REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10713717
Caroline Emanuele de Oliveira Borsalli
RESUMO
Este artigo tem por objetivo dissertar sobre a importância do letramento lexicográfico na formação de professores de línguas estrangeiras (LE) para que o dicionário se torne uma material didático imprescindível no labor docente. Para debater sobre essa temática, percorreu se pela literatura relacionada na área como a lexicografia explicando o que são dicionários e os tipos existentes no mercado e a lexicografia pedagógica que se relaciona a produção de dicionários de ensino e escolares. O desejo de investigar sobre essa temática surgiu da reflexão sobre o uso do dicionário bilíngue em sala de aula por parte de docentes e discentes que pode ser melhorado. E por meio das pesquisas existentes nesse campo, observou-se que se o professor não tem uma formação lexicográfica, o estudante não saberá usar o dicionário contemplando a variedade de informação que o mesmo traz. Dessa forma, se torna fundamental uma formação lexicográfica por parte do docente para o uso efetivo do dicionário bilíngue em sala de aula.
Palavras-chaves: Letramento lexicográfico; Dicionários bilíngues; Lexicografia pedagógica; Lexicografia.
INTRODUÇÃO
Ao aprender uma língua estrangeira (LE), é necessário que unido ao conhecimento da competência linguística, sociolinguística e pragmática que segundo o “Marco Común Europeo de Referencias para las Lenguas” (MCER) são as competências norteadoras para que se alcance a competência comunicativa, se torna fundamental que o aprendiz de uma LE conquiste a competência lexical, ela se faz presente dentro dessas três competências. De acordo com o MCER (2002, p. 108) a competência lexical “é o conhecimento do vocabulário de uma língua e a capacidade para utilizá-lo” (tradução nossa)1. Se torna imprescindível que o estudante tente conquistar a competência lexical, visto que segundo Alba Quiñones (2011, p. 2) os erros relacionados ao vocabulário não só dificultam a comunicação, mas sim, podem chegar a impedi-la. Uma das formas de adquirir essa competência, que necessita ser realizada de maneira contextualizada, é por meio da investigação, da pesquisa e da busca de unidades léxicas. Dessa forma, a presença de um dicionário pedagógico de ensino se torna uma ferramenta que enriquece e auxilia no processo de aprendizagem de uma LE. Entretanto, para que os estudantes de uma LE saibam como usar o dicionário de maneira que ele possa contribuir com a sua aprendizagem, é fundamental que lhes sejam ensinados a como usá-lo, porém como esperar que os professores compartilhem esse ensinamento para com os seus alunos, se lhes faltar informação sobre.
Neste artigo, nos limitamos a explicar sobre os dicionários pedagógicos de ensino, especificamente os bilíngues direcionados ao ensino de LE porém, é relevante compreender que que existem vários tipos conforme veremos mais adiante. Mas, o que é um dicionário? De acordo com Lara, (1990 apud Campos Souto; Pérez Pascual; 2003, p. 58) “o dicionário é, então, fundamentalmente um depósito da experiência social manifestada em palavras, que deriva seu valor de sua capacidade de superar a memória de cada um dos indivíduos que compõem a sociedade” (tradução nossa). Por meio dele é possível deixar registrado para a posterioridade a forma como nos expressamos e o léxico usado para isso, para externalizar nossos pensamentos, visto que as palavras estão em constante evolução e transformação.
De acordo com Pereira e Nadin (2019) o dicionário pertence a esfera dos gêneros textuais (GT), pois nos comunicam, nos ensinam algo, se faz fundamental que os consulentes que o utilizam saibam como usá-lo para compreender a sua globalidade e versatilidade como obra. Por essa razão, este trabalho se justifica pela necessidade do letramento lexicográfico dos professores de LE, para que os mesmos possam compartilhar com os seus alunos como usar o dicionário para usufruir de tudo o que ele apresenta. Para isso, o objetivo geral desta investigação é demonstrar a relevância do letramento lexicográfico na formação de professores de línguas estrangeiras, também almejamos por meio deste artigo discorrer sobre as áreas de atuação da Lexicografia Pedagógica, como forma de justificar a relevância de possibilitar o desenvolvimento do letramento lexicográfico em contextos de formação docente, apresentar as características estruturais e funcionais do dicionário bilíngue e descrever o que é o letramento lexicográfico e como ele pode ocorrer.
Para tal, este artigo se estruturou da seguinte maneira: primeiro, explicaremos o que é a lexicografia (Weinrich, 1979; Biderman, 2001; Porto Dapena, 2002; Bevilacqua e Finatto, 2006; Krieger, 2006; Krigier, 2007) e lexicografia pedagógica (Molina García, 2006; Daré Vargas, 20018; Pereira, 2019), explanaremos sobre os dicionários bilíngues (Fuentes Morán, 1997; Carvalho, 2001; Castillo Carballo, 2003; Kocjancic, 2004; Krieger, 2007; Nadin, 2009) logo, o que é letramento lexicográfico (Krieger, 2007; Dantas, 2014; De Grandi, 2014; Daré Vargas, 2018.
METODOLOGIA
Esta pesquisa é qualitativa do tipo pesquisa ação (Tripp, 2005) visto que observamos uma necessidade de interferir como forma de melhorar uma dificuldade encontrada no nosso contexto educacional que é a falta de informação sobre o gênero dicionário, em especial o pedagógico de ensino, por parte dos professores de LE.
Decidimos por delimitarmos a explanar sobre dicionários pedagógicos bilíngues, pois atuamos na área em questão e percebemos a necessidade por parte tanto dos alunos como dos demais colegas de trabalho que atuam com o ensino de LE em aprender de maneira mais detalhada sobre o dicionário, a sua estrutura e usos. Se falta informação para os professores, como esperar que eles compartilhem esse conhecimento com os alunos?
Para realização desta investigação, selecionamos as referências bibliográficas da área e ansiamos por meio dela unir a lexicografia, lexicografia pedagógica, letramento lexicográfico como forma de auxiliar os professores de LE com o uso do dicionário em sala de aula.
LEXICOGRAFIA: A CIÊNCIA QUE ESTUDA OS DICIONÁRIOS
A lexicografia é uma área pertencente a linguística aplicada que se direciona aos cuidados da elaboração e produção de dicionários de diferentes especialidades, sejam eles monolíngues, bilíngues, semibilíngues, escolares, gerais ou infantis, dessa forma ela contribui para a formação da competência lexical dos seus consulentes. Segundo Bevilacqua e Finatto (2006), o propósito primordial da lexicografia é ajudar os falantes da LM com as suas dúvidas de ortografia, de classificação gramatical, com o significado das palavras e até mesmo, de sua origem. O seu surgimento remonta à Antiguidade Clássica que foi quando surgiram os primeiros dicionários e desde então, ela vem evoluindo de acordo com os avanços das concepções metodológicas de ensino e ganhando cada vez mais espaço na ciência do léxico. Ainda sobre o surgimento da lexicografia, Krieger, (2006, p. 164), apresenta que:
Em relação à sua antiguidade, a lexicografia é o domínio de maior tradição dentre as ciências do léxico. Tal tradição está diretamente relacionada à sua vertente aplicada, viés que justifica sua clássica concepção de ser arte, tomada no sentido grego, de técnica de fazer dicionários. Essa prática de ordenar alfabeticamente o conjunto de itens lexicais de um idioma e de agregar informações sobre seu conteúdo e uso, compondo obras de referência linguística, é uma atividade que vem de muitos séculos. Já existia nas culturas mais antigas do oriente, embora as primeiras obras tivessem particularidades organizacionais distintas dos dicionários atuais. (KRIEGER, 2006, p.164)
Por meio da citação da Krieger (2006), é possível compreender que a lexicografia surgiu há séculos, inclusive, das ciência do léxico, ela é a mais antiga, e que a mesma se define como a prática de fazer dicionários, de organizar alfabeticamente verbetes de um idioma e trazer informações linguísticas sobre, como o seu significado, claro que a sua organização foi sendo reformulada com o passar dos anos, de acordo com a necessidade dos seus consulentes, necessidade essa, que nesse período citado, não tinha como objetivo, mas sim, o de realmente registrar vocabulários que dificultasse a compreensão de textos sagrados, em latim e em grego.
Como apresenta Lara (2004, p. 134) o dicionário começou a ganhar mais espaço na década de 70, a partir da publicação dos livros de Josette Rey-Debove, de Alain Rey e de Bernard Quemada, nesse momento, passou-se a perceber o dicionário além do método e começou-se a pensá-lo a partir de um “questionamento linguístico”. Entretanto, a autora ressalta que por mais pesquisas que tenham ao redor de todo o mundo sobre a lexicografia, ainda há muito para ser conquistado, visto que tanto o dicionário como a ciência de como produzi-lo não atingiram ainda o lugar que merecem estar.
Segundo Weinrich (1979, p. 134) elaborar um dicionário é um trabalho árduo que necessita não só de capacidades científicas, como coerência, juízo crítico, mas também de muita “paciência, assiduidade, constância, precisão nos por menores e – por último mas não em ínfimo lugar – uma grande paixão de colecionador. Devido ao esforço e dedicação por parte do lexicógrafo para que o dicionário se concretize, Lara (2004, p. 135) explica que esse tipo de obra deve ser vista “como um produto linguístico, como um fenômeno verbal complexo e não somente como resultado da aplicação de métodos lexicográficos”. Ainda, de acordo com o mesmo autor, ele explica que:
[…] a lexicografia não é uma teoria, mas uma metodologia. Não é uma teoria porque seu objetivo de trabalho não é um fenômeno que deve ser elucidado; não é um fenômeno verbal da mesma natureza que a oração, que um texto ou que um dicionário. A lexicografia não estuda um objeto, mas oferece métodos e os procedimentos para criá-lo. Esses métodos e esses procedimentos não nos são estranhos, pois, ao final, são produtos controlados da razão, e de uma razão técnica, que hoje se ensina nas universidades e nas editoras que se sentem responsáveis pela qualidade dos dicionários. O fenômeno dicionário é o resultado de pôr em prática os métodos pelos seres humanos que interpretam, tanto seus métodos, como os vocábulos que tratam. (LARA, 2004, p. 149)
Esta área da linguística aplicada se dedica a elaborar meios, maneiras, procedimentos de como elaborar um dicionário, por isso, ela não é uma teoria, mas sim, uma metodologia, que como a própria palavra já nos traz, recorrerá a métodos para produzir com coerência e paciência o tesouro que guarda o léxico de uma língua.
Até agora, explicamos o que é lexicografia, seu surgimento, o trabalho árduo que ela realiza e a esperança por mais espaço e valorização, pois então, é chegado o momento de explicar o produto final da lexicografia, o dicionário. Conforme apregoa Krieger (2006, p. 142) os dicionários são obras lexicográficas de extrema relevância para as sociedades, visto que é uma forma de registro da cultura de um povo, “já que é o único lugar que contém o léxico de um idioma”, apesar da sua importância inquestionável, a autora citada explica que “é ainda um tipo de obra pouco estudada, mostrando que há ainda grande carência de estudos lexicográficos em nosso meio” ressaltando assim, a justificativa da nossa investigação, a relevância do letramento lexicográfico para os professores de LE com a finalidade de que eles compartilhem os seus conhecimentos para com os seus alunos e se sintam confortáveis em usá-lo como um material didático.
Ainda sobre a relação do dicionário como forma de registrar para a posteridade a cultura dos falantes, Lara (1990, apud CAMPOS SOUTO, 2003, p. 58) expõe que “sem dúvidas, os dicionários são produtos ligados estritamente à existência de uma cultura escrita; são o testemunho e a herança não já de um indivíduo, mas sim de uma comunidade linguística, de um grupo étnico ou social”. Para complementar e finalizar os conceitos sobre o que é dicionário, encontramos em Biderman (2001, p. 13) a informação de os dicionários que guardam o léxico de uma língua natural possibilita deixar gravado o conhecimento que temos sobre os objetos, os seres, as coisas, sendo assim, a obra lexicográfica proporciona o armazenamento desse tipo de informação para a posteridade, já que o léxico de uma língua está em constante transformação. Sobre essa forma de rotular a realidade do universo, a autora mencionada explica que:
O léxico de uma língua natural constitui uma forma de registrar o conhecimento do universo. Ao dar nomes aos seres e objetos, o homem os classifica simultaneamente. Assim, a nomeação da realidade pode ser considerada como a primeira etapa no percurso científico do espírito humano de conhecimento do universo. Ao reunir os objetos em grupos, identificando semelhanças e, inversamente, discriminando os traços distintivos que individualizam esses seres e objetos em entidades diferentes, o homem foi estruturando o mundo que o cerca, rotulando essas entidades discriminadas. Foi esse processo de nomeação que gerou o léxico das línguas naturais. (BIDERMAN, 2001, p. 13)
Conforme apresenta Biderman (2001), os dicionários são uma forma de categorizar o conhecimento do universo, Krieger, (2007, p. 296) nos ensina que a palavra dicionário provém do latim, “dictionarium”, nas palavras da autora “o sufixo arium, significa depósito, indica o lugar em que se guarda, neste caso, o elemento fundamental do dizer: as palavras. Então, por guardar o tesouro lexical de uma língua, não há como uma obra lexicográfica abranger a necessidade de todos os consulentes. Por essa razão, com o passar do tempo foram surgindo diversos tipos de dicionários, e é sobre eles que de maneira sucinta, nos propomos a explanar.
Para compreender os tipos de dicionários existentes, nos baseamos nos estudos de Porto Dapena (2002, p.43). Para começar, é importante ressaltar que segundo o autor, um tipo de dicionário pode se enquadrar em mais de uma classificação. Começamos então, trazendo que existem dicionários linguísticos, que se atentam ao léxico de uma ou mais línguas e os não linguísticos, “que se ocupa com a realidade apresentada por estas” (tradução nossa)2. Para ficar mais claro, pensemos no primeiro caso, dicionários linguísticos, como os dicionários históricos, etimológicos, os escolares e no segundo caso, os biográficos. Sendo assim, é possível dizer que os dicionários linguísticos são os que cuidam dos signos linguísticos e os dicionários não linguísticos, se delimitam às coisas.
Fazem parte dos dicionários não linguísticos, as enciclopédias, uma obra extensa que expõem os conhecimentos da humanidade por meio de temas. Ainda sobre as enciclopédias, existem obras que mesclam os dois tipos de dicionários, os linguísticos e não linguísticos, que é o caso dos dicionários enciclopédicos que usa a parte lexical, a definição dos signos linguísticos e também os conhecimentos humanos. Outro tipo de dicionário que apresenta uma relação estreita entre linguístico e não linguísticos, são os dicionários terminológicos do tipo científico ou técnico, como por exemplo, o dicionário terminológico de medicina, que trará termos técnicos específicos desta área, não sendo um tipo de vocabulário comum e do interesse de todos.
Chegamos pois, nos dicionários linguísticos, eles podem ser sincrônicos, “que estudam o vocabulário de uma língua considerada desde a fase do seu desenvolvimentos histórico e podem ser diacrónicos, que leva em consideração toda a parte do léxico de uma língua desde o seu ponto de vista de evolução semântica e fonética”. (PORTO DAPENA, 2002, p.51) (tradução nossa)3 Nos dicionários sincrônicos, encontramos o léxico de uma língua em um período delimitado de tempo e já nos diacrónicos, temos como exemplo os históricos, que se preocupar com a evolução do léxico ao longo do tempo e o etimológico que cuida especificamente da origem da palavra.
Outra classificação existente segundo Porto Dapena (2002, p. 57) é sobre a classificação por volume e extensão de entradas. No critério de extensão deve-se considerar o número de línguas, se é um dicionário monolíngue ou unilíngue, bilíngue ou plurilíngue, por exemplo. Como nossa investigação se propõe a explicar um pouco mais sobre os dicionários bilíngues, neste momento, mostraremos brevemente a diferença entre eles. A primeira classificação tem por finalidade o estudo do léxico de uma única língua, enquanto que os demais estudam duas ou mais línguas. Os dicionários monolíngues descrevem o léxico, explicam o significado do verbete, usado a própria língua, já nos bilíngues, temos a língua de entrada ou de partida e a tradução do verbete. Além disso, Porto Dapena (2002, p. 58) explica que esses dicionários se diferenciam pela finalidade que se propõem a ter, vejamos:
Por último, os três tipos de dicionários se diferenciam, além disso, pela finalidade que perseguem. Um dicionário bilíngue tem por objetivo servir de instrumento na tradução de uma a outra língua, pelo que representa um imprescindível elemento, por exemplo, no ensino de idiomas estrangeiros. Por sua parte, os plurilíngues, ainda que muito semelhante ao bilíngue, tem por gerar uma meta mais específica: se trata comumente de dicionários referentes a terminologias específicas ou técnicas e, por tanto, sua finalidade se reduz a servir de instrumento de trabalho a técnicos e científicos. Por sua parte, o dicionário monolíngue se propõe informar o usuário sobre o léxico de sua própria língua. (PORTO DAPENA, 2002, p. 58) (tradução nossa)4
Como bem apresentado por Porto Dapena (2002), os dicionários se classificam de acordo a sua finalidade, e ela existe de acordo com a necessidade dos seus consulentes. Sobre o objetivo que uma obra lexicográfica pode ter, o mesmo autor classifica-os em dicionários pedagógicos e frisa que todo dicionário tem uma finalidade pedagógica, visto que sempre nos ensina algo, porém se denomina pedagógico quando são pensados em estudantes de LM ou LE, dessa forma, eles se classificam em dicionários pedagógicos para o ensino de uma LE ou dicionários pedagógicos didáticos, destinados ao ensino do idioma materno. O autor explica que a maioria dos dicionários bilíngues têm uma finalidade pedagógica, já que são elaborados pensando no estudante que necessita aprender uma LE. Já os monolíngues pedagógicos, podem ser direcionados aos estudantes de uma LE, e também aos estudantes nativos do idioma, dessa forma temos os dicionários infantis e escolares, específico ao consulente escolar, no caso do infantil presente nas séries iniciais e o escolar, nas demais etapas escolares. Assim sendo, temos os escolares para estudantes de LM e os dicionários de ensino para os aprendizes de LE. Além disso, eles também podem ser semasiológicos (do verbete à definição) ou onomasiológicos (da definição ao verbete).
Reforçamos que nossa investigação se delimita a explicar sobre a importância do letramento lexicográfico na formação docente de professores de LE e como o alunado da escola se encontra geralmente no nível básico do idioma, nos propomos a explicar sobre os dicionários bilíngues. Ao abordar sobre dicionários pedagógicos de ensino, existe uma ramificação da lexicografia que se dedica a essa área, a lexicografia pedagógica, é sobre ela que desenvolvemos agora.
LEXICOGRAFIA PEDAGÓGICA
A lexicografia pedagógica é uma disciplina da lexicografia que surge no século XX por meio da evolução pedagógica ocorrida nas novas tendências didáticas no ensino de línguas, nesta época ocorreram mudanças nas formas de ensino-aprendizagem de gramática e também do léxico. Como afirma Molina García, (2006, p. 9) “[…] os avanços tecnológicos e as novas tendências didáticas que revolucionaram o ensino das línguas no começo do século XX tiveram uma influência notável no terreno da lexicografia” (tradução nossa)5. Já que houve transformações na concepção de ensino nessas duas áreas, gramática e léxico, seria inevitável que tal renovação resvalava no modo como os dicionários deveriam ser produzidos (MOLINA GARCÍA, 2006).
Ainda sobre o surgimento da lexicografia pedagógica (LEXPED) ela nasce por meio de um grupo de docentes que percebem que o dicionário do aluno aprendiz de uma LE não poderia ser o mesmo de um falante nativo, visto que essa obra deveria se adaptar ao nível e as necessidades do seu consulente, pois ele não é ainda “letrado no seu uso”6(MOLINA GARCÍA, 2006). Ou seja, como esperar que os aprendizes de uma LE desde o princípio de seu processo de ensino-aprendizagem usasse um dicionário que foi produzido pensando no falante que tem acesso a sua língua materna (LM) desde o ventre de sua mãe, se a forma como se aprende uma LE não sucede do mesmo jeito em que estamos expostos a nossa língua de origem.
A respeito da produção dos dicionários, ainda em Molina García, (2006, p.14-15) encontramos que “os primeiros grandes dicionários não conseguiram este propósito, pois estavam reservados a uma minoria seleta. E nem muito menos, tinham um fim didático” (tradução nossa)7. Se os dicionários produzidos de antanho não tinham nem por objetivo ser didático, imagina ser de fácil acesso para o aprendiz de uma LE que tem necessidades e objetivos diferentes dos falantes de LM. O mesmo explica que os autores desse tipo de dicionários não eram professores, sendo assim, eles não ensinavam, mas sim, informam. Sobre a importância dos dicionários pedagógicos serem produzidos pensando em seus consulentes Pereira (2019, p. 197) explica que:
A LEXPED é uma área da Lexicografia Geral responsável pelos estudos relacionados aos dicionários pedagógicos destinados aos aprendizes de língua materna ou estrangeira. Por tanto, nos possibilita reflexões tanto a respeito da elaboração dos dicionários, como também do uso desses dicionários em sala. Neste cenário, se percebe que se os dicionários são pensados e elaborados no âmbito dos estudos teóricos e práticos da LEXPED, tanto os estudantes como os professores podem desfrutar desses instrumentos pedagógicos que muito contribuem ao ensino de uma língua. (PEREIRA, 2019, p. 197) (tradução nossa)8.
Ao ter uma obra específica para a necessidade de seu consulente, no caso aqui expressado, um dicionário pedagógico para o ensino de LE, as duas partes envolvidas no processo saem beneficiadas, tanto aluno como professor, o aluno por ter um material que responde suas necessidades e o professor que consegue ver nessa obra, uma ferramenta a mais para as suas aulas, sabendo que pode contar com ele. Interessante ressaltar que a LEXPED não se dedica unicamente a produção de dicionários de ensino de LE, ela também se debruça aos dicionários de LM, mas voltados para o ensino, por exemplo, os dicionários escolares.
A LEXPED surge como uma necessidade em resolver um problema encontrado no ensino, tanto é assim que quem o percebe são os próprios professores, eles observaram o problema e também foram atrás de uma solução para tal. Sobre esse olhar não só para o obstáculo, mas também para a solução, temos em Hartmann (2001, apud DARÉ VARGAS, 2018, p. 1939) a explicação de que LEXPED manifesta-se do ponto entre o ensino de LE e a produção de dicionário. “É um campo da Lexicografia de orientação linguística, perspectiva interdisciplinar e natureza de resolução de problemas”. Assim, Daré Vargas (2018, p. 1942) apresenta que o princípio que norteia a LEXPED é a relação que se dá entre dicionários e o ensino de língua, “o espaço por ele ocupado nas aulas de línguas, materna ou estrangeira, e a preocupação com a sua adequação e qualidade, de modo a desvelar seu potencial didático, tornando seu uso produtivo e voltado para o ensino”.
Seguimos o que apregoa Molina García (2006, p. 18) ao considerar que os dicionários pedagógicos não se referem unicamente aos dicionários monolíngues, considerando desta forma, também os dicionários bilíngues. Ainda segundo o mesmo autor, a LEXPED necessita considerar três fatores para a produção de um dicionário, o primeiro é viabilizar as informações presentes na obra para o estudante, este deve ser o foco principal da LEXPED, o segundo se refere às necessidades de inovações lexicográficas que são fundamentais, visto que sem elas, as necessidades dos alunos, como por exemplo, definições de palavras com vocabulário controlado, com exemplos de uso, informações sintáticas e expressões idiomáticas e o terceiro se refere a parceria entre o professor e o lexicógrafo para realizar atividades com os aprendizes de forma que eles consigam tirar proveito de todas as informações que um dicionário pedagógico possa oferecer.
Para encerrar este apartado é relevante que explanemos a compreensão que se convêm fazer entre o dicionário, o aluno e o professor. Segundo o apresentado por Molina García (2006) o estudante precisa se dar conta que o dicionário é de extrema importância para o seu processo de ensino-aprendizagem, já que ele lhe dá a oportunidade de se tornar independente, mais responsável pelo seu conhecimento, por isso, é interessante que o estudante não dependa unicamente do seu professor, esperando as suas direções, mas que se torne autônomo e protagonista do seu processo, além do mais, o dicionário pode ser um reforço para confirmar o significado de uma palavra, frase, dúvida gramatical e inclusive pragmática, ou seja, ele é um aliado do estudante, já que pode confirmar as hipóteses, dúvidas formadas em sua mente.
Já sobre a relação do dicionário para com o docente, é primordial que ele entenda, ainda segundo Molina García (2006, p. 28) que ele é “um instrumento pedagógico”9, assim sendo, é algo que só tende a ajudá-lo na sua tarefa de ensinar pois, inclusive pode ser considerado um material didático. A respeito dessa relação do professor com o dicionário, Molina García (2006, p. 31) apregoa que:
O professor há de fazer notar ao estudante que as aplicações do dicionário são múltiplas, e para isso é preciso observar com atenção suas entradas e saber ver nelas o potencial informativo que oferecem. Quer dizer, o professor deve mostrar-se diante do aprendiz como guia através do dicionário e instrutor no manuseio do mesmo. Para a consecução deste fim, deveria dedicar parte do seu tempo de ensino nas aulas à exposição dos diferentes elementos integrantes de um dicionário, tanto no nível de macroestrutura como de microestrutura. (MOLINA GARCÍA, 2006, p. 31)
Esta citação vem ao encontro do que almejamos por meio desta pesquisa, que o professor compreenda que o dicionário é um material didático aliado ao seu labor docente e que ensine aos seus alunos como usá-lo, explicando sobre a microestrutura e a macroestrutura da obra e também que dedique um espaço das suas aulas para o uso do dicionário, por meio de atividades contextualizadas que venham a somar na construção da competência lexical do seu aprendiz e que o estudante compreenda o valor dessa obra no seu processo de formação e independência. Justifica-se, dessa forma, a importância do letramento pedagógico para os professores, pois por meio do conhecimento sobre o dicionário poderão fazer que todo o proposto se efetive. Agora que já explicamos sobre a lexicografia pedagógica, se faz fundamental que expliquemos sobre os dicionários de ensino bilíngue, para logo, aplanarmos sobre a importância do letramento lexicográfico na formação docente de professores de LE.
DICIONÁRIOS BILÍNGUES
Para explanar sobre os dicionários bilíngues usaremos como base de nossa investigação os estudos de Fuentes Morán (1997), Carvalho (2001), Castillo Carballo (2003), Kocjancic (2004), Krieger (2007) . Fuentes Morán (1997, p. 72) explica que de acordo com a finalidade que a obra lexicográfica tiver, é o que determinará a estrutura e os componentes de um dicionário. Dessa forma, um dicionário bilíngue pode ser de dois tipos:
Em princípio, para a combinação de línguas, podem existir, pelo menos, dois tipos de destinatários. Para a combinação de línguas alemão/espanhol pode existir: -Um dicionário de espanhol/ alemão, quer dizer, um dicionário bilíngue cuja língua de partida seja o espanhol e a língua de destino o alemão. –Um dicionário alemão/espanhol, quer dizer, um dicionário bilíngue cuja língua de partida seja o alemão e cuja língua de entrada seja o espanhol. (FUENTES MORÁN, 1997, p. 72-73) (tradução nossa)10
Segundo o apresentado pela autora, sempre quando houver dois pares de línguas, haverá essa possibilidade. A mesma explica que no seu trabalho, se refere a dicionários bilíngues os que apresentam ambas possibilidades: espanhol/alemão – alemão/ espanhol, formando assim, uma unidade. Essa posição que a língua ocupará é o que Carvalho (2001, p. 47-48) chama de direção. De acordo com essa autora, quanto a tipologia dos dicionários bilíngues, eles podem ser de:
(i) “Dimensão: dicionário de bolso, médio, grande;
(ii) Número de línguas: monolíngues, bilíngues, multilíngues;
(iii) Grau de especialização: geral vs. Especializados;
(iv) Direção: a língua do usuário como língua-fonte ou língua-alvo;
(v) Abrangência: unidirecional ou bidirecional;
(vi) Função: situações em que o usuário utiliza o dicionário”;
Sobre as dimensões dos dicionários, são considerados pequenos os que têm por média 40000 entradas, médios, os que têm entre 50000 e 80000 entradas e grandes, os que têm mais de 80000 (CARVALHO, 2001, p. 47). O número de línguas apresenta uma diferença fundamental no tipo de microestrutura, já que os bilíngues apresentam equivalências na língua, seja ela na LM ou LE, já os monolíngues apresentam definições. Sem contar que nos bilíngues, não há espaço para os sinônimos, antônimos e nem para comentários sobre a origem da palavra. Ainda falando sobre a microestrutura, temos o critério de direção, “a possibilidade do critério de direção leva-nos a possibilidade de se ter, para cada par de línguas (L1 e L2), não só dois dicionários, mas sim, quatro, passando a ser considerada a possibilidade de uma mesma língua ser língua-fonte ou língua-alvo”. A língua fonte seria a língua de origem, no caso a LM e a língua-alvo seria a LE, por exemplo os pares português- espanhol teríamos o seguinte esquema com base em Carvalho (2001):
I – Dicionários para falantes de português
-Português – espanhol = português como língua-fonte
-Espanhol – português = português como língua-alvo
II – Dicionários para falantes de espanhol
Espanhol – português = espanhol como língua-fonte
Português – espanhol = espanhol como língua-alvo
Conforme explica a autora, “esses quatro tipos de dicionários poderiam ser reduzidos a dois, desde que tivessem maior abrangência, ou seja, desde que deixassem de ser unidirecionais e passassem a ser bidirecionais, podendo ser usado pelos falantes de ambas línguas” (CARVALHO, 2001, p.53). Sobre a função, devemos considerar os objetivos ao consultar a obra lexicográfica, se o necessitamos para traduzir ou para escrever na LE, se é para a produção de um texto ou se é para leitura, a recepção de um texto em LE. Nessa divisão entram os dicionários passivos e ativos, de acordo com Kocjancic (2004, p. 171) os passivos seriam os usados para a decodificação de um texto e os ativos para a produção de um texto, sendo assim, o primeiro é para a tradução e o segundo, para a versão e também temos os bidirecionais que unem os dois, passivo e ativo. No caso do bidirecional, o autor explica que sua abrangência é maior, pois se destina a dois públicos, há uma dificuldade relacionada ao espaço, já que a busca por fazer uma boa descrição lexicográfica se torna um desafio, podendo ficar faltando alguma informação, seja ela na passiva ou na ativa.
Sobre a macroestrutura do dicionário, ela é a leitura vertical do dicionário, é ela que apresenta por ordem, geralmente, alfabética a entrada da palavra. (CASTILLO CARBALLO, 2003), nos dicionários bilíngues como apresenta Haensch (1982, apud KOCJANCIC, 2004, p. 176) existem quatro critérios a serem considerados para escolher as entradas, são eles: a sua finalidade (descritiva, normativa), o público alvo (especialistas, tradutores, estudantes, público em geral), sua extensão (se a obra será pequena, média ou grande de acordo com a quantidades de entradas apresentadas) e por último, a de caráter interna, seguindo os princípios linguísticos levando sempre em consideração ou outros três critérios.
Ainda discorrendo sobre a macroestrutura, a unidade léxica é a lista dos verbetes, ou seja, a lista de entradas de um dicionário, conforme apresenta KOCJANCIC (2004) o critério para a escolha dos verbetes deve ser a sua função, por isso, as palavras soltas fazem parte da entrada, já as unidades menores como as de origem gramatical (flexão de gênero e número, desinências verbais) não se incluem nas listas de entrada, até mesmo devido ao espaço da obra, imaginem, por exemplo a palavra amigo, teríamos que incluir na lista, amiga, amigos e amigas, sem contar nas desinências verbais que são inúmeras, já as unidades menores, mas que são de origem lexical (prefixos, sufixos), podem ou não estar dentro das entradas, outras palavras que fazem partes das entradas de um dicionário bilíngue são as palavras compostas, as expressões idiomáticas, as colocações, elas estarão na entrada, numa parte separada. As siglas e abreviaturas, farão parte do apêndice, os nomes próprios também farão parte do apêndice, mas há várias considerações a serem realizadas para que um nome próprio apareça em um dicionário.
Visto que já explicamos de forma breve sobre a macroestrutura do dicionário bilíngue, é o momento de dissertamos sobre a microestrutura que é a leitura horizontal do dicionário, Kocjancic (2004, p. 179) menciona que é difícil para o lexicógrafo decidir como organizar as informações dentro de um artigo para que seja proveitoso aos seus consulentes, o mesmo explica que o objetivo de um dicionário bilíngue é a tradução da língua-fonte para a língua alvo, relacionando as suas possibilidades de equivalência. Conforme ele explica, as partes de um artigo são “o vocabulário cabeça do artigo e suas variantes; informações sobre a pronúncia, inflexão e categoria gramatical, a distribuição sintática e nas sessões a parte, a fraseologia”11. Além dessa parte, é possível encontrar desenhos e notas de uso mais extensas que ajudarão os consulentes a compreender melhor a acepção do vocábulo. As acepções, ou seja, o significado da palavra pode ser distribuídas de diferentes maneiras, por meio da origem da palavra, através de sua história, pela frequência de uso, por marcação ou de maneira semântica, se a palavra tiver mais de uma equivalência, a mesma deve ser separada por ponto e vírgula (KOCJANCIC; 2004, p. 182).
Além da macro e a microestrutura, o dicionário pode apresentar outras partes importantes para os seus consulentes que são a front matter ou partes introdutórias, a o middle matter e back matter. Para explicar sobre essas partes, usaremos o que apregoa Nadin (2009, apud DE GRANDI, 2014, p. 31)
O front matter, como dito antes, refere-se às partes introdutórias do dicionário. Nesse espaço, oferece-se ao usuário as informações básicas sobre a organização do dicionário, bem como as orientações de uso. O back matter se refere, por outro lado, ao conjunto de informações que aparecem ao final do dicionário. Poderíamos entendê-lo, de maneira geral, como os apêndices com informações gramaticais, tabelas, modelos de conjugação verbal, mapas, adjetivos pátrios, países e capitais, etc. Quanto ao middle matter, trata-se do conjunto de informações presente em meio à macroestrutura do dicionário. Podem ser, por exemplo, tabelas com ilustrações existentes no dicionário que possuem o objetivo de facilitar a compreensão de algum lema ou acrescentar informações que, por alguma razão, não caberiam na microestrutura.
Neste apartado explicamos sobre os dicionários bilíngues, o que são, os seus tipos, para que podem ser usados, de maneira sucinta, explicamos sobre sua macro e micro estrutura, agora, é chegado o momento de apresentar sobre o letramento lexicográfico e sua importância na formação docente de professores de LE, já que como aponta Krieger (2007, p. 298) o dicionário tem um reconhecimento que não se pode negar dentro do ensino, porém o seu potencial não costuma ser explorado. Acreditamos que um dos motivos do dicionário não ser tão usado quanto poderia ser, é devido ao fato de o professor de LE, muitas vezes, desconhecer a complexidade de uma obra lexicográfica e a abrangência de conhecimento que por meio dela é possível se adquirir, necessitando, assim, de um letramento lexicográfico.
LETRAMENTO LEXICOGRÁFICO
Ao longo de toda nossa investigação, explicamos o que é lexicografia, os tipos de dicionários existentes, as delimitações da lexicografia pedagógica, apresentamos brevemente as características dos dicionários bilíngues, é fundamental esclarecer que toda essa contextualização literária, teve por finalidade que o leitor compreendesse mais sobre os dicionários e as áreas responsáveis pela sua organização e produção, para que pudéssemos, enfim, chegar nesse momento, onde aclararmos o que é letramento lexicográfico e os motivos de considerar o seu ensino fundamental para a formação de professores de LE. Antes de explanarmos sobre o que vem a ser letramento lexicográfico, traremos a definição do que é letramento, visto que esse vocábulo se tornou bastante comum na práxis escolar, com o letramento digital, letramento crítico etc.
Ao realizar uma investigação sobre as acepções deste verbete, nos submetemos ao dicionário digital Caldas Aulete (2011) e encontramos as seguintes definições:
Disponível em: <https://www.aulete.com.br/letramento> Acesso em: 09 jul. 2021.
De acordo com as acepções encontradas no dicionário, podemos compreender com base na primeira, que letramento se refere a capacidade de depois de alfabetizado, fazer uso dessa prática seja por meio da leitura ou da escrita, como forma de conquistar conhecimentos. Sendo assim, compreendemos por letramento lexicográfico, a alfabetização, ou seja, a instrução que o indivíduo tem em como usar os dicionários para melhorar o seu conhecimento lexical, gramatical, fonético, cultural e universal, informações essas, presentes em uma obra lexicográfica, seja ela direcionada ao ensino de línguas, ou voltada para aprendizado da LM.
Daré Vargas (2018) em seu artigo intitulado “Lexicografia Pedagógica: história e panorama em contexto brasileiro”, apresenta que o letramento lexicográfico está relacionado com as atividades direcionadas a forma de usar os dicionários, ela explica que:
De acordo com o nosso ponto de vista, o conceito de letramento lexicográfico está relacionado com às práticas pedagógicas que visam propiciar adequadas formação lexicográfica dos alunos, tanto os que não vão se tornar professores(as) de línguas, como aqueles que, um dia, serão professores(as). Essa formação lexicográfica, tal como o letramento, propicia aos estudantes apropriarem-se da obra lexicográfica, de modo a perceberem-na não apenas como um livro de consultas esporádicas sobre as definições ou equivalentes das palavras, mas como um objeto intermediador das práticas sociais da linguagem. Nessa perspectiva, o dicionário é concebido como suporte para a construção dos conhecimentos linguísticos, a produção e a compreensão dos mais diferentes tipos e gêneros textuais. (DARÉ VARGAS; 2018, p. 1936)
Interessante destacar a mudança que espera-se que ocorra na visão do estudantes por meio do letramento lexicográfico, como expressado pela autora citada, espera-se que o consulente deixe de ver o dicionário como obra cuja finalidade é buscar, de vez em quando, algum vocábulo desconhecido ou alguma acepção equivalente, a partir da instrução sobre o uso do dicionário, espera-se que ele passe a vê-lo como um livro, é um suporte para armazenamento de informações que só tem a ajudá-lo na construção do seu conhecimento. Ainda em Daré Vargas (2018, p. 1936) ela ressalta que “ser letrado lexicograficamente é conhecer todas as possibilidades e potencialidades da obra lexicográfica, reconhecer seu valor social e a ideologia que se perpassa por meio de um trabalho sistemático sobre o seu funcionamento e a(s) língua(s) que apresenta”. Ser letrado lexicograficamente é além de saber usar o dicionário evidenciando todas as suas possibilidades de atribuição de conhecimento, é também, reconhecer o seu valor.
Ainda sobre o letramento lexicográfico, Dantas (2014) no seu artigo titulado “Letramento lexicográfico na educação básica: relações entre o léxico oral e sua forma dicionarizada”, explica que não existe nas escolas atividades que visem o desenvolvimento lexicográfico do aluno, e esse desconhecimento faz com que o aluno adquira ainda mais preconceitos sobre esse material didático, assim, o autor citado, menciona que talvez essa possa ser as principais causas do fracasso escolar do aluno no que se refere ao dicionário. Além disso, o mesmo explica que o uso do dicionário não deve ocorrer apenas nas aulas de língua portuguesa ou LE, sendo essa obra um suporte extremamente necessário para se aprender LM, LE, as outras disciplinas e as relações interculturais. Sobre essa visão preconcebida que o uso do dicionário compete apenas às disciplinas de LM ou LE, Soares (2000, apud DANTAS, 2014, p. 156) esclarece que:
Não é só nas aulas de língua portuguesa que o aluno deverá recorrer ao dicionário, mas habituar-se a usá-lo quando estiver estudando qualquer disciplina. A todos os professores compete formar tal hábito em seus alunos, porque lutar por um crescimento linguístico não é tarefa exclusiva do professor de língua, mas de todos os seus colegas, uma vez que “um esforço isolado perde-se”…
Considerar que o uso do dicionário em sala de aula é de responsabilidade apenas dos professores de línguas é o mesmo que considerar que as únicas disciplinas que importam na construção de uma redação são as de gramática e redação, o que de fato não é assim, já que todos os conhecimentos científicos compartilhados com os alunos contribuem para o seu crescimento cognitivo, construção essa que auxilia indubitavelmente na construção de um texto. Então, quanto mais o dicionário for usado em sala de aula nas diversas disciplinas, mais letramento o estudante terá, aumentando com o decorrer do tempo a sua autonomia, convertendo-o em protagonista do seu processo de ensino-aprendizagem.
Acreditamos tanto que o uso do dicionário não compete apenas ao professor de língua, que desejamos por meio de nossa investigação, a formação lexicográfica para os professores de LE também, visto que os dicionários para o ensino de LE tem características específicas que divergem dos dicionários de língua materna, conforme já apresentamos. Dessa forma, se o professor de LE compartilhar com seus alunos o mérito que uma obra lexicográfica possui, pensamos que mais validez trará ao trabalho realizado de forma interdisciplinar.
Porém, como esperar que o estudante tenha acesso a essa informação, se o professor não tiver um letramento lexicográfico, não reconhecer a grandiosidade de informações que uma obra lexicográfica possui, não considerá-lo como um material didático fundamental para o apoio na construção do conhecimento? Como esperar que ele proponha atividades que busquem a formação lexicográfica em seus alunos, se o mesmo carece delas também? Sobre essas dúvida, Dantas (2014, p. 155) mostra que:
Assim sendo, um professor que careça de uma informação adequada para o uso do dicionário escolar possivelmente conduzirá seus alunos a relegá-lo a um lugar menor, cumprindo apenas a função de tira-dúvidas. O que é muito pouco frente à gama de possibilidades que o dicionário apresenta ao consulente no momento da consulta, visto que pode proporcionar a absorção não só de significados, mas também de conhecimentos enciclopédicos e científicos, que facilitam o aprendizado dos alunos em língua materna e nas outras disciplinas escolares. (DANTAS; 2014, p. 155)
Reforçamos o papel do professor para o uso efetivo do dicionário, não só em sala de aula, mas também em casa, quando os alunos estiverem estudando, ocorre que se o docente não reconhece o potencial do dicionário, torna-se um efeito dominó, visto que a desconsideração sobre essa obra é passada para os alunos já que a figura do professor representa conhecimento.
Sobre as dificuldades encontradas no Brasil para melhor aproveitamento do dicionário, Krieger (2007, p. 299) traz que a falta do conhecimento em lexicografia teórica e metalexicografia, prejudicam o aproveitamento do dicionário e a mesma justifica essa ausência do saber, por raramente haver nos currículos de formação de professores, disciplinas relacionadas a essa área. Além disso, ela expõe que há uma errônea visão de que todos os dicionários são iguais, só alterando o número de verbetes. A autora citada também faz outra consideração de extrema relevância ao explicar que os livros didáticos poucas vezes propõem atividades que incitem ao uso do dicionário.
Para finalizar a discussão proposta neste apartado, gostaríamos de citar como meio de contribuir para a formação do letramento lexicográfico não só dos professores, mas também dos estudantes, o trabalho de dissertação realizado por Lígia De Grandi (2014) que tem como título “Uso do dicionário no ensino de língua espanhola: proposta de Guia teórico-metodológico para professores”, nessa investigação ela sugere diversas atividades autorais visando à formação lexicográfica de professores de língua espanhola e estudantes dessa disciplina. Ressaltamos a importância desse tipo de investigação como forma de divulgar a necessidade que urge sobre a formação lexicográfica, primeiro pelo professor e depois para que o mesmo compartilhe essas informações para com os seus alunos, só assim, contribuirmos para a ampliação do conhecimento não só lexical, mas também para a formação científica e social dos estudantes.
CONCLUSÃO
No primeiro apartado deste artigo apresentamos o que é lexicografia, os tipos de dicionários existentes, expusemos sobre a macro e microestruturas do dicionário, como o foco do nosso trabalho gira em torno dos dicionários bilíngues de ensino, esclarecemos o que é lexicografia pedagógica que cuida da produção e recepção dos dicionários voltados ao ensino, seja da LM ou da LE. Logo, trouxemos algumas considerações sobre os dicionários bilíngues e por último, apresentamos sobre o letramento lexicográfico e a sua importância na formação de professores de LE, já que se o docente não souber usar com êxito o dicionário, não há como esperar que ele ensine aos seus alunos.
Há tempos percebemos que o nosso anseio por investigar determinadas temáticas, surgem devido a uma dificuldade encontrada no nosso ambiente de atuação docente, uma carência de conhecimento, muitas vezes, do próprio pesquisador. Esperamos por meio desta investigação auxiliar a professores de LE e a graduandos de letras a fazerem uso dos dicionários pedagógicos de ensino em sua totalidade, não os usando unicamente para a compreensão ou tradução de um verbete, mas sim, que compreendam a complexidade da obra lexicográfica que se tem em mãos e principalmente, que compartilhem esse conhecimento com os seus alunos.
Ansiamos que por meio desse tipo de pesquisa que os dicionários impressos permaneçam ainda por muito mais tempo e também, que reconhecida a relevância do uso do dicionário em sala de aula, começasse a pensar na necessidade da oferta de uma disciplina de lexicografia pedagógica na graduação, já que conforme Krieger (2007) expressou, são poucas cursos que contemplam uma disciplina relacionada ao dicionário na graduação. Enquanto esse momento não se concretiza, continuaremos na luta por meio de pesquisas sobre a importância do letramento lexicográfico na formação de professores de línguas para o uso efetivo não só em sala de aula, mas também em todos os contextos que a busca em um dicionário pode oferecer.
1El conocimiento del vocabulario de una lengua y la capacidad para utilizarlo. (MCER; 2002, p. 108)
2Se ocupa de la realidad presentada por éstas. (PORTO DAPENA, 2002, p. 43)
3[…] que estudian el vocabulario de una lengua considerada en una fase de su desarrollo histórico, y diccionarios diacrónicos, los que tienen en cuenta todo o parte del léxico de una lengua desde el punto de vista de su evolución semántica y fonética. (PORTO DAPENA; 2002, p.51)
4Por último, estes tres tipos de diccionarios se diferencian, además, por la finalidad que persiguen. Un diccionario bilingüe tiene por objetivo servir de instrumento en la traducción de una palabra a otra lengua, por lo que representa imprescindible elemento, por ejemplo, en la enseñanza de idiomas extranjeros. Por su parte los plurilingües, aunque muy semejante al bilingüe, tienen por lo general una meta más específica: se trata comúnmente de diccionarios referentes a terminologías científicas o técnicas y, por tanto, su finalidad se reduce a servir de instrumento de trabajo a técnicos y científicos. Por su parte el diccionario monolingüe se propone informar al usuario acerca del léxico de su propia lengua. (PORTO DAPENA; 2002, p. 58)
5[…] los avances pedagógicos y las nuevas tendencias didácticas que revolucionaron la enseñanza de las lenguas a comienzo del siglo XX tuvieron también una influencia notable en el terreno de la lexicografía. (MOLINA GARCÍA, 2006, p. 9)
6Letrado en su uso. (MOLINA GARCÍA, 2006, p. 14)
7 Los primeros grandes diccionarios no conseguían este propósito, pues estaban reservados a una minoría selecta. Y mucho menos, tenían un fin didáctico. (MOLINA GARCÍA, 2006, p. 14-15)
8La LEXPED es un área de la Lexicografía General responsable por los estudios relacionados a los diccionarios pedagógicos destinados a los aprendices de lengua materna o extranjera. Por tanto, nos posibilita reflexiones tanto respecto a la elaboración de diccionarios, como también al uso de esos diccionarios en las clases. En este escenario, se percibe que si los diccionarios son pensados y elaborados en el ámbito de los estudios teóricos y prácticos de la LEXPED, tanto los estudiantes como los profesores pueden disfrutar de esos instrumentos pedagógicos que mucho contribuyen a la enseñanza de una lengua. (PEREIRA, 2019, p. 197)
9El diccionario es un instrumento pedagógico. ( MOLINA GARCÍA; 2006, p. 28)
10En principio, para una combinación de lenguas, pueden existir, por lo menos, dos tipos de diccionarios. Para la combinación de lenguas alemán/español puede existir: -Un diccionario español/alemán, es decir, un diccionario bilingüe cuya lengua de partida sea el español y cuya lengua de destino sea el alemán. –Un diccionario alemán/español, es decir, un diccionario bilingüe cuya lengua de partida sea el alemán y cuya lengua de destino sea el español. (FUENTES MORÁN, 1997, p. 72-73)
11En general, las partes de un artículo son: – vocablo cabeza de artículo y sus variantes – información sobre la pronunciación, inflexión y categoría gramatical – la distribución sintáctica – la distribución semántica – las secciones aparte: fraseología Además, existen otras posibilidades de descripción como el dibujo y notas de uso más largas. (KOCJANCIC; 2004, p. 179)
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