REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7938476
Érika Geovanna Silva Araújo1
Tácitto Gabriel Dias Brito de Sousa2
Verônica Acioly de Vasconcelos3
RESUMO
O presente artigo teve como o objetivo, fazer um estudo, sobre a fixação da Guarda Compartilhada para os filhos de mulheres que são vítimas de violência de doméstica. Partindo deste ponto, conforme a metodologia utilizada do tipo de pesquisa dedutivo e bibliográfica, foi desenvolvido um estudo em conjunto com doutrinas, jurisprudências, legislação, e artigos científicos que versam acerca do presente assunto, onde foi possível observar que à necessidade da adequação e de se questionar quanto aos efeitos da aplicação da guarda compartilhada como regra geral. Pois muitas das vezes, a aplicação desta forma de “Guarda dos filhos” não irá respeitar a segurança e a integridade da mulher, que encontra- se em situação de vulnerabilidade, desrespeitando o direito fundamental da mulher. Diante do que será apresentado ao decorrer do artigo, pode-se chegar à conclusão da inadequação da aplicação da Guarda Compartilhada, tendo em vista os mecanismos de proteção para mulher e para os filhos, sendo assim, a Guarda Compartilhada não é a melhor opção para os casos em que há a presença de violência dentro do âmbito familiar. Os resultados deste estudo mostra que existe outra meio guarda mais adequado, nos casos em que fica constado que há a presença de violência doméstica, que no caso, é à aplicação da ‘Guarda Unilateral”.
Palavras-Chave: Violência doméstica, guarda dos filhos, lei maria da penha, princípio do melhor interesse da criança, direito fundamental da mulher.
ABSTRACT
The present article aimed to study the establishment of Shared Custody for the children of women who are victims of domestic violence. Based on this point, using the deductive and bibliographic research methodology, a study was developed together with doctrines, jurisprudence, legislation, and scientific articles that deal with this subject, where it was possible to observe the need for adaptation and questioning about the effects of applying shared custody as a general rule. Because many times, the application of this form of “Child Custody” will not respect the safety and integrity of women who are in a vulnerable situation, violating women’s fundamental rights. Given what will be presented throughout the article, it can be concluded that the application of Shared Custody is inappropriate, considering the protection mechanisms for women and children. Therefore, Shared Custody is not the best option for cases where there is violence within the family context. The results of this study show that there is another more appropriate custody means in cases where domestic violence is present, which is the application of “Unilateral Custody”.
Keywords: Domestic violence, child custody, maria da penha law, principle of the best interest of the child, fundamental right of women.
INTRODUÇÃO
A guarda envolvendo filhos de pais que estão inseridos num ciclo de violência doméstica ganha contornos específicos e complexidade. A guarda compartilhada foi eleita como a preferencial pelo legislador em xxx. Trata-se de é um modelo de guarda de crianças em que ambos os pais compartilham igualmente a responsabilidade pela criação e educação dos filhos, após o término do relacionamento conjugal. No entanto, esse modelo pode ser inadequado no contexto da violência doméstica, já que pode expor as crianças a situações de risco e violência.
A violência doméstica e familiar, é um problema que afeta milhares de mulheres em todo o mundo4. Além dos danos físicos e psicológicos para as vítimas, esse tipo de violência impacta negativamente as crianças/adolescentes que vivenciam esse ambiente.
Em muitos casos, a violência é perpetrada pelo cônjuge ou parceiro íntimo da vítima, o que torna o divórcio ou separação um momento especialmente difícil e perigoso para a mulher e seus filhos. Embora a guarda compartilhada possa parecer uma solução justa e equilibrada, ela pode ser inadequada em casos de violência doméstica. Isso porque, mesmo que a violência não tenha sido direcionada às crianças, a exposição a um ambiente violento pode ter efeitos graves e duradouros em sua saúde emocional e mental.
Além disso, a guarda compartilhada pode dar ao agressor a oportunidade de continuar exercendo controle e poder sobre a vítima e seus filhos, mesmo após a separação. Isso pode ser especialmente prejudicial para as crianças, que podem acabar sendo usadas como ferramentas para exercer controle e manipulação sobre a mãe.
A guarda compartilhada em casos de violência doméstica pode expor a mulher e seus filhos a um risco maior de abuso. Se um agressor tem acesso regular às crianças, ele pode usar essa oportunidade para continuar abusando e controlando sua ex-parceira. Além disso, se a mãe e o agressor compartilham a guarda, isso pode fazer com que a mulher se sinta coagida a continuar em contato com o agressor, o que pode dificultar sua capacidade de se recuperar do trauma e se reconstruir.
Portanto, é importante que as decisões sobre a guarda de crianças em casos de violência doméstica sejam tomadas com muito cuidado e consideração, levando em conta o bem-estar e a segurança das crianças e da mãe. Em muitos casos, a guarda exclusiva da mãe pode ser a melhor opção para garantir a segurança e o bem-estar das crianças.
Nesse contexto, surge a questão da guarda compartilhada dos filhos de mulheres vítimas de violência doméstica. Embora a guarda compartilhada seja uma modalidade que busca promover o convívio entre os pais e os filhos, sua aplicação em lares marcados pela violência pode não ser a solução mais adequada para proteger a integridade das crianças e adolescentes.
Diante disso, este artigo tem como objetivo analisar a inadequação da guarda compartilhada dos filhos de mulheres vítimas de violência doméstica, buscando demonstrar a importância de se considerar a segurança física e emocional das crianças nesses casos.
O presente trabalho visa analisar o modelo de guarda compartilhada, e se a mesma deve ser mesmo aplicada como regra, nos casos em que há a presença de violência contra a mulher. Para tanto, este trabalho se desenvolverá em três partes principais. Na primeira parte, serão apresentados os conceitos e aspectos jurídicos relacionados à guarda dos filhos. Na segunda parte, será trabalhado à violência doméstica, a fim de compreender os tipos de violência e o perfil da mulher que é vítima de violência.
Em seguida, na terceira parte, serão analisados os impactos da violência doméstica na vida das crianças e as possíveis consequências da aplicação da guarda compartilhada nesses casos. Serão abordados, ainda, os cuidados que devem ser tomados pelos profissionais do Direito e da área da proteção à criança e ao adolescente na avaliação da viabilidade da guarda compartilhada em situações de violência doméstica, analisando se, sua aplicação é adequada ou inadequada.
Por fim, será apresentada uma conclusão acerca da inadequação da guarda compartilhada nos casos de violência doméstica e a importância da consideração da segurança física e emocional das crianças nesses casos. Com isso, espera-se contribuir para o debate sobre a proteção dos direitos humanos e da dignidade das mulheres e de seus filhos, bem como para a promoção de uma atuação mais especializada e comprometida por parte dos profissionais envolvidos nessa questão.
1. Consideração sobre a guarda dos filhos
1.1 Conceito
A guarda dos filhos é um termo legal que se refere à responsabilidade de um ou ambos os pais por cuidar, proteger e educar seus filhos menores de idade. A guarda dos filhos pode ser concedida a um dos pais ou compartilhada entre os dois, dependendo das circunstâncias específicas de cada caso.
A guarda dos filhos, refere-se à questão de com quem a criança irá residir, enquanto a guarda legal diz respeito às decisões importantes relacionadas à vida da criança, como questões de saúde, educação e religião. Em alguns casos, a guarda física e legal pode ser concedida a um único pai ou compartilhada entre os dois.
A guarda dos filhos é determinada pelo tribunal, que leva em consideração vários fatores, incluindo o bem-estar da criança, a capacidade dos pais de cuidar da criança e a disponibilidade de cada pai para cuidar da criança. O objetivo final é garantir que a criança tenha o melhor ambiente possível para crescer e se desenvolver de maneira saudável e feliz.
1.2 Espécies
1.2.1 Guarda Unilateral
Existem três tipos de guarda conceituadas pela doutrina, a primeira é a unilateral que acontece quando o outro expressamente manifesta o desejo de não exercer a guarda (Art. 1584 § 2° do CC) ainda assim possui o direito a convivência, conforme art. 1631do CC.
Mesmo a guarda sendo exercida unilateralmente compete aos dois o pleno exercício do poder familiar, somente na falta ou impedimento de um dos dois é que o outro exerce o poder familiar com exclusividade (Art. 1631 do CC)
Quando o genitor que possui a guarda unilateral, casa com outra pessoa ou possui uma união estável do genitor não retira o direito de poder familiar de nenhum dos genitores, e muito menos transferência ao outro cônjuge ou companheiro de tal responsabilidade.
Contudo a lei põe a salvo o direito de filiação afetiva entre padrasto e enteado sendo possível adoção do seu sobrenome, se comprovada a filiação socioafetiva, entre ambos é possível a adoção unilateral, também pode haver imposição de obrigação alimentar em relação ao enteado, não tirando obrigação do genitor de continuar provendo.
1.2.2 Guarda Alternada
A guarda alternada é parecida com a guarda compartilhada, porem com algumas diferenças, pois o tempo de convívio é dividido igualmente entre os genitores, há muitas críticas a esse tipo de guarda, pois os profissionais da área da psicologia social, sob a alegação de que a criança precisa ter um lar de referência.
O regime de compartilhamento não reflete na obrigação alimentar, até porque nem sempre os genitores gozam das mesmas condições econômicas. Ela não prevista no código civil essa modalidade de guarda até porque ela não muito aconselhável para criança ou adolescente.
1.2.3 Guarda Compartilhada
A guarda compartilhada, Lei nº 13.058/2014, foi fundamentada para que as crianças e/ou adolescente que vivenciam o divórcio dos pais, bem como crianças e/ou adolescente que não conviveram de forma direta com ambos os pais, em relação à alguma separação que ocorreu muito cedo, tenha os seus direitos resguardados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (BRAZ, 2017).
Art. 3º – A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (BRASIL, 1990).
Desta forma, a guarda compartilhada corresponde às aspirações da sociedade quanto aos direitos das crianças e adolescentes na existência da garantia de seus direitos preservados, já que torna possível que seja mantida a relação entre pai e filho, mesmo na inexistência de uma relação conjugal, sendo possível, assim, a preservação do vínculo afetivo. A guarda compartilhada favorece o vínculo contínuo familiar, pois ambos os pais, possuem o mesmo direito e os mesmos deveres quanto aos seus filhos. É notório que a quebra do vínculo acontece apenas entre os pais e não entre pais e filhos (VILELA; BARBOSA, 2018).
O objetivo da guarda compartilha é de os genitores participem ativamente da vida dos seus filhos e na participação conjunta quando decisões relacionadas a vida de seus filhos. Sabe-se que, existe a possibilidade dos genitores não compreenderem que o relacionamento chegou ao fim, e os desentendimentos provocados por essa incompreensão, atinge os filhos (SANTOS; ASSIS, 2016).
A guarda compartilhada visa manter o convívio entre os genitores, considerando que a personalidade do menor está em processo de formação, sendo necessária a presença de ambos os pais, destacando a importância da presença dos genitores de forma integral na vida dos filhos, conduzindo-os da melhor forma (SANTOS; ASSIS, 2016).
De acordo com Melo (2018),
O poder familiar é de ambos os responsáveis pela criança/adolescente, tendo o dever de cuidar bem, oferecer o melhor, pois é através de pequenos gestos que a crianças/adolescente vai construindo seus sentimentos, solidificando seus valores e sedimentando sua personalidade. Cabe ao responsável da criança/adolescente zelar por sua vida, de modo que seus interesses estejam resguardados, pois a proteção deles é essencial. O poder familiar sem dúvidas tem como sua principal função o desenvolvimento da personalidade da criança/adolescente, que enseja no amor, carinho e participação, pois através desses pequenos gestos que se fortalece os vínculos parentais.
Com a instauração da guarda compartilhada, os filhos tornam-se o centro das decisões, com o suporte que será dado aos mesmos por ambos os genitores, baseado no sofrimento que uma mudança pode gerar na vida dos filhos, buscando-se a estabilidade e a continuidade do vínculo pais e filhos, evitando conflitos (RIZZO, 2015).
Diante disso, a guarda compartilhada relaciona-se a necessidade de promover o equilibro entre a função de ser pai, visando o melhor interesse da criança e/ou do adolescente, também no que se relaciona as suas necessidades afetivas de seus filhos.
2. A violência doméstica e familiar contra a mulher
A violência doméstica e familiar contra a mulher é uma forma de violação dos direitos humanos que ocorre dentro das relações familiares e afetivas. Essa violência pode se manifestar de diversas formas, como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, e tem como objetivo exercer controle e poder sobre a mulher.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) é a principal legislação brasileira que busca proteger as mulheres da violência doméstica e familiar. Essa lei define a violência doméstica como qualquer ação ou omissão que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, assim como a ameaça de tais condutas, no âmbito doméstico ou familiar.
Entre as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha estão a proibição do agressor de se aproximar da vítima, o afastamento do agressor do domicílio, a suspensão da posse ou restrição do porte de armas, além de outras medidas que visem garantir a segurança da mulher e de seus filhos.
Além disso, existem políticas públicas que buscam prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, como a criação de delegacias especializadas, a promoção de campanhas de conscientização e o incentivo à denúncia de casos de violência.
2.1 Considerações gerais sobre a Lei Nº 11.340/2006
A Lei nº 11.340, denominada como Lei Maria da Penha, regulamenta o fenômeno da violência contra a mulher. Com relação ao objeto deste artigo, ou seja, a revitimização e o fenômeno da violência contra a mulher, esta lei promove e garante o acesso à justiça para as mulheres que sofrem violência.
O artigo 28º da referida lei, dispõe sobre a gratuidade do serviço de justiça, portanto, uma das ações que se deve considerar a de promover políticas que facilitem o acesso das mulheres à Justiça por meio da implantação e fortalecimento de centros de informação, assessoria jurídica e patrocínio processual gratuito (BRASIL, 2006).
Deve-se ressaltar que cabe às autoridades, com base na Lei, desenvolver, promover e coordenar com as diferentes jurisdições os critérios de seleção de dados, modalidade de registro e indicadores básicos desagregados – no mínimo – por idade, sexo, estado civil e profissão ou ocupação das partes, bem como supervisionar a relação entre a mulher que sofre a violência e o homem que a exerce, a natureza dos fatos, as medidas adotadas e seus resultados e sanções impostas à pessoa violenta (CAMPOS; SEVERI, 2019).
Para dar conta desse problema, o Estado toma como verdadeiros os dados sobre mortes de mulheres coletados através do minucioso trabalho de revisão das notícias jornalísticas publicadas na imprensa. A omissão de coletar e processar dados com perspectiva de gênero e, a partir deles, formular políticas públicas não é acidental, constitui uma violação do Estado de acordo com as diretrizes dadas pela Recomendação Geral da ONU No. 19 (ELA, Op. cit: 293).
No que se refere à formação dos operadores do direito, a Lei 8906 de 4 de julho de 1994 incentiva a formação de advogados em espaços específicos e autorizados de formação para os profissionais do direito (Art. 8, inciso II). Com isso, atualiza-se o que foi dito a respeito da obsolescência do paradigma positivista na socialização profissional de advogados, juristas e demais profissionais envolvidos (BRASIL, 1994).
Conforme Trindade (2014), a questão da formação interdisciplinar é muito importante, pois assim, a mulher sentirá garantida em todos os sentidos, e poderá ter segurança em busca dos seus direitos.
De acordo com Martins (2018), a violência contra a mulher é o resultado da confluência de causas individuais, familiares, comunitárias e culturais. Os modelos de vinculação social e familiar são apreendidos e reproduzidos nos discursos e nas práticas, pelo que se reveste de especial relevância o objetivo de eliminar os estereótipos socioculturais que promovem e sustentam a desigualdade de gênero e as relações de poder sobre as mulheres.
Nessa mesma linha, a Lei Maria da Penha sanciona a violência como aquela que transmite ou reproduz dominação, desigualdade e discriminação, e inclui ações específicas para democratizar as relações familiares. Como o fenômeno tem origem relacional, a lei busca evitar a acusação caso seja possível realizar outro tipo de abordagem (MELLO, 2019).
O artigo 30º, ainda prevê a reeducação de quem pratica violência, enquanto, quanto às medidas preventivas urgentes, fica estabelecido que o juiz poderá proporcionar medidas conducentes a dar a quem sofre ou exerce violência, quando assim o exigir, assistência médica ou psicológica, por meio de órgãos públicos e organizações da sociedade civil com formação especializada na prevenção e atendimento da violência contra a mulher (BRASIL, 2006). Assim sendo a reabilitação dos homens que exercem violência é uma questão que se aborda na lei, e não só se tem que empoderar a vítima, mas também intervir e trabalhar com a comunidade e o meio social de todos os envolvidos em práticas violentas.
2.2 Formas de violência
Destarte, violência é uma expressão que deriva do latim violentia, que por sua vez deriva do prefixo vis e quer dizer força, vigor, potência ou impulso.
Portanto, segundo Saffioti (2015, p.21),
Trata-se de qualquer comportamento que vise a ruptura de qualquer forma de integridade da vítima, seja física, psíquica, sexual ou moral, através do uso da força, caracteriza-se como violência. Pode-se dizer, portanto, que qualquer tipo de violência é uma violação dos direitos essenciais do ser humano.
A violência, segundo Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti (2007, p.36):
[…]é um ato de brutalidade, abuso, constrangimento, desrespeito, discriminação, impedimento, imposição, invasão, ofensa, proibição, sevícia, agressão física, psíquica, moral ou patrimonial contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela ofensa e intimidação pelo medo e terror.
Segundo Nilo Batista, em direito penal a violência pode significar tanto a violência explicitamente executada, como a implícita, por exemplo, no caso da ameaça de violência: a violência constitui, em direito penal, um modo de execução que integra, implícita (como no homicídio ou no dano) ou explicitamente (como no roubo ou no estupro), inúmeros tipos objetivos, no último caso muitas vezes emparelhada à ameaça; frequentemente, seu emprego enseja o aparecimento de um tipo derivado por qualificação (como na injúria real ou violação de domicílio qualificada). (BATISTA, 2007).
Neste sentido, a Lei Maria da Penha disciplinou as formas de violência, no seu Art. 7º. São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I – a violência física (…);
II – a violência psicológica (…);
III – a violência sexual (…);
IV – a violência patrimonial (…);
V – a violência moral (…).
Quanto a violência física, o Art. 7º, inciso I estabelece que a violência física consiste em qualquer comportamento que cause dano à integridade ou saúde corporal da vítima. Mesmo que a agressão não resulte em ferimentos visíveis, é considerada violência física se houver uso de força que prejudique o corpo ou a saúde da mulher.
A violência física pode ser identificada através de sinais como hematomas, arranhões, queimaduras, fraturas e sintomas físicos como dores de cabeça, fadiga crônica, dores nas costas e distúrbios do sono, que podem ser provocados pelo estresse crônico gerado pela violência. O Código Penal Brasileiro considera a integridade física e a saúde corporal como direitos protegidos pela lei, e classifica a violência física como lesão corporal no artigo 129. A violência doméstica já era considerada uma forma qualificada de lesão corporal, e a Lei Maria da Penha apenas alterou a pena para esse delito, diminuindo a pena mínima e aumentando a pena máxima.
Quanto a violência psicológica, o Art. 7º, inciso II define a violência psicológica como qualquer comportamento que cause dano emocional, diminuição da autoestima, prejudique o desenvolvimento pleno da vítima, degrade ou controle suas ações, comportamentos, crenças e decisões através de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir, ou qualquer outro meio que prejudique a saúde psicológica e a autodeterminação da vítima.
Essa forma de violência é tão grave quanto a violência física e pode afetar não só a vítima direta, mas também aqueles que convivem ou testemunham a situação. Por exemplo, as crianças que presenciam a violência psicológica entre os pais podem reproduzir esse comportamento no futuro com outros familiares, amigos e futuras parceiras. A violência psicológica é caracterizada pela visão compulsiva, na qual o agressor se satisfaz em ver o outro amedrontado, diminuído e inferiorizado.
Quanto a violência sexual, o inciso III do Art. 7°, define a violência sexual como qualquer ato que constranja a vítima a participar de atividades sexuais não desejadas por meio de intimidação, ameaça, coação ou uso da força. Também inclui situações em que a vítima é forçada a comercializar ou a utilizar a sua sexualidade, impedida de usar contraceptivos, ou forçada a se casar, engravidar, abortar ou se prostituir. Essas formas de violência sexual podem limitar ou anular os direitos sexuais e reprodutivos da vítima.
A violência sexual pode ocorrer em diversos tipos de relacionamentos, incluindo o casamento. No entanto, a violência sexual em casamentos muitas vezes permanece invisível, devido à resistência da doutrina e da jurisprudência em reconhecê-la. A ideia errônea de que a mulher tem o dever de submeter-se ao desejo sexual do marido e a expressão “débito conjugal” têm contribuído para a perpetuação da violência sexual em relacionamentos conjugais. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica reconhece a violência sexual como uma forma de violência contra a mulher.
Quanto à violência patrimonial o Art. 7°, inciso IV, disserta que a violência patrimonial é caracterizada pela retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, documentos pessoais, bens, valores e recursos econômicos da mulher. Essas ações são comparáveis a crimes como furto, apropriação indébita e dano, e não podem mais ser desculpadas dentro de relacionamentos afetivos. Mesmo quando ocorrem dentro do contexto familiar, esses atos continuam sendo considerados violência patrimonial e não estão sujeitos a representação.
Por fim, o Art. 7º, inciso V, define a violência moral como qualquer comportamento que envolva calúnia, difamação ou injúria. Esses delitos contra a honra são considerados violência moral quando ocorrem dentro de um relacionamento familiar ou afetivo. Na calúnia, o agressor acusa a vítima de um crime. Na difamação, o agressor atribui um fato ofensivo à reputação da vítima. Na injúria, não há atribuição de fato determinado, mas é uma ofensa direta à pessoa da vítima.
A violência moral pode ter um efeito tão ou mais profundo que a violência física, pois pode afetar a autoestima da vítima. É importante destacar que a Lei Maria da Penha foi criada para coibir e prevenir a violência contra a mulher, e o próximo capítulo abordará as medidas protetivas elencadas pela lei que garantem a assistência e proteção às vítimas.
É necessário que a ação ou falta de ação ocorra dentro do ambiente doméstico ou familiar, ou em razão de qualquer relação de afeto íntimo em que o agressor convive ou já conviveu com a vítima, independentemente de coabitação. O vínculo entre o agressor e a vítima deve ser de natureza familiar para ser considerado violência doméstica.
Ademais, importante salientar que a definição de violência doméstica é o envolvimento de pessoas que compartilham laços sanguíneos e convivem em um ambiente familiar, não necessariamente a ocorrência no espaço privado da casa ou na intimidade do lar. É importante destacar que ao falar das vítimas, não se está retirando sua condição de sujeito, mas sim ressaltando sua condição de titular de direitos, que ao sofrer violência, têm seus direitos fundamentais violados. As vítimas sofrem danos físicos, psicológicos e sociais.
A violência contra mulheres se torna ainda mais complexa e contraditória quando os agressores são homens com quem as vítimas têm relações afetivas e sexuais. Nesses casos, os autores conhecem bem as vítimas e seus pontos mais vulneráveis, dominando a situação e sabendo como ameaçá-las, espancá-las, humilhá-las e cometer outras formas de agressão.
Por fim, pode-se concluir que a expressão “violência contra a mulher”, portanto, é o alvo principal da violência de gênero, e “foi assim concebida por ser praticada contra pessoa do sexo feminino apenas e simplesmente pela sua condição de mulher” (TELES, 2012, p.16).
Quanto aos dados estatísticos de violência doméstica, de acordo com uma pesquisa recente realizada em 2021 pelo DataSenado, a percepção das mulheres sobre a ocorrência da violência doméstica aumentou significativamente. Segundo a pesquisa, 86% das entrevistadas declararam que a violência contra a mulher cresceu em 2021, na perspectiva delas.
Além disso, a pesquisa apontou que 71% das mulheres entrevistadas acreditam que o Brasil é um país muito machista e que 68% conhecem pelo menos uma mulher que foi vítima de violência doméstica. (SENADO FEDERAL, 2021)
Em relação às mulheres que já foram agredidas por um homem, a pesquisa revela que 27% das mulheres ouvidas declararam ter sido vítimas de violência doméstica. Além disso, o DataSenado aponta que 18% das mulheres agredidas convivem diariamente com o agressor. Vale ressaltar que o DataSenado realiza pesquisas anuais desde 2005 para medir o índice de violência doméstica no Brasil, fornecendo estatísticas atualizadas sobre o tema anualmente.
2.3 Perfil da mulher vítima de violência
Em estudos sobre o perfil da mulher vítima de violência doméstica, de acordo com a “Agencia Patricia Galvao”, o perfil da mulher vítima de violência doméstica no Brasil é, segundo a faixa etária: as mulheres mais afetadas pela violência doméstica têm entre 20 e 39 anos (51,2% dos casos). No entanto, a violência também atinge mulheres de outras faixas etárias, incluindo mulheres mais velhas e adolescentes.
Em relação a Raça, Mulheres negras são as mais afetadas pela violência doméstica. Em 2019, 66% das mulheres assassinadas foram negras. Em consideração a escolaridade, mulheres com menor escolaridade têm maior probabilidade de serem vítimas de violência doméstica. Em 2019, 40% das mulheres assassinadas tinham apenas o ensino fundamental completo ou incompleto. No que tange a Renda, as Mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconômica têm maior probabilidade de sofrer violência doméstica. Em 2019, 62% das mulheres assassinadas recebiam até 2 salários mínimos.
Em relação a localização, a violência doméstica ocorre em todos os lugares, mas mulheres que vivem em áreas rurais têm menos acesso aos serviços de apoio e proteção. É importante ressaltar que esses dados não se aplicam a todas as vítimas de violência doméstica, pois cada caso é único e cada mulher tem uma história e um contexto próprios. No entanto, esses números ajudam a entender a dimensão do problema e a orientar políticas públicas e iniciativas de prevenção e proteção.
Sendo assim, fica claro, que infelizmente, isso é um fenômeno que afeta mulheres de todas as classes sociais, etnias, orientações sexuais e religiões. A maior parte das vítimas de violência doméstica é casada, vive em união estável ou em relacionamento amoroso. A violência física é a mais comum, seguida de violência psicológica. As agressões costumam ocorrer dentro de casa, geralmente perpetradas pelo parceiro ou ex-parceiro da vítima.
A violência doméstica pode ocorrer de forma intermitente ou constante, e muitas vezes se intensifica ao longo do tempo. A falta de informação, a dependência financeira, o medo de represálias e o estigma social são alguns dos fatores que podem impedir a mulher de denunciar ou buscar ajuda. Pode ter consequências físicas, psicológicas, sociais e econômicas graves para a vítima, podendo afetar sua saúde, trabalho, relacionamentos e qualidade de vida. Ainda de acordo com a ”Agenica Patricia Galvão”, muitas vezes as vítimas de violência doméstica têm filhos e a violência também afeta as crianças, que podem ser vítimas ou testemunhas de agressões.
Ainda, pode afetar mulheres em qualquer fase da vida, incluindo idosas e mulheres com deficiência. É comum que a violência doméstica seja minimizada ou justificada por outras pessoas, inclusive por autoridades policiais e judiciais, o que pode dificultar a proteção e a assistência às vítimas.
Ademais, o perfil da mulher vítima de violência doméstica pode variar em termos de idade, classe social, raça, religião e outros aspectos, mas alguns estudos apontam algumas características comuns.
Segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), a maioria das mulheres vítimas de violência doméstica no Brasil tem entre 20 e 39 anos (63,7%), são negras (51,7%), têm ensino fundamental incompleto (53,6%) e vivem em união estável (38,2%) ou casadas (35,1%) (MMFDH, 2020).
Outro estudo, realizado pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o SESC em 2010, revelou que mulheres de baixa renda, com menor escolaridade e que vivem em áreas rurais ou periferias urbanas são mais vulneráveis à violência doméstica (Fundação Perseu Abramo, 2020).
Além disso, a violência doméstica pode afetar qualquer mulher, independentemente da sua classe social ou nível educacional. Por exemplo, um estudo da Universidade de São Paulo (USP) revelou que mulheres de classe média alta também são vítimas de violência doméstica, embora tenham maior acesso a recursos financeiros e educacionais (USP, 2019).
A denúncia é um importante passo para quebrar o ciclo de violência e proteger a vítima e seus filhos. É fundamental que as mulheres conheçam seus direitos e saibam onde buscar ajuda e proteção. A prevenção da violência doméstica envolve a promoção da igualdade de gênero, o fortalecimento da rede de atendimento às vítimas e a responsabilização dos agressores, além de uma cultura de respeito aos direitos humanos e de não violência.
3. A inadequação da fixação da guarda compartilhada aos filhos de mulheres, vítimas de violência doméstica
A criança e o adolescente necessitam vivenciar um contexto familiar tranquilo, com pais que contribuem para o seu desenvolvimento saudável e para a melhor construção de sua personalidade, onde o ambiente familiar possui grande relevância. E se houver um laço inconsistente entre os genitores influencia a criança de forma negativa, prejudicando a sua formação e desenvolvimento (GODOY; SILVA; SANTOS, 2016).
Sem dúvida, o novo modelo de família baseado na idealização da tutela compartilhada se encaixa no novo conceito de família contemporânea, núcleo de parentesco, companheirismo e amor, indivíduos unidos por escolha e negociação, e se adapta à evolução de gênero: fluidez de identidades e papéis e maior mobilidade para as mulheres. Por outro lado, é inegável que também cria novos constrangimentos que perpetuam a desigualdade. (OLIVEIRA, 2016).
A guarda compartilhada é criada a partir de uma representação de papéis parentais simétricos. Devemos reconhecer que, embora essa simetria de gênero seja errada, ela não garante necessariamente a igualdade de gênero e, de fato, as responsabilidades reais de cuidado de uma guarda compartilhada não são distribuídas uniformemente. Portanto, não representa o fim da hierarquia.
Os livros e doutrinas de direito de família não costumavam abordar a violência doméstica contra a mulher, ou seja, muitas experiências das mulheres nos espaços domésticos são ignoradas quando se consideram as visões romantizadas da família. Esses entendimentos continuam a invisibilizar a violência doméstica contra a mulher, pois é incompatível falar em superação da desigualdade de gênero, enquanto a violência doméstica contra a mulher ainda existe e persiste na sociedade. (RAMOS, 2016).
Por outro lado, o Art. 227º da Constituição Federal do Brasil estabelece o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente como princípio norteador para o exercício dos direitos a eles relativos nas disputas de guarda, que consideram absolutos. No entanto, no caso de disputas de guarda e violência doméstica, há dois bens jurídicos a proteger: o melhor interesse da criança e o direito da mãe de viver sem violência, onde ambos devem ser protegidos
De fato, dá-se mais ênfase ao melhor interesse da criança, esquecendo-se que as mulheres também precisam de proteção. Decretar a guarda compartilhada apenas em benefício da criança pode comprometer o direito da mulher de viver uma vida livre de violência, pois a guarda conjunta pode levar à violência contínua contra as mulheres.
Então fica claro que no caso da violência doméstica que define a guarda compartilhada, a violência pode persistir ou até se intensificar porque o momento da troca de filhos é mais propenso à violência, e as discussões sobre as tarefas dos pais são uma desculpa para mais violência. Deve haver diretrizes claras de que a guarda compartilhada deve ser bem analisada antes de concedida em casos de violência.
3.1 O princípio do melhor interesse da criança e os direitos fundamentais da mulher a uma vida digna e sem violência
O princípio do melhor interesse da criança, embora não esteja expressamente previsto na legislação vigente, está concretizado na legislação brasileira por meio do Decreto 99.710/90 da Convenção Internacional dos Direitos da Criança estipula:
(…) todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança. (BRASIL, 1990).
Portanto, para efetivar os direitos e garantias fundamentais da criança e do adolescente e concretizar as regras de proteção integral previstas no Art. 227 da CF/88 e o Art. 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelece que o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente é o principal meio para atingir esse fim.
Vale ressaltar que a definição do princípio do melhor interesse da criança é adaptada às circunstâncias e contexto de cada família, mas pode-se verificar que a concretização desse princípio envolve a manutenção das condições básicas do desenvolvimento das crianças e adolescentes, como direito à assistência à saúde, à educação de qualidade e a um ambiente seguro e adequado à sua vulnerabilidade física e psicológica.
A importância da aplicação deste princípio reside na necessidade de apoiar as crianças e adolescentes vulneráveis, dar-lhes a proteção que merecem e proporcionar um processo saudável de desenvolvimento e formação do caráter. Em casos de disputas de custódia, o princípio do melhor interesse da criança tem sido o princípio orientador – e para alguns juízes, absoluto. No entanto, onde há violência doméstica, além da pendência de custódia, há dois interesses legítimos que precisam ser protegidos: o melhor interesse da criança e o direito da mulher a uma vida digna e sem violência porque, muitas vezes, esse direito fundamental da mulher se comporta como menor e as vezes é até cancelado.
O direito da mulher a uma vida digna e livre de violência não pode ser esquecido ou simplesmente desconsiderado no processo de guarda compartilhada envolvendo violência doméstica, que também merece ser protegida, pois os casos de violência não terminam com o fim do relacionamento , e tende a persistir enquanto durar o contato entre o agressor e a mulher.
A Lei Maria da Penha elenca alguns direitos fundamentais inerentes à condição humana em seus Arts. 2º e 3º principalmente a condição de toda mulher, competindo aos poderes públicos atuarem para viabilizar e promover esses direitos, e que a família e a sociedade criem as condições necessárias para o seu exercício:
Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 3º Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2006).
Lima destaca a redundância dos dispositivos enumerados, pois reiteram direitos humanos fundamentais de aplicação universal, independentemente de gênero. No entanto, mesmo quando estão consagrados em tratados e constituições internacionais de direitos humanos, sua existência torna-se importante para reafirmá-los, pois historicamente as mulheres têm sido excluídas e negligenciadas na construção dos direitos humanos (LIMA, 2015).
O artigo 5º inciso I, da CF, estabelece que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, mas para alcançar a verdadeira igualdade é preciso estabelecer mecanismos para que todos possam usufruir na prática dos direitos básicos.
Neste sentido, Lei Maria da Penha atende plenamente como estes mecanismos e ainda atende ao princípio da isonomia, pois é um instrumento que visa garantir o direito da mulher a uma vida livre de violência, ameaças ou coação de qualquer natureza.
Tão importante quanto o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente são os direitos fundamentais da mulher, e considerando que a CF/88 visa proteger múltiplos direitos de igual importância, quando surge um conflito de princípio constitucional em um caso concreto, pode ser que o Juiz tome uma decisão, optando por dar mais peso a um ou a outro, como no caso da omissão de leis de guarda compartilhada em casos de violência doméstica.
Em relação ao conflito entre os princípios constitucionais e a falta de hierarquia entre eles, Raul Machado Horta observou:
Claramente, essa colocação não envolve a criação de uma hierarquia entre as normas constitucionais a fim de dividi-las em normas superiores e inferiores. Estas são as regras básicas. Os privilégios servem à interpretação da Constituição, que extrai dessa nova disposição formal a impregnação de apreciações de princípios fundamentais sempre que confrontam a atuação de legisladores, administradores e juízes (HORTA, 1995, pp. 239-240).
Assim, parece que as normas constitucionais estão em igual nível de importância e aplicabilidade, e não se sobrepõem absolutamente umas às outras. Alexandre de Moraes entende que, para dirimir esses conflitos, os juízes devem utilizar a hermenêutica constitucional, os princípios e as técnicas de interpretação das normas, observar a unidade da constituição, o papel integrador das normas constitucionais e dar um sentido mais eficaz às disposições normativas (MORAES, 2016).
Para ilustrar a importância da ponderação destes direitos válido trazer o caso Viviane Vieira do Amaral onde demonstra a insegurança vivida pelas vítimas quando são obrigadas a manter contato com seus agressores. Viviane levou as filhas a um ponto de encontro com o ex-marido para que ele passasse a noite de Natal com elas, mas foi brutalmente assassinada. O agressor usou o direito de convivência, e aproveitou o momento onde possuía um vínculo com a vítima, e assim fazer o que já havia ameaçado, matá-la.
Conclui-se que o princípio do melhor interesse da criança não deveria se aplicar de forma absoluta ao direito fundamental da mulher de estar livre de violência, o que seria uma violação da Constituição Federal de 1988, que em nenhum momento estipula que um princípio deva exercer maior peso ou prejudicar outrem.
3.2 A violência doméstica como fator impeditivo para a aplicação da Guarda Compartilhada
A guarda compartilhada é a aplicação preferencial e obrigatória do nosso ordenamento jurídico e que só será substituída por outra tutela por motivos relacionados com o superior interesse da criança e do adolescente, o que na prática nem sempre é fácil provar.
Também se constata que a prática de violência doméstica contra a mulher configura grave violação dos direitos humanos sendo praticada de forma a afetar sua integridade física, psíquica, sexual, moral ou patrimonial, de acordo com o artigo 5º da Lei Maria da Penha. (Brasil, 2006).
Constata-se que os cenários de violência doméstica colocam as mulheres em situação de extrema vulnerabilidade em relação aos seus agressores, o que pode causar graves danos psicológicos às vítimas. Isto porque, por medo do companheiro, desconfiança das medidas legais existentes ou falta de meios financeiros e redes de apoio, a grande maioria demora a denunciar os abusos sofridos para sustentar a si e aos filhos, depois de um rompimento de um relacionamento abusivo.
Quando o fim da sociedade conjugal ocorrer de forma consensual, sadia e amigável, a escolha da tutela empregada seguirá no mesmo sentido, porém, quando o fim for decorrente de violência doméstica, a solução não é tão simples, pois nesses casos, é necessário apurar a situação dos filhos comuns do agressor e da vítima.
Diante desse quadro, é praticamente impossível, até mesmo desumano, obrigar uma vítima fragilizada por uma agressão sofrida ao longo de uma relação conjugal a manter boas relações com o agressor, o que é necessário para o bom funcionamento da guarda compartilhada.
O entendimento do STF, semelhante ao defendido por tribunais que não atendem especificamente mulheres vítimas de violência doméstica, acabou divergindo na ampla aplicação do órgão. Ribeiro (2017) aborda a questão da mulher ser preterida no processo obrigatório de guarda conjunta, onde ela e seus filhos aparentam estar em uma situação em que a violência sofrida no casamento continua sendo perpetrada por um ex-cônjuge e as vítimas se sentem desamparadas.
Neste diapasão, Simioni (2020, p. 83-84) aduz que:
O “sacrifício” de mulheres agredidas para proteger o direito de visita do ex-companheiro do perpetrador está em consonância com o ritual de preservação de um determinado modelo familiar. A fórmula do “melhor interesse da criança” parece ser outro reforço do conteúdo do papel da mãe, já que as mães devem superar individualmente a violência doméstica e cooperar para manter a paternidade masculina.
Além disso, o Conselho Nacional de Justiça (2021, p. 38) afirma que é inegável que “muitas regras e princípios são aplicados em conflitos de maneira abstrata com interpretações aparentemente neutras da lei”.
Ainda é evidente que existem prós e contras na guarda compartilhada, pois o estado conflituoso que existe entre os pais muitas vezes afeta os filhos quando a relação existe de forma concomitante. Por isso, é necessário que o Judiciário interprete caso a caso de forma subjetiva, não podendo prever detalhes de forma geral.
Como se depreende do exposto, a violência doméstica é um fator que obriga ao afastamento do agressor do lar, o que perturba todo o núcleo familiar, pelo que a comunicação fica inevitavelmente afetada pela tensão.
De acordo com o Enunciado nº 37 (2022) do Instituto Brasileiro de Direito de Família, os processos envolvendo vítimas de violência doméstica devem ser verificados e zelados por sua integridade. Essa discussão estava em pauta na elaboração do Projeto de Lei 29/20, que tem como principal objetivo proibir a guarda compartilhada em casos de violência doméstica contra qualquer um dos componentes da família, especialmente a mulher.
No mesmo sentido, Flávio Tartuce (2014) acrescenta que, na ausência de um mínimo de harmonia entre os genitores, a aplicação da guarda compartilhada pode agravar conflitos e prejudicar a criança e o adolescente ao invés de beneficiá-lo.
Seguindo o entendimento o autor relata que, em situações que envolvem violência doméstica, a mediação aliada ao apoio psicológico é fundamental para que todos os envolvidos evitem consequências mais graves e danosas, como a alienação parental.
É preciso enfatizar que em disputas em que a guarda compartilhada não é estabelecida com base no consenso e harmonia dos pais, muitas vezes surge a alienação parental. Nesse caso, a criança é manipulada por um dos genitores para se distanciar do outro e prejudicar o relacionamento, é utilizada como instrumento de vingança e tem efeitos de longo alcance sobre a criança ou adolescente.
Ademais, a maioria das medidas de proteção emergencial consagradas na Lei Maria da Penha constituiu o afastamento total do agressor da vítima, justamente para evitar novas ocorrências de violência ou mesmo agravadas.
É importante ressaltar que a mediação não é recomendada em casos de violência doméstica, pois pode colocar a vítima em uma posição de vulnerabilidade e risco. Em situações de violência, o foco principal deve ser a proteção da vítima e a responsabilização do agressor.
Além disso, é fundamental que os profissionais envolvidos em casos de violência doméstica estejam capacitados para lidar com essas situações de forma sensível e eficaz. O apoio psicológico às vítimas é essencial para ajudá-las a lidar com as consequências emocionais da violência, e também pode ser útil para o agressor, que pode precisar de tratamento para controlar seu comportamento violento.
Portanto, é fundamental que sejam adotadas medidas efetivas para prevenir a violência doméstica e proteger as vítimas, como a aplicação da Lei Maria da Penha e a garantia de acesso aos serviços de apoio e proteção. A conscientização da sociedade sobre a gravidade desse problema também é essencial para que possamos avançar na prevenção e combate à violência doméstica.
Nesse sentido, a imposição da guarda compartilhada quando ocorre a separação dos genitores por violência doméstica não se coaduna com suas próprias características, haja vista que nos casos de deferimento de medidas protetivas, estas podem não surtir o efeito quando são deferidas tal imposição de guarda em relação aos filhos, pois neste caso existe grande risco a integridade física e moral, por parte do agressor e vítima5.
3.3 Projeto de lei n°. 29/2020 e a guarda unilateral como solução
O Projeto de Lei nº 29 de 2020 tramita no Congresso Nacional e tem como principal objetivo alterar o § 2º do caput do art. Código Civil 1.584, e acrescentar o artigo 699-A do Código de Processo Civil estabelecendo os motivos que impedem a concessão da guarda compartilhada e obrigando o juiz a inquirir previamente o Ministério Público e as partes sobre violência doméstica ou familiar envolvendo pais ou filhos.
Segundo os autores do projeto, elaborado pelo deputado federal Denis Bezerra, era preciso deixar claro que a guarda compartilhada não se aplicaria nos casos de violência doméstica cometida por um dos genitores contra o outro ou contra o filho.
A necessidade de alteração da lei decorre do artigo 1.584 do Código Civil, que estabelece no parágrafo segundo que a guarda só não será compartilhada se um dos genitores se manifestar expressamente. Outras hipóteses para possíveis exceções estão condicionadas à análise de casos específicos.
Estas incluem situações em que há indícios ou provas de atentado contra a vida, a saúde, a integridade física ou psíquica da criança ou de um dos progenitores. (CAMARA LEGISLATIVA, 2021).
Nesses casos, a guarda deve ser “entregue” a alguém que não seja o autor ou o responsável pelos fatos agressivos. Se aprovado, o projeto introduziria as seguintes alterações no artigo 1.584, § 2º do CC:
Art. 1.584. (…) § 2º Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho e se encontrando ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um deles declarar ao magistrado que não deseja a guarda do filho ou em caso de violência doméstica ou familiar praticada por qualquer dos genitores contra o outro ou o filho.
Entende-se que a proposta tem grande valor neste caso. É, portanto, fundamental que, a priori, exista um distanciamento entre o genitor agressor e sua ex-companheira e seus filhos.
Atualmente, a legislação brasileira estabelece que a guarda dos filhos deve ser decidida de comum acordo entre os pais ou, em caso de desacordo, pelo juiz responsável pelo caso. Além disso, a lei permite a guarda compartilhada, em que ambos os pais têm igual responsabilidade na criação e educação dos filhos, e a guarda unilateral, em que apenas um dos pais tem a responsabilidade exclusiva pela guarda dos filhos.
O Projeto de Lei n°. 29/2020 propõe que a guarda compartilhada seja a regra em todos os casos, exceto quando um dos pais não estiver apto a exercer a guarda, por motivos como violência doméstica, abuso de substâncias, negligência ou falta de interesse pela criança. Nesses casos, a guarda unilateral seria concedida ao outro genitor.
A guarda compartilhada é vista como uma solução mais equilibrada e justa para as famílias, uma vez que permite que ambos os pais participem ativamente da criação e educação dos filhos, mesmo após o fim do relacionamento. Além disso, ela é considerada benéfica para o desenvolvimento emocional e psicológico das crianças, pois permite que elas mantenham uma relação saudável com ambos os pais.
No entanto, é importante ressaltar que a guarda compartilhada só funciona quando os pais estão dispostos a cooperar e a colocar os interesses da criança em primeiro lugar. Em casos de conflitos constantes, é possível que a guarda compartilhada se torne mais prejudicial do que a guarda unilateral, pois pode gerar instabilidade emocional para as crianças e agravar as tensões entre os pais.
Em resumo, o Projeto de Lei n°. 29/2020 busca estabelecer a guarda compartilhada como regra no Brasil, mas reconhece a necessidade de exceções para proteger a segurança e o bem-estar das crianças. Cabe aos legisladores, especialistas e à sociedade em geral discutir e aprimorar essa proposta, a fim de garantir que as crianças brasileiras tenham o melhor ambiente possível para crescer e se desenvolver. (CAMARA LEGISLATIVA, 2021).
No entanto, sem abandonar as premissas do projeto descritas acima, a ressocialização dos indivíduos deve ser considerada. Assim, é possível o agressor acompanhar a infância de seus filhos, após a melhora do comportamento. Pois, como dito acima, a presença dos pais no desenvolvimento dos filhos é essencial para sua formação.
Nesse sentido, sugere-se que para os casos em que o pai comete violência doméstica contra a mãe, a guarda compartilhada não é mais uma obrigação, devendo ser claramente estipulada na lei. Além disso, independentemente do modo de guarda, se a mãe estiver amparada por medidas protetivas de emergência, o genitor agressor deve haver um afastamento da vítima e seus filhos.
Posteriormente, caso seja demonstrado a sua ressocialização (que deve ser acompanhada por um profissional), será possível a visita da criança, assistida por um dos familiares mais próximos (que não seja a mãe), o que poderá proporcionar à criança uma relação imediata e saudável com o pai, sem porém, colocar em risco a saúde e a integridade física da mãe.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, pode-se concluir que é importante discutir a guarda compartilhada em casos de violência doméstica, especialmente na forma como tem sido negligenciada em casos de violência doméstica. Percebe-se que as alterações na legislação brasileira sobre o assunto são de suma importância para a população feminina brasileira, que é rotineiramente alvo de atuais e ex-cônjuges.
Ademais, o estudo realizado abordou as modalidades de guarda existentes no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente a unilateral e a compartilhada, bem como a aplicação dessas modalidades em casos de violência doméstica e os reflexos dessa violência nos filhos. Foi destacado o conceito e as espécies de guarda, evidenciando a guarda compartilhada como a regra geral e a mais condizente com o princípio do melhor interesse da criança ou adolescente.
Além disso, foi analisado o impacto da violência conjugal na formação moral das crianças e a relevância do Projeto de Lei nº 29/2020, que propõe que a guarda compartilhada não seja aplicada em casos de violência doméstica ou familiar praticada por qualquer dos pais ou genitores contra o outro ou os filhos. O estudo conclui que a guarda compartilhada é a modalidade mais aconselhável, mas não deve ser imposta em todos os casos e que a análise minuciosa do magistrado é essencial.
Neste sentido, a pesquisa defende que o Projeto de Lei nº 29/2020 é importante para aprimorar o ordenamento jurídico brasileiro, já que contribui para a solução de alguns problemas jurídicos. Por fim, o estudo destaca que a exposição dos filhos à violência doméstica tem prejuízos evidentes em sua formação moral e no desenvolvimento futuro.
Destarte, buscou-se examinar a inadequação da guarda compartilhada dos filhos de mulheres vítimas de violência doméstica. Foi constatado que, apesar da guarda compartilhada trazer benefícios, como o aumento da convivência entre filhos e pais, não é adequada em lares marcados pela violência. Nestes casos, é preciso priorizar a segurança física e mental da criança, evitando a exposição a novas formas de violência e traumas psicológicos. Por isso, os profissionais do Direito e da proteção à criança e ao adolescente devem estar atentos e sensibilizados para essas questões complexas, atuando em defesa dos direitos humanos e da dignidade das mulheres e de seus filhos.
Durante o artigo, foi construído passo a passo conceitos e argumentos para avaliar a necessidade de modificar a legislação brasileira, que atualmente estabelece a guarda compartilhada como regra, sem levar em consideração as particularidades de cada casal.
Observou-se que é preciso pensar em outra forma de guarda no caso de violência doméstica entre os genitores, como a guarda unilateral, para que a vítima se sinta mais segura sem contato com os agressores, como no caso da guarda compartilhada.
Após a análise, concluiu-se que, apesar dos benefícios da guarda compartilhada, como o aumento da convivência entre pais e filhos, não é a melhor solução para lares marcados por violência, devido aos graves impactos causados. É fundamental considerar não apenas a convivência da criança com seus pais, mas também sua segurança física e mental em situações como essa. Conforme apresentado anteriormente neste trabalho, a exposição à violência, mesmo que por terceiros, pode causar diversos prejuízos ao desenvolvimento humano.
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4A violência contra as mulheres continua devastadoramente generalizada e começa assustadoramente cedo, revelaram novos dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e parceiros. Ao longo da vida, uma em cada três mulheres – cerca de 736 milhões de pessoas -, é submetida à violência física ou sexual por parte de seu parceiro ou violência sexual por parte de um não parceiro. (https://brasil.un.org/pt-br/115652-oms-uma-em-cada-3-mulheres-em-todo-o-mundo-sofre-viol%C3%AAncia)
5 O Brasil possui o quinto maior número de mortes de mulheres no mundo, sendo que a grande maioria ocorre no contexto da violência de gênero, portanto, deve-se atentar para as implicações desse tema para o direito de família.
1Bacharelanda em Direito – UNIFSA. Email: erikageovana7@gmail.com
2Bacharelando em Direito – UNIFSA. Email: gabrieltg73@gmail.com
3Professora e Orientadora do Centro Universitário Santo Agostinho (UNIFSA). Defensora Pública do Estado do Piauí (2004). Doutora em Direito e Políticas Públicas pela UNICEUB (2020). Email: veronicaacioly@hotmail.com.