A NARRATIVA DO ESPAÇO: O IMPACTO DO OLHAR ARQUITETÔNICO NO CINEMA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10162493


Laís Silva Novais1
Orientador: Rafael Bittencourt2
Coorientador: Carlos Henrique Barreto3


RESUMO

O presente estudo faz uma articulação entre arquitetura e cinema mostrando que, além de terem ligação, são complementares. A cenografia é extremamente importante para transmitir a sensação na narrativa, e a arquitetura é fundamental para a criação dos ambientes, tornando possível unificar o estudo entre as duas áreas. Dessa forma, a referida pesquisa objetiva analisar como a arquitetura teve impacto diretamente no cinema, estabelecendo relação entre ela e a fotografia, bem como mostrar o olhar do arquiteto na produção cinematográfica. No tocante à revisão bibliográfica sistemática, foi possível constatar, a partir dos estudos de Cristian Metz (1977), Fábio Allon dos Santos (2005), Dougal Shaw (2015), Daniel Mangabeira da Vinha (2002) e Ismail Xavier (2017) que o cinema influenciou diversas áreas da sociedade. Nesse aspecto, é importante que o arquiteto veja o espaço através das lentes, entendendo que a cinematografia é mais uma opção que permeia o campo de pesquisa e atuação da arquitetura. Quanto à coleta documental, comprovou-se, através da análise do filme O Grande Hotel Budapeste (2014), do roteirista e diretor Wes Anderson, que a arquitetura, aliada à cenografia, é a principal protagonista, pois ver o filme através do cenário, é perceber o quanto a imagem proposta é importante para a história narrada, com uma roteirização que respeite a direção fotográfica, a composição, a proporção e a iluminação. Portanto, é imprescindível a presença e atuação de um arquiteto em um ambiente cenográfico, visto que o seu olhar na cenografia é valioso por sua capacidade de controlar as sensações humanas e de criar ambientes cênicos de forma livre.

Palavras-chave: Cenografia. Arquitetura. Cinema.

ABSTRACT            

This study links architecture and cinema, showing that, in addition to being linked, they are complementary. The scenography is extremely important to convey the sensation in the narrative, and the architecture is fundamental to the creation of the environments, making it possible to unify the study between the two areas. Thus, this research aims to analyze how architecture had a direct impact on cinema, establishing a relationship between it and photography, as well as showing the architect’s perspective on film production. Regarding the systematic bibliographic review, it was possible to verify, based on the studies of Cristian Metz (1977), Fábio Allon dos Santos (2005), Dougal Shaw (2015), Daniel Mangabeira da Vinha (2002) and Ismail Xavier (2017) that Cinema influenced different areas of society. In this aspect, it is important for the architect to see the space through lenses, understanding that cinematography is another option that permeates the field of architectural research and performance. As for the documentary collection, it was proven, through the analysis of the film The Grand Budapest Hotel (2014), by screenwriter and director Wes Anderson, that architecture, combined with scenography, is the main protagonist, as seeing the film through the setting, is to understand how important the proposed image is to the story being told, with a script that respects the photographic direction, composition, proportion and lighting. Therefore, the presence and performance of an architect in a scenographic environment is essential, as their look at scenography is valuable for their ability to control human sensations and create free-form scenic environments.

Keywords: Scenography. Architecture. Cinema.

1. INTRODUÇÃO

Para dar luz ao tema aqui proposto, é preciso destacar a importância e as particularidades entre a arte e a arquitetura, bem como analisar as suas possíveis similaridades: enquanto a arte parte do pressuposto da liberdade e da expressão, a arquitetura busca a funcionalidade acima da estética, ou seja, todo detalhe estético inserido precisa de um propósito funcional, mesmo que, às vezes, possa ser utilizado apenas visando o primeiro ponto.

É possível perceber o quanto o arquiteto tem o potencial de influenciar as sensações humanas através de um espaço projetado. Esse pensamento está sendo recorrente no âmbito acadêmico, de uma maneira em que os professores e arquitetos contemporâneos começaram a compreender a corrente de pensamento da fenomenologia na arquitetura[1], a qual aborda sobre a relação entre o espaço-construído e a experiência ali vividas. Nesse sentido, a vivência que o usuário tem com a iluminação, a escala, a proporção, as coberturas e todos os seus outros conceitos influenciam na sua percepção, reverberando, também, na experiência pessoal.

O impacto das artes na sociedade é profundo e duradouro. As artes permitem explorar a condição humana, dando uma linguagem para expressar as emoções e as ideias, além de ajudar a entender melhor o mundo ao redor. Além disso, também têm um papel importante na promoção da mudança social e política, na preservação da cultura e do patrimônio local, assim como na melhoria da qualidade de vida das pessoas.                           

No âmbito da cenografia, os arquitetos têm mais liberdade de expressão do que na construção civil, pois há menor (ou nulo) foco em conforto ambiental, normalização de medidas para seguir um padrão ou até mesmo acessibilidade para portadores de necessidades. Dessa maneira, como o seu estudo pode ser unificado com o cinema?

A partir dessa problemática, o presente trabalho objetiva analisar como a arquitetura teve impacto diretamente no cinema, estabelecendo relação entre a arquitetura e a fotografia, bem como mostrar o olhar do arquiteto na produção cinematográfica.

Dessa forma, a cenografia engloba vários aspectos da construção da cena no teatro e no cinema, como marcações, coreografias, figurinos, acessórios e outros. Além disso, existe como opção a projeção de locações em espetáculos, o que intensifica ainda mais a veracidade da história. Entretanto, é possível citar sobre a importância da ambientação a ser contemplada, apreciada e absorvida. Segundo Vinha (2002), o cenário não é um pano de fundo, mas

O lugar desempenha sua função habitual e integra dramaticamente essa função na ação, ou seja, levando-se em conta o lugar e sua função, não podemos de forma alguma caracterizar este como um “pano de fundo”, que coloco aqui de forma irônica, como um cenário passivo e, cabe dizer, apenas decorativo. A partir daí se firma, em alguns filmes é claro, a arquitetura como função e lugar de um filme e não apenas como pano de fundo. (VINHA, 2002)

Quando se trata de explorar a relação entre arquitetura e cinema, é fundamental mencionar o filme O Grande Hotel Budapeste (2014), do renomado diretor Wes Anderson. Nessa produção artística, a narrativa se desenrola em um ambiente cenográfico meticulosamente planejado, no qual toda a narrativa mantém um controle absoluto sobre a experiência visual dos espectadores, com uma atenção especial à simetria, proporção e iluminação.

A ideia de pesquisar sobre o tema surgiu do interesse e necessidade de aprofundar acerca da importância do olhar do arquiteto na cenografia, uma vez que, o cinema tem o poder de despertar a sensibilidade humana, bem como trazer a informação e conhecimento por meio da narrativa.

Durante a exploração bibliográfica sistemática, foi possível constatar que o cinema influenciou não apenas o entretenimento, mas também outras áreas da sociedade, como a publicidade, a propaganda e a educação. Nesse aspecto, é importante que o arquiteto veja o espaço através das lentes, entendendo que a cinematografia é mais uma opção que permeia o campo de pesquisa e atuação da arquitetura.

Vale dizer que a referida pesquisa poderá servir como referencial teórico para futuras investigações, no campo arquitetônico e cinematográfico, contribuindo, assim, para melhor atuação do arquiteto na cinematografia.

2. METODOLOGIA

Partindo da ideia de que o método é “…o conjunto das atividades sistemáticas e racionais que, com maior segurança e economia, permite alcançar o objetivo – conhecimentos válidos e verdadeiros – traçando o caminho a ser seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do cientista” (LAKATOS; MARCONI, 1991, p. 40 e 41), e no intuito de cumprir o propósito central desta pesquisa de analisar como a arquitetura teve impacto diretamente no cinema, estabelecendo relação entre a arquitetura e a fotografia, bem como mostrar o olhar do arquiteto na produção cinematográfica. Serão adotados como procedimentos metodológicos a revisão bibliográfica sistemática e coleta documental.

A revisão bibliográfica sistemática desempenhará um papel fundamental no sentido de não apenas contribuir para a construção do referencial teórico que sustentará esta pesquisa, mas também de possibilitar a recuperação de estudos prévios relacionados, destacando aspectos inéditos na presente investigação. Além disso, esta revisão permitirá reconstruir a trajetória histórica que liga a história do cinema a arquitetura cenográfica. O resgate histórico mencionado também poderá ser realizado através de outro procedimento metodológico: a coleta documental. Fotografias e outras fontes documentais permitirão a reconstrução dessa história a partir de múltiplos pontos de vista. Adicionalmente, a coleta documental possibilitará a análise das características do filme O Grande Hotel Budapeste (2014), do roteirista e diretor Wes Anderson, destacando a direção fotográfica, composição e proporção. Isso permitirá a identificação de semelhanças e diferenças entre o cinema e arquitetura.

3. REFERENCIAL TEÓRICO

A relação entre cinema e arte é evidente na cenografia, onde a arquitetura desempenha um papel fundamental. No filme O Grande Hotel Budapeste (2014), dirigido por Wes Anderson, a cenografia e a arquitetura se combinam de forma criativa para criar um mundo cinematográfico único. Cada cenário é meticulosamente projetado, escolhendo estilos e cores que aprimoram a experiência visual e a narrativa. A arquitetura cenográfica neste filme ilustra como a arquitetura pode ser uma parte vital da narrativa cinematográfica, enriquecendo-a com sua beleza e criatividade.

3.1. HISTÓRIA DO CINEMA

Durante a Revolução Industrial, no século XIX, ocorreram avanços tecnológicos significativos, impulsionando na criação da indústria cultural do cinema. A partir de 1895, os filmes começaram a ser produzidos em película, utilizando projetos mecânicos e câmeras, momento marcado pelo cinema mudo em preto e branco, tal como maior referência do cinema durante a era do cinema mudo, nas décadas de 1910 e 1920, quando as imagens eram passadas em movimento gerando uma narrativa. Nesse contexto,

Abre-se o leque de conquistas, tanto no que se refere ao tipo de fenômeno focalizado pela câmera quanto no tocante aos próprios procedimentos de filmagem. Estamos no período de consolidação dos vários usos da técnica cinematográfica, representativos de diferentes modos de dar um sentido e função social à nova prática e ao novo objeto, e correspondentes a diferentes a diferentes estímulos na orientação de sua evolução técnica. (XAVIER, 2017, p. 35)

O cinema mudo teve um impacto profundo na sociedade, pois transcendeu barreiras linguísticas, tornando o entretenimento acessível. Além disso, estimulou a expressão artística, deu origem a ícones culturais, impulsionou avanços técnicos, serviu como meio de comunicação global e a sua influência continua a moldar o cinema contemporâneo.  Nesse sentido, o cineasta Martin Scorsese (1995), em reportagem com a Fast Company, aponta

O Cinema Mudo foi a semente que deu origem a toda a árvore do cinema. Foi a era em que os cineastas aprenderam a contar histórias com imagens, a explorar a linguagem cinematográfica e a capturar a essência da emoção humana sem depender das palavras. (SCORSESE, 1995)  

Ainda, o cinema mudo foi a semente que germinou a árvore do cinema, estabelecendo a base para a narrativa visual e a linguagem cinematográfica. Essa Era pioneira definiu técnicas fundamentais – a montagem, a expressão facial e a música – que moldaram o Cinema Moderno e sua capacidade de contar histórias de maneira visual e universal. De acordo com Scorsese (1995), com o surgimento do cinema, foi introduzida uma nova forma de comunicação visual em larga escala, possibilitando a narrativa de história e mensagens por meio de imagens em movimento, capturando a essência da emoção humana, sendo considerada por FPS (Frame por segundo) na linguagem de audiovisual. Esse marco influenciou não apenas o entretenimento, mas também outras áreas da sociedade, como a publicidade, a propaganda e a educação. Além disso, o cinema conseguiu proporcionar experiências compartilhadas acessíveis a diferentes camadas da sociedade, o que possibilitou ajudar a estabelecer uma linguagem cultural cinematográfica, transformando-o em uma forma popular de lazer.                                 

O cinema e a fotografia estão intimamente relacionados, uma vez que ambos se baseiam na captura de imagens estáticas ou em movimento. A fotografia, desde o seu início, foi influenciada pelos princípios, estilos e técnicas das artes plásticas. Inicialmente, os fotógrafos buscavam referenciar a estética das pinturas e esculturas através de poses, iluminação e composição. De modo contrário, a fotografia também impactou diretamente nas artes plásticas, permitindo que os artistas pudessem experimentar técnicas, como colagem e fotomontagem.

Com o avanço tecnológico, no entanto, houve mudanças radicais na estética audiovisual e na produção cinematográfica. Os vídeos digitais permitiram, ao contrário do cinema inicial, uma exibição de forma rápida, eficiente e flexível. A transição do analógico para o digital trouxe inúmeras vantagens para a indústria do cinema e do audiovisual. À exemplo, uma das vantagens da tecnologia digital é a capacidade de processamento rápido de dados e imagens. Isso possibilitou a produção de materiais mais rápidos e com uma qualidade visual superior. Um equipamento que teve um avanço significativo com a transição para a tecnologia digital é a câmera de vídeo digital. Com a digitalização, as câmeras de vídeo se tornaram mais compactas, eficientes em termos de armazenamento e capazes de produzir vídeos de alta qualidade em comparação com as câmeras de vídeo analógicas.

3.2. A ARQUITETURA E O CINEMA

Durante as primeiras décadas do cinema no século XIX, os filmes eram curtos e, muitas vezes, consistiam em cenas do cotidiano, documentários ou pequenas histórias narrativas. Entretanto, com o avanço das câmeras de vídeo e a descoberta da sincronização do som com a imagem, os filmes sonoros começaram a surgir na década de 1920, revolucionando a experiência cinematográfica. A partir desse momento, os diálogos, as músicas e os efeitos sonoros puderam ser adicionados à narrativa visual, proporcionando uma nova dimensão emocional e realista ao cinema.

A importância dos arquitetos visualizarem espaços através de vídeos transcende as fronteiras da mera apreciação visual. Essa prática oferece uma experiência imersiva, permitindo aos arquitetos explorarem um ambiente de maneira mais envolvente. Além disso, o vídeo auxilia na compreensão detalhada da escala e proporção de um espaço, ao mesmo tempo em que captura a interação complexa de luz e sombra, desvendando segredos que poderiam passar despercebidos em imagens estáticas. O movimento no vídeo também torna possível a análise precisa de itinerários, circulação e acessibilidade, contribuindo para a eficiência do projeto. Também, o vídeo se destaca como uma ferramenta eficaz de comunicação, tornando mais fácil a transmissão de ideias de design a clientes e partes interessadas. Juntamente com a capacidade de testar conceitos, registrar mudanças ao longo do tempo e apresentar projetos em 3D de forma envolvente, a utilização de vídeos na arquitetura se torna uma peça-chave no processo de criação de espaços funcionais e esteticamente atraentes. Em documentário, a arquiteta cenográfica Angelika Vasileiou (2015) aborda que é muito importante ver o espaço através das lentes, porque há muitas possibilidades para arquitetos trabalharem no cinema e principalmente por terem as habilidades necessárias.

O conceito audiovisual se refere combinação visual e sonora em uma produção, como filmes, vídeos, apresentações e outros meios de comunicação. É possível perceber que a era em que a produção audiovisual está mais acessível do que nunca. A popularização de dispositivos móveis com câmeras de alta qualidade e o advento das redes sociais e plataformas de compartilhamento de vídeos, permitiram que qualquer pessoa pudesse criar, compartilhar e consumir conteúdos audiovisuais de forma rápida e instantânea. De acordo com o relatório MPA (Motion Pictures Associaton), 2020, foi mencionado que houve um aumento de 26% na assinatura das plataformas durante o primeiro ano da pandemia, o que significa 232 milhões de novos usuários.

            Essa evolução resultou em uma explosão de vídeos rápidos e conteúdos nas mídias sociais, em que a narrativa é totalmente compacta, direta e voltada para o consumo imediato. Em meados do século XXI, o audiovisual e o cinema passou a serem parte integrante da vida cotidiana, que consegue influenciar a forma de entretenimento, informação e expressão. Diante da explosão de evolução que o cinema e o audiovisual vivenciaram no século XXI, com a ênfase na utilização imediata das imagens em movimento, esse mesmo impulso inovador e tecnológico encontrou seu caminho na área da arquitetura.

A arquitetura é uma forma de expressão criativa que combina elementos estéticos, funcionais, técnicos e culturais para criar espaços significativos. Ela desempenha um papel fundamental na vida, no trabalho e na relação com o ambiente construído. A integração da arquitetura e audiovisual proporciona uma experiência sensorial completa e envolvente, comunicando ideias, visualizando espaços, imergindo o espectador, apresentando atmosferas únicas e documentando projetos.

3.3. ARQUITETURA CENOGRÁFICA

Inicialmente, pode-se notar que a arquitetura e o cinema têm conceitos que, aparentemente não teriam ligação, mas, segundo Santos (2005), a representação visual da arquitetura se torna tangível e desempenha um papel crucial na definição da essência dos filmes, na execução das ações e na criação da atmosfera dos locais. A interação desses elementos delineia o significado da arquitetura no cinema. É imperativo que a arquitetura seja habilidosa em se adaptar à visão cinematográfica, permitindo a construção de edifícios capazes de evocar o espírito de uma época passada ou lançar as bases para outra.

A cenografia é uma disciplina que envolve a criação de ambientes temporários para diversas finalidades, incluindo teatro, cinema, eventos e exposições. Nesse contexto, o papel do arquiteto é fundamental, uma vez que sua formação e expertise em design espacial, estética e funcionalidade podem contribuir significativamente para a qualidade e impacto desses espaços cênicos.

A ausência de restrições rígidas de medidas e regulamentos permite uma exploração criativa ilimitada, possibilitando a adaptação dos espaços de acordo com as necessidades de cada produção.

Arquitetura cenográfica é a prática de projetar espaços temporários, como cenários teatrais, filmes ou eventos, a fim de criar ambientes que suportem a narrativa e atmosfera desejadas. Esses espaços são projetados para cativar e envolver o público, muitas vezes priorizando a estética e a funcionalidade efêmera.

Assim como a arquitetura, a cenografia também trabalha com conceitos similares, por exemplo, a forma, a escala, a iluminação e outros. A cenografia precisa ter uma percepção e noção espacial para conseguir reconhecer a influência do mesmo sobre a compreensão e sensibilidade humana, a fim de, posteriormente, conseguir definir os limites da cena. Nesse sentido,

O cenário tem mais importância no cinema do que no teatro. Uma peça pode ser representada com um cenário extremamente esquemático ou mesmo diante de uma simples cortina, ao passo que se confia menos numa ação cinematográfica fora de um quadro real e autentico: o realismo inerente à coisa filmada parece exigir obrigatoriamente o realismo do quadro e da ambientação.  (SCORSESE, 1985, p. 67)

Como dito anteriormente, o filme O Grande Hotel Budapeste (2014), dirigido por Wes Anderson, é referência pela sua estética visualmente impressionante e super detalhada. A cenografia do filme tem um papel fundamental na criação de um mundo fictício, que consegue representar vários conceitos interligados a arquitetura, que foi feita para prender a atenção do usuário, através da composição estética, que oferece o conforto aos olhos. A direção criativa (Figura 1) adotada neste filme, em análise, é notável. As cores, a simetria e a composição foram criteriosamente pensadas e cuidadosamente planejadas para proporcionar um conforto visual ao olho humano.

No trabalho cenográfico de Wes Anderson, a arquitetura é cuidadosamente planejada e as cores servem como um contraste em relação às situações dramáticas enfrentadas pelos personagens.

Figura 1: Recepção do Hotel Budapeste

Fonte: Isabel Wittmann, 2016.

Nele, há formas em que se pode analisar a relação com a arquitetura, tais como o estilo arquitetônico, utilizando uma arquitetura clássica, fachadas ornamentadas (figura 2), colunas elegantes, o que possibilita criar uma atmosfera de romance e nostálgica. O detalhe arquitetônico, desde as escadarias ornamentadas, até os corredores repleto de decorações; o uso espacial, prezando cenas memoráveis, que influenciam o ritmo do filme, com os corredores longos, quartos luxuosos e elevadores antiquados; a paleta de cores, combinação perfeita entre tons pasteis e dourados, que reforça a atmosfera de conto de fadas e estética vintage. A arquitetura é evidente e tem um papel central nesse processo, definindo o ambiente, os temas e a narrativa.

Figura 2: Fachada do Hotel Budapeste

Fonte:  José Tomás Franco, 2014.

Lançado em 2014, O Grande Hotel Budapeste é um filme teuto-americano[2], do gênero comédia dramática estadunidense, escrito e dirigido por Wes Anderson. Desenvolve-se no ano de 1930, no contexto social do período entre as duas guerras mundiais, na cidade fictícia de Zubrowka que, nas palavras do diretor, é a “nossa própria versão inventada da Europa do Leste” e se centra na história de Gustave H., o concierge de um lendário hotel na Europa e sua amizade com um jovem funcionário que se converte em seu protegido de confiança. A narrativa fala do roubo e a recuperação de uma importante e valiosa pintura renascentista, a batalha pela enorme fortuna de uma família e os levantamentos lentos e repentinos que transformaram a Europa durante a primeira metade do século XX. Tudo marcado por uma vistosa e vislumbrante estética referente aos anos 30. Vale dizer que a trama não tem uma narrativa linear tão comum, pois é localizada em vários momentos do passado: anos 30, 60 e 80.

É importante esclarecer que O Grande Hotel Budapeste é uma ficção, criada por Wes  Anderson. Tentando encontrar a fachada ideal em diversos hotéis antigos pela Europa, a solução foi construir uma maquete que reunisse referências da arquitetura clássica. A realização de muitas das cenas do filme foi possível por meio de uma grande maquete de 1,5 metros de altura e quase 1 metro de profundidade, com uma esplendorosa fachada simétrica, o que possibilitou ao seu diretor em fazer tomadas mais amplas do edifício e da pitoresca paisagem que o rodeia. A citada maquete esteve sob a responsabilidade do designer de produção Adam Stockhausen, indicado ao prêmio Oscar em 2014.

“Sempre gostei das miniaturas”,comenta Wes Anderson (2014). Segundo ele, o público inclina-se a reconhecer os efeitos realizados por computador, por isso o diretor prefere o uso de maquetes, e ainda acrescenta que “A marca da artificialidade que gosto de usar é uma que está fora de moda”.     

Figura 3: A maquete do Hotel Budapeste

Fonte: José Tomás Franco, 2014.

Vale dizer que, após exaustiva pesquisa acerca da recopilação de imagens da época e dos principais lugares de férias na Europa, assim como da análise de arquivos dos hotéis e estudo sobre a arquitetura de seus edifícios, finalmente o que serviu de inspiração para o diretor foi o Grand Hotel Pupp, de arquitetura neo-barroca, em Karlovy Vary, República Tcheca.

Segundo Franco (2014), o filme é uma verdadeira obra de arte, livremente inspirada em textos de Stefan Zweig, poeta e dramaturgo austríaco que faleceu em Petrópolis/RJ, na década de 40. A trilha sonora de Alexandre Desplat conduz a história com a delicadeza e o humor presente no estilo de Anderson. Pode-se dizer que o longa é a visão fantasiosa do diretor acerca das mudanças de uma sociedade, as transformações de um ambiente, o embate entre o Velho e o Novo Mundo. Do ponto de vista estético, tudo é muito bem pensado e desenvolvido desde a direção de arte e os figurinos até o cenário.

Com uma arquitetura vislumbrante, majestosa e perfeita simetria, o filme O Grande Hotel Budapeste, em um cenário entre planaltos e montanhas do extremo leste europeu, nos remete a momentos de sonho e magia. Conforme Franco (2014), o estilo de Wes Anderson é marcado por um forte caráter vintage, uma vez que a estética de cada cena se constitui em uma verdadeira obra de arte, com composições meticulosas e paletas de cores quentes, sendo que o uso da simetria é bem acentuado. Vale dizer que, nesse aspecto, a arquitetura é a principal protagonista, pois ver o filme através do cenário, é perceber o quanto a imagem proposta é importante para a história narrada.

É possível perceber que o filme analisado possui um cenário característico para a sua narrativa – cenário personagem – que faz parte da história e que interfere na narrativa, dialogando com os outros personagens. Nessa mesma perspectiva, “alguns roteiros constroem suas narrativas de tal maneira que os cenários atuam como personagens”. (HAMBURGER, 2014, p.33)

No momento de desenhar os espaços da narrativa, diferentemente de um projeto arquitetônico, o cinema tem um artifício a seu favor: a montagem. Algumas vezes, não é preciso que tudo seja projetado, basta que a câmera filme e a montagem garanta a continuidade da narrativa. Nesse sentido, Hamburger (2014) aponta que

Recurso característico da linguagem cinematográfica, a edição final das imagens captadas é a base da elaboração de um projeto cenográfico. A montagem aproxima espaços filmados em diferentes locais, conformando, na tela, ambientes diretamente complementares em uma geografia própria àquele filme. (HAMBURGER, 2014, p. 37)

Segundo Zuben (2018), na construção da visualidade de um filme, a cor contribui fortemente de como o espectador sente a cena. Alguns filmes são característicos exatamente por causa das cores utilizadas. Em O Grande Hotel Budapeste há um grande uso de tons avermelhados, que marcam os ambientes do filme, considerados como pontos ativos (Figura 4). Nessa mesma direção “A cor é uma ferramenta poderosa, que opera subliminarmente na emoção do espectador. Ao conformar o clima geral, o manejo das cores contribui para o 54 estabelecimento da relação do espectador com o conteúdo do filme”. (HAMBURGER, 2014, p.41).

Figura 4: Elevador do Hotel Budapeste

Fonte: Luiz Santiago, 2014.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tendo em vista a conclusão das etapas de estudo, tais como a revisão bibliográfica sistemática e a coleta documental, o presente tópico objetiva analisar todos os elementos evidenciados, com o intuito de alcançar o objetivo geral da pesquisa: analisar como a arquitetura teve impacto diretamente no cinema.

Na primeira etapa da pesquisa, no tocante à revisão bibliográfica sistemática, foi possível ter uma visão mais clara acerca da intrínseca relação entre arquitetura e cinema, à luz dos estudos de Cristian Metz (1977), Fábio Allon dos Santos (2005), Dougal Shaw (2015), Daniel Mangabeira da Vinha (2002), Ismail Xavier (2017), nos quais mostraram criticamente a trajetória histórica que liga a história do cinema à arquitetura cenográfica.                                                      

Na segunda etapa, no tocante a coleta documental, foi possível realizar a análise das características do filme O Grande Hotel Budapeste (2014), do roteirista e diretor Wes Anderson, mostrando ser uma verdadeira obra de arte, com uma arquitetura vislumbrante, majestosa e perfeita simetria, com composições meticulosas e paletas de cores quentes. Nesse aspecto, a arquitetura, aliada à cenografia, comprova que ver o filme através do cenário, é perceber o quanto a imagem proposta é importante para a história narrada, com uma roteirização que respeite a direção fotográfica, a composição, a proporção e a iluminação.

Assim, todas as etapas da pesquisa contribuíram significativamente para compreender que os arquitetos que se aventuram na cenografia têm a capacidade de moldar as sensações humanas de maneira única, projetando ambientes que provocam emoções, transmitem histórias e ampliam as possibilidades artísticas. De acordo com Metz (1977), nenhuma forma artística consegue capturar e envolver o público de maneira tão intensa quanto o cinema. Ele proporciona a sensação de que o espectador está testemunhando um evento genuíno, desencadeando uma profunda conexão emocional e sensorial com a plateia. Em contrapartida, na construção civil, o arquiteto deve atuar em conformidade com as normas de segurança, acessibilidade e padrões de construção, o que não ocorre com a cenografia, visto que oferece um grau notável de liberdade criativa.

Vale lembrar que, embora a cenografia ofereça uma liberdade criativa considerável, a colaboração e o entendimento da visão do diretor, roteirista ou designer de produção são cruciais. O arquiteto cenográfico deve estar alinhado com a narrativa e os objetivos da produção para criar um espaço que amplie e aprimore a experiência do público. Além disso, a segurança dos artistas e a funcionalidade do cenário não podem ser comprometidas, mesmo em meio a uma expressão criativa ousada.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base na exploração teórica feita em artigos, bibliografias e o filme O Grande Hotel Budapeste (2014), acerca da importância de um olhar de um arquiteto em um ambiente cenográfico, percebe-se que a cenografia possibilita uma gama de possibilidades para o arquiteto, somado a várias outras competências desenvolvidas ao longo da profissão.

Dessa forma, destaca-se a importância da abordagem do arquiteto na cenografia, evidenciando seu potencial em controlar as sensações humanas e promover a liberdade de expressão em ambientes cênicos. A flexibilidade criativa, oferecida pela cenografia, em contraste com as construções civis, proporciona uma plataforma para a inovação e experimentação. No entanto, é fundamental que essa liberdade criativa seja moldada em colaboração com a visão artística da produção, mantendo a segurança e a funcionalidade como prioridades. Afinal, o arquiteto cenográfico desempenha um papel vital na criação de experiências únicas e envolventes para o público e os artistas, ampliando os limites da expressão artística no mundo do entretenimento.

O olhar do arquiteto na cenografia é valioso por sua capacidade de controlar as sensações humanas e a liberdade de expressão na criação de ambientes cênicos. A ausência de regulamentações rígidas de medidas proporciona espaço para a inovação e a experimentação. No entanto, é importante que essa liberdade criativa esteja alinhada com a visão artística da produção e que as considerações de segurança e funcionalidade sejam mantidas, garantindo uma experiência única e segura para o público e os artistas.

Portanto, é imprescindível a presença e atuação de um arquiteto em um ambiente cenográfico, uma vez que, a cenografia é extremamente importante para transmitir a sensação na narrativa, e a arquitetura é fundamental para criação dos ambientes, possibilitando uma melhor qualidade de composição, que traz conforto aos olhos humanos, além de provocar emoção e sensibilidade do telespectador.

REFERÊNCIAS

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HAMBURGER, Vera. Arte em cena: a direção de arte no cinema brasileiro. Editora Senac. Edições Sesc. São Paulo, 2014.

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VINHA, Daniel Mangabeira da. Arquitetura e Cinema: a participação da arquitetura na construção da ideia de futuro, transmitida pela sétima arte. 2002. Monografia (Disciplina Ensaio Teórico) – Universidade de Brasília, Brasília.

XAVIER, Ismail. Sétima arte: um culto moderno: o idealismo estético e o cinema. Edições Sesc, 2017.

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[1] Arquitetos norte-americanos iniciaram uma pesquisa séria sobre a fenomenologia na década de 1950, enquanto estavam na Universidade de Princeton, sob a orientação do professor Jean Labatut. Um dos alunos de Labatut, Charles W. Moore, se destacou ao redigir a primeira dissertação de doutorado sobre o tema, intitulada “Water and Architecture” (1958). 

[2] Adj. || que diz respeito à Alemanha e à América (especialmente os Estados Unidos), a alemães e americanos. || -, Adj. e s. m. americano descendente de alemães: Mencken… é um teuto-americano. (Afrânio Peixoto, Maias e Estevas, p. 339, ed. 1940.)


1 Graduanda em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Independente do Nordeste (FAINOR). E-mail: laissilvanovais@gmail.com

2 Orientador e presidente da banca da Faculdade Independente do Nordeste (FAINOR). E-mail: rafaelllarq@gmail.com

3 Coorientador e avaliador interno da banca da Faculdade Independente do Nordeste (FAINOR). E-mail: henriquebarreto@fainor.com.br