A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA CONFISSÃO CIRCUNSTANCIADA COMO REQUISITO INDISPENSÁVEL AO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10396198


Vyrna Maria Nobre de Sousa
Eulane Coelho Batista (orientadora)
Joelma Danniely Cavalcanti Meireles (coorientadora)
Jane Karla de Oliveira Santos (coorientadora)
Daniel Carvalho Sampaio (coorientador)


RESUMO: A Lei 13.964 de 2019, popularmente conhecida como “Pacote Anticrimes”, inovou o ordenamento jurídico com a inserção do acordo de não persecução penal (ANPP) no art. 28-A do Código de Processo Penal. O Instituto é inspirado no plea bargaining, que possibilita a negociação entre o Ministério Público e o acusado no Processo Penal. Os requisitos previstos na legislação para que o Ministério Público possa propor o acordo gera ainda muitas dúvidas, especialmente no que tange ao requisito da confissão circunstanciada, acerca da sua constitucionalidade e da necessidade. Por esta razão, questiona-se se seria a confissão circunstanciada constitucional ou relevante para a realização do acordo de não persecução penal. O trabalho possui como objetivo geral analisar se a confissão circunstanciada como requisito do acordo de não persecução penal respeita a constitucionalidade material. Como objetivos específicos o trabalho analisará a introdução do ANPP no ordenamento jurídico brasileiro; analisar os requisitos legais de sua propositura e, por fim, analisará a constitucionalidade e a relevância da confissão circunstanciada como requisito essencial à realização de Acordo de Não Persecução Penal. A metodologia utilizada é sistemática, tendo como base a maior parte da pesquisa classifica-se como bibliográfica e documental, utilizando livros, artigos científicos, jurisprudências, dentre outros que abordam o tema desta pesquisa científica. O trabalho está dividido em 03 (três) tópicos de desenvolvimento. O primeiro analisa os aspectos históricos e conceituais do acordo de não persecução penal no Brasil; o segundo analisa os requisitos legais do ANPP e o terceiro analisa a constitucionalidade da confissão espontânea.

Palavras-chave: Acordo de não persecução penal. Confissão circunstanciada. Constitucionalidade.

ABSTRACT: Law 13,964 of 2019, popularly known as the “Anti-Crime Package”, innovated the legal system with the insertion of the non-criminal prosecution agreement (ANPP) in art. 28-A of the Criminal Procedure Code. The Institute is inspired by plea bargaining, which enables negotiation between the Public Prosecutor’s Office and the accused in the Criminal Process. The requirements set out in the legislation for the Public Prosecutor’s Office to propose the agreement still raise many doubts, especially regarding the requirement for a detailed confession, regarding its constitutionality and necessity. For this reason, it is questioned whether the detailed confession would be constitutional or relevant to the implementation of the non-criminal prosecution agreement. The general objective of the work is to analyze whether the detailed confession as a requirement of the non-criminal prosecution agreement respects material constitutionality. As specific objectives, the work will analyze the introduction of the ANPP into the Brazilian legal system; analyze the legal requirements of its proposal and, finally, it will analyze the constitutionality and relevance of the detailed confession as an essential requirement for the conclusion of a Non-Criminal Prosecution Agreement. The methodology used is systematic, based on the majority of the research classified as bibliographic and documentary, using books, scientific articles, case law, among others that address the topic of this scientific research. The work is divided into 03 (three) development topics. The first analyzes the historical and conceptual aspects of the non-criminal prosecution agreement in Brazil; the second analyzes the legal requirements of the ANPP and the third analyzes the constitutionality of spontaneous confession.

Keywords: Non-criminal prosecution agreement. Circumstantial confession. Constitutionality.

INTRODUÇÃO

A Lei 13.964 de 2019, popularmente conhecida como “Pacote Anticrimes”, inovou o ordenamento jurídico com a inserção do acordo de não persecução penal (ANPP) no art. 28-A do Código de Processo Penal. O Instituto é inspirado no plea bargaining, que possibilita a negociação entre o Ministério Público e o acusado no Processo Penal.

No Brasil, o ANPP surge como um negócio jurídico pré-processual, que possibilita que um investigado, com assistência de seu defensor/advogado negocie com o Ministério Público para, cumpridos os requisitos legais e as obrigações propostas pelo Parquet, seja extinta a punibilidade do agente. 

Entretanto, os requisitos previstos em Lei para que o Ministério Público possa propor o ANPP gera ainda muitas dúvidas, especialmente no que tange ao requisito da confissão circunstanciada, acerca da sua constitucionalidade e da necessidade. Por esta razão, questiona-se: seria a confissão circunstanciada constitucional ou relevante para a realização do acordo de não persecução penal?

A presente pesquisa possui como objetivo principal analisar se a confissão circunstanciada como requisito do acordo de não persecução penal respeita a constitucionalidade material. Como objetivos específicos o trabalho analisará a introdução do ANPP no ordenamento jurídico brasileiro; analisar os requisitos legais de sua propositura e, por fim, analisará a constitucionalidade e a relevância da confissão circunstanciada como requisito essencial à realização de Acordo de Não Persecução Penal.

O trabalho está dividido em 03 (três) tópicos de desenvolvimento. O primeiro analisa os aspectos históricos e conceituais do acordo de não persecução penal no Brasil; o segundo analisa os requisitos legais do ANPP e o terceiro analisa a constitucionalidade da confissão espontânea.

2 ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL: ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS

O Acordo de Não Persecução Penal é novidade no ordenamento jurídico brasileiro, incluído pelo pacote anticrimes. O instituto é uma “importação” de instrumento semelhante utilizado no direito americano. Para melhor compreensão sobre o funcionamento do Acordo de Não Persecução Penal no Brasil é indispensável a análise acerca do conceito, origem e finalidade do instituto.

2.1 INSERÇÃO DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A negociação no processo penal é um tema delicado, em que pese a existência de alguns institutos que consagram tal possibilidade, como a transação penal, a delação premiada e o recente instrumento, foco deste trabalho, o acordo de não persecução penal. A sensibilidade do tema reside no fato de a negociação transformar o Estado-Juiz em mero expectador do conflito. O processo penal, compreendido como um instrumento que legitima o poder punitivo do Estado ganha nova roupagem, assumindo uma faceta contratual de negócio jurídico.

Ademais, há a relativização da indisponibilidade da ação penal, tornando possível que o Ministério Público renuncie à persecução, caso sejam atendidos os requisitos, em tese, negociados.

O acordo de não persecução penal é o mais recente instrumento de negociação no processo penal, introduzido no ordenamento jurídico pátrio pela Lei 13.964/2019, popularmente conhecida como pacote anticrimes. É inegável que a finalidade do novel instrumento é, em primeiro momento, evitar a sobrecarga do judiciário com processos que apuram crimes de média potencialidade ofensiva e, reduzir a superlotação de unidades penais, além de promover maior celeridade processual (CABRAL, 2021)

Apesar da recente introdução do Acordo de Não Persecução Penal, o instituto não surgiu, exatamente, com a edição do pacote anticrimes, mas pela via administrativa, na Resolução nº 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em seu artigo 18, que regulamentou a instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal feito pelo Ministério Público (BERTI, 2019, p. 196). A seguir, a redação original do art. 18 da Resolução 181 de 2017:

Art. 18. Nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal, desde que este confesse formal e detalhadamente a prática do delito e indique eventuais provas de seu cometimento, além de cumprir os seguintes requisitos, de forma cumulativa ou não […]

A citada resolução foi alvo de críticas acerca da sua compatibilidade com a Constituição, o que resultou no ajuizamento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, nas ADIns nº 5.790 e 5.793, ajuizadas pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFAOB) e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), respectivamente, sendo que nenhuma das medidas requeridas nas Ações Indiretas foi apreciada (BRASIL. STF. 2017).

Na tentativa de sanar as inconstitucionalidades apontadas, o CNMP editou outra resolução, n.º 183 de 2018). Entretanto, a inovação não foi suficiente para afastar as críticas, pois o principal argumento era de que a previsão do acordo de não persecução penal por resolução do Ministério Público, ofendia o princípio do devido processo penal e usurpava a competência da União para legislar sobre direito processual penal.

 As discussões acerca da inconstitucionalidade do ANPP findaram com a edição da Lei 13.964 de 24 de dezembro de 2019, que regulamentou o instrumento negocial e trouxe os requisitos essenciais para que seja efetivado.

2.2 A FINALIDADE DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

O acordo de não persecução criminal (ANPP) deve ser considerado como um negócio jurídico pré-processual de natureza extrajudicial realizado na área penal, com o objetivo de atingir um consenso, a fim de otimizar o sistema de justiça criminal, sendo ele uma medida necessária para a repressão e prevenção do crime e, ao mesmo tempo, para a redução da superlotação de presídios.

No entanto, não deve o Acordo de Não persecução Penal ser entendido como um direito subjetivo do suposto autor, mas como uma vantagem jurídica, uma vez que o Ministério Público, titular exclusivo da ação penal, desde que preenchidos os pressupostos legais, poderá ofertar a proposta. No entanto, o Ministério Público tem o poder de não o fazer, desde que a sua posição seja motivada por uma análise da necessidade e adequabilidade da política nacional de prevenção e combate ao crime. (MESSIAS, 2023).

Segundo Francisco Dirceu de Barros (2019), a medida tem como principal objetivo dar efetividade, elidir a capacidade de burocratização processual, proporcionar despenalização, acelerar a resposta estatal e obter maior satisfação da vítima pela reparação dos danos causados pelo acordante ou acusado.

2.3 O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL NO DIREITO COMPARADO

Dada a necessidade de se atentar à situação da atual política penitenciária brasileira, devido à grande demanda e superlotação dos presídios nacionais, a adoção de novos procedimentos foi prioridade, a fim de reduzir os defeitos existentes. Consequentemente, com o objetivo de reduzir a superlotação dos processos criminais no sistema judiciário brasileiro, a celebração de acordos de não persecução penal foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio.

Conforme já realçado neste estudo, com o acordo de não persecução penal, nos casos de crimes de menor gravidade, o Ministério Público poderá propor medidas alternativas, agilizando assim o andamento dos procedimentos em que a espécie é cabível.  (ARAÚJO, 2018).

Para uma melhor compreensão da temática, a análise jurídica comparativa, com outros sistemas jurídicos que utilizam medidas semelhantes aos acordos de não persecução penal é de suma importância.

Destaca-se inicialmente, a experiência alemã. A experiência germânica se deu com a implementação de institutos importados das negociações características do direito civil e trabalhista, com formas alternativas de resolução de conflitos levando em conta a experiência germânica, em 2011, 18 % do total de casos apresentados aos tribunais locais foram resolvidos por consenso (ARAÚJO, 2018).

Para justificar a implementação do acordo de não persecução penal no ordenamento jurídico brasileiro, é preciso dizer que o Conselho Nacional do Ministério Público se baseou em um precedente de direito comparado, tal como existe no direito germânico, um instituto focado em alcançar o consenso entre as partes, mesmo que não existisse previsão legal na época (MIETLICKI, 2018).

Sobre a experiência germânica, é importante ressaltar que a aplicação inicial da justiça negociada se limitou inicialmente aos pequenos crimes. No entanto, gradualmente começou a ser aplicado a crimes envolvendo violência. Desta forma, os acordos estabeleceram que a confissão dos arguidos conduz à celeridade do processo e à limitação da pena a impor. É importante sublinhar que na instituição germânica as negociações podem ocorrer antes ou depois do veredicto condenatório (MIETLICKI, 2018).

No entanto, foi somente em 2009 que surgiram regulamentos legais na codificação de processo penal alemão. Porém, naquele país, quem executa o acordo é a figura do árbitro, diferentemente do modelo brasileiro, que fica a cargo do Ministério Público. (MIETLICKI, 2018).

A diferença entre direito civil e penal é óbvia, talvez por essa razão a justiça negociada evolua mais lentamente na seara penal. Contudo, a ineficácia das medidas privativas de liberdade quanto à sua finalidade e o cenário de superlotação faz com que a justiça negociada tenha destaque na resolução dos conflitos criminais quanto à eficácia. (ARAÚJO, 2018).

Além da Alemanha, é importante mencionar a experiência dos Estados Unidos da América. Durante a adoção do sistema de common law, a prática das soluções consensuais americanas se assemelha aos acordos de anistia aplicados no Brasil, tendo como vantagem o compromisso de reparação do dano causado ou o pagamento de multa. A restituição do dano e o pagamento da multa fazem muito mais sentido no caso de crimes menos ofensivos, onde o principal objetivo da vítima é restituir o dano sofrido (ARAÚJO, 2018). Menciona-se também o caso português, mesmo que não seja considerado um modelo para a modalidade adotada no Brasil. No modelo processual penal português, permite-se uma “dispensa” de apresentação de provas relativas aos fatos imputados ao investigado, o que somente ocorre para crimes puníveis com pena de até 5 anos (MIETLICKI, 2018).

Tendo isto em mente, o Ministério Público português procurou incorporar os acordos criminais negociados no sistema jurídico através de meios administrativos. Diferentemente do modelo português, porém, no Brasil, o acordo, em nenhuma hipótese, afasta a jurisdição do magistrado (MIETLICKI, 2018).

3 O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Ao julgar o Habeas Corpus n.º 657.165, o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogério Schietti Cruz definiu o instituto como uma maneira consensual de alcançar resposta penal mais célere ao comportamento criminoso, por meio da mitigação da obrigatoriedade da ação penal, com inexorável redução das demandas judiciais criminais (BRASIL, 2022).

Segundo Schietti, o acordo de não persecução penal não visa especificamente beneficiar o réu, mas sim todo o sistema de justiça criminal, porque tanto ele quanto o Estado estão abrindo mão de direitos ou reivindicações em troca de algum benefício. De acordo com o Ministro, o Estado abre mão de obter a condenação por um crime em troca da certeza de uma reação repressiva. O réu, no entanto, abre mão de conseguir provar a sua inocência em troca de evitar um julgamento, seus procedimentos degradantes e uma possível pena privativa de liberdade. (BRASIL, 2022).

Na mesma votação, Schietti destacou as principais diferenças do acordo em comparação com outros formatos de negociações de justiça criminal, como a transação penal e o sursis processual. Para ele, enquanto na transação o acordo é de cumprimento de penas (não privativas de liberdade) e na suspensão processual já existe um processo estabelecido – que será suspenso, no acordo de não persecução penal negocia-se o cumprimento de condições, que seriam funcionalmente equivalentes às penas. (BRASIL, 2022).

Outra diferença é que o acordo de não persecução penal, diferentemente das outras duas instituições, exige a confissão prévia do crime pelo suspeito como pré-requisito para sua celebração.

3.1 REQUISITOS DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

A lei 13.964 de 2019 inseriu o Acordo de Não Persecução Penal no ordenamento jurídico brasileiro, como instrumento da justiça penal negociada, ao lado dos demais institutos já existentes, como a transação penal e a colaboração premiada. Entretanto, o Art. 28-A do Código de Processo Penal, inserido pela citada Lei, exige como requisito para a propositura do acordo pelo Ministério Público que:

Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente. (BRASIL, 2019).

Note-se que dentre os requisitos, há a necessidade da confissão, de maneira circunstanciada, requisito não exigido em institutos de mesma natureza, como a transação penal. Neste ponto, conforme será explanado adiante, surgem questionamentos acerca da necessidade e até da constitucionalidade e convencionalidade da confissão.

4 A INCONSTITUCIONALIDADE E DESNECESSIDADE DA CONFISSÃO ESPONTÂNEA COMO REQUISITO NECESSÁRIO À PROPOSITURA DO ANPP

O presente tópico aborda as características da confissão como requisito essencial à celebração do Acordo de Não Persecução Penal, bem como a necessidade de tal elemento para a obtenção do êxito quanto à sua finalidade, bem como se a exigência ofende os ditames constitucionais.

4.1 LINEAMENTOS GERAIS SOBRE A CONFISSÃO

Como já abordado no presente trabalho, um dos requisitos para a celebração do acordo de não persecução penal é a confissão. Nos moldes do dispositivo legal o investigado precisa confessar formal e circunstancialmente, para que faça jus ao acordo.

Confessar, no âmbito de um processo penal, é admitir contra si mesmo, por qualquer pessoa suspeita ou acusada de um crime com pleno discernimento, voluntária, expressa e pessoalmente, perante a autoridade competente, em ato solene e público, reduzido a termo, a prática de ato criminoso. (SILVA e PENTEADO, 2022).

Consequentemente, confessar é admitir ou aceitar contra si o fato alegado na acusação, limitando-se ao fato objeto do processo penal. Embora o objeto principal da confissão seja a paternidade do ato, ela abrange também o aspecto psicológico do agente, especialmente porque a intenção e a culpa fazem parte da acusação.

Vale ressaltar que segundo Frederico Marques (1998), o ponto central da confissão é o que a acusação descreveu, baseia-se nos fatos e acontecimentos do mundo externo ou da vida psíquica interior, juntamente com as circunstâncias que os rodeiam. Para efeitos do acordo, a confissão deve abranger todos os elementos do crime, no caso, a tipicidade, ilicitude e a culpabilidade. (VASCONCELLOS, 2022, p. 88).

A confissão nos termos exigidos pelo ANPP, ainda que não seja usada para fortalecer a justa causa para a propositura da ação penal, se justificaria pela necessidade de se evitar que, uma vez que o órgão de acusação formulasse a sua opinião sobre a existência de um crime e sua autoria, apresentando a proposta de ANPP,  o suspeito apresentasse alguma prova de fato e direito que pudesse extinguir a sua responsabilidade criminal. (SILVA e PENTEADO, 2022).

Outro ponto que merece destaque é que os fatores atenuantes não constituem elemento essencial à confissão exigida para formalização do acordo, o que deve ser utilizado apenas se a confissão contribuir para a condenação pelo juiz.

Quando o artigo 28-A do CPP de refere à confissão “formal”, se trata daquela sujeita aos procedimentos legais e feita perante a autoridade pública competente ou com atribuição de ato para produzir os seus efeitos. Para efeitos da ANPP, deve ser comunicado ao Ministério Público, por escrito, de forma voluntária. Porém, nada impede que as confissões sejam registradas em meio audiovisual, conforme dispõe a resolução nº do CNMP. 181/2017, pois tal prática não contraria a lei 13.964/2019.  (SILVA e PENTEADO, 2022).

A expressão “circunstancialmente” contida no citado dispositivo legal gera ainda algumas controvérsias.  Marques e Rocha (2020) apontam que isso significa exigir uma admissão detalhada da prática de um crime explicando quem, quando, onde, por que e como foi cometido. Tal interpretação coaduna com o entendimento confirma a redação do Art. 18 do Regulamento do CNMP nº. n.º 181/2017, que obriga o réu a confessar formalmente e detalhadamente. Posteriormente, nas alterações propostas pela resolução CNMP nº 1/2018 183/2018, o artigo 18 traspassou a exigir a confissão do réu “formal e circunstancialmente”.

Por outro lado, as confissões detalhadas não incluem a necessidade de nomear coautores, participantes ou autores da pesquisa desconhecidos ou não identificados (ARAÚJO, 2021), o que também difere da alegação estadunidense, na qual, de acordo com Silva (1997, p. 65) “também pode ser parte do acordo o testemunho do réu sobre os delitos por ele cometidos ou os que ele conhece”.

4.2 ANÁLISE DA CONSTITUCIONALIDADE DA CONFISSÃO

A inclusão de confissões como uma exigência do “ANPP” pode ser considerada incomum, na medida em que esta solução de compromisso não procura resolver a questão da responsabilidade da pessoa sob investigação, ao contrário de algumas outras instituições de negociação, como a delação premiada.

Conforme outrora analisado, um dos requisitos para que o Ministério Público possa propor o “ANPP” é a confissão circunstanciada. Por confissão circunstanciada, tem-se que é indispensável a narrativa detalhada do fato e suas circunstâncias.

Este requisito se justifica na tentativa de evitar injustiças quando da proposição do acordo, em razão da assunção de compromissos que, em que pesem não possuíssem natureza jurídica de pena, possuem características semelhantes às penas restritivas de direitos, para que, ao final, possa ser extinta a punibilidade do autor.

Ocorre que, nos casos em que os compromissos assumidos no acordo não são cumpridos, há a quebra do benefício e a ação penal pode voltar ao seu curso, inexistindo a possibilidade de realização de novo acordo de não persecução, nos moldes da Lei 13.964/2019 (BRASIL, 2019). Não raramente há a quebra de acordos de não persecução penal, especialmente quando o réu é hipossuficiente financeiramente, a exemplo dos assistidos da Defensoria Pública, pois as obrigações pecuniárias podem não ser concluídas.

Em casos de quebra do negócio jurídico processual penal, o Ministério Público teria, então, armas mais robustas que a defesa, o que poderia ferir o princípio da paridade das armas no processo penal. É certo que, a confissão circunstanciada, não poderá embasar a condenação, entretanto, pode ser utilizada para justificar a obtenção de outras provas pelo Ministério Público, por servir como parâmetro (FERREIRA, 2021).

Ademais, a exigibilidade da confissão circunstanciada pode representar ofensa à não-autoincriminação. O que se questiona é se seria a confissão formal e circunstanciada da prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 anos, requisito legítimo e relevante para a propositura do Acordo de Não Persecução Penal.

A confissão, além de ameaçar a paridade das armas no processo penal, seria, ainda, inconstitucional e inconvencional, a partir da análise do art. 5º, LXIII da CF/88 e art. 8.2, “g’, do Decreto 678/92 (Pacto de San José da Costa Rica).

O art. 5º, inciso LXIII da Constituição Federal prevê que: “o preso será informado de seus Direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (BRASIL, 1988, online).

Já o art. 8.2, “g” do decreto 678/92 (Pacto de San José da Costa Rica) prevê:

Garantias Judiciais (…) 2. Toda pessoa acusada de delito tem Direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem Direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (…) g) Direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada. (BRASIL, 1992, online).

Na mesma linha, dispõe o art. 14.3, “g” do decreto 592/92 (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos): “3. Toda pessoa acusada de um delito terá Direito, em plena igualmente, a, pelo menos, as seguintes garantias: (…) g) De não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada (BRASIL, 1992, online)”.

Nos ensinamentos de Nereu Giacomolli:

Embora o art. 5º, LXIII, da CF faça referência ao Direito ao silêncio da pessoa ao ser presa, tal garantia se estende a todos os suspeitos ou acusados, em todas as situações processuais. Ademais, o nemo tenetur se detegere, como gênero, do qual o Direito ao silêncio é espécie, pode ser inferido do devido processo constitucional, bem como do estado de inocência (…) Enquanto o nemo tenetur abarca o Direito de não produzir ou colaborar na produção de quaisquer provas (…), o silêncio atinge o Direito de o imputado não declarar. Portanto, o Direito ao silêncio constitui-se em espécie do nemo tenetur (…) (2017. p. 228-232).

Considerando o trecho destacado da Constituição, bem como dos tratados internacionais, além das palavras de Giacomolli, é possível entender que o requisito confissão para o ANPP ofende o núcleo essencial do nemo tenetur se detegere, tendo em vista que não parece ser legítimo ou razoável que se viole um direito, neste caso ao silêncio, para se conceder outro direito ou benefício, como no caso do Acordo de Não Persecução Penal.

Em outras palavras, não deve haver prejuízo àquele que escolhe exercer o direito de não autoincriminar-se, nem ser retirado algum benefício em razão disto. Além disso, se o ANPP representa justiça penal negociada, não se pode admitir que não haja espaço para negociação no que se refere ao Direito ao silêncio.

Ademais, a confissão circunstanciada pode representar prejuízos futuros para a defesa, em caso de descumprimento do acordo, conforme já explanado.  Por esta razão, é possível compreender que este requisito representa mais prejuízos que benefícios para a ordem jurídica pátria, colocando em risco o devido processo legal.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A confissão circunstanciada como exigência para a realização do acordo de não persecução penal pode representar ofensa material à Constituição, por desconsiderar o direito à não autoincriminação. Ademais, em caso de descumprimento do acordo pode dar uma imensa vantagem ao Ministério Público, ferindo a paridade das armas, deixando a defesa em desvantagem.

É cediço que aquele que escolhe exercer o direito de não autoincriminar-se não deve sofrer prejuízos, nem ser retirado algum benefício em razão disto. Além disso, se o ANPP representa justiça penal negociada, não se pode admitir que não haja espaço para negociação no que se refere ao Direito ao silêncio. Ademais, a confissão circunstanciada pode representar prejuízos futuros para a defesa, em caso de descumprimento do acordo.  Por esta razão, é possível compreender que este requisito representa mais prejuízos que benefícios para a ordem jurídica pátria, colocando em risco o devido processo legal

REFERÊNCIAS

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