REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7920262
Luciano Gomes da Costa¹
Yuri Anderson Pereira Jurubeba²
Resumo
O presente artigo tem a intenção de abordar a situação da Defensoria Pública com a inclusão do Art. 14-A no Código de Processo Penal (CPP), realizado pela lei 13.964/2019, conhecida como o Pacote Anticrime. O Art. 14-A do CPP passou a destacar a obrigatoriedade de defensor público em inquéritos policiais e citação para os inquéritos que envolvam os agentes de segurança pública definidos nos artigos 142 e 144 da CRFB/88, quando estes policiais fizerem uso da força letal praticada no exercício profissional. Ressaltando sempre que a Defensoria Pública é uma instituição permanente, autônoma e independente da autonomia institucional das entidades citadas, como fazer atuação sem a correspondente valorização orçamentária.O presente artigo tem a intenção de trazer uma observação sobre as mudanças e desafios que o artigo 14-A do CPP trará às defensorias públicas de todo Brasil, assim busca-se elucidar se as instituições estão ou não preparadas estruturalmente para aderir ao novo modelo proposto, na esfera orçamentária, logística e organizacional, tendo em vista que os estados não têm dado a atenção que deveriam as defensorias. A pesquisa utilizou-se de levantamentos bibliográficos de leis, doutrinas, revistas especializadas, dissertações, artigos científicos e sítios da internet.
Palavras-Chave: Defensoria. Autonomia Funcional. Inquérito Policial. Insuficiência Financeira. Ampla Defesa. Defensor.
ABSTRACT:
This article intends to address the situation of the Public Defender’s Office with the inclusion of Art. 14-A in the Code of Criminal Procedure (CPP), carried out by law 13.964/2019, known as the Anti-Crime Package. Art. 14-A of the CPP began to highlight the obligation of a public defender in police investigations and citation for inquiries involving public security agents defined in articles 142 and 144 of the CRFB/88, when these police officers make use of the lethal force practiced in the exercise professional. Always emphasizing that the Public Defender’s Office is a permanent institution, autonomous and independent of the institutional autonomy of the aforementioned entities, how to act without the corresponding budget valuation. This article intends to bring an observation about the changes and challenges that article 14-A of the CPP will bring to public defenders throughout Brazil, thus seeking to elucidate whether or not institutions are structurally prepared to adhere to the new proposed model , in the budgetary, logistical and organizational spheres, given that the states have not given the attention that the defenders should. The research used bibliographic surveys of laws, doctrines, specialized magazines, dissertations, scientific articles and websites.
Keywords: Advocacy. Functional Autonomy. Police Inquiry. Financial Insufficiency. Wide Defense. Defender.
Introdução
Ao longo das últimas décadas a instituição Defensoria Pública tem prestado um serviço de relevante valor para a sociedade brasileira. A Defensoria Pública presta um serviço à democracia que compreende e respeita o compromisso e a importância da efetivação dos direitos fundamentais para a inclusão e a participação de todos os membros da nossa sociedade em uma cidadania plena e igualitária e que possibilite a proteção e o reconhecimento das mais diversas identidades concretas existentes em nosso país.
Durante esse período, a Instituição já enfrentou os mais diversos tipos de adversidades junto aos governos estaduais e federal. E agora enfrentará mais uma. Pois com a vigência dos incisos do artigo 14-A do Código de Processo Penal que determinam a obrigatoriedade de citação da defesa técnica nos inquéritos que envolvam os agentes de segurança pública no uso de força letal quando estiverem em exercício profissional.
A novidade da legislação processual penal deverá testar a estrutura organizacional das Defensorias e sua capacidade de atuação e de seus colaboradores para desempenhar sua finalidade constitucional com êxito perante a esse novo desafio. Sob essa perspectiva, deve-se ressaltar a sua autonomia, independência funcional e administrativa conferida pela Carta Magna.
Da Defensoria Pública
No decorrer do tempo, a história da assistência jurídica gratuita a quem não tinha condições econômicas de custear os honorários de um advogado, passou por várias previsões legais que garantiram acesso à assistência jurídica gratuita aos necessitados. Uma data importante para a causa foi a Lei Federal 1.060/50, que estabeleceu em seu artigo 4º que leciona: “os poderes públicos federal e estadual concederão assistência judiciária aos necessitados nos termos da presente Lei”.
E com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 (CRFB/88), sem prejuízo da lei anterior, foi que o país adotou um modelo de abrangência nacional para organizar a provisão de tais serviços sob uma lógica pública-estatal (Rocha 2009). A assistência judiciária gratuita foi alçada ao rol de direitos fundamentais, previsto no inciso LXXIX, do artigo 5º, da CRFB/88. Conforme, adiante, o teor da norma: “ O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;”. A Constituição de 1988, também, determinou esse seu artigo 134 que a Defensoria Pública:
é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.
Essa instituição tem vivenciado uma série de mudanças, que a partir da promulgação das Emendas Constitucionais n. 45 de 2004, nº 69 de 2012 e nº 74 de 2013, que assegurou às defensorias públicas estaduais autonomia “funcional” “administrativa” e “financeira”, dando-lhes tratamento equiparável ao da Magistratura e do Ministério Público, bem como a Emenda Constitucional nº 80 de 2014 que deu novo ânimo às Defensorias Públicas com a reformulação do artigo 134 da CRFB/88 e que garante às Defensorias Públicas princípios institucionais como a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional para cumprir com sua função social.
No âmbito internacional o modelo brasileiro de defensoria pública tem sido reconhecido com um exemplo a ser seguido. A Organização dos Estados Americanos (OEA), em assembleia geral realizada no ano de 2011, chegou mesmo a recomendar, por meio de resolução, a adoção, por todos os estados membros, de um modelo público de defensoria, com autonomia e independência funcional, nos moldes do sistema brasileiro.
No entanto, apesar da determinação constitucional, a construção da criação das defensorias por parte dos Estados não foi algo imediato, tendo em vista os arranjos institucionais e políticos existentes, pois onde procuradores estaduais e advogados (convênios com a OAB) desempenhavam as funções de assistência judiciária, a implantação das Defensorias Públicas foi bem mais demorada.
No Brasil, de tamanho continental, em alguns estados a origem é anterior a 1988, sendo que a carreira de defensor se estabeleceu nesses locais antes da promulgação da Constituição, como por exemplo, a DPE do Rio de Janeiro e de Minas Gerais em 1954 e 1981, respectivamente. Enquanto que outras, como a DPEs do estado do Paraná em 2011 e Santa Catarina somente em 2013.
Já a Lei Complementar de nº 80/94 – conhecida também como Lei Orgânica das Defensoria Públicas – em complementaridade à Constituição Federal estabelece que enquanto a Defensoria Pública da União que competente atua em ações junto a Justiça Federal e as Defensorias Públicas Estaduais com atuação nos graus de instância estaduais.
No entanto, ambas, são responsáveis pela prestação integral e gratuita de assistência jurídica, judicial e extrajudicial – cada qual na sua esfera – ao cidadão socialmente vulnerável ou hipossuficiente.
Legitimidade quanto à defesa de não hipossuficientes e a interferência na autonomia institucional
O que é um cidadão hipossuficiente? Diz-se da pessoa que dispõe de reduzidas condições econômicas para prover a sua subsistência e a de sua família e portanto necessita de assistência judiciária. Cada defensoria, com afeto em sua autonomia, define em resoluções internas os critérios para ser atendido pela instituição. Para a professora Miracy Gustin, (Gustin, 2009, p. 227) a autonomia é “uma necessidade primordial do homem ocidental contemporâneo”, desse modo assim como em determinadas instituições, a autonomia é um aspecto construído não apenas no âmbito das relações interpessoais, mas também nas organizações.
Para exemplificar vejamos o que diz as normas de algumas instituições defensoriais pelo país, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo em sua legislação regulamentada pelo seu Conselho Superior, de nº 89, de agosto de 2008, dispõe em seu artigo 2º que:
Presume-se necessitada a pessoa natural integrante de entidade familiar que atenda, cumulativamente, às seguintes condições:
I – aufira renda familiar mensal não superior a três salários mínimos federais; (Inciso alterado pela Deliberação CSDP nº 137, de 25 de setembro de 2009.)
II – não seja proprietária, titular de aquisição, herdeira, legatária ou usufrutuária de bens móveis, imóveis ou direitos, cujos valores ultrapassem a quantia equivalente a 5.000 (cinco mil) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo – UFESP´s.
III – não possua recursos financeiros em aplicações ou investimentos em valor superior a 12 (doze) salários mínimos federais.
Para fins de informação, entidade familiar é toda comunhão de vida instituída com a finalidade de convivência familiar e que se mantém pela contribuição de seus membros e a renda familiar é a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pela totalidade dos membros da entidade familiar, maiores de dezesseis anos, excluindo-se os rendimentos concedidos por programas oficiais de transferência de renda e de benefícios assistenciais, bem como o valor comprovadamente pago a título de contribuição previdenciária oficial.
Já para a Defensoria Pública do Distrito Federal os critérios são:
I- pessoas com renda familiar inferior a 05 (cinco) salários mínimos (R$6.060,00), por mês e aquelas que, mesmo com renda familiar superior, comprovarem, por meio de documentos, a situação de insuficiência patrimonial para manter o seu sustento, sua moradia, sua saúde, sua educação básica, ou a de seus dependentes.
II – as pessoas que tenham mais de 20 (vinte) salários mínimos (R$24.240,00) em contas ou investimentos bancários;
III – as pessoas que tenham propriedade ou posse de mais de um imóvel (a qualquer título);
IV – as pessoas que tenham direito a bens com valor superior a 100 (cem) salários mínimos (R$121.200,00), nos pedidos de partilha de bens; e
V – as pessoas que tenham direito a participar de inventário ou partilha com valor total superior a 400 (quatrocentos) salários mínimos (R$484.800,00);
VI – advogados(as) habilitados(as), exceto quando precisarem de defesa em processo criminal;
VII – as pessoas que não demonstrarem patrimônio insuficiente para a contratação de advogado.
Na Defensoria do Estado de Tocantins os parâmetros para deferimento de assistência jurídica integral e gratuita são bem semelhantes com os das duas defensorias aqui apresentadas, se não vejamos o que dispõe a resolução do Conselho Superior da instituição de nº 170, de março de 2018:
Art. 2º. Presume-se necessitada a pessoa natural que atenda às seguintes condições:
I – Renda mensal individual limitada a 2,5 (dois vírgula cinco) salários mínimos, quando não houver entidade familiar, permitidas as exclusões previstas no inciso II do artigo 1º desta Resolução;
II – No caso de entidade familiar, será observada a renda obtida pelos integrantes economicamente ativos, estando sujeita ao limite de até 4 (quatro) salários mínimos.
Parágrafo único. Caso ultrapassado o limite previsto no inciso II, deverá ser observada a renda per capita limitada a 80% (oitenta por cento) do salário mínimo.
Art. 3º Após a análise prevista no art. 2º desta Resolução, deverão ainda ser observados, cumulativamente, os seguintes critérios para presunção de necessidade da pessoa natural individual ou integrante de entidade familiar:
I – não seja proprietária, titular de aquisição, herdeira, ou legatária de bens móveis, imóveis ou direitos, cujos valores ultrapassem a quantia equivalente a 180 (cento e oitenta) salários mínimos;
II – não possua investimentos financeiros em aplicações superiores a 20 (vinte) salários mínimos.
É imperioso trazer essas legislações para destacar a importância de cada Defensoria ter sua autonomia institucional forte e preservada para garantia fundamental de efetivo o acesso à justiça conforme determina nossa Constituição.
Então, quando a legislação processual penal em seu artigo 14-A e § seguintes diz que caberá à Defensoria Pública a defesa de investigados militares em procedimentos investigatórios, entende-se que essa determinação fere a autonomia da Defensoria. E mais ainda determinou a vinculação, mas não disponibilizou recursos financeiros orçamentários para essa atuação. Porque aqui cabe salientar que as defensorias têm seus recursos anuais provenientes dos repasses dos governos estaduais e segundo o resultado da Pesquisa Nacional da Defensoria Pública 2021, os orçamentos são profundamente desproporcionais e não guardam nenhum pouco de isonomia entre instituições de paridade constitucional como Ministério Público, Tribunal de Contas e Poder Judiciário, o que demonstra um quadro de desigualdade orçamentária imensa entre essas instituições essenciais à justiça.
Para se ter uma ideia do abismo entre as instituições, no Tocantins, a divisão orçamentária, segundo a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) do ano de 2022 definida pelo poder executivo, enquanto o Judiciário recebeu inicialmente por volta de R$694.855.187,00 (seiscentos e noventa e quatro milhões, oitocentos e cinquenta e cinco mil reais e cento e oitenta e sete reais) e o Ministério Público, por volta de R$222.487.115,00 (duzentos e vinte e dois milhões, quatrocentos e oitenta e sete mil reais e cento e quinze reais), e Defensoria Pública, injusta repartição, apenas R$159.343.731,00 (cento e cinquenta e nove milhões, trezentos e quarenta e três mil reais e setecentos e trinta e um reais) .
Então, como resultado dessa desigual partilha temos a inviabilidade em muitos estados brasileiros do cumprimento de uma mínima formação de um sistema de justiça em todas as comarcas, conforme previsão do artigo 235, VII, dos atos das disposições constitucionais transitórias, que prevê um membro do judiciário, um membro da promotoria e ainda um membro da defensoria. Assim, será difícil atuar em inquéritos investigatórios, procedimentos dispensáveis segundo o próprio CPP, é, tendo em vista o subfinanciamento orçamentário das defensorias estaduais, praticamente impossível de ser realizado com a competência necessária, pois tem uma estrutura organizacional e um quadro de pessoal insuficiente comparada às demandas e demais instituições essenciais à justiça.
Assim, para que as Defensorias Públicas possam efetivar tal norma processual penal deve-se fazer garante também que os recursos financeiros e orçamentários provenientes do poder executivo sejam correspondentes com a importância conferida à instituição.
Artigo 14-A do CPP: uma proteção aos militares?
A lei 13.964/2019, conhecida por pacote anticrime, que foi promulgada em dezembro de 2019 e que trouxe as maiores alterações ao CPP desde a Lei 11.960/ 2008, destacamos aqui os artigos 3-A e seguintes – juiz das garantias, Art. 28-A – acordo de não persecução penal e o Art. 14-A que trata da constituição obrigatória de defensor em investigações que envolvam força letal praticada por agentes das forças policiais em exercício profissional.
Vale a pena transcrever o citado artigo para melhor compreensão da ideia trazida pelo legislador.
Art. 14-A. Nos casos em que servidores vinculados às instituições dispostas no art. 144 da Constituição Federal figurarem como investigados em inquéritos policiais, inquéritos policiais militares e demais procedimentos extrajudiciais, cujo objeto for a investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional, de forma consumada ou tentada, incluindo as situações dispostas no art. 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), o indiciado poderá constituir defensor.
§ 1º Para os casos previstos no caput deste artigo, o investigado deverá ser citado da instauração do procedimento investigatório, podendo constituir defensor no prazo de até 48 (quarenta e oito) horas a contar do recebimento da citação.
§ 2º Esgotado o prazo disposto no § 1º deste artigo com ausência de nomeação de defensor pelo investigado, a autoridade responsável pela investigação deverá intimar a instituição a que estava vinculado o investigado à época da ocorrência dos fatos, para que essa, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, indique defensor para a representação do investigado.
§ 3º Havendo necessidade de indicação de defensor nos termos do § 2º deste artigo, a defesa caberá preferencialmente à Defensoria Pública, e, nos locais em que ela não estiver instalada, a União ou a Unidade da Federação correspondente à respectiva competência territorial do procedimento instaurado deverá disponibilizar profissional para acompanhamento e realização de todos os atos relacionados à defesa administrativa do investigado.
§ 4º A indicação do profissional a que se refere o § 3º deste artigo deverá ser precedida de manifestação de que não existe defensor público lotado na área territorial onde tramita o inquérito e com atribuição para nele atuar, hipótese em que poderá ser indicado profissional que não integre os quadros próprios da Administração.
§ 5º Na hipótese de não atuação da Defensoria Pública, os custos com o patrocínio dos interesses dos investigados nos procedimentos de que trata este artigo correrão por conta do orçamento próprio da instituição a que este esteja vinculado à época da ocorrência dos fatos investigados.
§ 6º As disposições constantes deste artigo se aplicam aos servidores militares vinculados às instituições dispostas no art. 142 da Constituição Federal, desde que os fatos investigados digam respeito a missões para a Garantia da Lei e da Ordem.
Conforme a leitura do inciso III a defesa técnica caberá preferencialmente à Defensoria Pública e nesse momento se inicia uma certa preocupação devido a estrutura funcional e subfinanciamento orçamentária realizado pelo poder executivo as defensorias.
Inicialmente precisamos dizer que o inquérito é inquisitivo: as atividades persecutórias ficam concentradas nas mãos de uma única autoridade e não há oportunidade para o exercício do contraditório ou da ampla defesa. Na fase pré-processual não existem partes, apenas uma autoridade investigando e o suposto autor da infração normalmente na condição de indiciado (TÁVORA, ALENCAR, 2016, p. 147).
Então de onde vem essa ideia de defesa técnica nos procedimentos investigatórios? Veio da lei federal, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, que em seu Art. 7º, XXI, que cita:
Assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:
a) Apresentar razões e quesitos; (BRASIL, 1994)
No entanto, tal artigo não trouxe de forma obrigatória a presença do advogado, mas sim, a possibilidade de, em querendo, o investigado constituir defensor, e aí sim, este terá a prerrogativa de participar do interrogatório ou depoimento e subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados e documentados, assim sendo, tal inciso estaria garantindo ao advogado, que ele não pode ser impedido de participar deste ato, trata-se de prerrogativa profissional, (Fontes e Hoffman,2020).
Esta existência da possibilidade e garantia do defensor na fase investigativa comprovada no artigo acima explicitado mostra que a lei 13.964/2019 não modificou o entendimento do dispositivo legal e que a ideia da obrigatoriedade não torna o inquérito refém da presença da defesa técnica dos agentes de segurança pública em tais inquéritos, considerando a defesa técnica como um elemento acidental no inquérito policial e não como elemento essencial para validação da fase investigativa. Podendo, certamente, o procedimento administrativo transcorrer sem esta defesa que ainda assim não estaria quebrando os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (BECKMAN, 2022).
Assim, desse modo não vemos como uma proteção ao servidor militar tendo em vista que já existia tal direito previsto no Estatuto da Ordem do Advogados e ainda que que o fato tenha ocorrido durante o exercício profissional, ou seja, na defesa da sociedade civil e do Estado brasileiro.
No entanto, alguns doutrinadores questionam a inconstitucionalidade de tal artigo, onde uma categoria, que seriam os abrangidos pelos artigos 144 e 142 da CRFB/88, tratando-os de forma diferente, ferindo assim o princípio da isonomia que rege nossa Carta Magna constituída em 1988. (SUXBERGER, 2020).
Entende-se que a norma introduzida pelo inciso III do artigo 14-A viola a autonomia administrativa das defensorias, pois um coronel não pode ser atendido por uma unidade da Defensoria Pública numa fase investigatória tendo em vista sua capacidade suficiente de recursos para constituição de advogado.
No entanto, é preciso lembrar sempre que no decorrer da ação penal, nas audiências e outras fases processuais penais a Instituição não pode se exime de prestar assistência jurídica gratuita a quem quer seja tendo em vista que ninguém pode ser julgado sem a presença de uma defesa técnica para lhe garantir a ampla defesa e o contraditório.
A Defensoria e os investigados militares. Obstáculos e Conflitos
Os obstáculos a serem enfrentados pela defensoria pública para conseguir atuar frente a essa nova era de intimação em autos de procedimentos investigatórios contra agentes das forças policiais militares previstas no artigo 144 da nossa CRFB/88 precisará de um número muito maior de defensores e defensoras. Pois de acordo o 2º Mapa das Defensorias Pública Estaduais e Distrital no Brasil que foi publicado em agosto de 2021, pela Associação Nacional Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil tem um déficit de 4,7 mil profissionais e segundo o Ministério da Justiça o ideal seria um defensor para 15 mil pessoas, mas infelizmente não é isso que acontece. De toda sorte, que várias defensorias abriram concursos recentemente para aumento de seus quadros.
Existe ainda a possibilidade de conflito nessa atuação defensorial visto que a maioria dos mortos pela polícia eram assistidos pela Defensoria em seus processos criminais de acordo com o Monitor da Violência de 2022 divulgado em abril de 2022 no sítio eletrônico G1.
Para corroborar com tal possibilidade, imaginemos que aconteça um crime de um militar um Policial Militar do Tocantins na cidade de Miracema, nos casos abarcados pelo artigo ora analisado, o delegado encarregado pelo inquérito terá que intimar seu comandante, para que designe ao policial investigado um defensor, fato este que, além de inusitado, seria impossível de executar, por ausência de uma quadro exclusivo de Advogados/defensores na Polícia Militar do Tocantins, então caberia a Defensoria Pública na comarca de Miracema realizar o acompanhamento. Agora será preciso explicar como um único defensor irá conseguir está presente em audiências na vara criminal, no juizado criminal, atender os assistidos da instituição e ainda participar de inquéritos policiais? Porque segundo o relatório do anuário das defensorias públicas é isso que acontece, pois, o número de defensores é muito inferior ao de juízes e promotores. Na cidade acima citada, existem hoje na defensoria da comarca, uma defensora e um defensor, enquanto que no Ministério Público e no poder judiciário são quatros profissionais, ou seja, o dobro, dessa maneira, dificilmente, os defensores conseguirão prestar um acompanhamento jurídico de qualidade a quem necessitar e aos policiais investigados.
Considerações Finais
A Constituição Federal de 1988 definiu explicitamente o papel da Defensoria Pública como “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados”. A independência funcional, administrativa e orçamentária das Defensoria Públicas estaduais e distrital foi um processo longo e demorado, e que atualmente se encontra em vias de consolidação.
As Defensorias Públicas possuem um papel proeminente na ampliação do acesso à Justiça, oferecendo assistência e orientação jurídica integral e gratuita aos cidadãos necessitados.
A determinação trazida pelo CPP que deverá a Defensoria Pública acompanhar inquéritos, procedimentos administrativos, de agentes de segurança pública que cometeram no exercício profissional uso de força letal traz grande preocupação tendo em vista a sua reduzida capacidade estrutural e de profissionais.
Para que as Defensorias possam realizar uma eficiente atuação nos inquéritos é preciso suprir a necessidade de ampliação dos quadros de Defensores Públicos; servidores de apoio nas unidades jurisdicionais brasileiras e a necessidade de ampliação do orçamento destinado à Defensoria Pública para torná-la mais forte e desenvolvida, pois sem estrutura funcional não será possível a realização de sua participação efetiva nos procedimentos investigatórios.
Em que pese a relação de “possíveis privilégios” dos agentes das forças policiais em serem comunicados de instauração de inquéritos e que eles estando atuando em defesa da sociedade organizada e da própria vida e agindo dentro do exercício profissional e que ainda os advogados têm o acesso aos inquéritos de qualquer cliente conforme previsão do Estatuto da Ordem entende-se que estão dentro da normalidade constitucional, apesar de parte da doutrina considera o contrário.
É de se notar, pois, a imprescindibilidade de as políticas governamentais e orçamentárias se voltarem ao fortalecimento das defensorias estaduais para que estas possam cumprir com suas funções constitucionais essenciais à Justiça, na certeza que dessa forma estarão construindo instituições mais qualificadas que com certeza irão contribuir com mais eficiência, afinco e propriedade, na defesa de todos os necessitados de assistência jurídica tornando o judiciário brasileiro melhor para todos.
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¹Acadêmico de Direito da Universidade do Estado do Tocantins – Unitins.
²Doutorando em Direito Pontifica Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre em Prestação e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Servidor efetivo e assessor jurídico de Desembargador no Tribunal de Justiça do Tocantins, professor na Universidade Estadual do Tocantins – Unitins.