REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12588011
Clécia Cristina Bezerra Silvestre Galindo[1]
Marcondes Leandro de Lima[2]
Resumo: O artigo elaborado traz reflexão acerca da importância da aplicação da justiça restaurativa no contexto escolar, com o intuito de afastar as práticas punitivistas e inserir um modelo de justiça centrado no diálogo e, consequentemente, na resolução pacífica de conflitos, a fim de evitar que as crianças e os adolescentes sejam submetidos ao sistema socioeducativo produto da justiça penal. Dito isto, ressalta-se que, para a reflexão central apresentada, o trabalho fora dividido em quatro partes: a primeira explica sobre a justiça restaurativa; a segunda sobre a relação entre a justiça restaurativa e os Direitos Humanos; a terceira trata a respeito do punitivismo presente nas escolas e que também envolve a justiça criminal; enquanto que a última busca realçar o papel humanizador das práticas restaurativas nas escolas. Desse modo, para o presente estudo, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, como principal fonte de coleta de informações, as quais foram essenciais para evidenciar o papel transformador da justiça restaurativa nas instituições de ensino. Em conclusão, é possível notar que as práticas restaurativas estão interligadas com os Direitos Humanos e, portanto, com a cultura de paz, dessa forma devem ser investidas no contexto escolar, pois conseguem pacificar as relações e contribuir com o desenvolvimento integral das crianças e dos adolescentes.
Palavras-chave: escolas, punitivismo, justiça restaurativa, Direitos Humanos, cultura de paz.
INTRODUÇÃO
A Justiça Restaurativa contribui para a mudança radical de uma cultura de violência para uma cultura de paz, dando atenção às necessidades e aos sentimentos que cercam as partes envolvidas num conflito, a partir da utilização do diálogo. Nesse sentido, evidencia-se o aludido modelo de justiça como humanizador, tendo em vista que não busca aplicar castigos e punições, nem violar os Direitos Humanos da vítima ou do ofensor, como é observado no modelo de justiça criminal, mas sim tem o objetivo de promover a reflexão sobre os atos praticados e a restauração das relações.
Cumpre destacar que na escola a aplicação da justiça restaurativa vê-se como necessária, pois se trata de um ambiente de interação social constante, diário, portanto, passível de conflitos que precisam ser administrados de modo pacífico pela própria comunidade escolar, e não pela polícia ou pela justiça comum, dando espaço a corresponsabilidade, a verdade e ao afeto, o que contribui para o desenvolvimento saudável e conjunto de todo o público escolar.
Destarte, a partir de pesquisas bibliográficas e de leituras de materiais digitais, assim como de reflexões sobre o caminho que a educação brasileira tem levado e sobre os abusos constantes cometidos contra os Direitos Humanos dos mais vulneráveis, fez-se urgente discutir o tema, a fim de recuperar e restaurar a escola a qual se encontra sufocada pela hostilidade perpetrada na sociedade.
Dando seguimento, apontam-se, então, os objetivos deste trabalho: salientar a importância da justiça restaurativa no contexto escolar/educacional e, do mesmo modo, ampliar o campo de debate sobre Cultura de Paz nas escolas; frisar sobre a nocividade do punitivismo aplicado dentro das escolas, tal qual fora delas; apresentar os Direitos Humanos fundamentais das crianças e dos adolescentes, os quais são menosprezados pelo modelo de justiça penal; acentuar a necessidade de mudança paradigmática, do punitivismo para o restaurativismo social; difundir novas ideias e conhecimentos que possam contribuir com a gestão de conflitos escolares; e, do mesmo modo, abrir espaço para novas pesquisas sobre justiça restaurativa e justiça criminal.
À vista do exposto, são partes integrantes deste artigo: esta introdução; um capítulo que busca apresentar o significado da justiça restaurativa de modo geral; um segundo capítulo que comenta sobre a relação entre justiça restaurativa e Direitos Humanos demonstrando que o modo restaurativo de resolução de conflitos está em completa harmonia com as normas de
Direitos Humanos; um terceiro capítulo em que se discute o modelo “corretivo” dentro das escolas e fora delas, o quão nocivo se apresenta a interferência da justiça criminal, especificamente do sistema socioeducativo na resolução dos conflitos escolares, a partir de uma análise sobre o punitivismo estatal, e a realidade do supracitado sistema no Brasil; e um último capítulo, em que é apresentado o poder que as práticas restaurativas possuem no sentido de transformar positivamente as instituições de ensino, porquanto relegam padrões repressores e violadores de Direitos Humanos; além disso, constituem também este artigo as considerações finais e as referências.
Justiça Restaurativa: considerações iniciais
As relações interpessoais estão envolvidas por conflitos complexos, os quais podem originar-se de diversos problemas sociais – desigualdade, preconceitos e estigmatização social, como exemplos. Cumpre destacar que os referidos problemas sociais são atos que perpassam os múltiplos espaços e relações, negando sujeitos, inclusive suas escolhas e ações (FRINHANI; FONSECA, 2016, p. 7).
Nesse sentido, o modelo de Justiça Restaurativa apresenta estratégias de resolução de conflitos que buscam afastar o punitivismo, os atos meramente sancionatórios aplicados em resposta à violência, a partir do desenvolvimento de práticas educativas que contribuam para a não reprodução da violência (FRINHANI; FONSECA, 2016, p. 5), muitas vezes enraizada no meio social. Ou seja, a Justiça Restaurativa busca trazer o conflito e as partes dele ao centro dos debates, utilizando o diálogo, ao mesmo tempo discutindo sobre as práticas hostis, de modo que as pessoas possam compreender suas atitudes e as atitudes alheias, como e por qual motivo elas se desenvolveram, bem como desconstruir ideias e construir relações baseadas no respeito.
De maneira mais clara e didática, o magistrado Egberto de Almeida Penido define que a Justiça Restaurativa é um conjunto ordenado de princípios, métodos, técnicas e ações, por meio dos quais os conflitos que causam malefícios são solucionados de modo estruturado e harmonioso, com a participação das pessoas interessadas – vítima, ofensor, famílias, comunidade e sociedade – e coordenados por indivíduos capacitados em técnica autocompositiva voltada para a solução do conflito, tendo como foco as necessidades de todos os envolvidos, à corresponsabilidade daqueles que contribuíram de alguma forma para o evento danoso e o empoderamento da sociedade como um todo, através da reparação do dano e recomposição do tecido social danificado pela infração, sem a intervenção do Estado e sem focar na culpa (PENIDO, p. 6).
Destaca-se, ainda, que a concretização e a materialização da Justiça Restaurativa ocorrem a partir das metodologias inseridas no conjunto de práticas restaurativas; é por meio dessas práticas que a Justiça Restaurativa se coloca em andamento (PASSOS; RIBEIRO, 2016, p.32). E quais são essas metodologias citadas? Alguns exemplos: as reuniões familiares, os círculos restaurativos, entre outros, como consta na cartilha “Justiça Restaurativa no ambiente escolar: estruturando o Novo Paradigma” (PASSOS; RIBEIRO, 2016, p. 36-38).
Cumpre acentuar, desse modo, que as práticas restaurativas evidenciam a importância de ouvir a perspectiva do outro, tanto da vítima como do ofensor, sem fazer prejulgamentos ou intimidar as pessoas que buscam um caminho pacífico para a resolução dos conflitos que estão inseridos, pois nasceram da própria Justiça Restaurativa e acompanham suas bases conceituais, principiológicas e filosóficas.
Revela-se, assim, que a Justiça Restaurativa, em suas diversas formas amplas e inclusivas, possibilita o acesso a uma justiça humanizadora, livre das amarras da “justiça comum” (jurisdição estatal) a qual silencia as partes e apenas centraliza as relações às formalidades existentes no processo penal e demais âmbitos processuais.
Justiça Restaurativa e Direitos Humanos
O principal instrumento da Justiça Restaurativa é o diálogo, é por meio dele que as pessoas, em situação de conflito, buscam restaurar vínculos e rever atitudes, expor os sentimentos envolvidos em determinada situação e compreender o outro à sua frente. Marcelo Pelizzoli relata, nesse sentido, com maior profundidade, que o diálogo, além de promover a inclusão, viabiliza a responsabilização no sentido de dar oportunidade de falar, de responder, ou seja, de ser trazido à cena social, sem envolver a punição, mas sim a reflexão e conscientização das atitudes e fatos ocorridos (PELIZZOLI, 2014, p. 10). Ainda, o referido professor ressalta que: “[…] o diálogo e o seu acompanhamento, o suporte humano, traz implícito possibilidades inauditas de „cura‟, de reinserção social, ressocialização, desde que ele não seja uma simples e descompromissada conversa […]” (PELIZZOLI, 2914, p.10).
Nessa perspectiva, de modo abrangente, Paulo Freire em seu livro “Pedagogia do Oprimido” evidencia também a importância do diálogo, assegurando ser este uma “exigência existencial”, fundamental para que os sujeitos aufiram significação enquanto sujeitos que, através do diálogo, solidarizam o refletir e o agir próprios para que assim seja possível a transformação e humanização do mundo (FREIRE, 1988, p. 51). Desse modo, nota-se que a comunicação por meio do diálogo é indispensável em práticas restaurativas, pois ele permite uma interação plena e ativa.
Necessário frisar, a partir da elucidação anterior, que o diálogo está atrelado a três princípios fundamentais de Direitos Humanos: a) o princípio da igualdade, pois o processo dialógico em uma prática restaurativa tem como paradigmas o protagonismo voluntário da vítima, do ofensor, da comunidade afetada, com a participação de colaboradores, a horizontalidade e a igualdade (VASCONCELOS, 2008, p. 125), ou seja, a participação é dinâmica, a voz de todos é igualmente importante no processo dialógico; prezando sempre pela liberdade de seguir ou não na prática restaurativa; b) o princípio da fraternidade, uma vez que permite a responsabilidade dos indivíduos os quais são membros da Comunidade e que por isso devem visar não somente o próprio bem, mas o bem comum (SALMERIÃO, 2013); c) o princípio da dignidade humana, dado que o diálogo restaurativo, já destacado, não replica a violência, mas permite a ressocialização, onde todos são tratados como sujeitos de direitos (o que de fato são), merecedores do mesmo respeito e consideração por parte da comunidade (SARLET, 2001, p.60).
Observa-se, então, que a Justiça Restaurativa, a partir do seu principal instrumento, está vinculada aos direitos humanos, pois converge com os três princípios fundamentais citados, apresentados no artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948).
Nesta seara, constata-se que a Justiça Restaurativa busca humanizar as resoluções típicas de conflito, com a aproximação dos envolvidos no delito para que possam reparar juntos os danos causados, trazendo, então, uma nova racionalidade ética e penal firmada na Cultura de Paz e na valorização dos direitos individuais e sociais, consequentemente, nos direitos humanos, base de todo e qualquer procedimento que procure regular os conflitos sociais (DEDAVID, 2011, p. 97).
Todavia, é imperioso constatar que a justiça penal tradicional desvia do processo de humanização e centraliza seus esforços na punição, na vingança, na própria violência que afirma combater, ferindo, portanto, a dignidade humana da vítima e do ofensor, por isso deve ser repensada e renovada a fim de objetivar-se a restaurar as relações. É possível identificar tal fato nas palavras de Marcelo Gonçalves Saliba:
O sistema penal não é apto a solucionar problemas e conflitos diversos, ainda mais quando se direciona a tutela do Direito Penal para proteção de Direitos Humanos fundamentais, já que a resposta punitiva, como único meio apresentado, encontra-se deslegitimada. […] Essa justiça penal somente encontrará legitimidade se respeitar a dignidade da pessoa humana e os Direitos Humanos, podendo-se dizer, então, que se transforma numa justiça penal que promove a justiça social. […] A justiça restaurativa é uma opção viável dentro dessa linha de entendimento, pois sua estrutura rompe com o tradicional […]. (SALIBA, 2007, p. 140, 167 e 168)
Cumpre destacar também que esta justiça penal se apresenta altamente onerosa e não traz resultados positivos para a sociedade, como é destacado em trabalho com participação do sociólogo Marcelo Rolim, citado no artigo “Cultura de Paz e Justiça Restaurativa: uma jornada de alma” do magistrado Egberto Penido:
[…] Pode-se, com razão, argumentar que a experiência concreta realizada com a justiça criminal na modernidade está marcada por um conjunto de promessas não cumpridas que vão desde a alegada função dissuasória ou intimidatória das penas até a perspectiva de ressocialização. […] Estamos, afinal, ao que tudo indica, diante de um complexo e custoso aparato institucional que, em regra, não funciona para a responsabilização dos infratores, não produz justiça, nem se constitui em um verdadeiro sistema. […] (ROLIM, p.7 apud PENIDO, p. 6)
Dessa maneira, observa-se que a justiça comum está calcada em fundamentos obsoletos, com métodos inflexíveis e custosos, não levando em consideração as partes do processo, mas sim a própria necessidade de punir. Ao contrário, a Justiça Restaurativa representa um aperfeiçoamento institucional dos órgãos estatais na ação de lidar com os atos criminosos, significando um acréscimo de eficiência e de humanidade à Justiça Penal (VASCONCELOS, 2008, p. 126), isto é, o modelo restaurativo de tratar os conflitos não tem como proposta eliminar o poder de coerção do Estado, mas transformá-lo, torná-lo humano e em completa harmonia com os direitos à vida, à dignidade, à liberdade, à igualdade, à fraternidade, à paz e demais direitos inerentes ao corpo social.
O punitivismo nas escolas e a ineficiência do sistema socioeducativo
A escola, assim como o seio familiar, é um importante ambiente de formação da identidade das crianças e dos adolescentes a partir da conexão vital deles com outras pessoas de múltiplos contextos e com histórias diversas (BOYES-WATSON; PRANIS, 2011, p.269).
Relevante destacar, nesse sentido, que os estudantes levam para a escola seus sentimentos que poderão ser compartilhados a partir do convívio e, de qualquer modo, influenciarão no desenvolvimento pessoal de cada um e nos relacionamentos com colegas, professores, entre outros integrantes da comunidade escolar. Estes sentimentos, no entanto, podem estar associados a algum tipo de sofrimento, vivência traumática não reconhecida, diante do fato de que cada pessoa carrega consigo o legado de relacionamentos que podem ter gerado algum trauma psíquico (BOYES-WATSON; PRANIS, 2011, p.273). Por estes fatos, sendo a escola um espaço de convivência, interação e compartilhamento de sentimentos, é um espaço onde naturalmente ocorrerão conflitos que afetam toda a comunidade escolar e que necessitam ser administrados pela própria instituição (ARLÉ, 2018. In.: JAYME; CARVALHO, p. 27).
Observa-se, todavia, a prevalência de uma pedagogia punitiva, culpabilizadora e individualizante em diversos domínios sociais, incluindo o campo educacional, tendo em vista que as instituições de ensino utilizam mecanismos formais de controle, envolvendo classe, sistema de avaliação e crenças meritocráticas que classificam determinados alunos como talentosos e outros como fracassados, por exemplo, o que promove um ambiente intolerante e repressivo, com efeitos semelhantes ao modelo de funcionamento da justiça criminal (LIMA, 2020, p. 743). Assim, muitas escolas não conseguem gerir as situações que envolvem desentendimentos a partir do diálogo autocompositivo, de uma escuta verdadeira e acolhedora, pois está contaminada pela intolerância perpetrada na sociedade. Sobre este fato, explica Clóvis da Silva Santana:
Tal como no Sistema de Justiça Criminal, a lógica retributiva de fazer justiça também está presente na escola (advertência, tarefa disciplinar, suspensão, transferência, expulsão, etc.). Certamente que as normas disciplinares da escola são uma referência para se perceber e caracterizar a indisciplina, sob pena de, no contexto atual, imperar a desordem ou a anarquia. Instalado o conflito na escola, busca-se a identificação do autor, a culpabilização e a punição (advertência, suspensão, transferência, etc.), contudo, esse modo de proceder não parece estimular a reflexão sobre as causas subjacentes ao conflito, as quais não são consideradas na lógica retributiva, tornando o processo pouco eficaz sob o aspecto da prevenção e da restauração das relações sociais (SANTANA, 2011, p. 82).
À vista disso, em diversas ocasiões, quando observam que necessitam de uma “força maior” (além do castigo escolar), as escolas promovem a policialização e a judicialização dos casos, abrindo espaço para decisões heterocompositivas, as quais não se apresentam satisfatórias para manter construtivamente as relações ou para restaurar a comunidade escolar afetada, pois a justiça criminal é estranha ao conflito e apenas busca enquadrar os conflitos escolares a tipos penais e, assim, aplicar punições (ARLÉ, 2018. In.: JAYME; CARVALHO, p. 27-28). Ou seja, grande parte das instituições de ensino, eivadas de violência, por influência da sociedade punitivista, busca a resolução dos conflitos na própria violência, seja ela pela sanção escolar ou pela sanção promovida pelo judiciário, reproduzindo ainda mais atos de violência no meio social.
Destaca-se que a justiça criminal está inserida no modelo retributivo ou punitivo de justiça, o qual busca identificar quem errou e, então, reeducá-lo forçadamente, de maneira hostil, através da pena, para manter o controle, rejeitando as necessidades e sentimentos das vítimas e dos ofensores (SANTANA, 2011, p. 19).
É propriamente no referido modelo de justiça que o sistema socioeducativo brasileiro, voltado para “jovens infratores”, está inserido. Segundo Jana Gonçalves Zappe, pesquisas realizadas dentro de unidades de internação de adolescentes, de 22 estados brasileiros, através de uma parceria entre a Ordem dos Advogados do Brasil e o Conselho Federal de Psicologia no ano de 2006, mostraram que várias unidades encontravam-se superlotadas, apresentados instalações físicas precárias, oferta irregular de escolarização e profissionalização, além de denúncias de espancamentos e maus-tratos (ZAPPE, 2011, p. 122-123). A psicóloga, ainda, apresenta alguns resultados do Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei do ano de 2011, como ameaças constantes à integridade física dos adolescentes, violência psicológica, mau tratos e torturas, situações de insalubridade, negligência quanto à saúde dos internados, entre outras situações violadoras de Direitos Humanos (ZAPPE, 2011, p. 124-125).
Para corroborar os problemas existentes no sistema punitivo apresentado, em 2019,
Conselho Nacional do Ministério Público elaborou um estudo sobre os programas socioeducativos de semiliberdade e internação nos Estados brasileiros e no Distrito Federal e concluiu que diversos estados apresentam superlotação em unidades socioeducativas, com grandes números de vagas de internação (CNMP, 2019). Compreende-se que a superlotação indica negligência quanto aos cuidados necessários que devem ser dados aos adolescentes; não há preocupação com a ressocialização, com o desenvolvimento integral dos jovens, apenas há objetificação e perpetuação da violência prisional, reforçando as palavras de Jana Gonçalves Zappe: “Neste sentido, a instituição se configura como um local de sofrimento e amargura, em que o intuito é que o castigo sirva como pagamento por um passado repleto de erros e, assim, se reproduz a percepção histórica do sistema prisional” (ZAPPE, 2011, p. 124).
Decerto, percebe-se que a realidade exposta do sistema socioeducativo brasileiro diverge da Constituição Federal de 1988, uma vez que o artigo 227 da citada Carta Maior afirma ser dever geral de todos assegurar direitos fundamentais, como a vida, a saúde, a dignidade, a liberdade, entre outros direitos, às crianças e aos adolescentes:
Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Do mesmo modo, há desarmonia entre tal sistema e o Estatuto da Criança e do Adolescente, pois o artigo 18 do ECA também evidencia a garantia de direitos fundamentais aos menores: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.
Portanto, o que se observa é uma grave violação aos dispositivos legais de proteção integral às crianças e aos adolescentes, os quais estão em conformidade com os Direitos Humanos, dado que os direitos fundamentais citados pelas normas jurídicas, doutrinariamente, são considerados Direitos Humanos (presentes na Declaração Universal de Direitos Humanos) que foram positivados pela ordem jurídica interna e que são caracterizados como imprescritíveis, irrenunciáveis, invioláveis, universais e efetivos (MATTIOLI; OLIVEIRA, 2017, p. 23).
Desse modo, é importante aplicar formas restaurativas de resolução de conflitos escolares, com participação ativa da comunidade escolar, através do diálogo, não ocorrendo a intervenção direta da justiça criminal comum, que, na maioria das vezes, não está preocupada com o desenvolvimento saudável e com as vivências dos jovens brasileiros e por isso os colocam sob o amparo do deficiente sistema socioeducativo.
Humanização da comunidade escolar por meio das práticas restaurativas
Em face da natural integração observada no ambiente escolar, a partir da troca de experiências e ideias, Dominic Barter relata, em entrevista, que a escola deve ser um espaço seguro (de compreensão) para falar a verdade e desenvolver uma parceria íntima e nãoviolenta, sendo ela, dessa forma, o local ideal para aprender a viver a democracia, a liberdade, de forma ativa e não fragilizada, onde os conflitos não são ignorados, mas sim vistos como uma questão pedagógica, cívica e necessária ao desenvolvimento dos cidadãos (BERNARDINO, p. 5-6 apud BARTER, 2017).
Nesse sentido, a escola precisa enfrentar o paradigma punitivista que a impede de inserir o diálogo e a comunicação não-violenta em seu dia a dia e abrir espaço ao novo paradigma fundamentado na defesa dos Direitos Humanos: o sócio-restaurativo, o qual apresenta em si uma justiça que procura, antes de tudo, atender necessidades e endireitar as situações, já que centraliza o relacionamento “vítima-ofensor”, enfatiza a reparação dos danos sociais, valoriza a reciprocidade, bem como o comportamento responsável e a reconciliação (ZEHR, 2008, p. 30-31). Essa transformação paradigmática, no entanto, não é simples, pois o punitivismo criou raízes na sociedade atual e por isso requer um trabalho árduo e em conjunto de toda a comunidade escolar.
Destaca-se, então, a necessidade da escola realizar capacitações restaurativas, que incluam alunos e professores, com o objetivo de mostrar um novo olhar sobre o conflito, sobre o “eu” e o “outro” e sobre a essência humana, contribuindo, desta forma, para o desenvolvimento de habilidades sociais importantes para o convívio humano e social conectadas à justiça restaurativa, a qual possui como principais valores: o respeito, a verdade, a confiança, o autocontrole, e autodisciplina, a aceitação, a responsabilidade, o compromisso, a colaboração e a prestação de contas (PELLÁ; SCARDUA; VANELLI; DICK; GIORDANI, p. 5-6).
Vale frisar, em complemento, que as referidas capacitações prezam por uma metodologia vivencial, dinâmica, reflexiva e dialogal que trabalha a comunicação assertiva, a escuta ativa, a comunicação sem ruídos, a compaixão e a empatia (PELLÁ; SCARDUA; VANELLI; DICK; GIORDANI, p. 4-5).
Salienta-se que a educação vinculada à Justiça Restaurativa, faz emergir escolas pacificadoras e humanizadoras, preocupadas em garantir os Direitos Humanos e amparar, de maneira igualitária, todo o público escolar, conforme pode ser visto a seguir:
Nos ambientes escolares, a Justiça Restaurativa implicará em uma cultura relacional, com o propósito de criar espaços de pertencimento, que amparam a todos em suas necessidades, a partir dos pressupostos e intenções de nutrir ambientes justos e equitativos, em que todos os alunos e funcionários são reconhecidos e aceitos por quem são, inclusive por sua raça, gênero, sexualidade, condição socioeconômica, religião, linguagem, etc. A nutrição de relacionamentos saudáveis é o reconhecimento de que a saúde social e emocional é vital para aprender e para viver. Tanto alunos como professores florescem quando se sentem aceitos e respeitados por aqueles com quem convivem (BERNARDINO, p.10).
Por conseguinte, a fim de incorporar a justiça restaurativa nas escolas e evitar a imisção do Estado nos conflitos internos, juntamente com o preparo da comunidade escolar, devem ser aplicadas práticas restaurativas, as quais abarcam todas as metodologias que concretizam ou materializam a justiça restaurativa, quais sejam três principais: a mediação (vítima-ofensor ou restaurativa), os círculos de paz e os círculos restaurativos (PASSOS; RIBEIRO, 2016, p. 31-32).
Sobre a mediação, destaca-se que tanto pode contar com a ajuda de um mediador, como dos próprios alunos, “jovens mediadores”, para realização da prática composta por cinco etapas evolutivas destinadas a dialogar sobre o evento danoso, o que ele causou, quais as soluções que atendam as necessidades de quem sofreu e de quem praticou o dano, o acordo que pode ser firmado e o acompanhamento do cumprimento do que foi efetivamente acordado (PASSOS; RIBEIRO, 2016, p. 33-36).
No que diz respeito aos círculos de paz, estes serão conduzidos por facilitadores que auxiliam o grupo a criar e manter um espaço coletivo com utilização de perguntas e objetos que estimulam a reflexão dos alunos e funcionários das escolas que estejam envolvidos no conflito, nesse sentido todos podem se expressar de maneira clara e direta, sem desrespeitar os demais (CARMADELO; HANSEL; LUCAS, 2018. In.: DAMIANI; HANSEL; QUADROS, p.119-123 ).
Por fim, os círculos restaurativos são sessões coletivas que visam identificar as várias dimensões e repercussões do conflito na comunidade escolar, também acompanhadas por facilitadores e encontram-se entre os pré-círculos, essenciais para identificar os danos, necessidades e sentimentos e os pós-círculos destinados a verificar se os procedimentos restaurativos foram eficazes para as partes envolvidas no processo dialógico (JAYME; ARAÚJO, 2018, p. 16-17).
Por certo, as práticas restaurativas, como um todo, seja mediação ou processos circulares, tem como objetivo dar voz à escola, permitir que alunos, professores e demais funcionários possam externalizar suas emoções e traduzir ideias que tragam soluções benéficas aos conflitos, sempre em total concordância com os Direitos Humanos.
Assim sendo, a justiça restaurativa leva à escola a sua real autonomia e a liberta das amarras da violência institucional, contribuindo para o desfazimento da cultura de que os conflitos só podem ser bem guiados e administrados mediante a atuação jurisdicional (TONCHE, 2016, p. 139), maculada por atos perversos e desumanos.
Considerações finais
Deve-se enfatizar que uma educação voltada para paz é uma educação para os Direitos Humanos, isto é, a justiça restaurativa (firmada na cultura de paz) no contexto educacional promove a concretização dos Direitos Humanos fundamentais das crianças e dos adolescentes, integralmente recepcionados pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Importante frisar, então, que as práticas restaurativas são essenciais na concepção de atores sociais livres da ideologia punitivista, perpetrada pelo direito penal culpabilizador, portanto, preparados para lidar com os conflitos de forma humanizadora e independente.
Em seguimento, ao término deste artigo, verifica-se que a justiça restaurativa deve ser inserida nas escolas, por meio de cursos, para capacitação, e práticas (círculos, mediações, quer dizer encontros dialógicos), de modo que as emoções compartilhadas naquele ambiente sejam apreciadas e não julgadas.
Por isso, pensar em planos de atuação dentro das escolas, com a criação de núcleos específicos para práticas restaurativas, com a colaboração de diversos facilitadores (entre professores e os próprios alunos), juntamente com o auxílio das secretarias de educação, estaduais e municipais, no caso das escolas públicas, pode ser um bom caminho para a efetivação da cultura dos Direitos Humanos.
Logo, a educação deve ir além e, portanto, oportunizar o cuidado e o afeto que trarão bons resultados na vida dos futuros jovens e adultos, pois tais ações têm a capacidade de ressignificar a essência do conflito e propiciar um caminho para relações saudáveis e pacíficas.
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[1] Email: cleciacristinagalindo@gmail.com. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco.
[2] Email: marcondesdireito@gmail.com. Professor universitário. Graduado em Direito pela Uninassau. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco.