A INCONVENCIONALIDADE DO MARCO TEMPORAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL VERSUS A PROPRIEDADE COMUNAL INDÍGENA NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7068980


Autor:
Carlúcio Germano da Silva1


RESUMO

É pacífico no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH – que aos órgãos jurisdicionais e a Administração Pública em geral incumbe o dever de analisar as normas internas em relação aos sistemas regionais e internacionais de Direitos Humanos que o Estado em questão integre. Nesse aspecto, destaca-se a divergência entre a posição do Supremo Tribunal Federal – STF no julgamento do caso Raposa Serra do Sol pelo marco temporal ou teoria do fato indígena e a da Corte IDH nos casos Moiwana vs. Suriname e Saramaka vs. Suriname, quando adotada a teoria do Indigenato. Quanto a isso, tem-se neste trabalho a hipótese de que essa decisão do STF seria inconvencional por desbordar da Convenção 169 da OIT, a qual aponta que as terras indígenas e tribais devem ser aquelas autoatribuídas e ocupadas de forma imemorial (mesmo que não contínua) pelas comunidades nativas. Hoje, a questão volta ao crivo do STF com o caso Xokleng, o que confirma a atualidade do tema e a possibilidade de mudança no entendimento. A par disso, pretende-se, neste artigo, abordar, mesmo que de forma breve, a (in)convencionalidade do marco temporal ante a normativa internacional da convenção 169 da OIT, discutindo-se, em paralelo, aspectos centrais como os direitos humanos e fundamentais envolvidos e o contexto jurídico constitucional permeado pela controvérsia.

Palavras-chave: Terra Indígena. Marco Temporal. Inconvencionalidade.

ABSTRACT

It is common ground within the Inter-American Court of Human Rights – Inter-American Court of Human Rights – that the jurisdictional bodies and the Public Administration in general have the duty to analyze the internal norms in relation to the regional and international human rights systems that the State in question belongs to. In this regard, the divergence between the position of the Federal Supreme Court – STF in the Raposa Serra do Sol case by the time frame or theory of indigenous fact and that of the Inter-American Court of Human Rights in the cases Moiwana v. Suriname and Saramaka vs. Suriname, when the Indigenato theory was adopted. In this regard, this paper hypothesizes that this decision of the STF would be unconventional because it goes beyond the ILO Convention 169, which points out that indigenous and tribal lands must be those self-allocated and occupied immemorially (even if not continuously) by native communities. Today, the issue returns to the scrutiny of the STF with the Xokleng case, which confirms the relevance of the topic and the possibility of changing the understanding. At the same time, this article intends to approach, even if briefly, the (un)conventionality of the time frame before the international norms of the ILO convention 169, discussing, in parallel, central aspects such as human rights and fundamental issues involved and the constitutional legal context permeated by the controversy.

Keywords: Indigenous Land. Timeframe. unconventionality.

1. INTRODUÇÃO

Historicamente houve um processo de usurpação das terras ocupadas por povos nativos em todo o continente americano, o que, salvo melhor juízo, iniciou com a incursão dos europeus nas suas grandes navegações.

A esse processo deu-se o nome de colonização, ao mesmo tempo em que se critica o termo descobrimento, posto que, no “Novo Mundo”, já havia “velhos povos”, inclusive cientificamente a frente de seu próprio tempo, com é o caso dos povos andinos, exemplados na civilização Inca.

Nesse aspecto, sob a missão declarada de levar progresso e religião aos povos desconhecidos, os colonizadores implementaram um modelo extrativista, expropriatório, usurpador e escravocrata, subjugando e dizimando indígenas nas américas.

Sob essas circunstâncias, uma das maiores violações perpetradas contras os povos indígenas foi o assalto de suas terras tradicionais, comunitárias, ofendendo-se, com isso, a própria ancestralidade e a espiritualidade dos nativos, que não tinham mecanismo de jurisdição algum a seu favor. Nascia, então, um conflito fundiário que se arrastou por séculos e levou consigo muitas vidas.

Esse quadro foi “solucionado” pelo STF de forma a limitar a amplitude do direito indígena às suas terras, utilizando essa Corte o critério do marco temporal da promulgação da Constituição Federal de 1988 – CF/88 – para, de lá em diante, proteger as terras indígenas efetivamente ocupadas ou, em exceção, as que estejam sob esbulho renitente.

A posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos – Corte IDH – é com base na teoria do Indigenato, segundo a qual a propriedade (e não a posse) dos indígenas sobre suas terras tradicionais não estaria limitada no tempo por um marco temporal, retroagindo a tempos imemoriais.

Assim, performado um conflito, além de vital – posto que ainda há mortes nos conflitos possessórios – jurídico também posto que STF e Corte IDH divergem quanto ao mesmo caso, o que, não sendo mesmo raro (como também passado no caso Gomes Lund vs. Brasil), permite a análise da (in)convencionalidade do entendimento da Corte brasileira, especialmente diante da aqui vigente Convenção 169 da OIT.

2. A PREVISÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A DA CONVENÇÃO 169 DA OIT – A JURISPRUDÊNCIA DO STF E DA CORTE IDH

O tratamento dos direitos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam está previsto no art. 231 da CF/88 (BRASIL, 1988). Nesse sentido, esse artigo dispõe que compete à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Nesse aspecto, a doutrina especializada aponta que na CF/88 não haveria a fixação de um limite temporal para o reconhecimento, demarcação e proteção das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, devendo reger a questão a teoria do indigenato, que fora encabeçada por João Mendes Júnior (MENDES JÚNIOR, 1912, apud NOGUEIRA, 2019).

Segundo consta, Mendes Júnior (1912) considerou os séculos de exploração, exclusão e genocídio praticado contra os povos indígenas durante a colonização portuguesa no Brasil para desenvolver a teoria do indigenato (NOGUEIRA, 2019).

Entretanto, nos autos da Pet. 3.388, na última vez em que teve a oportunidade de decidir sobre as terras indígenas, o STF adotou a teoria do fato indígena, no caso Raposa Serra do Sol.

Para o STF, adotando a teoria do fato indígena, somente seriam “terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas” aquelas que eles tivessem em sua posse direta na data da promulgação da CF/88, excluindo-se, portanto, aquelas ocupadas no passado ou em momento futuro, sem meio termo, com a exceção do esbulho renitente (STF, 2008).

A Corte IDH, por outro lado, ao decidir o caso Moiwana vs. Suriname, entendeu pela interpretação ampla do conceito de terras tradicionais, adotando, portanto, a teoria do indigenato, destacando que:

Sin embargo, esta Corte ha sostenido que, en el caso de comunidades indígenas que han ocupado sus tierras ancestrales de acuerdo con sus prácticas consuetudinarias – pero que carecen de un título formal de propiedad – la posesión de la tierra debería bastar para que obtengan el reconocimiento oficial de dicha propiedad y el consiguiente registro71. La Corte llegó a esa conclusión considerando los lazos únicos y duraderos que unen a las comunidades indígenas con su territorio ancestral. La estrecha relación que los indígenas mantienen con la tierra debe de ser reconocida y comprendida como la base fundamental de sus culturas, su vida espiritual, su integridad y su supervivencia económica72. Para tales pueblos, su nexo comunal con el territorio ancestral no es meramente una cuestión de posesión y producción, sino un elemento material y espiritual del que deben gozar plenamente, inclusive para preservar su legado cultural y transmitirlo a las generaciones futuras.

E, quanto ao critério para aferição dos limites das terras de propriedade comunal Moiwana, foi adotado o parâmetro fixado na Convenção 169 da OIT, no seu art. 6º, item 1, “a”, ao decidir que a:

(…) ocupación tradicional de la aldea de Moiwana y las tierras circundantes – lo cual ha sido reconocido y respetado durante años por los clanes N’djuka y por las comunidades indígenas vecinas (supra párr. 86.4) – debe bastar para obtener reconocimiento estatal de su propiedad. Los límites exactos de ese territorio, sin embargo, sólo pueden determinarse previa consulta con dichas comunidades vecinas (infra párr. 210).

Em razão disso, resta claro que o entendimento da Corte IDH pela aplicação do conceito de propriedade comunal, relacionado, portanto, à teoria do indigenato, implica numa proteção maior, mais ampla e que faz inconvencional a posição adotada pelo STF no caso Raposa Serra do Sol.

3.   A INCONVENCIONALIDADE DA TEORIA DO FATO INDÍGENA (MARCO TEMPORAL)

Considerando-se que a CF/88 não dispõe expressamente sobre a existência de um limite temporal para o reconhecimento e sobre a proteção das terras indígenas, pela regra hermenêutica ordinária, não caberia ao STF fazê-lo, sob pena de incorrer na violação à separação dos Poderes, porquanto agiria como legislador positivo (LENZA, 2020).

No caso Raposa Serra do Sol, o STF, além de fixar a data da promulgação da CF/88 como limitação temporal à proteção das terras indígenas, impôs um rol de 19 condicionalidades ao exercício da posse e usufruto constitucionalmente garantidos aos indígenas daquela região, restringindo ainda mais as liberdades dos povos nativos.

Nesse sentido, considerando-se a posição consolidada da Corte IDH na interpretação do conceito de propriedade comunal e de terras tradicionais indígenas, posto que aplica a teoria do indigenato, é impositivo reconhecer que a decisão do STF, aplicando a teoria do fato indígena, mais restritiva e sem amparo na CF/88, é, além de inconstitucional, inconvencional.

No aspecto substancial, fixar um limite temporal para a proteção constitucional das terras tradicionais indígenas é das a mínima eficácia possível e até mesmo esvaziar o conteúdo da norma prescrita no art. 231 da CF/88 (BRASIL, 1988) ao dispor que são reconhecidos aos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

A expectativa de revisão desse entendimento do STF está no caso Xokleng com o reconhecimento da repercussão geral no recurso extraordinário 1.017.365 Santa Catarina (STF, 2019).

De toda sorte, nada impede que a questão seja finalmente levada, desta vez tendo o Brasil como parte, ao crivo do sistema regional de direitos humanos, ante a visível violação dos direitos humanos das comunidades indígenas, conforme a jurisprudência da Corte IDH.

4.   CONCLUSÃO

Definidas as bases normativas que dão sustento ao direito humano de propriedade dos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, conforme previsto no art. 231 da CF/88, bem como amplamente prescrito na Convenção 169 da OIT, a importância da discussão sobre qual teoria aplicar para a definição do que pode ou não ser “terra indígena” é evidente.

No campo prático, promover a proteção de uma terra indígena é, também, garantir o exercício de outros direitos caros a esses povos, como é o caso da liberdade religiosa indígena, do culto e dos ritos mortuários aos seus ancestrais, do cultivo e da coleta e da consecução dos meios de sobrevivência, alimentação e preservação do meio ambiente e da própria cultura nativa.

No limite, conferir ampla interpretação ao conceito de terras tradicionalmente indígenas é fazer justiça ao desapossamento, à usurpação das terras que, na chegada dos colonizadores, já pertenciam aos “velhos moradores” deste que chamaram de “novo mundo”. A máxima proteção a ser conferida, já que não restitui aquilo que a rigor seria devido a esses povos violados, dizimados e escravizados, coloca limites jurídicos à ganância e à natureza violatória do capital no seu processo de crescer destruindo.

Indubitável e inescusável, portanto, concluir que, do que se tem hoje, o indigenato é o norte que melhor ajusta os contornos dessa batalha historicamente perdida pelos povos indígenas, os quais lutam, no Brasil, para ter o óbvio reconhecido: que sua história não começa em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, como quis o STF.

Em arremate, destaca-se que não se teve a pretensão de analisar de forma substancial essa temática, sendo necessários, sim, maiores aportes. Nesta ocasião, propõe-se um ensaio sintético daquilo que é um problema (ou um processo) estrutural e complexo, envolvendo variadíssimas soluções e consequências no conflito entre os interesses indígenas e capitalistas. Espera-se, portanto e ao menos, lograr a colaboração, por ínfima que seja, no trato da evidenciada inconvencionalidade do quanto decidido pelo STF até hoje quanto às terras indígenas, na esperança de que o jogo se reverta quando do julgamento do caso Xokleng.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 10 jul. 2022.

CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_124_esp1.pdf>. Acesso em 10 jul. 2022.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. São Paulo, Saraiva, 2020.

MENDES JÚNIOR, João. Os Indígenas do Brazil seus Direitos Individuais e Políticos, SP, Typ. Hennies Irmãos, 1912 apud NOGUEIRA, 2019. A TEORIA DO INDIGENATO VS TEORIA DO FATO INDÍGENA (MARCO TEMPORAL): BREVE ANÁLISE DESDE A PERSPECTIVA DO COLONIALISMO INTERNO. Disponível em <https://emporiododireito.com.br/leitura/a-teoria-do-indigenato-vs-teoria-do-fato-indigena-marco-temporal-breve-analise-desde-a-perspectiva-do-colonialismo-interno>. Acesso em 10 jul. 2022.

NOGUEIRA, 2019. A TEORIA DO INDIGENATO VS TEORIA DO FATO INDÍGENA (MARCO TEMPORAL): BREVE ANÁLISE DESDE A PERSPECTIVA DO COLONIALISMO INTERNO. Disponível em <https://emporiododireito.com.br/leitura/a-teoria-do-indigenato-vs-teoria-do-fato-indigena-marco-temporal-breve-analise-desde-a-perspectiva-do-colonialismo-interno>. Acesso em 10 jul. 2022.

STF. BRASIL. MPF. Terra Indígena Limão Verde: Plenário do STF vai analisar tese do marco temporal. 19/10/2018. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/terraindigena -limao-verde-plenario-do-stf-vai-analisar-tese-do-marco-temporal>. Acesso em 10 jul. 2022.

STF. BRASIL. Reconhecida repercussão geral em recurso que discute posse de áreas tradicionalmente ocupadas por indígenas. Disponível em <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749577852>. Acesso em 10 jul. 2022.


1 Mestre em Administração Pública (UFERSA – PROFIAP).
E-mail: carluciogermano@hotmail.com