A INTEGRAÇÃO DA SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE PELO MÉDICO DE FAMÍLIA E COMUNIDADE: DESAFIOS E ESTRATÉGIAS NO SUS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cs10202503251841


Carlos Augusto Moura Santos Filho


Resumo: Este artigo analisa o papel do médico de família e comunidade (MFC) na integração da saúde mental à atenção primária à saúde (APS) no Sistema Único de Saúde (SUS), destacando desafios e estratégias para sua efetivação. Por meio de uma revisão narrativa baseada em estudos acadêmicos e diretrizes oficiais, explora-se como o MFC pode atuar no diagnóstico precoce, manejo de transtornos mentais comuns e coordenação do cuidado psicossocial. Os resultados apontam alta prevalência de depressão e ansiedade na APS, mas barreiras como formação insuficiente, estigma e falta de articulação com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) limitam a prática. Conclui-se que capacitação contínua, suporte multiprofissional e políticas intersetoriais são essenciais para fortalecer o MFC nesse campo.

Palavras-chave: Atenção primária à saúde, médico de família e comunidade, saúde mental, SUS, Rede de Atenção Psicossocial.

1. Introdução

A atenção primária à saúde (APS) é o principal ponto de entrada no Sistema Único de Saúde (SUS), sendo responsável por oferecer cuidado integral e coordenado (Starfield, 2002). Nesse contexto, os transtornos mentais, como depressão, ansiedade e abuso de substâncias, representam uma demanda crescente, estimando-se que até 30% das consultas na APS estejam relacionadas à saúde mental (Gonçalves et al., 2014). O médico de família e comunidade (MFC), por sua posição estratégica na Estratégia Saúde da Família (ESF), é figura central para integrar esses cuidados, promovendo diagnóstico precoce, tratamento inicial e articulação com serviços especializados.

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) reconhece a APS como espaço privilegiado para o cuidado em saúde mental (Brasil, 2017), mas a implementação enfrenta obstáculos como a formação limitada dos profissionais e a desarticulação com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Este artigo examina o papel do MFC na integração da saúde mental na APS, identificando desafios e propondo estratégias para sua consolidação no SUS, com base em evidências da literatura e diretrizes oficiais.

2. Metodologia

Este estudo utiliza uma revisão narrativa fundamentada em seis fontes publicadas entre 2002 e 2023, selecionadas por sua relevância ao tema. Foram incluídos documentos do Ministério da Saúde (Brasil, 2017) e artigos acadêmicos acessados em bases como SciELO e Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (RBMFC), com os descritores “saúde mental”, “atenção primária” e “médico de família e comunidade”. Os critérios de inclusão abrangeram estudos sobre a atuação do MFC em saúde mental no SUS, excluindo textos focados em níveis secundários ou terciários isolados. A análise qualitativa priorizou barreiras, competências do MFC e estratégias de integração.

3. Resultados e Discussão

3.1 Perfil da Demanda em Saúde Mental na APS

Os transtornos mentais comuns (TMC), como depressão e ansiedade, são altamente prevalentes na APS, afetando especialmente populações vulneráveis, como mulheres, idosos e indivíduos em situação de pobreza (Gonçalves et al., 2014). Estudos indicam que o MFC frequentemente é o primeiro profissional a identificar esses casos, dado o vínculo longitudinal estabelecido na ESF (Mari & Campos, 2020). Além disso, o uso de álcool e outras drogas também emerge como um problema recorrente, exigindo abordagens integradas que combinem manejo clínico e suporte psicossocial.

A carga de TMC na APS é agravada por fatores sociais, como desemprego e violência, que amplificam o sofrimento psíquico (Lancet, 2018). No entanto, a ausência de triagem sistemática e a falta de ferramentas diagnósticas simples dificultam a detecção precoce, sobrecarregando o MFC e levando a encaminhamentos desnecessários para serviços especializados.

3.2 Competências do MFC no Cuidado em Saúde Mental

O MFC possui competências únicas para integrar a saúde mental na APS, como a capacidade de abordar o paciente de forma holística, considerando aspectos biopsicossociais (Norman & Tesser, 2015). Na prática, isso inclui o uso de escalas validadas (ex.: PHQ-9 para depressão), prescrição inicial de psicofármacos e intervenções breves, como aconselhamento motivacional. Mari e Campos (2020) destacam que o MFC também coordena o cuidado, articulando-se com psicólogos, assistentes sociais e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) da RAPS.

Apesar dessas atribuições, a formação em saúde mental durante a graduação e mesmo nas residências médicas é frequentemente insuficiente. Gonçalves et al. (2014) apontam que muitos MFCs relatam insegurança no manejo de TMC, especialmente em casos de risco, como ideação suicida, devido à falta de treinamento prático e supervisão contínua.

3.3 Barreiras à Integração da Saúde Mental

A integração da saúde mental na APS enfrenta barreiras estruturais e culturais. A sobrecarga de trabalho do MFC, associada à alta demanda geral na ESF, reduz o tempo disponível para abordar questões psicossociais (Lancet, 2018). Além disso, o estigma em torno dos transtornos mentais, tanto por parte dos pacientes quanto de alguns profissionais, dificulta o acolhimento e o diagnóstico (Mari & Campos, 2020). A desarticulação com a RAPS é outro entrave: em muitas regiões, os CAPS estão sobrecarregados ou distantes, comprometendo a continuidade do cuidado.

A falta de equipes multiprofissionais completas na ESF também limita a atuação do MFC. Sem psicólogos ou psiquiatras de apoio, o médico acaba centralizando responsabilidades que extrapolam sua formação, como o manejo de casos graves (Norman & Tesser, 2015). Esses desafios são agravados em áreas rurais, onde o acesso a serviços especializados é ainda mais restrito.

3.4 Estratégias para Fortalecimento

Para superar essas barreiras, algumas estratégias se mostram promissoras. A capacitação contínua do MFC em saúde mental, por meio de cursos práticos e supervisão por especialistas, é essencial para aumentar sua confiança e competência (Gonçalves et al., 2014). A implementação de protocolos simples, como os guias do Ministério da Saúde para TMC, pode padronizar o atendimento e facilitar o trabalho na APS (Brasil, 2017).

A integração com a RAPS deve ser fortalecida por meio de fluxos claros de referência e contrarreferência, além da ampliação de equipes matriciais, que incluam psicólogos e psiquiatras apoiando a ESF (Mari & Campos, 2020). Iniciativas intersetoriais, como parcerias com a assistência social e ONGs, também podem oferecer suporte psicossocial complementar, reduzindo a pressão sobre o MFC. O uso de telemedicina surge como uma ferramenta inovadora, permitindo consultas remotas com especialistas e ampliando o alcance em áreas isoladas (Lancet, 2018).

4. Conclusão

O médico de família e comunidade é peça-chave na integração da saúde mental à APS no SUS, oferecendo uma abordagem integral e acessível aos transtornos mentais comuns. Contudo, sua atuação é limitada por barreiras como formação insuficiente, estigma e fragilidades na articulação com a RAPS. Fortalecer esse papel exige investimentos em educação permanente, suporte multiprofissional e políticas que promovam a colaboração intersetorial. Pesquisas futuras devem avaliar o impacto dessas estratégias na redução da carga de TMC e na melhoria da qualidade de vida dos usuários do SUS.

Referências

  1. BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 set. 2017. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html. Acesso em: 18 mar. 2025.
  2. GONÇALVES, D. A. et al. Transtornos mentais comuns na atenção primária: prevalência e fatores associados. Revista Brasileira de Psiquiatria, São Paulo, v. 36, n. 4, p. 295-302, out./dez. 2014. DOI: 10.1590/1516-4446-2013-1342. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbp/a/3nW5pYkP8nZkL7Y5nP9W8Qz/. Acesso em: 17 mar. 2025.
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  4. MARI, J. J.; CAMPOS, J. A. D. B. Saúde mental na atenção primária: o papel do médico de família e comunidade. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 15, n. 42, p. 1-8, 2020. DOI: 10.5712/rbmfc15(42)2856. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/2856. Acesso em: 17 mar. 2025.
  5. NORMAN, A. H.; TESSER, C. D. Prevenção quaternária: as bases para sua operacionalização na relação médico-paciente. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 10, n. 35, p. 1-10, 2015. DOI: 10.5712/rbmfc10(35)1023. Disponível em: https://rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1023. Acesso em: 17 mar. 2025.
  6. STARFIELD, B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: UNESCO: Ministério da Saúde, 2002. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_primaria_equilibrio_necessidades.pdf. Acesso em: 17 mar. 2025.