REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7068966
Autor:
Carlúcio Germano da Silva1
RESUMO
O presente artigo tem por finalidade fazer um cotejo entre a perspectiva do princípio da legalidade e a interpretação dada pelo Superior Tribunal de Justiça à falta grave prevista no art. 50, VII, da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal). O marco jurídico adotado é o da Constituição Federal de 1988, no aspecto da jurisdicionalização da execução penal. O método é essencialmente o explicativo, com apoio essencial na revisão de literatura.
Palavras-chave: Execução Penal. Falta Grave. Legalidade.
ABSTRACT
The purpose of this article is to compare the perspective of the principle of legality and the interpretation given by the Superior Court of Justice to the serious misconduct provided for in art. 50, VII, of Law No. 7,210/84 (Criminal Enforcement Law). The legal framework adopted is that of the Federal Constitution of 1988, in terms of the jurisdictionalization of criminal enforcement. The method is essentially explanatory, with essential support in the literature review.
Keywords: Penal Execution. Serious fault. Legality.
1. INTRODUÇÃO
Sempre objeto de disputas na fase cognitiva, o princípio da legalidade, no âmbito da execução penal, é alvo de um arrefecimento que lhe restringe, limita, viola. Essa perspectiva guarda atrás de si, de partida, duas causas principais: a resistência em se manter uma feição administrativa na atividade executória e a própria técnica legislativa empregada, especialmente, às condutas previstas como falta grave na Lei de Execução Penal (LEP).
Nesse aspecto, há uma ampla divergência entre as interpretações possíveis no âmbito das faltas graves prescritas na LEP, de modo que, somados, o poder disciplinar que repousa nas mãos da direção do estabelecimento e a vagueza dos dispositivos que prescrevem as condutas desviantes performam um campo fértil para o arbítrio, o qual, mesmo quando submetido à apreciação judicial, muitas vezes, a solução aplicada não encontra ressonância na Constituição Federal nem nas normativas internacionais, especialmente as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos – Regras de Mandela (ONU, 2016). 2
A par disso, destaca-se a importância de uma reflexão a respeito do atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto à conduta prescrita no art. 50, VII, da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal). No caso, o STJ consolidou posição no sentido de que não só a posse, a utilização ou o fornecimento de aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo, configuraria falta grave, mas, também, a de outros acessórios de um aparelho celular, como a bateria, a placa e até mesmo os fones de ouvido.
2. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA E A EXECUÇÃO PENAL
O princípio da legalidade, segundo Lenza (2020), deita suas raízes no Estado de Direito, funcionando como limitador às formas de poder autoritário ou antidemocrático.
Nesse aspecto, ainda conforme o mesmo autor, a doutrina aponta para uma categoria específica de legalidade, que seria a legalidade estrita, a qual implica na necessidade de a previsão da conduta ou omissão imposta ao particular constar de lei em sentido estrito, aprovada, portanto, pelo Poder Legislativo.
Essa é a legalidade exigida, por exemplo, pelo direito penal ao tipificar e punir determinadas condutas, conforme previsto no art. 1º do Código Penal (BRASIL, 1940). No mesmo sentido, a previsão do art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (BRASIL, 1988).
A par disso, na perspectiva da constitucionalização do direito (BARROSO, 2005), toda a execução penal deve observar os princípios constitucionais e, com maior rigor, a legalidade, afastando o arbítrio e o ativismo contrário aos direitos e garantias fundamentais.
3. A FALTA GRAVE DO ART. 50, VII, DA LEP E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O art. 50, VII, da LEP prevê que comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: “VII – tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo” (BRASIL, 1984).
Pela literalidade do texto, somente um “aparelho telefônico, rádio ou similar” e que “permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo” seria objeto material, instrumento idôneo a configurar a falta grave em questão.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), porém, aplicando evidente analogia (como forma de integração do direito) in malam partem, entendeu que:
Configura falta grave não apenas a posse de aparelho celular, mas também a de seus componentes, como, no caso, o chip de telefonia móvel. Inteligência do art. 50, VII, da LEP, “Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo.
Segundo a doutrina especializada, por todos Roig (2021), ao decidir dessa forma, o STJ violou solenemente o princípio da legalidade estrita, do qual não pode se esquivar a execução penal, considerando-se a atuação direta sobre a liberdade de locomoção. No caso, o chip de um celular nem é “aparelho telefônico, rádio ou similar” e, menos ainda, sozinho, é componente que “permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo”.
Cabe destacar, ainda na esteira do autor mencionado, que, a rigor, também pelo princípio da legalidade, até mesmo quando o preso fosse encontrado na posse de “aparelho telefônico, rádio ou similar”, seria essencial periciar o objeto para saber se é algo que realmente “permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo”.
O que passar disso, impõe-se concluir, é fruto de clara analogia como forma de integração do direito (portanto vedada em matéria penal) e que viola frontalmente o princípio da legalidade.
4. CONCLUSÃO
Diante do quanto exposto e das bases normativas que dão sustento ao modelo da execução penal no ordenamento jurídico brasileiro, resta incólume que a jurisdicionalização da execução penal, como uma perspectiva garantista dos direitos do apenado, arrasta para o âmbito da LEP toda a carga principiológica (portanto normativa) que emana da Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, a legalidade como elemento legitimador de toda a atuação estatal em um Estado de Direito, deve ser observada de forma ampla no ordenamento jurídico pátrio, especialmente quando em jogo direitos fundamentais, como é o caso da liberdade de locomoção e outros direitos afetados pela execução penal.
Nesse quadro, longe de ser uma relação administrativa e, menos ainda, calcada numa perspectiva de relação de sujeição especial, a execução penal não pode abrir mão de interpretar restritivamente ou, no mínimo, de forma literal, os dispositivos que tipificam faltas graves, pois, mesmo que a sanção, vez ou outra, seja, diretamente, de cunho não limitativo de direitos, a consequência indireta e imediata é o alongamento da privação de liberdade pela configuração do mau comportamento, a interrupção do prazo para progressão e até mesmo a perda de dias remidos.
Por tudo isso, resta fora de dúvida que a ampliação do conteúdo descritivo da falta grave prevista no art. 50, VII, da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal) é clara violação ao princípio da legalidade pela ampliação do campo sancionatório quando o legislador não o quis expressamente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Disponível em <https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618>. Acesso em 3 de julho de 2022.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 1940. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm >. Acesso em 3 de julho de 2022.
BRASIL. Lei nº 7.210, de 1984. Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em 3 de julho de 2022.
BRASIL. Constituição Federal, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 3 de julho de 2022.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Regras de Mandela: regras mínimas padrão das Nações Unidas para o tratamento de presos. Brasília: CNJ, 2016. 45 p. (Tratados Internacionais de Direitos Humanos). Disponível em < https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/handle/123456789/403> . Acesso em 01 de agosto de 2022.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. São Paulo, Saraiva, 2020.
ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução Penal: teoria crítica. Editora Revista dos Tribunais, 5ª Edição, São Paulo.
1 Mestre em Administração Pública (UFERSA – PROFIAP).
E-mail: carluciogermano@hotmail.com