REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7068958
Autor:
Carlúcio Germano da Silva1
RESUMO
Ainda hoje se discute a respeito da natureza jurídica da execução da pena. De um lado, alguns postulam ser ela uma atividade meramente administrativa, porquanto estaria a atividade carcerária sob a gestão do Poder Executivo, braço administrador do Estado. Por outro lado, parte considerável da doutrina e até mesmo alguns tribunais, na forma como decidem, apontam para uma essência judicial da execução da pena. Essa discussão, para além de acadêmica ou meramente terminológica, guarda implicações importantes especialmente nos direitos humanos do apenado. À vista disso, neste artigo, procura-se fazer uma breve reflexão a respeito da natureza jurídica da execução penal à luz do marco jurídico da Lei nº 7.210/84 em cotejo com as balizas da Constituição Federal de 1988, apontando as consequências para cada posição que se entenda elegível. O método é essencialmente o explicativo, com apoio essencial na revisão de literatura.
Palavras-chave: Execução Penal. Natureza Jurídica. Jurisdicionalização.
ABSTRACT
Even today, the legal nature of the execution of the sentence is discussed. On the one hand, some postulate that it is a merely administrative activity, since the prison activity would be under the management of the Executive Power, the administrative arm of the State. On the other hand, a considerable part of the doctrine and even some courts, in the way they decide, point to a judicial essence of the execution of the sentence. This discussion, in addition to being academic or merely terminological, has important implications especially for the human rights of the convict. In view of this, in this article, we seek to make a brief reflection on the legal nature of criminal enforcement in light of the legal framework of Law No. deemed eligible. The method is essentially explanatory, with essential support in the literature review.
Keywords: Penal Execution. Legal Nature. Jurisdictionalization.
1. INTRODUÇÃO
Historicamente o processo de imposição das penas é marcado por interesses não declarados, mas que efetivamente motivam os tipos e a intensidade das sanções penais. Exemplo disso é o próprio surgimento da pena privativa de liberdade e a maneira como era executada, de modo a justificar as condições de trabalho e a miséria do povo “livre” com a pior condição possível (less eligibility) (GOMES, 2011).
Para além das funções declaradas da pena, como a ressocialização e retribuição, o cumprimento das sanções penais estabelece uma verdadeira mudança na vida do apenado, que passa a ser “homem prisionado” (MARCÃO, 2011), sujeito a uma cultura penitenciária que, por fina força, acaba por transformá-lo.
Nesse aspecto, pode-se perceber que o cárcere é, por natureza, um locus de violação de direitos, de modo que cada ação estatal no âmbito da execução penal deve ser fundamentada e sujeita ao controle jurisdicional, posto que em jogo o direito fundamental da liberdade de locomoção.
A partir desse cenário, mostra-se importantíssima a compreensão da natureza jurídica da execução penal, posto que disso depende um maior ou menor controle dos atos praticados em relação ao apenado, desde o seu recebimento, tratamento, alimentação, sanções, até a sua liberação definitiva.
É à luz desse contexto que se empreende esta singela análise conforme o marco jurídico da Lei nº 7.210/84 em cotejo com as balizas da Constituição Federal de 1988, com destaque para as consequências de cada posição que se entenda elegível para definir a natureza jurídica da execução penal.
2. A LEI DE EXECUÇÃO PENAL E A SINALIZAÇÃO DE SUA NATUREZA JURÍDICA: NOTAS DA EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS
No contexto jurídico de criação da Lei de Execução Penal (LEP), era notória a divergência quanto ao modelo a ser seguido na execução da pena, se uma forma administrativa se um campo de atuação jurisdicional.
A própria exposição de motivos da LEP coloca a questão de forma textual:
89. Diante das dúvidas sobre a natureza jurídica da execução e do conseqüente hiato de legalidade nesse terreno, o controle jurisdicional, que deveria ser freqüente, tem-se manifestado timidamente para não ferir a suposta “autonomia” administrativa do processo executivo. 90. Essa compreensão sobre o caráter administrativo da execução tem sua sede jurídica na doutrina política de Montesquieu sobre a separação dos poderes. Discorrendo sobre a “individualização administrativa”, Montesquieu sustentou que a lei deve conceder bastante elasticidade para o desempenho da administração penitenciária, “porque ela individualiza a aplicação da pena às exigências educacionais e morais de cada um” (“L’ individualisation da la peine”, Paris, 1927, págs. 267/268) – (BRASIL, 1984).
Nesse aspecto, o legislador deixou clara a intenção de superar essa dicotomia e inaugurar uma sede própria na estrutura judiciária para julgar os conflitos jurídicos ocorridos no âmbito da execução penal, sugerindo o fortalecimento do chamado “direito penitenciário”, ao dizer que: “91. O rigor metodológico dessa divisão de poderes tem sido, ao longo dos séculos, uma das causas marcantes do enfraquecimento do direito penitenciário como disciplina abrangente de todo o processo de execução” (BRASIL, 1984).
Com a LEP, nacionalizava-se e normatizava-se a figura do juiz das execuções penais, que era uma realidade à época de poucos lugares no Brasil.
3. A DICOTOMIA ADMINISTRAÇÃO PENITENCIÁRIA E JUÍZO DA EXECUÇÃO PENAL: PODERES DIVIDIDOS
Inobstante o esforço declarado do legislador em promover a jurisdicionalização da execução penal, no texto da própria LEP subsistem inúmeras hipóteses de poder decisório concentrado nas mãos da direção do estabelecimento.
Uma das mais importantes seria a aplicação das sanções previstas no art. 53, I ao IV, da LEP pelo próprio diretor do estabelecimento. No caso, são medidas que impõem sérias consequências ao apenado, a começar pelo status do mal comportamento pela prática da falta grave, por exemplo, que pode implicar, inclusive, na perda de dias remidos e, portanto, em mais tempo de privação da liberdade.
Outra competência decisória importantíssima que está sob o critério do diretor do estabelecimento é a autorização de saúde para tratamento médico, muito comum, a propósito, pela própria condição insalubre do cárcere. Nesse sentido, no limite, é o diretor do estabelecimento quem decide, na urgência, quem é socorrido ou não aos cuidados médicos.
Nesses casos, embora seja possível levar a questão ao crivo do juiz da execução penal, até mesmo em razão da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF/88), a depender do caso, o prejuízo já está concretizado, restando ao juiz tomar uma providência meramente reparadora ou que afaste a ilegalidade.
Resta, portanto, claro, que não há, pelo menos até o momento, uma coerência entre o conteúdo da LEP em si e o quanto declarado na exposição dos motivos dessa lei, mantendo-se uma divisão do campo decisório entre o braço administrador do Estado e a jurisdição especializada da execução penal.
4. ADMINISTRAÇÃO OU JURISDICIONALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO DA PENA: REFLEXÕES QUANTO ÀS SUAS CONSEQUÊNCIAS
Os que postulam um caráter administrativo para a função executória da pena apoiam-se, como antedito, na separação dos poderes, a sugerir uma divisão estrutural entre o jus puniendi em suas fases cognitiva e executória.
A hipótese encontra obstáculo na própria Constituição Federal de 1988, a qual dispõe, em seu art. 5º, LIV, que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Com essa previsão, simples, mas densa, o constituinte colocou a liberdade num patamar inviolável e sujeito ao escrutínio mais amplo e real do devido processo legal, a afastar a perspectiva administrativista.
Fala-se em afastar a perspectiva administrativista porque ela é per si incompatível com os standards exigidos para a segregação e a manutenção de algum cidadão no cárcere, por exemplo (sem falar nas demais espécies de sanção penal) (ROIG, 2020).
Nesse aspecto, não é plausível imaginar a aplicação da supremacia do interesse público sobre o privado, por exemplo, no âmbito da execução penal ou, ainda, a hipótese das relações especiais de sujeição para justificar limitações indevidas na esfera da vida privada do preso, v.g., quando há a leitura de sua correspondência de forma indiscriminada ou até mesmo a revista íntima ou indiscriminada de seus visitantes.
À vista disso, é que o paradigma mais próximo à constitucionalização do direito (BARROSO, 2005) para definição do campo de atuação da execução penal é o da jurisdicionalização, conforme proposto pelo legislador desde a sua criação enquanto norte normativo.
Com a jurisdicionalização da execução penal, tem-se a identificação do cumprimento das penas com um processo judicial que é, com a incidência dos princípios constitucionais e infraconstitucionais que regem o devido processo legal substancial.
É aplicar o contraditório, a ampla defesa, o nemo tenetur se detegere em suas formas naturais no processo executivo da sanção penal, de modo a garantir que, por exemplo, na imposição de uma punição por falta grave, não se devotem ao preso as mesmas garantias que se lhe dedicaram na fase cognitiva. Exemplo disso é a recente punição em razão da recusa de fornecer material genético (DNA) prevista no art. 50, VIII, da Lei nº 7.210/84 (CACICEDO, 2022).
À vista disso, resta incólume que a adoção de uma sistemática jurisdicional da execução da pena, que leve as questões punitivas ao crivo do juiz natural e que observe a principiologia própria do processo penal garantista é a que melhor se relaciona com os objetivos originários do legislador da LEP bem como do constituinte de 1988.
5. CONCLUSÃO
Definidas as premissas normativas que dão corpo ao modelo da execução penal no ordenamento jurídico brasileiro, não resta dúvida de que foi adotada realmente a jurisdicionalização da execução penal, como uma perspectiva garantista dos direitos do apenado.
Além disso, também é possível entender, conforme os recortes doutrinários apresentados, que a perspectiva administrativista, no âmbito da execução das penas, funciona como elemento impulsionador das já massificadas violações no processo de cumprimento das sanções penais, colocando o condenado como uma mera peça no jogo decisório da administração penitenciária, ainda mais se adotada uma perspectiva de relação de sujeição especial.
Por tudo isso, é inegável que o fiel da balança se inclina rumo a um modelo de redução dos danos, de superação da doutrina do hands off, tornando o juiz da execução o árbitro natural da pretensão executória estatal versus os direitos e garantias individuais e coletivas dos apenados, especialmente dos que cumprem pena privativa de liberdade, o que efetivamente fica mais ao alcance quando submetida a execução da pena à jurisdicionalização.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 30 de julho de 2022.
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Disponível em <https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618>. Acesso em 30 de julho de 2022.
BRASIL. Lei nº 7.210, de 1984. Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em 30 de julho de 2022.
CACICEDO, Patrik Lemos. ROEHRIG, José Flávio Ferrari. Falta decorrente da recusa ao perfilamento genético: falhas estruturais, legais e constitucionais. Direitos Fundamentais e as Ciências Criminais. Vol. II, Editora Thoth, Londrina, 2022.
GOMES, Luiz Flávio. Disponível em <https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121924634/a-menor-elegibilidade-less-eligibility-da-prisao>. Acesso em 30 de julho de 2022.
MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal – 10ª Ed. Editora Saraiva, 2011.
ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. Editora Revista dos Tribunais, 5ª Edição, São Paulo.
1 Mestre em Administração Pública (UFERSA – PROFIAP).
E-mail: carluciogermano@hotmail.com