REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7568803
MACIEL DA PAIXÃO BORGES1
RESUMO
O presente artigo objetiva compreender a construção cultural da Guiné-Bissau, utilizando para isso parâmetros literários apontados pelo dramaturgo Abdulai Sila, na obra Dois tiros e uma gargalhada (2013). Desse modo, evidenciamos a importância do texto literário nas discussões identitárias e culturais, bem como a abordagem colonizador e colonizado, de forma a evidenciar as marcas sociais, políticas e culturais em uma perspectiva histórico-literária acerca dos períodos colonial e pós-colonial. Para isso, pautaremos nossa pesquisa em autores como Antônio Cândido (2006) e Thomas Bonicci (1998).
Palavras-chave: Literatura. Identidade. Cultura
RESUMEN
Este artículo tiene como objectivo comprender la construcción cultural de Guinea-Bissau, utilizando parámetros literarios señalados por el dramaturgo Abdulai Sila, en la obra Dos tiros y una risa (2013). De esta manera, destacaremos la importancia del texto literario en las discusiones identitarias y culturales, así como el enfoque acerca del colonizador y colonizado, con el fin de resaltar las marcas sociales, políticas y culturales en una perspectiva histórico-literaria sobre la época colonial y poscolonial. Para eso, basaremos nuestra investigación en autores como Antônio Cândido (2006) y Thomas Bonicci (1998).
Palabras clave: Literatura. Identidad. Cultura
INTRODUÇÃO
Guiné-Bissau foi a primeira colónia portuguesa a conquistar a independência. Assim, a chegada de Nuno Tristão ao local, em 1446, é o primeiro registo de um navegador português. A partir de 1450, a Guiné-Bissau tornou-se um país de comércio de escravos; foi também o primeiro local onde os portugueses começaram a comercializar pedras preciosas e plantas. No entanto, seu monopólio sobre esta indústria não terminou até o século XVII. Vários anos depois, comerciantes holandeses, britânicos e franceses também entraram neste mercado.
Com a chegada de novos países europeus àquela região, Portugal ficou perto da costa e negociou escravos em vez de explorar as regiões do interior do país, o que levou o colonizador a perder as terras vizinhas da Guiné-Bissau por volta do século XVIII. Posteriormente, a conferência de Berlim em 1885 e o acordo franco-português em 1886 levaram a que estas áreas fossem controladas por britânicos e franceses, sendo a Guiné-Bissau colônia de Portugal a partir de 1936, entretanto o país tinha relevância apenas de forma comercial.
Em 1973, o PAIGC — Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde — liderado por Amílcar Cabral, enfrentou acirradas batalhas que levaram Guiné-Bissau à sua independência. Depois de conquistar a independência, o pequeno país se viu preso em uma luta interminável pelo poder. A luta decorreu de anos de colonização e o período pós-independência foi especialmente difícil devido à sua economia subdesenvolvida. Consequentemente, muitos nacionalistas procuraram reconstruir sua nação. No entanto, esses esforços falharam e as lutas pelo poder continuaram por anos.
A partir da criação bissau-guineense como nação, sobretudo após o domínio colonial português, inspirou o engenheiro e escritor Abdulai Sila a criar várias obras literárias como Eterna paixão, A última tragédia, Mistida, As orações de Mansata, Dois tiros e uma gargalhada, Kangalutas e Memórias Somanticas, remetendo a informações sobre a formação da cultura e da identidade entre o povo da Guiné-Bissau.
A LITERATURA COMO FATOR DE RELEVÂNCIA SOCIAL
Considerando a história social, política e cultural do país, buscaremos explorar os vários aspectos da Guiné-Bissau. Com isso, a presente pesquisa traz como temática a representação e as lutas pelo poder no período pós-colonial em Guiné –Bissau, assim como a importância da literatura na construção social do país, realizando reflexões e análises da obra Dois Tiros e Uma Gargalhada (2013), do escritor guineense Abdulai Sila.
Um dos marcos literários que buscam de forma incisiva evidenciar as análises dessa pesquisa no livro de Sila, é o fato do escritor e investigador social guineense ser conhecido por expor em suas obras as mazelas e problemas encontrados em seu país, assumindo um compromisso social importante, de forma que possamos refletir sobre o povo de Guiné-Bissau, dando visibilidade aos conflitos de seu país, de forma que possa influenciar diretamente nas resoluções.
Considerar a posição do artista para a concepção da obra é relevante, pois compreendemos seu espaço naquela sociedade e seu papel social como escritor, visto que como explicita Cândido (2006):
A posição social é um aspecto da estrutura da sociedade. No nosso caso, importa averiguar como esta atribui um papel específico ao criador de arte, e como define a sua posição na escala social, o que envolve não apenas o artista individualmente, mas a formação de grupos de artistas. Daí sermos levados a indicar sucessivamente o aparecimento individual do artista na sociedade como posição e papel configurados; em seguida, as condições em que se diferenciam os grupos de artistas; finalmente, como tais grupos se apresentam nas sociedades estratificadas. (CANDIDO, 2006, p.33)
É importante considerar que Guiné-Bissau foi colonizado pelos portugueses por volta de 1446, sendo um dos países africanos que mais sofreu com o tráfico de escravos, conquistando sua independência apenas em meados dos anos 70, depois de 11 anos de lutas armadas lideradas pelo engenheiro Amílcar Lopes Cabral, embora pareça tardio, foi a primeira colônia portuguesa africana a conseguir esse feito.
Com todo o atraso deixado por anos de colonização e inúmeros conflitos na luta pela independência, o período pós-colonial tornou-se algo muito difícil, pois o país não tinha grandes condições de sustento e sua economia era pouco desenvolvida. Com isso, ondas nacionalistas buscaram erguer a nação, no entanto nada correspondeu às expectativas, gerando enormes frustrações e lutas pelo poder, marcados por guerras civis e confrontos de ideais que assolam a Guiné-Bissau até os dias atuais, contribuindo para que tenham um dos piores índices de desenvolvimento humano do planeta.
Com a luta pelo poder, a literatura ocupou seu lugar como “Produto Social” local e passou a retratar de forma incisiva várias práticas ocorrentes na localidade, na qual destacaram-se vários nomes, entretanto, utilizamos para análise uma obra de Abdulai Sila, um economista, investigador social e escritor guineense que visa retratar em suas obras as facetas da luta pelo poder em Guiné-Bissau, observando em seus escritos, marcas deixadas pelo período colonialista e representando de diversas formas como ocorrem as lutas pelo poder.
A escolha da obra é relevante, principalmente ao considerar que faz parte de um conjunto literário que retrata historicamente os conflitos e rituais marcados pela sabedoria dos “Homens Grandes”, nome dado aos sábios por Sila. A criação de textos dessa temática é extremamente célebre ao povo guineense, não somente historicamente construir a história de sabedoria e de batalha de um povo, mas para retratar a importância da literatura para a construção social, histórica e atual, como vemos na fala de Antônio Cândido.
Com efeito, a atividade do artista estimula a diferenciação de grupos; a criação de obras modifica os recursos de comunicação expressiva; as obras delimitam e organizam o público. Vendo os problemas sob esta dupla perspectiva, percebe-se o movimento dialético que engloba a arte e a sociedade num vasto sistema solidário de influências recíprocas. (CÂNDIDO, 2006, p.34)
A construção social, principalmente no que tange a abordagem pós-colonial, é abordada com tons de ironia e crítica social, buscando segundo o autor “Sobrepor com risos e gargalhadas os tiros que se ouvem cada vez mais alto (prefácio)”.
O período pós-colonial tornou Guiné – Bissau um espaço plural com ideologias incertas marcadas pelo colonialismo, presente até pouco tempo, deixando marcas evidentes na cultura guineense, inclusive com fatores ligados a violência e a desigualdade social evidenciados pela disputa de poder. A influência colonialista e as marcas negativas deixadas pelos portugueses, a qual construíram comunidades que resistiam ao poder e lutavam bravamente contra isso. Desse modo, a violência passou a fazer parte do povo local pela necessidade de libertação e continuou posteriormente pelas disputas de poder, mesmo após a libertação da colônia.
Observemos o fragmento a seguir:
AMAMBARKA
Chega de conversa! Vamos, vira-te e mostra-me esses olhos. (Cospe o cigarro que tinha na boca e, sempre com a pistola apontada para a cabeça de Nfansu, aproxima-se mais dele)
NFANSU
Dispare aqui, chefe, sobre o peito, no coração, não nos olhos. Quero morrer como homem…
AMAMBARKA
Fecha essa boca!
NFANSU
Eu nunca te traí, Amambarka. Não me mates como um traidor… (Sila, 2013, p.56)
Com esses fatores, a política passou a fazer parte das ideologias locais tomadas pela busca do poder e assim, os espaços dentro da literatura se tornaram crescentes, principalmente na literatura social, de alguns escritores guineenses, evidenciados aqui por Dois Tiros e Uma Gargalhada.
A peça retrata como as marcas colonialistas influenciaram na formação dos homens africanos e em suas atitudes políticas, trazendo no personagem Amambarka, detentor do poder local (herdado após matar o chefe anterior), um dos personagens principais e símbolo dessa influência, representando resistência à essência burguesa deixada pelos portugueses, sobretudo aos mestiços, no entanto de forma negativa, dava seguimento aos sofrimentos causados pelo colonizador através da exploração e da violência para a manutenção do poder, como podemos observar no fragmento: “O velhote sacaneou-me várias vezes, impediu-me ter o que mais desejo neste mundo. Agora que já descobri o segredo, ele deve desaparecer antes que encontre forma de me aldrabar de novo.” (SILA, 2013, p.21)
Desse modo, convém refletirmos e analisarmos o modo como o personagem Amambarka age pela retomada de poder e como o enredo se constrói ao redor do personagem, analisando como os colonizadores foram capazes de influenciar os colonizados e de que maneira a tomada de luta de poder pelo personagem citado anteriormente se assemelha às lutas do período colonial, através dos escritos de Sila, pois,
A literatura não é espelho do mundo social, mas parte constitutiva desse mundo. Ela expressa visões de mundo que são coletivas de determinados grupos sociais. Essas visões de mundo são informadas pela experiência histórica concreta desses grupos sociais que as formulam, mas são também elas mesmas construtoras dessa experiência. Elas compõem a prática social material desses indivíduos e dos grupos sociais aos quais eles pertencem ou com os quais se relacionam. Nesse caso, analisar visões de mundo e ideias transformados em textos literários supõe investigar as condições de sua produção, situando seus autores histórica e socialmente. (FACINA, 2004, p. 25
A literatura reflete diretamente as relações sociais por ela abarcadas, o que torna a literatura um poço de riquezas. Considerando as inúmeras histórias e marcas do colonizador ainda existentes, em que encontram na literatura um meio de denúncia e engajamento sem precedentes, na qual somente a literatura permite. Antônio Cândido (2006) define a literatura como um direito e necessidade universal, que satisfaz, humaniza e liberta, dando a todos o direito de serem agentes transformadores e formadores de opinião, pois a literatura se constitui como um direito humano. Sendo a literatura notavelmente utilizada para fins sociais.
Durante o processo de colonização africana, nos deparamos com uma literatura que mostra as profundas marcas de exclusão entre a dicotomia do colonizador e do colonizado. As literaturas dos países dominados receberam influências e simplesmente copiavam as tendências dos modelos europeus como afirma Bonnici (1998, p.8) “o desenvolvimento de literatura dos povos colonizados deu-se como uma imitação servil a padrões europeus, atrelada a uma teoria literária unívoca, essencialista e universalista”.
Nesse contexto, surgiram muitas discussões sobre a identidade cultural formada no período pós-colonial, levantando questionamentos pelos múltiplos discursos gerados entre os sujeitos e sua nação. Esses fatos ocorrem principalmente pelos conflitos coloniais enfrentados pela Guiné-Bissau, de forma que a literatura local focasse, de certa forma, na recuperação das atividades culturais perdidas na ocupação portuguesa, além de externar em suas publicações as lutas pelo poder e como o desequilíbrio econômico e cultural deixado pelo colonizador influenciou negativamente os povos locais, expondo as consequências pós – coloniais, tanto cultural, como na luta pela manutenção de poder, fato relevante, principalmente para o povo guineense.
Segundo Cândido (2006), a literatura tem importante papel na construção de aspectos relevantes na sociedade. Com isso, o uso da literatura para tornar indubitável as relações sociais ocorridas na Guiné-Bissau através da obra de Sila, além das reflexões acerca da construção social dos autocratas guineenses, propondo denúncias e reflexões na construção do povo no período pós – colonial.
Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas (CÂNDIDO, 2006, p.175)
Desse modo, Sila expõe a luta pelo poder existente em seu país, marcado pelo personagem Amambarka. Um homem estarrecido e louco pelo poder que detém, marcado por ser uma vítima do colonizador, porém pela gana em se manter no poder, assume um papel de sujeito opressor de seu próprio povo, nos primeiros momentos do pós-colonialismo, um período de transição na qual o país ainda vivia com as discrepâncias ocasionadas pelo poder político. Transição essa que, pelas enormes diferenças sociais e econômicas, tornou o país um espaço de disputas internas, guiadas pela direção ao nacionalismo, que não foi correspondente as expectativas, sendo o personagem Amambarka, um símbolo dos políticos guineenses que visam único e absolutamente o poder.
A condição pós-colonial fez com que o país virasse um espaço de disputas de ideias incertas, no qual os modos de operar ultrapassam os limites da cultura do povo guineense, cansado da violência da época colonial e, depois, como reação, nas lutas independentistas. Podemos explicar esse fator da seguinte maneira: primeiro, existe um cerco da burguesia internacional para sustentar ou recuperar a autoridade política sobre as ex-colônias; segundo, existem formações ideológicas de apoio comunitário que ambicionam resistir às violências do ocidente. (BALDÉ, 2017, p.33)
Por esse motivo, a ficção o coloca como um negro a ser combatido, visto que por deter o poder, Amambarka busca intimidar o povo e combater a todos aqueles que ameaçarem seu poder, “com alegria em matar os traidores’’ e “lacaios do colonialismo’’, na qual ele expressa seu ódio, porém suas atitudes vão além.
AMAMBARKA
[…] Estes filhos da mão têm de desaparecer!
WENGNA
Mas, chefe, são uns velhotes!
AMAMBARKA
Velhotes e traidores! […]
AMAMBARKA
Só há um lugar para traidores… (Fala rindo) (SILA, 2013, p.22)
Por conseguinte, as marcas identitárias, tornam – se fatores determinantes de ligação com o colonizador, pois mesmo após o fim da colonização, ele utiliza do poder e das lutas passadas com a colônia como desculpas para oprimir seu povo. O que segundo Bonnici (1998) gera um contexto entre as relações estabelecidas pelo colonialismo e utilizadas posteriormente para justificar sua existência, como várias formas de objetificação operada pelos brancos contra os colonizados. Isso deixa claro como mesmo após se desvencilhar da colônia, Guiné-Bissau ainda era refém, não de um país, mas de toda a trajetória deixada e marcada pela identidade de seu povo, vivendo intensamente o passado e o futuro com as disputas de poder e uma transição nunca finalizada, marcados por chefes como Amambarka que negam seu povo em razão do poder.
Todos os atos oriundos do personagem Amambarka geram reflexões sobre as ações de poder, na qual há um personagem principal que se considera um grande líder, exterminador de mestiços, mas influenciado fortemente pelas ideias do colonizador de se manter no poder a qualquer custo, visando lucro e vantagens com as marcas deixadas pela colonização.
Porém, com o passar do tempo, assim como Amambarka perde seu poder diante de tantas atrocidades, o colonizado deve se livrar da colônia, conforme pensa Sila (2013) “Depois de tanta asneira, chegamos a um momento em que, definitivamente, temos que enterrar o machado de guerra e seguir os novos ventos que estão a soprar”.
Assim, a criação literária de Sila, exibindo de forma sistêmica as disputas pelo poder na Guiné-Bissau, suscitando uma visão de mundo incondicional e empenhado com a realidade, na qual a literatura exerce o que Cândido (2006) chama de papel sociológico, fator relevante para a construção social de um país.
Considerações Finais
Após a abordagem apresentada sobre a literatura e seu papel social em Dois Tiros e uma Gargalhada, de Abdulai Sila, utilizamos a construção ficcional da peça para analisar a cultura e a identidade da Guiné-Bissau no pós-guerra, bem como a maneira como a construção literária de Sila demonstra esse período, bem como a abordagem de aspectos coloniais da sociedade da Guiné-Bissau.
A natureza interdisciplinar da peça mostra-se na forma como ela equilibra história e literatura. Esse equilíbrio incentiva as pessoas a manterem em mente as muitas culturas representadas em suas páginas, enriquecendo a compreensão do povo sobre a sua cultura, com novas descobertas, acerca do processo de formação da nação.
Nesse ínterim, literatura bissau – guineense desempenha um papel importante para a identificação de seu povo. Examina como o legado da colonização afeta sua identidade atual, bem como a literatura destaca os desenvolvimentos históricos e culturais no país, de modo que ao explorar esses temas, ajudam os guineenses a compreender melhor a sua identidade e os conflitos presentes na sua sociedade pós-colonial.
REFERENCIAS:
BALDÉ, Adulai. As orações de Mansata: cenas da sociedade guineense. Dissertação de Mestrado, Salvador: UFBA, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/26710/1/DISSERTA%c3%87%c3%83O%20Adulai.pdf
acesso em: 17 de Junho de 2022.
BONNICI, Thomas. Introdução ao estudo das literaturas pós-coloniais., Bauru: Mimesis v. 19, nº 1, 1998.
CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006.
FACINI, Adriana. Literatura e sociedade Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2004
SILA, Abdulai. Dois tiros e uma gargalhada. Bissau: Ku Si Mon Editora, 2013
1Mestrando em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso. E-mail: maciel.paixao@unemat.br