A GÊNESE DA ANGÚSTIA SEGUNDO A FILOSOFIA DE ISMAEL NERY

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249171326


                       André Christian Dalpicolo[1]


Resumo:O objetivo deste artigo é descrever a gênese da angústia segundo a filosofia de Ismael Nery. Para tanto, faz-se necessário desenvolver uma linha de raciocínio que se desdobrará em dois planos diferentes. O primeiro assinalará a forma pela qual o arquétipo do homem universal revela a essência do Ser no corpus filosófico desenvolvido pelo artista brasileiro, já que detalha a existência de uma objetividade que desconhece toda forma de alteridade. De certo modo, pode-se dizer que esse arquétipo é obtido através da androgenia e da decomposição da materialidade, motivando assim a abstração do espaço e do tempo. Já o segundo especificará a maneira pela qual o modelo de homem universal gera uma angústia existencial em Ismael Nery, uma vez que este último se assusta diante de uma figura humana completamente desconhecida e incompreensível.  

Palavras-chave: arquétipo do homem universal, abstração do espaço e do tempo, angústia.  

Abstract: The aim of this article is to describe the genesis of anxiety according to Ismael Nery’s philosophy. Therefore, it is necessary to develop a line of reasoning that will unfold on two different planes. The first will point out the way in which the archetype of universal man reveals the essence of Being in the philosophical corpus developed by the Brazilian artist, since it details the existence of an objectivity that ignores every form of alterity. In a way, it can be said that this archetype is obtained through androgyny and the decomposition of materiality, thus motivating the abstraction of space and time. The second will specify the way in which the model of universal man generates an existential anguish in Ismael Nery, since the latter is frightened by a completely unknown and incomprehensible human figure.

Keywords: archetype of universal man, abstraction of space and time, anguish.

1. Introdução

No texto Poemas de Ismael Nery, Murilo Mendes deixa a entender que o principal desafio da atualidade é restabelecer o equilíbrio harmonioso entre espírito e matéria no âmago da subjetividade humana: 

O essencialismo é uma teoria filosófica e artística criada por Ismael Nery sobre bases católicas. Felicidade, para o essencialista, é o único estado em que o homem poderá começar a compreender as coisas transcendentes – embora saibamos muito bem que várias vezes o homem consegue a sabedoria das coisas pela infelicidade (…) O desafio atual consiste em fazer com que o homem restabeleça conscientemente o equilíbrio harmonioso que necessariamente deve existir entre espírito e matéria, e que vem perdendo gradativamente, desde talvez que foi criado (MENDES apud MORAIS, 2017, p. 20). 

Mas de que maneira este desafio poderá ser superado? Antes de tudo, deve-se afastar a hipótese dessa superação ser obtida através do aprofundamento do processo de acumulação de capital, já que este último revela a valorização excessiva da materialidade pelo homem. 

Logo, pode-se dizer que este desafio será transposto desde que a condição humana produza objetos artísticos que ilustrem a essência do Ser, dado que tais objetos indicam a existência de uma universalidade que desconhece qualquer forma de alteridade. 

Ora, não é inexato assinalar que a filosofia de Ismael Nery procura realizar tal produção, uma vez que acredita que a linguagem artística é a melhor forma de expressar o equilíbrio harmônico entre o espírito e a matéria. 

Convém observar que essa procura transforma a poética de Ismael Nery “na mais singular do contexto do período modernista brasileiro” (AMARAL, 2006, p.74), visto que revela uma estética bem diferente daquela que visa a representar temas nacionais. 

2.     O arquétipo do homem universal 

Em face disso, surge imediatamente a questão: de que maneira Ismael Nery produz objetos artísticos que revelam a essência do Ser? 

Inicialmente, pode-se dizer que ele produz tais objetos através da utilização do mito da androgenia [1], ou melhor, do mito que revela uma condição humana que possui traços de ambos os sexos (masculino e feminino). 

Desse modo, algumas de suas pinturas revelam uma fisionomia masculina vinculada a um corpo feminino. Prova disso radica-se na obra Mulher sentada com ramos de flores (1927). Segundo Maria Bernadete Ramos Flores, trata-se “da obra com maior sensualidade da fatura de Ismael, embora tenha a mesma fisionomia dos seus autorretratos” (FLORES, 2014, p. 424). 

Figura 1. Ismael Nery. Mulher sentada com ramo de flores. 1927. Óleo sobre cartão, 62,5 x 51,5 cm. Coleção particular, DF.

Fonte: Dale e Almeida, Disponível em: https://www.almeidaedale.com.br/assets/pdfs/publicacoes/Ismael_Nery.pdf

 Com efeito, é preciso esclarecer que o recurso à androgenia garante ao artista brasileiro a possibilidade de apresentar uma figura humana atemporal, já que a temporalidade revela tão somente seres que possuem um único sexo. 

 Destarte, essa figura humana atemporal revela o substrato do Ser, visto que este último detém as características da permanência e da imutabilidade.  

do dogma da figuração, além da consolidação da autonomia linguística da arte. Cf. MAZZANTI, Anna. Gauguin – Grandes Mestres. SP: Abril Cultural, 2011, p. 36. 

De certa maneira, isso também vale para a poética de Ismael Nery, sobretudo no que tange à autonomia linguística da arte. 

 Em seguida, tem-se de especificar que Ismael Nery produz representações artísticas que evidenciam a essência do Ser através da decomposição da figura humana em vários planos espaciais. Com isso, ele multiplica ao infinito as possibilidades da criação de um objeto pictórico a partir da técnica da Abschattungen, ou seja, da doação perceptiva por perfis. 

 De acordo com Simone Rocha de Abreu (2009), essa decomposição pode ser vista na obra Duas Figuras [Amantes]. De certo modo, isso ocorre porque esse quadro apresenta o desdobramento de um mesmo rosto em dois planos espaciais absolutamente distintos.   De certa maneira, esse desdobramento fundamenta a superação da dualidade eu-outro, gerando um ser universal que desconhece qualquer forma de alteridade. 

Figura 2. Ismael Nery. Duas Figuras [Amantes]. 1924. Óleo sobre tela, 44,7 x 36,5 cm.Coleção Particular, RJ.

Fonte: Itaú Cultural, 2021. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1742/amantes-duas-figuras  

Em face disso, percebe-se que o recurso à androgenia e à decomposição promove o surgimento do arquétipo do homem universal, ou melhor, “da realização de um tipo ideal de ser humano” (PEDROSA, 1984, p.54).  

Vale frisar que esse arquétipo está a margem do espaço e do tempo, dado que possui as características da permanência, da imutabilidade e da multiplicidade infinita de perfis. 

Por conseguinte, não é errôneo acrescentar que ele representa a pedra angular do Essencialismo, ou melhor, do “conjunto filosófico gerado a partir de um pensamento constantemente preocupado com o absoluto e com a unidade” (BURLAMAQUI, 1934, p. 20).  

3.     O estranhamento de Ismael Nery

Diante disso, surge imediatamente a questão: quais são os sentimentos vivenciados por Ismael Nery após conceber o modelo do homem universal? 

Inicialmente, pode-se dizer que o artista brasileiro ficou fascinado com sua capacidade de criar uma representação pictórica que reflete as características primordiais do Ser (a permanência, a imutabilidade e a multiplicidade infinita de perfis). 

De certo modo, não é inexato assinalar que essa fascinação alimentou o desejo de Ismael Nery de constituir-se como Causa Sui, já que lhe mostrou a possibilidade de estabelecer um novo mundo diferente daquele determinado pela ordem espaço-temporal:  

Exemplo desse desejo verifica-se no seguinte trecho do poema Confissões: “Não quero ser Deus por orgulho / Eu tenho esta diferença de Satã / Quero ser Deus por necessidade, por vocação / Não me conformo nem com o espaço e nem com o tempo / Nem com o limite de coisa alguma /Tenho fome e sede de tudo / Implacável, crescente” (NERY apud VASCONCELLOS, 2018, p.1). 

Contudo, isso não significa que Ismael Nery não compreenda a sua finitude, uma vez que acontece justamente o inverso. Por esse motivo, permanece inquieto diante da contemplação de uma obra pictórica que não revela as características basilares da sua natureza. 

Por fim, convém observar que o resultado final do par fascinação-inquietude é a consolidação de uma certa angústia existencial: 

Em toda a sua pintura, em sua poesia e sua filosofia, está presente essa luta. Se mostra-se múltiplo, adotando sempre um novo papel ou um novo estilo, é para melhor abarcar toda a diversidade da experiência. Se busca apagar o tempo e o espaço, as distinções entre os sexos, as próprias características particulares a seu corpo, é porque o tornam contingente, limitado. A dualidade última é, para ele, entre a unidade ideal e a fragmentação do ser; angústia de quem se percebe, a despeito de toda ambição, finito (VASCONCELLOS, 2018, p. 5). 

4.     Referências Bibliográficas 

AMARAL, Aracy do. Ismael Nery 50 anos depois. São Paulo: Edições 34, 2006. 

BENTO, Antônio. Ismael Nery. São Paulo: Gráficos, 1993. 

BURLAMAQUI, Jorge. Textos do Trópico de Capricórnio. Rio de Janeiro: Diário de Notícias, 13 maio de 1934, p.20. 

FLORES, Maria Bernadete Ramos. Elogio do anacronismo: para os andróginos de Ismael Nery. Rio de Janeiro: Revista Topoi, volume 15, número 29, jul/dez.2014, p.414-443.  MATTAR, Denise; CHIARELLI, Tadeu. Ismael Nery – Em Busca da Essência. SP: Galeria Almeida e Dale, 2015. 

MAZZANTI, Anna. Gauguin – Grandes Mestres. SP: Abril Cultural, 2011. 

MORAIS, Rosana de. O Essencialismo na história de Ismael Nery. São Paulo:Dissertação de Mestrado da UNESP, 2017. 

PEDROSA, Mário. Ismael Nery: um encontro na geração. São Paulo: MAC-USP, 1984.  VASCONCELLOS, Maria Garcia. O uno fragmentado: concepções de duplo na obra de Ismael Nery. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/mgv_nery.htm. Acesso em:01.06.2021. 


[1] Conforme Mazzanti (2007), o pintor francês Paul Gauguin foi um dos pioneiros na utilização do mito da andragogia na História da Arte. Vale frisar que tal utilização contribuiu em demasia para a libertação da pintura


1 Doutorando em Filosofia pela PUC-PR. Mestre em Filosofia pela PUC-SP. Pós-graduado em Filosofia pela PUC-RS. Licenciado em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduado em Gestão da Educação pela UFSCAR. Graduado em Gestão de Recursos Humanos pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador e professor do Centro Universitário Paulistana.E-mail: andre.dalpicolo@unipaulistana.edu.br