sistema judiciário brasileiro, visando a prevenção desse fenômeno e a garantia de um processo justo.
Isabela Peracio Silveira (2022), em seu artigo “A Falibilidade da Memória Humana e as Provas Testemunhais”, destaca a relação entre a falibilidade da memória humana e a produção de falsas memórias no processo penal. A autora argumenta que é necessário repensar as técnicas de interrogatório atualmente utilizadas, de forma a minimizar a influência de sugestões e estímulos que possam levar à criação de memórias fictícias.
A tese de doutorado de Rafaella Teixeira Pereira (2021) aborda as implicações do fenômeno das falsas memórias na falibilidade do reconhecimento no processo penal. A pesquisa ressalta a necessidade de aprimorar as técnicas de interrogatório e o treinamento dos profissionais de justiça, visando a prevenção de erros de reconhecimento e a proteção dos direitos dos acusados.
O artigo de Davi Filipe de Oliveira Braga França e Rafael Figueiredo Pinto, “A Prova Penal e a Implicação do Fenômeno das Falsas Memórias”, também contribui para a discussão. Os autores apontam a necessidade de se repensar as práticas de interrogatório utilizadas no sistema judicial brasileiro, a fim de evitar a obtenção de confissões falsas e garantir a imparcialidade e a justiça dos processos.
Diante dessas referências bibliográficas, pode-se concluir que a avaliação da eficácia das técnicas de interrogatório atualmente utilizadas no sistema judiciário brasileiro no que diz respeito à prevenção de falsas confissões e criação de falsas memórias se faz necessária. A psicologia criminal desempenha um papel fundamental nesse contexto, buscando compreender os mecanismos cognitivos e emocionais envolvidos e fornecendo subsídios para aprimorar as técnicas de interrogatório e a formação dos profissionais de justiça, contribuindo assim para a justiça e o avanço do conhecimento sobre a mente humana.
3 A TUTELA DO PROCESSO PENAL FRENTE À PRODUÇÃO DE CONFISSÕES LÍCITAS
Inicialmente, tem-se, na percepção de Kłopocka-Jasińska (2022), a constitucionalização do processo penal. De forma sintética, aquele conceito significa o compromisso de fazer com que o processo penal esteja em confluência com os ditames constitucionais, especialmente no que toca aos direitos fundamentais e às garantias processuais, as quais encontram fundamento último nos direitos.
Dessa forma, falar em constitucionalização do processo penal deve, necessariamente, grifar que a formalização da relação não pode ocorrer às margens de direitos mínimos e básicos para qualquer vida humanamente digna. Antes de se perseguir à verdade “real”, deve-se assegurar um processo justo, respeitoso e integralmente embasado nas premissas do Estado Democrático de Direito (Lopes Júnior, 2019).
Com base nessa conformação, a criação de falsas memórias a partir de eventuais traumas causados no interrogatório ou, até mesmo, em uma suposta confissão contaminam o enredo investigativo, o qual não pode prosperar em raízes fincadas na manipulação psicológica e/ou física do suspeito. Assim sendo, princípios constitucionais essencias como a legalidade e a presunção da inocência são flagrantemente olvidados.
É de bom tom ressaltar que o artigo 5º, III, da CRFB/1988 (Constituição da República Federativa do Brasil) assegura que pessoa alguma será submetida à tortura e à tratamento cruel ou degradante (Brasil, 1988). Dessa afirmação, surge o imperioso dever de proteção à integridade psíquica dos sujeitos.
Para Muniz (2022), a integridade psíquica consiste no dever de zelar para que o sujeito não seja submetido a qualquer condição que, ao machucar à sua dignidade, promove sofrimento tal que abale, profundamente, o psicológico. Assim como o corpo, a mente precisa funcionar saudavelmente e isso inclui a aplicação de todos os meios que busquem não provocar dor ao indivíduo, porém, se isso for inevitável, então que sejam escolhidas as formas menos agressivas. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal, em 2022, proferiu esta concepção sobre integridade psíquica:
4. Entre as espécies já reconhecidas dos direitos da personalidade, está o direito à integridade psíquica (dor) cuja violação pode ocorrer de modo isolado ou cumulado com outros direitos existenciais e/ou materiais. Os atributos psíquicos do ser humano estão relacionados aos sentimentos de cada indivíduo. São ilícitas as condutas que violam e afetam a integridade psíquica, que causam sentimentos negativos e desagradáveis, como tristeza, vergonha, constrangimento etc. 5. No debate sobre dano moral, é importante notar a autonomia do direito à integridade psíquica (dor). A compensação por dano moral pode ser dar unicamente por ofensa ao referido direito sem que isso signifique, necessariamente, adoção da corrente doutrinária que apenas reconhece o dano moral quando há afetação negativa do estado anímico de alguém (dor). Determinada conduta pode ofender, a um só tempo, mais de um direito da personalidade, com reflexos no valor indenizatório (compensatório).
(TJ-DF 07001238020228070012 1623575, Relator: LEONARDO ROSCOE BESSA, Data de Julgamento: 28/09/2022, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: 13/10/2022, grifou-se).
Em relação ao cuidado admitido à integridade psíquica, sob as escamas do Estado Democrático de Direito, tem-se, por essencial, o entendimento de que não é qualquer tipo de prova, tampouco qualquer forma de produzir prova que serão vistas como positivas e, consequentemente, serão aceitas pelo ordenamento jurídico pátrio.
Segundo Lima (2024), a prova, para o processo penal, é uma forma de mostrar que determinado fato aconteceu. Entretanto, essa forma pode, em alguns casos, ser lícita, mas, em outros, não. Quando não for, terá de ser afastada do processo para que não contamine atos processuais ou, até mesmo, provas e elementos de prova que sejam necessários para a resolução do impasse.
Lima (2024) explica que são provas lícitas aquelas criadas conforme as leis que regem ao ordenamento jurídico como um todo. Por outro lado, as provas ilícitas contrariam à forma ou à matéria, sendo possível, ainda, que apresentem contrariedade à forma e à matéria. Alguns doutrinadores explicam que as provas diabólicas são aquelas que, dificilmente, conseguem ser produzidas, haja vista o elevado nível de objeção que elas impõem.
Uma das justificativas para a proteção às provas lícitas dá-se em virtude não só da necessidade de preservação à ordem jurídica, mas, sim, ao embasamento dado à “teoria dos frutos da árvore envenenada”. Para ela, a prova ilícita é capaz de contagiar as provas seguintes e, assim, o que, a princípio, era lícito, torna-se ilícito (Lopes Júnior, 2019).
Dentre as mais eloquentes provas do processo penal, tem-se a confissão. De acordo com Lopes Júnior (2019), apesar de alguns a considerarem “a rainha das provas”, a confissão exige alguns requisitos e, para ter validade jurídica, não pode ser cometida mediante tortura ou qualquer outro procedimento que macule à sua licitude. O cuidado é para que uma prova originariamente lícita não se torne ilícita. Vale a pena expor os artigos 197 a 200 do CPP (Código de Processo Penal):
Art. 197. O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância.
Art. 198. O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.
Art. 199. A confissão, quando feita fora do interrogatório, será tomada por termo nos autos, observado o disposto no art. 195.
Art. 200. A confissão será divisível e retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das provas em conjunto (Brasil, 1941).
A declaração quanto à autoria de um crime, por meio da confissão (Lopes Júnior, 2019), consegue ser bastante eficaz, nas investigações criminais. No entanto, é assaz importante cuidar para que, caso o indivíduo opte por confessar algo, que essa decisão seja lúcida e bastante consciente. O Tribunal de Justiça do Ceará, em 2022, considerou isto, sobre o tema:
(…) A confissão do réu, na fase inquisitorial, constitui prova inafastável, indiferentemente da retratação em Juízo, principalmente quando não há provas de que foi realizada mediante expediente fraudulento, coação ou ameaça (…)”. 03 – Como se sabe, a tortura para se obter confissão resulta na ilicitude probatória, cujo evento contamina as demais prova dela resultante, porquanto são frutos de uma árvore envenenada, de modo que não se prestam ao embasamento do sustentado pelo órgão de acusação. (…) 8. Importante relembrar, ainda, a questão das provas ilícitas por derivação, que são aquelas provas que em si mesmas são lícitas, mas que foram captadas de forma ilícita. É a conhecida teoria dos “frutos da árvore envenenada”, segundo a qual o vício da planta se transmite a todos os seus frutos. Assim, verificando-se que somente foi possível encontrar determinada prova (drogas ilícitas), laudos periciais, depoimento de policiais militares, mediante uma possível abordagem mediante tortura, resulta inquestionável que as provas subsequentes somente vieram à tona em razão da ilicitude inicialmente praticada e, portanto, são igualmente inadmissíveis (…)
(TJ-CE – APR: 00518713420208060064 Caucaia, Relator: FRANCISCO DARIVAL BESERRA PRIMO, Data de Julgamento: 13/09/2022, 3ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 13/09/2022, grifou-se).
Consoante Souza (2022), o direito ao silêncio não pode ser interpretado como confissão, mas, sim, como exercício de uma prerrogativa que é garantida pelo processo penal. De acordo com o princípio de que pessoa alguma é obrigada a produzir provas contra si mesma, o silêncio não pode significar a admissão de uma culpa ou qualquer fato desabonador ao investigado.
Oliveira, Andrade e Piva (2023) aludem que não é possível ocorrer uma condenação apenas com base na confissão. Assim sendo, mesmo que a confissão seja uma prova de fôlego, ela precisa ser analisada sistematicamente, ou seja, não se pode desconsiderar a produção de outras provas e a análise de circunstâncias apresentadas pelo caso concreto.
Quanto aos tipos de confissão, este trabalho opta por esclarecer apenas a simples, qualificada, judicial e extrajudicial. Consoante Silva e Cota (2020), na simples, confessa-se, tão somente, a autoria do crime. No entanto, a qualificada, como o próprio nome sugere, tem um “plus”, e significa que, apesar de confessar ter praticado determinado crime, o indivíduo afirma, em sua defesa, algum fato impeditivo, modificativo ou extintivo da pena.
Dantas e Motta (2023) escrevem que a confissão judicial ocorre durante o processo, ou seja, já foi estabelecida uma relação processual penal e, em seu curso, a parte resolve confessar a autoria do delito. Quando se fala em confissão extrajudicial, fala-se na confissão que acontece sem a existência de um processo penal.
No entendimento de Daguer, Soares e Biagi (2022), tem-se, à luz da súmula 545 do STJ (Superior Tribunal de Justiça), que a confissão configura como uma atenuante da pena, ou seja, o sujeito receberá um benefício por ter optado confessar, porém, se essa não for a escolha, não merece prosperar que ele seja prejudicado.
A confissão, portanto, é um tipo de prova que tem agasalho jurídico e merece todo respaldo possível, desde que seja feita em conformidade com a Lei. Nesse sentido, o advento da Lei de Tortura e do Abuso de Autoridade significou a gênese de uma preocupação com a forma de confessar algo, tutelando a dignidade do indivíduo bem como os seus direitos fundamentais, evitando, assim, que prospere a arbitrariedade, abuso de direito e muitas outras formas de violência.
Por conta disso, faz-se mister, antes de encerrar este capítulo, expor alguns artigos da Lei de Tortura e do Abuso de Autoridade, para os fins de combate à violência policial. Inicialmente, tem-se a Lei de Tortura (nº 9.455/1997) como primeiro documento que merece visualização, especialmente o artigo 1º, o qual explica comportamentos considerados tortura:
Art. 1º Constitui crime de tortura:
I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;
b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;
c) em razão de discriminação racial ou religiosa;
II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo (Brasil, 1997, grifou-se).
Nota-se que a legislação não especifica os meios para realizar a tortura, apenas cuida de explicar as finalidades para as quais ela pode ser utilizada. No I, “a”, observa-se a expressão “confissão”, e, assim, nota-se que, mesmo sendo uma prova valorada pelo processo penal, a forma com a qual ela é “estimulada” pode fazê-la ser anulada.
Boa medida foi a criação da Lei nº 13.869/2019. Nela, houve uma maior preocupação em estabelecer mecanismos jurídicos de contenção aos abusos e arbitrariedades que possam fazer parte da atuação de alguns agentes da segurança pública. Dessa forma, faz-se necessário instituir políticas que aumentem a eficácia daquele diploma e que as pessoas (“sociedade”) tenham mais informação sobre o abuso de autoridade e as consequências disso, para que denúncias e responsabilizações civis e penais sejam amplificadas. O artigo 1º daquele diploma assim diz:
Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal (Brasil, 2019, grifou-se).
A moralização da administração pública, tal como preza o artigo 37, caput, da CRFB/1988, para ser alcançada, requer, dentre outras coisas, perseguir a consolidação de uma estrutura em harmonia com as premissas e bases do Estado Democrático de Direito, o qual não pode, por motivos claros, alinhavar-se com a confissão mediante tortura ou qualquer meio degradante ou cruel.
Posto isso, tem-se que a criminalização da tortura e a existência e efetividade da Lei de Abuso de Autoridade servem ao mister de corroborar com o direito fundamental social à segurança pública. Leal (2020) explica que esse último direito significa, em poucas palavras, a construção de um ambiente de respeito aos direitos fundamentais e repressão bem como prevenção à criminalidade e qualquer situação que coloque em xeque a pacificação coletiva.
Com fulcro no artigo 144 da CRFB/1988, a polícia compõe um dos órgãos responsável pela garantia à segurança pública (Brasil, 1988). Curiosamente, à luz da Lei nº 13.869/2019, o abuso de autoridade serve, inclusive, para tolher aos policiais quanto à prática da violência – arbitrária e abusiva – realizada contra sujeitos de direitos. Isso quer dizer que, os primeiros agentes legitimados a levar segurança ao povo são, contraditoriamente, indivíduos que vulnerabilizam à paz social, quando cometem abuso de autoridade.
Silva e Ceschin (2023) denotam que a existência das corregedorias de polícia militar serve ao imperioso papel de fiscalizar e aplicar, quando possível, algumas sanções, com o fito de corrigir comportamentos que destoam do que os policiais devem ter. Nesse desiderato, é oportuno salientar que as corregedorias cumprem a uma relevante função social.
Para Tartuce (2021), a responsabilidade civil pode ocorrer por meio do abuso do direito, ou seja, apesar de existir a prerrogativa legal de agir de determinada forma, o sujeito que ultrapassar parâmetros considerados como mero exercício saudável de um direito, e incorrer em arbitrariedade ou violência, poderá ser responsabilizado por isso, sem prejuízo de eventuais repercussões administrativas e penais.
Gomes e Gonçalves (2022) escrevem a respeito da abordagem com base em fundada suspeita. Para os autores, em situações específicas, os policiais podem “abordar” um indivíduo, no entanto, não podem se guiar por questões subjetivas, o preconceito, por exemplo. É necessário um lastro mínimo objetivo que fundamenta a desconfiança.
Nesses termos, a falta de objetividade na conduta de abordar um indivíduo demonstra a seletividade com a qual o direito penal age, então, há abuso de direito, como há, também, quando, por exemplo, um policial, para alcançar determinada resposta crucial para a elucidação de um crime, aplica técnicas de tortura a fim de conseguir uma confissão.
4 MANIPULAÇÃO & PROCESSO PENAL: DIFICULDADE E CONSEQUÊNCIAS DA VERDADE IRREAL CAUSADA PELAS FALSAS MEMÓRIAS
Em primeira instância, é considerável destacar que o interrogatório, para Lopes Júnior (2019), constitui uma fase importante, quando o assunto for a busca por esclarecimentos acerca de uma situação delituosa. Alguns artigos do CPP cuidam de explicar em que consiste essa etapa, é bem verdade que nem todos os dispositivos devem ser colocados, mas, ao menos, uma parte do artigo 185 merece leitura:
Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado.
§ 1o O interrogatório do réu preso será realizado, em sala própria, no estabelecimento em que estiver recolhido, desde que estejam garantidas a segurança do juiz, do membro do Ministério Público e dos auxiliares bem como a presença do defensor e a publicidade do ato (…)
§ 2o Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:
I – prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento (…) (Brasil, 1941).
Vieira e Dutra (2023) escrevem que algumas pessoas, pelas circunstâncias de suas vidas, estão mais propícias a criar falsas memórias e, assim, emitir um pronunciamento equivocado sobre os fatos. Desse modo, a investigação criminal, por meio do interrogatório, por exemplo, significaria uma pressão psicológica desnecessária e para além de um nível esperado para a situação.
Nesse sentido, o ideal é transformar o momento do interrogatório em algo que não proporcione traumas, pressões exacerbadas ou qualquer outra coisa que signifique mal estar ao interrogado, atingindo, substancialmente, aos seus direitos fundamentais e à dignidade humana que lhe é inerente.
A situação torna-se mais grave quando impõe a necessidade de crianças ou adolescentes serem ouvidos. De acordo com Madaleno (2018), aqueles são seres em processo de desenvolvimento, ou seja, estão em contato com o ambiente externo e formando suas impressões bem como constituindo convicções. Nesse diapasão, o procedimento de escuta e captação das emoções e sentimentos do menor precisam ser bem elaborados. Não à toa, em 2017, o advento da Lei 13.431 deu, ao tema, algum rigor:
Art. 7º Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade.
Art. 8º Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária.
Art. 9º A criança ou o adolescente será resguardado de qualquer contato, ainda que visual, com o suposto autor ou acusado, ou com outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento.
Art. 10. A escuta especializada e o depoimento especial serão realizados em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência (…) (Brasil, 2017, grifou-se).
Frison e Oliveira (2023), ao estudarem sobre o papel do psicólogo criminal, entendem que ele é importante para os fins de redução da criminalidade, a partir da avaliação psicológica do criminoso e da elaboração de algumas diretrizes que o permitem a reinserção social. No entanto, neste estudo, verifica-se que o psicólogo pode e deve ir além desse contexto: deve ser explorado para analisar a ocorrência de tortura e/ou qualquer outro tipo de violência que ameace à investigação e eventual futura ação penal.
A avaliação psicológica, de competência do profissional formado e devidamente habilitado para atuar em psicologia, é um instrumento que permite a análise e posteriores considerações a respeito do perfil do sujeito, identificando, inclusive, alguns elementos que possam significar atropelo à proposta ética e constitucionalizada do processo penal (Frison; Oliveira, 2023).
Nesse vértice, é protuberante a importância do psicólogo a partir da interdisciplinaridade que se trava entre direito e psicologia, sendo necessário verificar o viés preventivo e o repressivo da criminalidade, e, também, o cuidado com os aspectos psicológicos envolvidos, sendo figuras realçosas o investigado e as eventuais testemunhas assim como suas integridades (amplamente tuteladas e reconhecidas juridicamente).
Uma forma de abuso que, apesar de ser bastante atrelada à violência doméstica não deixa de ser possível em outros contextos, tais como um interrogatório ou depoimento pessoal do investigado, é o gaslighting. De acordo com Deus (2022), esse método consiste em fazer com que um sujeito faça outrem duvidar de sua própria sanidade mental e desconfiar de suas percepções acerca de determinada temática.
Assim, o manipulador exerce um domínio em relação à vítima, fazendo-a duvidar dos fatos e, até mesmo, dos próprios sentimentos a partir da criação de falsas memórias (Deus, 2022). Por envolver questões psicológicas imponentes, acredita-se que um psicólogo consiga identificar e trabalhar para a superação dos efeitos do gaslighting.
O método reid, bastante utilizado em interrogatórios, consiste, basicamente, na análise empírica do comportamento. Parte-se da ideia behavorista de que, ao mentir, pessoas ficam ansiosas, demoram para responder etc., e, assim, é possível, à luz daquele pensamento, extrair algumas informações importantes para a investigação de determinado caso (Melo et al, 2024).
No entanto, o método reid baseia-se na manipulação, já que a crença é no sentido de que o sujeito é culpado. Nesse diapasão, busca-se, inicialmente e com fôlego, confirmar essa ideia (Melo et al, 2024). Por conta disso, acredita-se que o referido método comporta inúmeras críticas, já que torna-se, facilmente, um vetor de manipulação e criação de falsas memórias.
Por essa lógica, é mister entender o interrogatório como um momento que requer cuidados jurídicos e psicológicos com todas as pessoas que participarem desse cenário, na qualidade de contribuintes para a resolução de uma problemática. Esse empenho, no entanto, deve ser contínuo: ajustado e reajustado sempre que se mostrar exigido para melhor ambientação do caso concreto.
A compreensão de que o indivíduo está sob pressão psicológica e, portanto, vulnerável à criação e reprodução de falsas memórias passa pela aplicação da dissonância cognitiva. Consoante Segundo e Melo (2021), essa teoria diz, de forma simplificada, que, ao deparar-se com algum desconforto, o ser humano estabelece alguns mecanismos para livrar-se do mal estar instalado. Dessa forma, por esse ensinamento, deve-se estudar o comportamento do sujeito para, posteriormente, analisar como ele reage quando está em contato com algo que não o seja positivo.
Se a lógica conduz à ideia de que o sujeito buscará, no desconforto, uma forma de alcançar paz e resiliência, nesse processo de transmutação de sentimentos nada obsta que falsas memórias sejam construídas apenas para possibilitarem uma falsa sensação de proteção. Assim, o sujeito pode entender que confessar algo, mesmo que nem tenha feito esse algo, seja um positivo caminho para a sua mente.
Vale ressaltar que, segundo Malatesta (1927), a verdade e a certeza não se coincidem, necessariamente. Isso é especialmente mais relevante quando, em virtude das falsas memórias, um sujeito acredita ter acontecido algo que, na verdade, é fruto de uma impressão (memória criada), sendo a verdade algo que difere dessa percepção.
Rezende, Queiroz e Sousa (2020) escrevem sobre o reconhecimento pessoal sequencial. Para os autores, essa forma de reconhecimento diferencia-se do simultâneo, pois busca analisar o indivíduo isoladamente, entendendo-o dentro das particularidades que o permeiam. Assim, o olhar é direcionado para os fatores que podem, eventualmente, comprometer à análise lúcida e consciente que fará total diferença para o desenrolar do processo penal.
Diante de todas essas explicações, Silveira (2022) aborda a importância da entrevista cognitiva, realizada por um psicólogo criminal, com o intuito de analisar e contextualizar fatores emocionais que podem significar uma predisposição para a realização de uma confissão não lúcida, ou, até mesmo, no contexto de pós confissão, verificar se ela ocorreu em meio a um cenário de fragilidade emocional que seja, portanto, um fator impeditivo de reconhecimento jurídico.
O modelo cross examination, conhecido como aquele no qual a parte realiza perguntas à testemunha, deve ser bem observado, no processo penal, a fim de que essas perguntas não sejam geradoras de coação e, por conseguinte, criação de falsas memórias. Assim, cabe ao juiz avaliar a natureza dos questionamentos e, portanto, decidir quanto à pertinência deles (Martins; Boldori, 2024).
Sobre o processo de criação e alimentação de falsas memórias, existem algumas teorias que buscam explicá-las e, assim, levam à compreensão mínima do funcionamento da mente diante de algumas situações ímpares. Para a teoria contrutivista, a memória é, na verdade, algo construído, ao longo do tempo, tendo como norte não as experiências vivenciadas, mas, sobretudo, a interpretação que se faz acerca dos eventos. Nesse desiderato, como produto de uma interpretação, advoga-se que, para essa teoria, o risco de falsas memórias é muito maior (Sotto_Maior; Felipe, 2019).
Por outro lado, a teoria do monitoramento da fonte aduz que, apesar da informação ser acessível, existem formas de acessá-la equivocadamente, ou seja, tem-se, do fato e da informação, um desdobramento errado, que é fruto da falta de comunicação entre o sujeito e a fonte na qual a informação está alojada (Sotto_Maior; Felipe, 2019).
Pela teoria do traço difuso, a memória decompõe-se em duas possibilidades: uma mais próxima, e outra mais distante. Nada obsta que, em algum momento, essas memórias possam se confundir e, assim, um sujeito pensar algo distante como se próximo fosse (Kalb; Souza, 2021).
Com base nessas exposições, as falsas memórias não são fruto de um acaso, mas, sim, possibilidades criadas pela mente humana e que, em larga medida, podem impactar no processo penal, seja condenando ou absolvendo. Essa temática desafia a complementaridade entre psicologia e direito, e não pode ser ignorada, haja vista o escopo de consagrar o processo penal como justo, equilibrado e constitucionalizado.
5 CONCLUSÃO
Sob a justificativa de um Estado Democrático de Direito, o processo penal necessita ser constitucionalizado. Isso significa dizer que a perseguição à verdade real não deve ser vista à todo custa e à qualquer forma: faz-se obrigatória a existência de elementos mínimos que garantam a lisura do procedimento de investigação e da futura ação penal.
A preocupação com a integridade psíquica, além de todos os direitos fundamentais e dignidade humana, faz com que a ciência jurídica, no que diz respeito ao processo penal, necessite ser encarada como apenas uma face da história, e, assim, a questão da interdisciplinaridade precisa ser levantada.
A interdisciplinaridade, que foi abordada nesta pesquisa, sugeriu que entre direito e psicologia deve ocorrer um casamento, não divórcio. Em virtude disso, o diálogo proposto pelo casamento faz com que sejam estudadas formas de vencer às limitações impostas pela justiça criminal e fazer com que o direito se preocupe com os aspectos psicológicos de vários participantes, tais como o interrogado e as testemunhas.
Foi visto que o interrogatório é um momento no qual a autoridade competente busca respostas para uma determinada situação delituosa. Trata-se de um contexto que deve ser encarado com seriedade e responsabilidade, então, não merecem prosperar comportamentos que, ao contrário disso, fazem com que os indivíduos sejam violentados, física ou mentalmente ou os dois.
Ato contínuo, a pesquisa trouxe a confissão como uma das mais relevantes provas no processo penal, o que não significa que deva ser analisada de forma absoluta, mas, sim, sistematicamente, ou seja, em cotejo com outras provas. Além disso, é necessário cuidar para que ela não tenha sido realizada, sob tortura, durante o investigatório ou em qualquer outro ato extrajudicial ou judicial.
Em relação aos comportamentos pautados na tortura, arbitrariedade ou qualquer outro tipo de violência, foi estudado que isso pode causar a formação de falsas memórias. Essas falsas memórias evocam a imprescindibilidade de um psicólogo participar para prevenir ou diagnosticar problemas psicológicos que tenham sido capazes de desembocar na falsa confissão.
Esse cenário é bastante perigoso, haja vista que pode levar inocentes à culpabilidade e inocentar culpados, sendo imperioso que qualquer confissão ocorra lúcida e conscientemente. Se uma prova é considerada ilícita, há um relevante risco de que as provas derivadas dela sejam ilícitas também, e o processo penal ser contaminado.
O advento, em 2019, da Lei do Abuso de Autoridade significou mais uma forma de lutar pela produção de provas lícitas e investigações legais, zelando para a não ocorrência de violências e opressões a indivíduos suspeitos ou investigados da prática de algum crime. É bem verdade que a Lei pode alcançar, ainda, um nível de eficácia melhor, mas, a sua existência já configura um relevante avanço social e jurídico.
Diante dessas explicações, a pesquisa colocou, como essencial, dedicar cuidado com todas as etapas relativas à investigação e ao processo, desafiando, inclusive, a participação da psicologia. A ideia abraçada e que deve ser reforçada é que o direito e a psicologia se entrelaçam em muitas matérias, sendo essa uma delas.
Em resposta à pergunta que foi colocada na introdução, a resposta é que o interrogatório realizado sob as premissas da deslealdade, tortura, violência ou qualquer outra arbitrariedade é potencialmente capaz de provocar inúmeros danos físicos, mas, principalmente, psicológicos, por conta de colapsos provocados por falsas memórias. Por conta disso, o psicólogo atua preventiva e repressivamente, dentro da sua área de competência.
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[1] Discente do Curso de Direito, pela Faculdade Carajás. Email: yanapardinho@gmail.com.
[2] Discente do Curso de Direito, pela Faculdade Carajás. Email.
[3] Orientadora do Curso de Direito, pela Faculdade Carajás. Email.