A INSTITUIÇÃO IMAGINÁRIA DA SOCIEDADE E A DEMOCRACIA RADICAL: REFLEXÕES A PARTIR DE CORNELIUS CASTORIADIS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249231123


                       Aline Sousa Bessa[1]
Daniele Sousa Bessa[2]
Alessandra Zelinda Sousa Bessa[3]


Resumo: O presente artigo explora a ideias de Cornelius Castoriadis sobre a instituição imaginária da sociedade e a democracia radical. Castoriadis argumenta que as sociedades são construídas sobre significações imaginárias que influenciam a percepção e organização social. O autor critica as democracias representativas, pois, no seu ponto de vista, estas instituições limitam a participação cidadã. Sendo assim, ele propõe uma democracia radical baseada na autonomia e na participação contínua e efetiva dos cidadãos. O texto discute como as idieias de Castoriadis podem reformar as instituições democráticas atuais, sugerindo a necessidade de estruturas mais participativas e deliberativas onde a cidadania, de fato seja considerada. Analisa, ainda, as propostas de Castoriadis para uma democracia radical que leve em conta a participação contínua dos cidadãos nas tomadas de decisões políticas. O principal objetivo do artigo é demonstrar como as ideias de Cornelius Castoriadis pode nos conduzir  e nos inspirar a um pensamento crítico sobre as instituições democráticas contemporâneas. Para alcançar as propostas do artigo, será empregada a metodologia a indutiva com enfoque qualitativo da pesquisa bibliográfica, permitindo a formulação mais precisa de problemas e a crição de novas hipóteses. As principais referências metodológicas são: Cornelius Castoriadis; Gaston Bachelard; Gilbert Duran e Charles Taylor.

Palavras-chave: Instituição imaginária. Sociedade. Democracia Radical. Cornelius Castoriadis.

Abstract: This article explores Cornelius Castoriadis’ ideas about the imaginary institution of society and radical democracy. Castoriadis argues that societies are built on imaginary meanings that influence perception and social organization. The author criticizes representative democracies because, in his point of view, these institutions limit citizen participation. Therefore, he proposes a radical democracy based on autonomy and the continuous and effective participation of citizens. The text discusses how Castoriadis’ ideas can reform current democratic institutions, suggesting the need for more participatory and deliberative structures where citizenship is actually considered. It also analyzes Castoriadis’ proposals for a radical democracy that takes into account the continuous participation of citizens in political decision-making. The main objective of the article is to demonstrate how Cornelius Castoriadis’ ideas can lead and inspire us to critical thinking about contemporary democratic institutions. To achieve the article’s proposals, inductive methodology will be used with a qualitative focus on bibliographical research, allowing for a more precise formulation of problems and the creation of new hypotheses. The main methodological references are: Cornelius Castoriadis; Gaston Bachelard; Gilbert Duran and Charles Taylor.

Key: words:  Imaginary institution. Society. Radical Democracy. Cornelius Castoriadis.

1.Introdução

Cornelius Castoriadis foi um economista, filósofo, psicanalista, crítico político, e pensador da linha marxista nascido em Atenas, na  Grécia em 1922, mas radicou-se na França,  desde 1945, local onde seus pensamentos passaram a ser disseminados, vindo a falecer no ano de 1977. O principal foco de su pensamento é fazer uma revisão dos  conceitos  e  discursos  políticos  da  modernidade,  visando a construção de um espaço  político  efetivamente democrático, onde os cidadãos, na sua mais complexa pluralidade, sejam considerados (MAIA, 2008, p. 170)

O pensamento Castoriadis apresenta uma concepção política e social alicercada na idéia da criação de novas formas de organização da sociedade. Essa nova organização tem como pressuposto a necessidade de repensar o conceito de instituição. Nessa discussão Castoriadis propõe a noção de imaginário como elemento que transcende a racionalidade e a funcionalidade da instituição social, dessa transcendência deriva o conceito castoriadiano de instituição imaginária.

Aliada a esse pensamento está também a noção de democracia radical como crítica às instituições democráticas modernas. Conforme se constará no artigo, esses conceitos levam a uma revisão da noção de democracia  e a percepção da necessidade de reformas das insituições democráticas atuais e da própria organização social. Para melhor compreensão das ideiais, o texto está dividido em duas partes. A primeira se concentrada sobre o tema da instituição imaginária da sociedade; a segunda sobre o tema da democracia radical visando caminhos para a superação do modelo de democracia institucional dos tempos atuais que não apresenta amplos espaços para a cidadania de modo plural e deliberativo.

2. A intuição imaginária da sociedade

Para Castoriadis a consciência humana é essencialmente prática e criadora. Muito mais do que reflexões teóricas, a consciência tem potencialidade para proporcionar a modificação do mundo material, ainda mais, como também modificar as condutas dos homens e de suas relações (CASTORIADIS, 1982, p.33)

Conforme Castoriadis enquanto agrupamento humano a sociedade, tem sido objeto de investigação em vários momentos históricos, tanto do ponto de vista filosófico, sociológico, como político e psicológico. Apesar de filósofo marxista, Castoriadis desenvolve uma reflexão psicológica da sociedade. Segundo ele, todo indivíduo possui um núcleo psíquico, irredutível às forças sócio-históricas. “A sociedade é uto-criação e auto-alteração, a partir de cada indivíduo, como uma salvação do caos da psique. Portanto, as significações imaginárias criam o mundo para cada indivíduo. A sociedade, então, são as instituições enquanto que a psique é a rebeldia em toda sua balbúrdia. Podemos afirmar que do ponto de vista psicossocial, o indivíduo é fabricado:  a psique vai abandonando o caos e investindo-se num mundo  institucional, apropriando-se  de  regras  socialmente  instituídas.  Socializar-se, portanto, é interiorizar as instituições. Assim, a sociedade cria o mundo, o investe de sentido, faz um conjunto de provisões de significação destinada a suprir com antecedência tudo o que aparecer e dota-se de um poder para que a socialização aja diante da psique. Poder então seria a capacidade de levar alguém a fazer o que sozinha não faria, convencido de que o faz espontaneamente: eis o indivíduo institucionalizado (MAIA, 2008, p. 172-173)

A partir desse pensamento, se percebe em Castoriadis uma crítica a teoria marxista, bem como toda a lógica do pensamento ocidental, a começar por Platão. Alvo principal de sua crítica, no entanto, são os determinismos da natureza. O que podemos perceber em Castoriadis são reflexões de um pensador preocupado em apresentar uma visão crítica sobre um modelo enrijecido de sociedade moderna que retira do sujeito a autoria, a criação e a responsabilidade (BITENCOURT, 2008, p. 159).

O termo “imaginário” muitas vezes, pode ser compreendido como algo que não existe; uma espécie de mundo oposto à realidade concreta. Às vezes, a noção de imaginário está ligada à ideia de devaneios ou fantasias que permitem a evasão para das preocupações cotidianas. Por outro lado, o imaginário também pode ser o resultado de uma força criadora radical própria à imaginação humana, capaz de transcender a realidade e transformá-la. (BARBIER, 1994, p. 15). É nesse sentido que podemos pensar o conceito de imaginário social no ponto de vista de Castoriadis.

Para Castoriadis, a história é criação; criação de formas totais de vida humana. As formas sociais-históricas não são “determinadas” por “leis” naturais ou históricas. A sociedade é autocriação. Quem cria a sociedade e a história é a sociedade instituinte, em oposição à sociedade instituída, imaginário social no sentido radical. A auto-instituição da sociedade é a criação de um mundo humano: de coisas, de realidade, de linguagem, de normas, de valores, modos de viver e de morrer, objetivos pelos quais vivemos e outros pelos quais morremos — e, obviamente, em primeiro lugar e acima de tudo, ela é criação do indivíduo humano no qual a instituição da sociedade está solidamente incorporada (CASTORIADIS, 1987, p. 271)

Para Castoriadis o termo imaginário, nada tem a ver com o que algumas correntes psicanalíticas apresentam como “imaginário”: o “especular”, que, evidentemente, é apenas imagem de e imagem refletida. O imaginário não é a partir da imagem no espelho ou no olhar do outro. O imaginário é a criação incessante e essencialmente indeterminada de figuras/ formas/ imagem, a partir das quais somente é possível falar-se de “alguma coisa” (CASTORIADIS, 1982, p. 13)

 O ser social vincula-se ao modo de ser da psique, pois “a verdadeira polaridade não é aquela entre indivíduo e sociedade, mas entre psique e sociedade” (CASTORIADIS, 1992, p. 274). A instituição social é responsável por isso, pela emergência da separação, para o indivíduo, entre um mundo privado e um mundo público. Não há passagem tranqüila da psique à sociedade, o indivíduo “não é um fruto da natureza, mesmo tropical, ele é criação e instituição social” (CASTORIADIS, 1995, p. 355).

Imaginário social e/ou sociedade instituinte designam aquilo que no social-histórico é posição, criação e fazer-ser. Imaginário radical é aquilo que é posição, criação e fazer-ser na e para a psique. Castoriadis utiliza também o termo imaginário radical numa acepção ampla, referenciado a toda e qualquer atividade instituinte, individual ou coletiva (CASTORIADIS, 1995, p. 414).

A partir do imaginário Castoriadis pensa a relação de inerência do humano ao social-histórico expressando o sentido profundo das escolhas humanas, enquanto escolhas fundadoras da vida social, a ação humana como criação coletiva social-histórica tomada na acepção política (forte) do termo.  Assim descreve o autor:

Minha meta é que se passe de uma cultura da culpa para uma cultura da responsabilidade… O que tenho em vista são indivíduos capazes de assumir tanto suas pulsões quanto o fato de que pertencem a uma coletividade que somente pode existir enquanto coletividade instituída, que não pode existir sem leis, nem por acordo milagroso das espontaneidades… é porque deus está morto – ou porque nunca existiu – que não se pode fazer tudo. É porque não há outra instância que nós somos responsáveis (CASTORIADIS, 2002, p. 107).

Outro pensador que desenvolve a ideia de imaginário para pensar a sociedade é Bachelard. Bachelard é um filósofo que vai a fundo na relação do imaginário com o real. “De fato, a maneira pela qual escapamos do real designa claramente a nossa realidade íntima. Um ser privado da função do irreal é um neurótico, tanto como o ser privado da função do real”(BACHELARD, 2001, p. 7)

Em Bachelard real e imaginário não são instâncias separadas, mas que se complementam. De certa forma, a ideia bachelardiana é a de que quem não sabe sonhar não sabe percorrer todas as possibilidades do “real”. O que seria da ciência sem o pensamento livre, aberto e questionador? “O sonho não é um produto da vida acordada. É o estado subjetivo fundamental” (BACHELARD, 2001, p. 101)

Para Bachelard a imaginação não éum abstrato ou um irreal, mas é algo vivo. Além disso, a imaginação não é apenas passiva, não mora apenas no olhar; ela pode ser também ativa, construtora; assim ela se transforma na imaginação das mãos, na imaginação que molda, cria e que se movimenta: a imaginação dinâmica.

Nesse sentido, a imaginação não é meramente a faculdade de formar as imagens da realidade; ela é a faculdade de formar as imagens que ultrapassam a realidade. Ela é uma faculdade de sobre-humanidade. A imaginação inventa a nova vida, ela inventa do novo espírito. (BABHELARD, 1993, p. 25)

Para Durand “o imaginário, longe de ser paixão vã, é ação eufémica e transforma o mundo” A poesia é um piloto, Orfeu acompanha Jasão. (DURAND, 1984, p. 500/501) O imaginário revela-se muito especialmente como um lugar de “entre saberes” (DURAND, 1996, p. 215- 227). É pela imaginação que acontece a doação do sentido e que funciona o processo de simbolização, é por ela que o pensamento do homem se desaliena dos objetos que a divertem, como os sonhos e os delírios que a pervertem e a engolem nos desejos tomados por realidade (DURAND, 1984, p. 37)

Nesse sentido, a imaginação, revela-se como um fator importante de equilíbrio psicossocial. Por isso, o autor salienta a função da imaginação consiste em equilibrar biológica, psíquica e sociologicamente quer os indivíduos, quer as sociedades. A este respeito, Gilbert Durand salienta que o imaginário, ao constituir a essência do espírito, representa o esforço do ser para levantar uma esperança viva face e contra o mundo objetivo da morte (DURAND, 1984, p. 499). Neste sentido, o imaginário, devedor da imaginação criadora, visa a transformação do mundo, iniciando pelas instituições. 

O imaginário, portanto, à luz de Castoriadis e Bachelard é uma força criadora capaz de dinamizar a lógica rígida da instituição social e romper com os determinismos da natureza. Sendo assim a imaginação pode ser um importante instrumento para se pensar em novas organizações sociais mais abertas, plurais e participativas, onde poderá ser implantada uma democracia radical que supere as democracias tradicionais.

2. Democracia radical

Para os gregos a liberdade estava relacionada à participação ativa e coletiva do poder político. Nesse sentido, era livre quem pertencesse ao grupo social, consequentemente, que não participasse da pólis, isto é, da vida política, era considerado bárbaro ou carente de liberdade. Era na pólis, na vida sociopolítica que o indivíduo expressava a sua liberdade (TOMASEVICIUS FILHO, 2006, p. 1086).

Este caráter da liberdade como pertença ao grupo social fazia com que esta fosse considerada um status reservado a poucos (TOMASEVICIUS FILHO, 2006, p. 1086). Desse modo não se concebia a liberdade como uma escolha pessoal ou ato voluntario e subjetivo. O verdadeiro sentido de liberdade se dava, para os gregos, sobretudo numa dimensão coletiva, numa vivencia social e política. No entanto, onde poucos poderiam participar. Portanto, nessa perspectiva grega de democracia era um apanágio reservado, seletivo, envolvendo principalmente homens e adultos.

O filósofo inglês John Locke também revelava a sua dimensão coletiva, comunitária da política. No seu pensamento, a sociedade não somente seria o local onde o direito de liberdade deveriam ser partilhados, como também controlados e atém mesmo punidos quando infligem leis coletivas.  Para ele, a ideia de liberdade a ideia de coletividade deveria superar a ideia de individualidade. A própria sociedade deve criar mecanismos que regularizasse isso, que não permitisse arbitrariedades. Segundo Locke ao ingressar na sociedade política, cada indivíduo passava a assumir a obrigação de submeter-se à vontade e à resolução da maioria. Essa maioria, para o filósofo era é única maneira de essa comunidade agir (BARROS, 2019, p. 67).

Para ele esse era nessa relação entre indivíduos e coletividade que residiria o verdadeiro sentido do termo democracia. Contudo, nos últimos anos, tem se percebido que o termo democracia, a semelhança dos gregos, não tem abarcado a todos os cidadãos, uma imensa gama de pessoas, tem tido pouca partição nos espaços políticos e nas instituições democráticas. É nesse âmbito que tem se desenvolvido o conceito de democracia radical. Como afirma Castoriadis:

Não é somente o Antigo Regime que o público e o político é assunto privado do monarca ou sob o totalitarismo do aparelho do partido, uma das múltiplas razões pelas quais seria risível falar de democracia nas sociedades ocidentais de hoje é que a esfera pública nelas é, de fato privado – isso tanto na França quanto nos Estados Unidos ou Inglaterra (CASTORIADIS, 2004, 208)

Soa empegar o conceito de democracia radical para fazer referência ao modelo teórico ou a uma forma de exercício da política que defende a participação ativa dos cidadãos em todas as esferas da vida social incluindo dentro das políticas institucionais, a administração de bens comuns e recursos públicos ou a intervenção em processo de deliberação e tomada de decisões. Quem sustenta esse modelo de propostas apresentam as formas institucionais da democracia representativa como modalidades mais intensas de participação política, como assembleias ou conselhos cidadãos, plebiscitos populares, ou seja, momentos participativos ou outras instâncias de decisão coletiva. Entendida deste modo, a democracia radical expressa um compromisso com o empoderamento da cidadania, a igualdade política dos indivíduos e a descentralização do poder.

Esta definição de uso comum nos debates políticos e intelectuais sobre os movimentos sociais e novos repertórios democráticos expressa a complexa história conceptual que sublinha o termo de democracia radical e não esgota a enorme diversidade de significados que tem recebido esta noção, especialmente na filosofia política ocidental nas últimas décadas. Geralmente, a democracia radical é definida como como uma forma de pensar a democracia sem recorrer a essências, princípios universais ou fundamentos de legitimidade.

A democracia é radical não somente quanto garante uma maior participação da cidadania nos assuntos comuns, senão quando se concebe a si mesma como um processo de realização dos ideais democráticos. Do ponto de vista filosófico, a democracia radical é uma forma de superar as deficiências específicas da democracia institucional representativa. A democracia radical não é simplesmente uma crítica a democracia tradicional, mas uma forma de ampliar o espaço político incluindo novos objetos, novas identidades coletivas e novas formas relações entre a políticas e os cidadãos.

Castoriadis argumenta que a origem da sociedade e a formação da humanidade não podem ser atribuídas a um poder divino ou forças naturais externas, rejeitando a ideia de uma construção heterônoma. Para ele, a sociedade se constitui de maneira autônoma, através de um processo contínuo de autocriação e autoalteração. Ele enfatiza que tanto o ser humano quanto o mundo surgem do abismo do caos, caracterizando-se pela indeterminação fundamental.

O filósofo define o imaginário social como os sentidos conferidos às instituições sociais, resultado da interação entre o imaginário instituinte e o instituído através da lógica identitária-conjuntista. Esse processo gera constantes transformações pelas quais novos significados entrelaçados emergem e influenciam a vida dos indivíduos e das sociedades.

Castoriadis sugere que todas as formas de organização política, como autocracia, plutocracia e democracia, são criações imaginárias instituídas, que estão em constante evolução de acordo com as mudanças sociais e individuais. Ele critica vigorosamente o atual modelo de democracia nos países capitalistas burocráticos totalitários e fragmentados, argumentando que o regime democrático existente é um instituto social incompleto. Apesar do sufrágio universal, ele observa que as decisões sobre questões de interesse público são frequentemente tomadas de forma burocratizada pelos partidos políticos, limitando a participação popular e o autogoverno da coletividade.

Castoriadis conclui que o modelo democrático contemporâneo, baseado no “individualismo substancial”, priva a sociedade de uma verdadeira participação nas decisões públicas, indicando que há muito pouco de democrático nesse sistema.

Segundo Castoriadis, a democracia não pode ser reduzida à simples garantia de igualdade formal de condições, uma função que poderia ser desempenhada por qualquer religião. Ele argumenta que essa visão limitada não captura a verdadeira amplitude e demanda da democracia. Para Castoriadis, a democracia é o poder do povo (demos), da coletividade, e isso implica muito mais do que apenas fornecer condições igualitárias formais. Ela é um regime de autolimitação, onde os cidadãos têm o poder de participar ativamente na tomada de decisões que afetam suas vidas e a sociedade como um todo. Castoriadis afirma que a essência da democracia está na capacidade da coletividade se autodeterminar, e ele argumenta que esse conceito não se limita a um sistema político, mas está fundamentalmente enraizado nos princípios dos direitos humanos. Para ele, a democracia significa, antes de tudo, que o poder pertence à coletividade.

Há duas ideias fundamentais do pensamento de Castoriadis: o conceito dos donos do poder como os donos da significação e o conceito de política como a  atividade coletiva  tendo  como  objeto  a  instituição  da  sociedade enquanto  a  política. Para o autor, estamos na premência de criar novas significações, dotando de sentido as instituições sociais. Temos a necessidade da imaginação, como a capacidade de propor novas formas políticas”. É nesse âmbito que se insere a democracia radical. A democracia pressupõe a construção de um corpo político, capaz de superar do modelo burguês liberal, que cria um inerte, indiferente, um irresponsável político. (MAIA, 2008, 172-173)

Pertinente é o pensamento de Castoriadis nesse sentido:

O ponto essencial é que em democracia não temos uma ciência da coisa pública e do bem comum, temos opiniões das pessoas; essas opiniões se enfrentam, são discutidas, argumentadas e depois, finalmente, o povo, toma uma posição e decide por seu voto (CASTORIADIS, 2006, p. 152).

Sobre esse tema outro autor importante é Charles Taylor. Esse autor canadense analisa a relação entre o indivíduo e a sociedade e critica o individualismo que segundo ele, possui em seus pressupostos a ideia de um self desengajado.  Segundo Taylor, no cenário da sociedade contemporânea, o individualismo apresenta-se de forma ambivalente. Existe uma constante busca de emancipação do indivíduo diante dos controles morais da sociedade tradicional, onde “cada um tem o direito de desenvolver a sua própria forma de vida, fundada sobre a sua percepção daquilo que é realmente importante ou tem valor para si (TAYLOR, 1992, p.14).

Nesse aspecto, que se revela o lado obscuro individualismo: centrando-se sobre o próprio eu, o ser humano nivela e restringe sua vida, empobrecendo-a de significado, distanciando-a do interesse pelos outros e pela sociedade: “A cultura da auto-realização conduziu muitos a perder de vistas as questões que os transcende enquanto indivíduos” (TAYLOR, 1992, p.15).

Desse modo, o individualismo acaba por influenciar a dimensão política da vida na sociedade contemporânea. Uma sociedade onde as pessoas preocupam-se demasiadamente consigo mesmas, reduzindo-se cada vez mais à condição de indivíduos isolados (TAYLOR, 1992, p.9)

Esta é uma sociedade onde poucos desejam participar, e um número menor ainda efetivamente participa ativamente do autogoverno da sociedade. Este tipo de sociedade cria condições para o surgimento de um despotismo ou o totalitarismo. Onde leis são promulgadas, sem a partição popular. Esse é um dos graves problemas da sociedade contemporânea e das instituições democráticas atuais: todas centralizadas, burocratizadas, onde os indivíduos se alienam das decisões da esfera pública e do controle político, deixando todo o poder nas mãos dos representantes, que muitas vezes, não representam a vontade geral, mas apenas as vontades particulares ou de seus próprios grupos e seus interesses.

Percebe-se claramente que as instituições e as estruturas da sociedade da maneira como estão organizadas limitam drasticamente as nossas escolhas, transformando democracia não num espaço político direito e radical, mas um espaço reservado a alguns ligados ao poder centralizado (TAYLOR, 1992. p.8).

Castoriadis argumenta que a sociedade contemporânea enfrenta um desafio significativo: decidir coletivamente quais questões devem ser abordadas em conjunto e quais devem ser deixadas para decisões individuais. Ele critica severamente as chamadas “democracias modernas”, que descreve como oligárquicas, onde um estrato específico domina a sociedade enquanto permite algumas liberdades formais aos cidadãos. Para Castoriadis, a esfera pública não é genuinamente acessível a todos, seja devido à complexidade técnica e burocrática que obscurece informações importantes, seja porque as decisões cruciais são tomadas nos bastidores.(COELHO,2022)

Além do acesso restrito às informações, ele aponta a necessidade de habilidades específicas para interpretar e agir com base nessas informações, como compreensão jurídica e procedimental, tempo para reflexão e participação ativa. Castoriadis desafia a associação entre democracia e capitalismo, destacando que os direitos fundamentais não são invenções do capitalismo, mas foram conquistados ao longo de séculos de lutas populares contra várias formas de poder oligárquico.(COELHO,2022)

Ele critica a representação política nas democracias contemporâneas, argumentando que a eleição de representantes não elimina a distinção entre governantes e governados, essencial para uma verdadeira democracia. Alega que o sistema representativo favorece uma elite financeira que financia campanhas caras e influencia decisivamente os resultados eleitorais. Além disso, questiona a própria lógica da representação, argumentando que a delegação de poder a longo prazo a representantes irrevogáveis é fundamentalmente anti-democrática.(COELHO,2022)

Segundo Castoriadis, o simples fato de que governo e instâncias legislativas sejam exercidos por representantes eleitos por voto direto já seria suficiente para descaracterizar as chamadas “democracias modernas” como tal, uma vez que essa organização do poder supõe uma distinção entre governantes e governados. Para o autor, a democracia se caracteriza pela eliminação dessa distinção. Argumenta-se frequentemente que isso não compromete a igualdade política, pois todos os cidadãos são elegíveis para os cargos de representação. No entanto, mesmo essa característica é típica das oligarquias ou, no máximo, de uma suposta aristocracia, onde os “melhores” são selecionados para governar. Trata-se de um sistema que claramente favorece os ricos e bem-nascidos (ou, como se diz hoje, os “ricos e famosos”), no mínimo porque, para se eleger, é necessário ser conhecido.

Castoriadis também critica os partidos políticos, descrevendo-os como estruturas burocráticas dominadas por clãs auto-cooptados, cujo principal objetivo é conquistar e manter o poder. Ele argumenta que os partidos políticos exercem um controle significativo sobre os poderes legislativo e executivo, distorcendo a separação de poderes e minando a autonomia do judiciário.(COELHO,2022)

Em suma, Castoriadis oferece uma crítica profunda das estruturas democráticas contemporâneas, argumentando que elas falham em alcançar os ideais democráticos genuínos ao perpetuar formas de oligarquia e representação política que alienam os cidadãos comuns do processo decisório real.

CONCLUSÃO

À luz de Castoriadis o presente artigo abordou os temas da instituição imaginária da sociedade e a democracia radical como subsídios para o desenvolvimento de críticas à instituição democrática atual. Além de Castoriadis, outros referenciais teóricos foram utilizados, tais como Bachelard, Durant e Taylor. A partir desses pensadores se conclui que as instituições democráticas pensadas por filósofos e sociólogos, muitas vezes se manifestam de maneiras rígidas e fechadas sem grandes espaços para a cidadania.

Uma forma de proporcionar abertura à pluralidade que caracteriza a cidadania pode por meio de novos conceitos e novas noções para se pensar na organização social, dentre eles se destacam a instituição imaginária e a democracia radical. A partir desses conceitos é possível estabelecer caminhos de reformas das instituições democráticas atuais, onde ainda onde cidadãos ainda não conseguem exercer efetivamente os seus papéis e direitos políticos com amplas garantias.

Após a crítica contundente aos sistemas políticos contemporâneos, é essencial abordar breves reflexões que não conduzem a conclusões definitivas, mas sim a novos questionamentos. Em primeiro lugar, essa crítica nos ajuda a discernir claramente entre democracia verdadeira e uma “pseudo-democracia”, destacando que defender a democracia não implica necessariamente apoiar as instituições existentes associadas a ela, como representação política, partidos políticos e burocracia estatal. Pelo contrário, exige uma crítica constante a essas estruturas.

  Além disso, essa distinção nos leva a reconhecer a importância das conquistas das revoluções modernas, como os direitos fundamentais e a separação de poderes. No entanto, é crucial compreender que defender essas conquistas não é suficiente, pois elas frequentemente estão ameaçadas e não atendem plenamente às necessidades de uma sociedade verdadeiramente democrática.

Para alcançar uma democracia mais autêntica, à luz das ideias de Castoriadis, é necessário não apenas preservar essas conquistas, mas também avançar além delas. Isso implica promover a participação direta e questionar vigorosamente as instituições que demonstraram repetidamente ser incapazes de garantir esses direitos e garantias de forma eficaz.

No entanto, é crucial evitar a confusão entre “questionar” e “rejeitar integralmente” o sistema vigente. Existe uma rica cultura democrática fora dos órgãos oficiais de poder, manifestada em práticas e tradições desenvolvidas por movimentos sociais e associações de classe, que são fundamentais para a luta por uma democracia mais inclusiva.(COELHO,2022)

Além disso, a análise de Castoriadis ressalta a importância dos movimentos contemporâneos, como o Occupy e outras reações à crise financeira global, que expressam um desejo claro por uma democracia real e uma crítica contundente ao sistema representativo. No entanto, esses movimentos também enfrentam desafios significativos, incluindo questões demográficas e a prevalência de consumismo e imediatismo.(COELHO,2022)

Quanto ao prognóstico futuro, Castoriadis não se mostrava otimista em relação às perspectivas de transformação significativa das sociedades contemporâneas, observando uma tendência crescente ao conformismo generalizado e à privatização.             Embora os movimentos recentes tenham trazido à tona novas aspirações e críticas, ainda é cedo para determinar seu impacto a longo prazo.

Para Castoriadis, a democracia só pode ser alcançada através da ação coletiva da sociedade, pois ela representa uma instituição imaginária que se origina apenas pela autogestão. Portanto, o único caminho para a democracia é através da participação coletiva real, que envolve autotransformação e autoconstituição. O filósofo defende que a forma autêntica de organização política para o envolvimento popular é a democracia direta. Historicamente, a população demonstrou sua capacidade de gerenciar questões públicas de maneira direta, contribuindo significativamente para transformações políticas e sociais.(COELHO,2022)

Castoriadis enfatiza a evolução das instituições democráticas como crucial para alcançar um estágio em que a comunidade possa conquistar a liberdade de participar na formulação de suas próprias leis, no autogoverno e na plena autonomia humana real.

Por meio de suas ideias, Castoriadis oferece uma visão renovada para a jornada da humanidade. Essa jornada implica na criação transformadora de um novo imaginário social instituinte, moldando um novo tipo de indivíduo social, caracterizado por liberdade e autonomia. Esse processo visa materializar a existência efetiva de um regime que pertença a todos e todas, onde todos tenham o direito de participar plenamente nas decisões públicas, promovendo a mais autêntica partilha do poder sobre o que é de interesse comum.

Em conclusão, a luta por uma democracia autêntica é, essencialmente, uma luta pedagógica. Envolve não apenas questionar as estruturas existentes, mas também cultivar hábitos e instituições que possam verdadeiramente encarnar os ideais democráticos. A luta por instituições e hábitos que formem um “tipo antropológico democrático” é essencial para criar pessoas que correspondam às instituições democráticas e as façam funcionar conforme o espírito de sua criação, o que envolve a constante recriação dessas mesmas instituições. Os movimentos contemporâneos oferecem uma oportunidade única para esse esforço, potencialmente inaugurando um período de criação e inovação institucional que desafie a inércia política das últimas décadas.(COELHO,2022)

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[1] Graduada em Direito (UVA), Pós-graduada em Direito Constitucional e Mestranda em Direito Constitucional (UFC).

[2] Graduada em Direito (UVA), Pós-graduada em Direito Constitucional, Pós- graduada em Direito Administrativo e Econômico e  Mestranda em Direito Constitucional (UFC).

[3] Graduada em Letras (UVA), Mestre em Letras (UFC) e Doutoranda em Letras(UFC).