A LEI LUCAS COMO EFETIVAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL NO AMBIENTE ESCOLAR

THE LUCAS LAW AS AN INSTRUMENT FOR ENFORCING THE PRINCIPLE OF COMPREHENSIVE PROTECTION IN THE SCHOOL ENVIRONMENT

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202506301330


Kleverton Tenório da Silva1
Orientador: Jadney Flávio de Melo Aragão2


RESUMO

O presente artigo analisa a Lei n.º 13.722/2018, conhecida como Lei Lucas, à luz do princípio da proteção integral da criança e do adolescente, conforme estabelecido pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O objetivo é demonstrar como a obrigatoriedade de capacitação em primeiros socorros para profissionais da educação básica representa uma concretização normativa do direito à vida e à saúde no espaço escolar. Adota-se o método dedutivo, com base em pesquisa bibliográfica e análise documental. Os resultados indicam que a Lei Lucas, ao vincular o dever de preparo técnico à proteção de estudantes em situações de emergência, reafirma o papel da escola como ambiente de cuidado integral e responsabilidade compartilhada. Conclui-se que, embora a norma seja clara e de aplicação nacional, sua efetividade depende de iniciativas concretas por parte das instituições de ensino, incluindo investimento na formação continuada e compromisso com a cultura da prevenção.

Palavras-chave: Lei Lucas; proteção integral; primeiros socorros; direito à vida; educação.

ABSTRACT 

This article analyzes Law No. 13.722/2018, known as the Lucas Law (Lei Lucas), in light of the principle of comprehensive protection for children and adolescents, as established by the 1988 Federal Constitution and the Statute of the Child and Adolescent. The objective is to demonstrate how the mandatory first aid training for professionals in basic education represents a normative realization of the right to life and health within the school environment. The study adopts the deductive method, based on bibliographic research and documentary analysis. The results indicate that the Lucas Law, by linking the duty of technical preparedness to the protection of students in emergency situations, reaffirms the role of the school as a space of comprehensive care and shared responsibility. It is concluded that, although the law is clear and of national scope, its effectiveness depends on concrete initiatives by educational institutions, including investment in continuing education and a commitment to a culture of prevention.

Keywords: Lucas Law; comprehensive protection; first aid; right to life; education.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 19882, em seu artigo 227, estabeleceu o princípio da proteção integral da criança e do adolescente, atribuindo à família, à sociedade e ao Estado o dever conjunto de assegurar, com absoluta prioridade, direitos fundamentais como vida, saúde, educação, dignidade e integridade física e moral. Esse marco jurídico não apenas reconheceu a infância como uma fase a ser protegida, mas inaugurou um novo olhar sobre ela: crianças e adolescentes deixaram de ser vistos como meros objetos de tutela para serem reconhecidos como sujeitos de direitos.

Esse entendimento foi posteriormente reforçado e sistematizado com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/1990), que consolidou a Doutrina da Proteção Integral como base para todas as ações voltadas à população infantojuvenil. No contexto brasileiro contemporâneo, essa doutrina representa um imperativo jurídico e ético inegociável, estabelecendo que o cuidado e a proteção à infância são responsabilidades compartilhadas entre Estado, família e sociedade. Trata-se, assim, de um compromisso legal e social contínuo, que exige ações concretas e efetivas voltadas à promoção dos direitos e ao bem-estar de crianças e adolescentes em todas as esferas da vida.

Sob esse olhar, a Lei nº 13.722/2018 – conhecida como Lei Lucas – representa uma resposta normativa a uma lacuna histórica no ambiente escolar: a ausência de formação adequada para lidar com situações de emergência que ameacem a vida dos alunos. A partir do caso trágico do menino Lucas Begalli3 que perdeu a vida sob os cuidados de sua escola, a legislação tornou obrigatória a capacitação de profissionais da educação básica em noções de primeiros socorros.

O presente artigo propõe-se a analisar a referida lei sob a ótica da proteção integral, argumentando que sua efetivação não representa mera diretriz administrativa, mas sim medida jurídica concreta de defesa do direito fundamental à vida e à saúde no espaço educacional. Parte-se da hipótese de que a Lei Lucas é expressão normativa do dever constitucional de proteção plena da infância e adolescência e, por isso, impõe obrigações específicas às instituições de ensino, que devem ser interpretadas em consonância com os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.

Para alcançar tal objetivo, adota-se o método dedutivo, com base em pesquisa bibliográfica e documental, envolvendo o exame da legislação vigente, de doutrinas jurídicas pertinentes e de dados públicos disponíveis. Ao final, busca-se refletir sobre os desafios estruturais e institucionais para a implementação efetiva da norma, reafirmando a centralidade do cuidado preventivo na configuração de escolas como territórios seguros.

2. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL

O princípio da proteção integral, alçado ao núcleo duro da Constituição de 1988, representa um compromisso do Estado brasileiro com uma concepção ampliada e moderna dos direitos da população infanto-juvenil. Ao contrário dos modelos jurídicos anteriores, que tratavam crianças e adolescentes como sujeitos apenas à tutela ou vigilância, esse princípio reconhece sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, portadoras de direitos próprios e específicos. A proteção integral, portanto, não é uma proteção qualquer: é plena, prioritária e multidimensional, abarcando todos os aspectos da vida.

Importa destacar que o princípio da proteção integral não se restringe à infância em sentido estrito, mas alcança igualmente a adolescência, reconhecendo que ambas as fases compartilham a condição de pessoas em desenvolvimento e, portanto, demandam atenção normativa e políticas públicas diferenciadas. A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente utilizam a expressão “criança e adolescente” de forma conjunta e contínua, reforçando a compreensão de que os direitos e garantias assegurados são aplicáveis a toda essa faixa etária, dos 0 aos 18 anos incompletos. Como observa Amaral e Silva (apud PEREIRA, 1996, p. 27), “o direito especializado não deve dirigir-se apenas a um tipo de jovem, mas sim a toda a juventude e a toda a infância, e suas medidas de caráter geral devem ser aplicáveis a todos”. Essa concepção evita interpretações reducionistas ou seletivas do princípio, lembrando que a adolescência, embora juridicamente distinta da infância, não perde o status de prioridade nem a condição de destinatária da proteção integral, devendo ser incluída com igual relevância nos programas, políticas e ações que visam à garantia dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, a própria Constituição Federal, ao tratar dos direitos fundamentais, assegura expressamente a proteção à vida e à saúde das crianças e dos adolescentes, nos seguintes termos:

Art. 7 – A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência. (BRASIL, 1988, art. 5º)

No plano jurídico, esse princípio atua como fundamento normativo para a formulação, interpretação e aplicação de todas as leis e políticas públicas voltadas à infância e adolescência. Ele exige do legislador e das autoridades públicas uma postura ativa na promoção de direitos, bem como a implementação de medidas que previnam violações e assegurem condições adequadas para o desenvolvimento integral dos indivíduos nessa faixa etária. Trata-se de uma diretriz de máxima densidade normativa, que não admite retrocessos nem omissões, vinculando o poder público e também particulares, especialmente quando suas ações ou omissões possam interferir na vida de crianças e adolescentes.

Além de seu conteúdo jurídico formal, o princípio da proteção integral possui uma dimensão operativa, que impõe ao Estado e à sociedade a responsabilidade por transformar esse ideal constitucional em realidade concreta. Para isso, é necessário que as instituições que lidam direta ou indiretamente com o público infantojuvenil internalizem essa lógica de cuidado ampliado. A efetivação da proteção integral, portanto, não depende apenas de enunciados legais, mas de práticas institucionais coerentes com a centralidade da infância como prioridade absoluta. É nesse contexto que se abre espaço para refletir sobre os diversos ambientes de convivência da criança, em especial o escolar, como territórios que devem se organizar segundo os parâmetros da proteção integral.

3. PRIMEIROS SOCORROS: CONCEITOS BÁSICOS E IMPORTÂNCIA

Segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (ABRAMET, 2005), primeiros socorros são as medidas iniciais e provisórias aplicadas no local de um acidente ou mal súbito, com o objetivo de preservar a vida e evitar o agravamento do quadro clínico até a chegada de assistência especializada. Essas ações não substituem o atendimento médico, mas são parte essencial da chamada cadeia da sobrevivência, especialmente em casos em que o tempo de resposta pode ser decisivo.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece os primeiros socorros como uma estratégia fundamental na redução da mortalidade evitável. Isso é particularmente importante em situações envolvendo crianças, cujos organismos reagem mais rapidamente e de forma mais sensível a traumas, obstruções respiratórias e eventos súbitos. A atuação imediata pode evitar complicações graves e, em muitos casos, salvar vidas.

Estudos indicam que a assistência nos primeiros minutos após uma emergência é determinante para o desfecho da vítima. A reanimação cardiopulmonar (RCP), por exemplo, quando iniciada rapidamente, pode dobrar ou triplicar a chance de sobrevivência. Em locais com grande circulação de crianças, como escolas, é essencial que educadores saibam como agir em casos de engasgos, convulsões, quedas ou reações alérgicas, já que o socorro profissional pode não chegar a tempo.

Além disso, estar presente não significa estar preparado. Uma pesquisa realizada em São Paulo revelou que 78% das crianças se acidentam com adultos por perto (COLLUCCI, 2023). Isso reforça a importância de capacitar aqueles que convivem com o público infantil. O conhecimento em primeiros socorros deve ser compreendido como uma habilidade básica, indispensável para qualquer pessoa responsável direta ou indiretamente pelo cuidado com crianças.

4. A LEI LUCAS: ORIGEM, CONTEÚDO E OBJETIVOS

A Lei nº 13.722/18, de 4 de outubro de 2018, conhecida como Lei Lucas, foi criada a partir do trágico episódio da morte do menino Lucas Begalli Zamora, de 10 anos, que faleceu em setembro de 2017 após se engasgar com um pedaço de salsicha enquanto lanchava durante um passeio escolar, na cidade de Campinas, São Paulo. A ausência de pessoas capacitadas em primeiros socorros no local do incidente foi apontada como um fator determinante para a tragédia. Diante disso, a mobilização de sua família, em especial de sua mãe, levou à apresentação de um projeto de lei no Congresso Nacional, com o objetivo de evitar que situações semelhantes voltassem a ocorrer por falta de preparo técnico mínimo por parte dos profissionais que atuam em ambientes educativos.

A tramitação do projeto chamou a atenção pela celeridade, considerando a complexidade costumeira do processo legislativo. A proposta foi apresentada na Câmara dos Deputados e contou com apoio unânime de parlamentares, tanto pela urgência da matéria quanto pela clareza de seu objeto. Sancionada em outubro de 2018, a Lei Lucas alterou a legislação educacional ao determinar que escolas públicas e privadas da educação básica, bem como estabelecimentos de recreação infantil, passem a ser obrigadas a capacitar seus professores e funcionários em noções de primeiros socorros, com treinamentos periódicos. 

O objetivo da Lei Lucas é garantir que, diante de situações de emergência como engasgos, desmaios, quedas ou paradas cardiorrespiratórias, os profissionais presentes no ambiente escolar possam agir de forma imediata e segura até a chegada do atendimento especializado. A capacitação deve ser contínua e atualizada, considerando que o conhecimento em primeiros socorros pode se tornar obsoleto ou ser esquecido com o tempo. Embora a lei não detalhe o conteúdo programático da formação, estabelece que os cursos sejam adequados à faixa etária dos atendidos pela instituição e ministrados por entidades ou profissionais habilitados. Dessa forma, a Lei Lucas busca fortalecer a resposta inicial a emergências no contexto escolar por meio da preparação técnica básica dos educadores e colaboradores.

5. O CUIDAR NO AMBIENTE EDUCACIONAL

O conceito de cuidar no ambiente educacional transcende a noção restrita de assistência e zelo físico. No contexto da educação básica, o cuidado deve ser entendido, principalmente, como um processo que abrange acolhimento, desenvolvimento integral e atenção cotidiana, mas que também inclui a capacidade institucional e profissional de agir de forma eficaz diante de situações de emergência. Garantir a integridade física, emocional e social dos educandos demanda não apenas ações educativas e afetivas, mas também preparo técnico, protocolos adequados e formação continuada dos profissionais da educação, para que estejam aptos a responder com prontidão e eficiência a situações que possam colocar em risco a vida e o bem-estar de crianças e adolescentes. Nesse sentido, é imprescindível reconhecer que o espaço escolar deve ser estruturado para oferecer não só ensino de qualidade, mas também condições concretas de segurança, com profissionais capacitados a intervir de forma eficaz sempre que necessário. Essa dimensão ampliada do cuidado inclui também o reconhecimento, conforme orienta o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil4 (RCNEI), de que o desenvolvimento integral está diretamente relacionado às experiências de cuidado que os educandos vivenciam no ambiente escolar.

O desenvolvimento integral depende tanto dos cuidados relacionais, que envolvem a dimensão afetiva e dos cuidados com os aspectos biológicos do corpo, como a qualidade da alimentação e dos cuidados com a saúde, quanto da forma como esses cuidados são oferecidos e das oportunidades de acesso a conhecimentos variados. (BRASIL, RCNEI, 1998, p. 24).

A ausência de preparo técnico, a inexistência de protocolos ou a falha em capacitar os profissionais da educação para atuar em emergências pode configurar grave omissão institucional, com potencial violação de direitos fundamentais dos educandos. A escola, enquanto espaço coletivo e permanente de formação, está juridicamente vinculada à garantia de condições adequadas de segurança, sendo corresponsável, junto ao Estado e à sociedade, pela proteção concreta de crianças e adolescentes no ambiente escolar, incluindo a prevenção e o enfrentamento de acidentes.

A Organização Mundial da Saúde (OMS)  salienta  que  os  acidentes  estão  entre  as  primeiras  causas  de  óbito  nos  países  desenvolvidos e em desenvolvimento, representando ao lado da violência, o primeiro lugar em morbimortalidade de crianças e adolescentes entre 5 e 19 anos. Dados internacionais apontam que dos acidentes com crianças em idade escolar, 10 a 25% ocorrem na escola ou em seu entorno. No Brasil, levando em consideração a mesma faixa etária, 6 a 13% dos acidentes ocorrem em instituições de ensino (SENA; RICAS; VIANA, 2008).

Faz-se necessário que o cuidar, no âmbito da educação básica, seja concebido como uma prática que integra o projeto pedagógico e que inclui a formação continuada dos profissionais para agir de forma segura e eficaz em situações críticas. Cuidar, nesse sentido, passa pela capacidade de planejar a segurança, adotar medidas preventivas e de criar condições para oferecer respostas rápidas que possam preservar a vida e a integridade dos alunos.

Portanto, fortalecer a cultura do cuidado na escola é um passo essencial para a efetivação do direito à proteção integral. Ainda que este princípio já esteja juridicamente consolidado, sua concretização exige ações práticas no cotidiano escolar, políticas públicas direcionadas e investimentos na formação dos profissionais, para que a educação básica seja, de fato, um espaço seguro, preparado e comprometido com a defesa integral dos direitos de crianças e adolescentes.

6. A LEI LUCAS COMO CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL

A Lei nº 13.722/2018 encontra respaldo direto no ordenamento constitucional brasileiro, especialmente no artigo 227 da Constituição Federal, que consagra o princípio da proteção integral como fundamento para a tutela dos direitos das crianças e adolescentes. A norma, ao estabelecer a obrigatoriedade da capacitação em primeiros socorros para profissionais da educação básica e de instituições de recreação infantil, não cria um novo direito, mas operacionaliza um dever já previsto constitucionalmente: o de proteger, com prioridade absoluta, a vida e a saúde de pessoas em desenvolvimento. Assim, a Lei Lucas deve ser interpretada como um instrumento normativo que confere concretude a uma diretriz já positivada no texto constitucional.

Ao vincular a atuação das instituições de ensino a uma obrigação preventiva, a Lei Lucas materializa o dever jurídico de antecipação de riscos, o que se alinha ao conteúdo normativo do princípio da proteção integral. A proteção não se restringe à reparação de danos após a ocorrência de eventos lesivos, mas inclui a implementação de mecanismos capazes de evitar que esses eventos ocorram. Nesse sentido, a legislação de 2018 não se limita ao campo administrativo ou educativo: ela atua no plano da normatividade constitucional, reforçando o entendimento de que o espaço escolar deve ser organizado também com vistas à salvaguarda da integridade física dos educandos.

Do ponto de vista jurídico, a Lei Lucas representa uma medida de aplicação direta do princípio constitucional, sem necessidade de intermediação legislativa ou regulamentação complexa para produzir efeitos. O seu conteúdo normativo é claro, específico e de eficácia plena, impondo um dever objetivo às instituições abrangidas. Além disso, sua execução depende mais de organização institucional e articulação do que de grandes investimentos, o que reforça a sua viabilidade prática. A norma, portanto, qualifica-se como um exemplo de legislação infraconstitucional que traduz, em termos operacionais, os comandos constitucionais voltados à infância e juventude.

Por fim, é importante destacar que a Lei Lucas evidencia a expansão da aplicação do princípio da proteção integral para além das esferas tradicionalmente associadas à infância, como o sistema de justiça juvenil ou as políticas assistenciais. Ao incidir sobre o cotidiano das escolas, a norma demonstra que a efetividade dos direitos fundamentais exige atuação integrada entre setores diversos do Estado e da sociedade civil. Dessa forma, a legislação consolida o entendimento de que a promoção do desenvolvimento pleno da criança passa, necessariamente, por ambientes institucionais comprometidos com a prevenção, a segurança e a preparação frente a situações que envolvam risco à vida e à saúde.

7. DESAFIOS PARA A EFETIVAÇÃO DA LEI LUCAS 

Os desafios que a Lei Lucas enfrenta em relação à sua implementação decorrem, principalmente, da falta de conhecimento da lei e de sensibilização por parte dos profissionais da educação quanto à essa responsabilidade legal. Há um significativo desconhecimento acerca do dever de capacitar-se em primeiros socorros, evidenciando um déficit de entendimento sobre o papel preventivo e protetivo que lhes é imposto pelo ordenamento jurídico, especialmente no contexto do princípio da proteção integral previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente. Há dúvida entre os educadores sobre as suas atribuições com relação à criança acidentada, apontando para a necessidade de discussão sobre os limites da profissão no que se refere aos cuidados de saúde da criança, especialmente os acidentes (SENA; RICAS; VIANA, 2008).

Um estudo realizado com educadoras da rede municipal de Bom Jesus-PI revelou que os profissionais entrevistados acreditam não possuírem o preparo necessário para agir em emergências e apontaram o acionamento do serviço pré-hospitalar móvel como única solução para a situação (GALINDO NETO et al., 2018).

O estudo revela um quadro preocupante:

As falas evidenciam que existe entre os professores a consciência de que possuem despreparo para prestarem os primeiros socorros, principalmente diante da complexidade que pode envolver um caso de urgência e emergência. O argumento apresentado para tal despreparo versa sobre a formação acadêmica ser direcionada para exercício da docência, sem qualquer treinamento sobre primeiros socorros e aponta à necessidade do empoderamento do professor para os primeiros socorros na escola ser contemplado desde a formação (GALINDO NETO et al., 2018, p 1778).

As gestões educacionais, tanto públicas quanto privadas, também apresentam falhas relevantes no cumprimento da lei, muitas vezes por não reconhecerem sua responsabilidade direta na oferta e viabilização das capacitações. A ausência de planejamento institucional específico e a não destinação de recursos para a execução da norma configura omissão administrativa, o que pode, inclusive, ensejar responsabilização civil em casos de danos resultantes da negligência no cumprimento da lei.

Adicionalmente, observa-se um erro interpretativo frequente quanto à necessidade de regulamentação local. A Lei Lucas, por ser federal, tem eficácia plena e imediata, independentemente de normas complementares estaduais ou municipais. A regulamentação local pode ser uma ferramenta útil para organização e fiscalização, mas não constitui requisito para a aplicabilidade da lei. A falsa percepção de que sua execução depende dessa regulamentação contribui para a morosidade na adoção das medidas necessárias, configurando violação aos deveres legais impostos às instituições educacionais.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da Lei Lucas à luz do princípio da proteção integral evidencia que a legislação representa um desdobramento direto do dever constitucional de assegurar a vida e a saúde das crianças e adolescentes com absoluta prioridade. A norma não introduz uma novidade jurídica, mas concretiza, de forma específica, uma obrigação já prevista no artigo 227 da Constituição Federal, exigindo das instituições educacionais um comprometimento técnico e preventivo com a segurança dos alunos. Nesse contexto, o cumprimento da Lei Lucas é uma extensão natural das garantias fundamentais infanto-juvenis e não pode ser tratado como uma diretriz facultativa ou secundária.

Apesar de sua clareza normativa e de sua eficácia plena, a efetivação da Lei Lucas ainda encontra resistência e falhas operacionais no ambiente escolar. Os desafios não decorrem de lacunas legislativas, mas da falta de conscientização dos profissionais de educação quanto ao seu dever jurídico de participar das capacitações e de atuar preventivamente em situações de risco. Esse cenário revela a necessidade urgente de ações voltadas à sensibilização e formação ética dos educadores, a fim de reforçar a compreensão de que a promoção da vida e da segurança faz parte indissociável de suas atribuições institucionais.

Além disso, verifica-se uma omissão relevante por parte das gestões educacionais, que frequentemente negligenciam seu papel na organização e oferta das capacitações exigidas pela lei. A ausência de planejamento específico e de alocação de recursos para essa finalidade compromete a efetividade da norma e pode gerar, em situações concretas, responsabilização civil e administrativa das instituições, sobretudo diante de incidentes que poderiam ser evitados com preparo adequado. Tal omissão contraria diretamente o dever de proteção integral e representa falha grave no cumprimento da legislação vigente.

Outro ponto que demanda esclarecimento contínuo é a equivocada interpretação de que a Lei Lucas dependeria de regulamentação local para sua aplicação. Por ser uma lei federal de eficácia plena, sua obrigatoriedade se impõe de forma imediata em todo o território nacional, independentemente de normas complementares. Regulamentações estaduais ou municipais podem, sim, aprimorar a organização e fiscalização, mas sua ausência não constitui obstáculo para a execução da norma. Esse entendimento equivocado contribui para a inércia institucional e precisa ser superado por meio de orientações técnicas e jurídicas consistentes.

Diante do exposto, conclui-se que a plena efetivação da Lei Lucas exige mais do que ajustes normativos: requer mudança cultural, gestão comprometida e educadores conscientes de seu papel frente à proteção à vida dentro do espaço educacional. O fortalecimento da responsabilidade institucional é essencial para garantir que os ambientes escolares se constituam, de fato, como espaços seguros, preparados e comprometidos com a proteção integral das crianças e adolescentes, em consonância com os preceitos constitucionais e com a centralidade do direito à vida.


2BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 10  jun. 2017.

3UOL. Morte de menino de 10 anos faz família lutar por lei de primeiros socorros. Universa, 23 jan. 2018. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/01/23/morte-de-menino-de-10-anos-faz-familia-lutar-por-lei-de-primeiros-socorros.htm. Acesso em: 15 maio 2025.

4Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF, 1998. 3v.

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1Acadêmico do 10° período do curso de Direito da Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL; e-mail: klevertonsilva@alunos.uneal.edu.br
2Professor do Curso de Direito da Universidade Estadual de Alagoas, Campus I, Arapiraca/AL