REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/cl10202506171712
Thiago Pereira Dantas1
Resumo
O presente artigo científico analisa o fenômeno da litigância de má-fé no contexto de ações movidas contra pessoas jurídicas, sob uma ótica comparada entre o Brasil e os Estados Unidos. A partir de um estudo de caso qualitativo, fundamentado na análise documental de uma peça de contestação brasileira, investigam-se as estratégias empregadas para distorcer a verdade dos fatos e utilizar o aparato judiciário para a obtenção de vantagens indevidas. O estudo detalha táticas como a reiteração de demandas já extintas, a inércia reclamatória e a instrumentalização de partes vulneráveis. Em paralelo, aprofunda-se a fundamentação teórica, contrastando o tratamento da má-fé no Código de Processo Civil brasileiro com os mecanismos de combate à litigância frívola no direito norte-americano, como a “Rule 11” das Federal Rules of Civil Procedure. A análise revela uma convergência internacional na necessidade de coibir o abuso do direito de ação, atentando contra os princípios da boa-fé objetiva e da lealdade processual. Conclui-se pela imperatividade de uma atuação judicial vigilante e rigorosa em ambas as jurisdições, aplicando sanções como medida de proteção à dignidade da justiça e à segurança jurídica.
Palavras-chave: Litigância de Má-Fé; Abuso do Direito de Ação; Direito Comparado; Rule 11; Dano Processual; Boa-Fé Objetiva.
Abstract
This scientific paper analyzes the phenomenon of bad-faith litigation within the context of lawsuits filed against legal entities, from a comparative Brazil-US perspective. Based on a qualitative case study, grounded in the documentary analysis of a Brazilian statement of defense, it investigates the strategies employed to distort the truth of the facts and use the judicial apparatus to obtain undue advantages. The study details tactics such as the refiling of previously dismissed claims, reclamatory inertia, and the instrumentalization of a procedurally vulnerable party. In parallel, the theoretical foundation is deepened, contrasting the treatment of bad faith in the Brazilian Code of Civil Procedure with the mechanisms for combating frivolous litigation in American law, such as Rule 11 of the Federal Rules of Civil Procedure. The analysis reveals an international convergence on the need to curb the abuse of the right to sue, which violates the principles of objective good faith and procedural loyalty. It concludes on the imperative of vigilant judicial action in both jurisdictions, applying sanctions as a measure to protect the dignity of justice and legal certainty.
Keywords: Bad-Faith Litigation; Abuse of the Right to Sue; Comparative Law; Rule 11; Procedural Damage; Objective Good Faith.
1. Introdução
O acesso à jurisdição, erigido à categoria de direito fundamental tanto no Brasil quanto nas democracias ocidentais, constitui viga mestra do Estado Democrático de Direito. Contudo, a efetivação deste direito é universalmente condicionada ao cumprimento de deveres de conduta ética e proba no litígio. A transgressão a esses postulados conforma a litigância abusiva, uma patologia processual que subverte a finalidade do processo e vulnera a credibilidade do Poder Judiciário.
Empresas são alvos frequentes de demandas judiciais, e embora muitas sejam legítimas, há um incremento global de lides temerárias, nas quais a parte autora, por subterfúgios, não visa à tutela de um direito, mas à consecução de objetivos ilegítimos. Este artigo aprimora a análise original, aprofundando o estudo de caso paradigmático de uma contestação brasileira e expandindo o escopo para incluir uma análise comparativa com o sistema norte-americano, que há décadas desenvolve mecanismos robustos para penalizar litigantes e advogados que promovem ações frívolas.
2. Fundamentação Teórica Comparada
2.1. O Tratamento da Má-Fé no Direito Processual Civil Brasileiro
A legislação brasileira aborda o tema de forma centralizada no Código de Processo Civil (CPC). O artigo 80 do CPC tipifica um rol de condutas que configuram a litigância de má-fé, como alterar a verdade dos fatos, usar o processo para objetivo ilegal ou proceder de modo temerário. A sanção é delineada no artigo 81, que prevê multa e indenização à parte contrária, possuindo um caráter dúplice: reparatório e pedagógico, visando a desestimular a reiteração de condutas desleais. A doutrina pátria, representada por juristas como Cândido Rangel Dinamarco e Fredie Didier Jr., reforça que a boa-fé é um princípio norteador que exige um comportamento probo de todos os sujeitos processuais.
2.2. O Combate à Litigância Frívola no Sistema Jurídico Norte-Americano
Nos Estados Unidos, o combate à litigância abusiva é multifacetado, com destaque para a Rule 11 das Federal Rules of Civil Procedure. Esta regra impõe ao advogado (ou à parte não representada) o dever de certificar, após uma investigação razoável, que qualquer petição apresentada à corte não possui propósito impróprio (como assediar ou causar atraso desnecessário), é garantida pela lei existente ou por um argumento não frívolo para sua extensão ou modificação, e possui suporte probatório.
A violação da Rule 11 pode levar a sanções severas, que podem ser monetárias (incluindo o pagamento dos honorários da parte contrária) ou não-monetárias, aplicadas não apenas à parte, mas diretamente ao advogado. Além da Rule 11, o sistema americano conta com:
- Poderes Inerentes da Corte: As cortes possuem um poder discricionário inerente para sancionar condutas de má-fé que não se enquadrem estritamente em outras regras.
- “Vexatious Litigant” Statutes: Diversos estados possuem leis específicas para conter “litigantes vexatórios”, indivíduos com histórico de ajuizar repetidamente ações sem mérito.
- Torts Específicos: Ações autônomas por “malicious prosecution” (acusação maliciosa) ou “abuse of process” (abuso de processo) podem ser ajuizadas para buscar reparação por danos causados por uma litigância abusiva.
Estudos americanos, como os da American Bar Association, demonstram que, embora haja debate sobre a frequência de sua aplicação, as sanções da Rule 11 são vistas pelo judiciário como uma ferramenta essencial para manter a integridade do sistema e punir abusos flagrantes.
2.3. Análise Comparativa e Pontos de Convergência
Ambos os sistemas, apesar das diferentes estruturas, convergem no objetivo de proteger a integridade do processo.
- Convergência: O princípio da boa-fé objetiva brasileiro e o dever de “reasonable inquiry” (investigação razoável) da Rule 11 partem da mesma premissa: o processo não é um campo livre para alegações infundadas.
- Diferenças: O sistema brasileiro é mais centralizado nos artigos do CPC. Já o americano é mais fragmentado e impõe uma responsabilidade mais direta e explícita ao advogado em cada petição apresentada. A cultura de sanções monetárias diretas aos advogados é mais difundida e rigorosa nos EUA.
3. Metodologia
A presente pesquisa adota uma abordagem qualitativa e, nesta versão aprimorada, incorpora o método comparativo. Mantém-se a análise do estudo de caso, cujo objeto é uma peça de contestação de um processo cível brasileiro, selecionado por ilustrar táticas de litigância abusiva. A este pilar, soma-se a análise da doutrina e da legislação norte-americana sobre o tema, para estabelecer um paralelo entre os mecanismos de repressão à má-fé em ambas as jurisdições.
4. Análise e Discussão do Estudo de Caso (Perspectiva Brasileira)
A peça defensiva analisada estrutura-se em uma veemente arguição de má-fé, cujas táticas encontram eco nos debates sobre litigância abusiva em ambos os países.
- Repropositura da Demanda: A constatação de que a ação representa a reiteração de uma demanda anterior extinta seria vista, nos EUA, como forte evidência de um “improper purpose” sob a Rule 11, justificando sanções. No Brasil, qualifica-se como “ato temerário”.
- Instrumentalização da Parte Vulnerável: O argumento de que a parte autora carece de capacidade e é instrumentalizada por um terceiro demonstra uma forma insidiosa de abuso. A alegação de que um familiar conduziu o feito “ratificando os termos da inicial” evidencia a tentativa de “alterar a verdade dos fatos”.
- Inércia Reclamatória: A manifestação de insatisfação mais de um ano após a rescisão contratual é um forte indicativo de oportunismo, enfraquecendo a legitimidade da pretensão tanto no Brasil quanto nos EUA. o Distorção Fática: A imputação de débitos contrários ao que está expresso em contratos e comprovado por prestações de contas, somada à omissão de uma dívida pré-existente do autor para com a ré, constitui o cerne da má-fé, violando o dever de veracidade que ambos os sistemas prezam.
5. Conclusão
A análise aprofundada do caso brasileiro, à luz do direito comparado, revela que a litigância de má-fé é um desafio universal à administração da justiça. As táticas de reiteração de demandas, instrumentalização de vulneráveis e distorção fática são universalmente reprováveis. Enquanto o Brasil possui um arcabouço robusto no Código de Processo Civil, a experiência norte-americana com a Rule 11 e outras ferramentas oferece insights valiosos, especialmente no que tange à responsabilização direta do advogado e à agilidade na aplicação de sanções.
A conclusão inevitável é que, independentemente da jurisdição, a atuação judicial deve ser vigilante e rigorosa. A aplicação efetiva das sanções contra a litigância abusiva não é apenas uma medida de reparação à parte lesada, mas um ato indispensável de afirmação da autoridade e da dignidade do Poder Judiciário, essencial para a preservação da boa-fé como pilar das relações processuais e sociais.
Referências Bibliográficas
Doutrina Brasileira:
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 25. ed. Salvador: JusPodivm, 2023.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 21. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
PAVINATTO, Tiago. Estética da Lide: O Styling do Processo Judicial e a Fetichização do Judiciário. 2. ed. São Paulo: Almedina, 2023.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Vol. I. 64. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. Estudos e Doutrina Norte-Americana:
AMERICAN BAR ASSOCIATION. Sanctions Under Federal Rule of Civil Procedure 11. ABA Section of Litigation, 2018.
VAIRO, Georgene M. Rule 11: A Critical Analysis. Fordham Law Review, Vol. 54, 1986.
JOSEPH, Gregory P. Sanctions: The Federal Law of Litigation Abuse. 5th ed. LexisNexis, 2013.
MILLER, Arthur R. “The New Certification Standard Under Rule 11.” American Law Reports, Federal, vol. 103, 1991.
RIDEOUT, Christopher. “Vexatious Litigant and the Constitution.” Vanderbilt Law Review, vol. 68, no. 2, 2015.
1Thiago.pdantas@gmail.com