A EVOLUÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS NA LITERATURA BRASILEIRA: UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE O ROMANTISMO E O MODERNISMO

THE EVOLUTION OF INDIGENOUS PEOPLES REPRESENTATION IN BRAZILIAN LITERATURE: A COMPARATIVE STUDY BETWEEN ROMANTICISM AND MODERNISM

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11454922


Autor principal: Rita Márcia Soares;
Coautor: Fábio Araújo Pereira.


RESUMO

O presente artigo aborda a representação do indígena na literatura brasileira, com foco nos movimentos do Romantismo e Modernismo. Os objetivos incluem analisar como José de Alencar (2011, 2012) representante do Romantismo, e Oswald de Andrade (1978) e Mário de Andrade (2015), representantes do Modernismo, retrataram os povos indígenas. Métodos qualitativos foram empregados, envolvendo análise crítica de obras literárias e estudos acadêmicos. Os resultados evidenciam que tanto no Romantismo quanto no Modernismo, a figura do indígena foi estereotipada, refletindo as influências ideológicas e as limitações dos autores. Conclui-se que, apesar das diferenças entre os movimentos, ambos contribuíram para a representação literária dos indígenas, dentro de contextos externos. José de Alencar idealizou o indígena como um elemento exótico, enquanto Oswald e Mário de Andrade buscaram uma representação mais autêntica, embora ainda influenciada por visões eurocêntricas.

Palavras-chave: Indígenas, Literatura Brasileira, Romantismo, Modernismo, Representação.

INTRODUÇÃO

A literatura brasileira, ao longo de períodos distintos, desempenhou um papel fundamental na construção das representações culturais e identitárias do país. Este artigo propõe-se a realizar uma análise crítica da evolução da representação do índio na literatura, com um enfoque especial nos movimentos do Romantismo e do Modernismo.

O índio, figura central nas narrativas literárias no romantismo e no modernismo, foi objeto de idealização romântica como “bom selvagem” durante o século XIX, especialmente nas obras de José de Alencar como “Iracema”. No entanto, a construção dessa imagem idealizada muitas vezes refletia uma visão estereotipada, levantando questionamentos sobre sua autenticidade e complexidade cultural. Com a chegada do Modernismo, representado por autores como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, observou-se uma ruptura com essa idealização, buscando uma representação mais realista e crítica da realidade brasileira. O indiígena, agora apresentado como o anti-herói preguiçoso em “Macunaíma”, desafia as convenções estabelecidas pelo Romantismo.

A relevância deste estudo reside na compreensão mais profunda da complexidade da identidade brasileira, marcada por tensões entre idealização, crítica e influências culturais externas. A pesquisa se justifica pela necessidade de preencher lacunas na literatura existente, aprofundando a compreensão das representações literárias dos povos indígenas, seus desdobramentos históricos e as influências eurocêntricas persistentes na construção dessas narrativas. Ao contextualizar o tema na literatura pertinente, o presente artigo visa contribuir para um entendimento mais abrangente das representações literárias dos povos indígenas, destacando as contradições e desafios encontrados nos movimentos romântico e modernista. A análise crítica dessas representações permitirá uma reflexão mais aprofundada sobre a construção da identidade brasileira e suas implicações culturais.

No cenário literário brasileiro, a representação indígena desempenhou papéis distintos nos movimentos romântico e modernista, refletindo não apenas mudanças estéticas, mas também transformações na construção da identidade nacional. Diante desse contexto, o problema central que direciona esta pesquisa consiste em compreender de que maneira as representações literárias dos povos indígenas, inicialmente idealizadas no Romantismo e posteriormente questionadas no Modernismo, contribuíram para a construção e desconstrução da identidade cultural brasileira e os fatores que as impulsionam.

A contextualização histórica revela que durante o Romantismo, figuras como José de Alencar idealizaram o indígena como um “bom selvagem”, retratando-o como um herói nobre e puro. Contudo, há uma lacuna na compreensão de como essa idealização influenciou a percepção da identidade brasileira na época e os fatores que influenciaram essa idealização. Com a chegada do Modernismo, Mário de Andrade e Oswald de Andrade propuseram uma desconstrução dessas representações, apresentando o indigena de maneira crítica e desafiadora em obras como “Macunaíma” e no “Manifesto Antropófago”.

Portanto, o problema central desta pesquisa é: quais fatores influenciaram a estereotipação dos povos indígenas nas obras de José de Alencar durante o Romantismo e no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade e Macunaíma de Mário de Andrade durante o Modernismo? Ao longo da pesquisa, busca-se identificar esses fatores.

REVISÃO DA LITERATURA

A colonização europeia no Brasil deixou marcas profundas na identidade e nas culturas dos povos indígenas, influenciando significativamente a literatura produzida durante esse período. Como destacado por Santiago (2000, p.14), a apropriação sociocultural pelo colonizador transformou a jovem nação em uma duplicação do modelo europeu, onde a literatura muitas vezes desempenhou o papel de instrumento de monitoramento e cerceamento cultural.

A literatura romântica brasileira, em especial, idealizou o índigena como um herói nacional, simbolizando pureza e nobreza que se acreditava terem sido perdidas com a colonização europeia. Autores como José de Alencar, com obras clássicas como “O Guarani” (Alencar, 2012) e “Iracema” (Alencar, 2011), desempenharam um papel fundamental nessa construção da imagem idealizada do índio romântico. No entanto, a crítica contemporânea, como ressaltado por Oliveira e Ferreira (2010), questiona a autenticidade dessas representações, destacando o “artificialismo” nas descrições de José de Alencar e sua excessiva idealização de personagens como Peri, Iracema e Ubirajara (Cândido, 2010).

A representação romântica do indígena também se manifesta na obra “Iracema”, onde José de Alencar descreve a personagem-título como a “Virgem dos Lábios de Mel”, simbolizando a união entre as culturas indígena e europeia. Essa idealização, conforme apontado por Oliveira e Ferreira (2010, p.3), contribuiu para uma representação positiva da nação brasileira, preparando o terreno para as projeções internacionais. “A literatura (…) representa um veículo para dar legitimidade ao conhecimento da realidade local, foi ponto de partida para o projeto nacionalista que se iniciou com o Romantismo e, de certa forma, teve seu auge no Modernismo” . Contudo, a crítica contemporânea, como evidenciada por Cândido (2010), destaca as complexidades por trás da produção literária de Alencar, um homem da sociedade fluminense, apontando para a necessidade de analisar suas obras à luz de seu contexto histórico e social. Questionamentos sobre a autenticidade de sua representação dos índios e da cultura indígena se tornam pertinentes, destacando a importância de uma abordagem crítica e reflexiva sobre o papel da literatura na construção da identidade nacional brasileira.

O advento do Modernismo no início do século XX marcou uma mudança significativa na forma como o índio foi retratado na literatura. Autores como Mário de Andrade (2016) e Oswald de Andrade (1976) romperam com as idealizações românticas, adotando abordagens críticas e de desconstrução. Em “Macunaíma”, Andrade (2016) apresenta um índio anti-herói, desafiando a visão romântica e propondo uma representação mais realista e crítica da realidade brasileira. Oswald de Andrade (1976), por sua vez, desempenhou um papel relevante na promoção da visibilidade do indígena e da cultura nacional. Seu “Manifesto Antropófago” de 1928 propôs a incorporação cultural como característica intrínseca ao Brasil, destacando a importância de preservar aquilo que é intrinsecamente nacional.

Problematizar a imagem do índio no contexto do modernismo brasileiro é uma tarefa crucial para entender como os escritores e artistas desse movimento abordaram a representação dos povos indígenas. Questões sobre o papel da dominação cultural e a inclusão das vozes indígenas nas obras modernistas permanecem essenciais para uma análise crítica do papel dos povos indígenas na construção da identidade cultural durante essa fase no Brasil. Assim, o modernismo, ao resgatar o mito do índio antropófago como um ícone de identificação nacional, revela-se um movimento que desafia as convenções estabelecidas pelo Romantismo.

Ao cunhar o índio como um “mau selvagem”, o modernismo oferece uma visão provocativa e questionadora da identidade brasileira, trazendo à tona um indígena que se distancia das idealizações do romantismo, instigando uma reflexão profunda sobre a complexidade da cultura brasileira.

O estudo intitulado “O Indigenismo de Alencar: Um Diálogo com a Literatura Andina no Século XIX”, de Weslei Roberto Cândido, realiza uma análise dos romances indianistas de José de Alencar sob a perspectiva do indigenismo. O autor destaca a construção da imagem idealizada do índio por José de Alencar, visando promover um projeto de nação hegemônico representativa do Brasil. A pesquisa conclui que José de Alencar adotou uma abordagem indigenista, em detrimento de uma voz indígena autêntica, para inserir os índios como heróis nacionais em um contexto literário romântico, comparando-os à literatura latino-americana do século XIX.

“Portanto, dentro da proposta da figura de Alencar como o fundador do romance americano no Brasil e de que sua literatura está em diálogo com os demais escritores do continente, cruzaremos novamente os olhares, ultrapassando as fronteiras do nacional, tornando-as um lugar de produção de sentidos que nos permitirá olhar os romances indigenistas de Alencar imbricados de outros discursos de formação das Américas.” (Cândido, 2010, p.20)

Por outro lado, o artigo “A Semana de Arte Moderna de 1922 e o Modernismo Brasileiro: atualização cultural e ‘primitivismo’ artístico”, escrito por Evando Nascimento, examina as conexões entre a Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo e as vanguardas europeias, ressaltando os projetos estético e político do modernismo brasileiro. O estudo destaca a importância do movimento Antropofágico, liderado por Oswald de Andrade, e seu diálogo com o primitivismo europeu. A análise conclui que a Semana representou uma ruptura cultural significativa, marcando a modernização da arte e literatura brasileiras por meio da assimilação e transformação das influências europeias dentro da perspectiva antropofágica. “Assim como numa tela do pintor cubista exploravam-se elementos considerados primitivos(…) igualmente para o escritor brasileiro se tornava sugestiva a utilização de elementos populares da cultura nacional.” (Nascimento, 2015, p. 9) Nesse contexto, a figura do indígena no Modernismo não é mais concebida como o modelo de pureza e heroísmo do Romantismo, mas sim como um símbolo da miscigenação e da complexidade cultural brasileira. O movimento propõe a “devoração” das culturas estrangeiras para a criação de algo novo e autenticamente brasileiro, refletindo a fusão e a transformação cultural.

Ao contrário do Romantismo, o Modernismo celebra a diversidade e a mistura étnica como aspectos positivos da identidade nacional. A antropofagia, conceito central do Modernismo brasileiro, sugere que a incorporação das influências externas, reinterpretadas.

METODOLOGIA.

Este estudo é classificado como uma pesquisa bibliográfica, uma vez que se baseia em análises de documentos já existentes. A escolha desse tipo de pesquisa se justifica pela necessidade de reunir informações já consolidadas na literatura sobre o tema proposto. Este processo, conforme destacado por Sampaio e Mancini (2007), busca fornecer uma resposta objetiva e imparcial a uma pergunta específica. Essa abordagem sistemática, como ressaltado por diversos autores, é crucial para a tomada de decisões, promovendo uma análise crítica e abrangente da literatura disponível.

A coleta de dados foi realizada por meio de consultas a bancos de dados acadêmicos, bibliotecas virtuais, periódicos online, bem como materiais disponíveis em bibliotecas físicas.

Os critérios de inclusão para os documentos científicos são: idioma português ou inglês, disponibilidade gratuita, e relevância para os objetivos da pesquisa. Os critérios de exclusão incluíram documentos desatualizados, em idiomas não selecionados, de difícil acesso ou que não contribuam diretamente para os propósitos da pesquisa.

A análise dos dados foi realizada de maneira qualitativa. A análise qualitativa foi realizada por meio de uma revisão detalhada do conteúdo, destacando temas, padrões e insights relevantes presentes nos documentos. Os resultados foram apresentados por meio de transcrição de trechos relevantes dos documentos analisados.

Resultados e discussão

Os estudos literários brasileiros entre os séculos XIX e XX focaram significativamente na definição do caráter da identidade nacional, especialmente durante os movimentos estéticos do Romantismo e Modernismo. Segundo Oliveira, “a definição do caráter da identidade nacional ocupou lugar de destaque nos estudos literários brasileiros, sobretudo nos períodos compreendidos entre o século XIX e XX, respectivamente com os movimentos estéticos Romantismo e Modernismo” (Oliveira, 2012, p. 3). Antonio Candido (2009) argumenta que a literatura foi um veículo crucial para legitimar o conhecimento da realidade local e desempenhou um papel central no projeto nacionalista que começou com o Romantismo e atingiu seu auge no Modernismo:

“A literatura que, segundo Antonio Candido (2009) representa um veículo para dar legitimidade ao conhecimento da realidade local, foi ponto de partida para o projeto nacionalista que se iniciou com o Romantismo e, de certa forma, teve seu auge no Modernismo” (Oliveira, 2012, p. 3).

Os autores Sanches e Oliveira (2015) complementam essa visão ao afirmarem que “Macunaíma é a obra que mais investiu na positivação da imagem caricata que se fazia do brasileiro” (p. 13), sugerindo que o Modernismo não apenas legitimou a realidade local, mas também desafiou e subverteu estereótipos sobre o brasileiro.

A literatura contribuiu de maneira significativa para a formação do caráter nacional brasileiro, sendo um importante impulsionador do discurso identitário: “Impulsionadora do discurso identitário brasileiro, a literatura teve importante parcela de contribuição na formação do caráter nacional brasileiro” (Oliveira, 2012, p. 9). Os objetivos da literatura nacionalista, tanto no romantismo quanto no modernismo, visavam projetar a cultura e a literatura brasileira internacionalmente e criar uma identidade nacional. Estes movimentos, embora ocorrendo em diferentes fases históricas e contextos sociais, foram eficazes em alcançar essas metas:

“Mesmo tendo ocorrido em diferentes fases da história e em diferentes contextos sociais, contribuíram para a concretização dos objetivos ao qual se propuseram: projetar a cultura e a literatura brasileira internacionalmente e criar uma identidade nacional” (Oliveira, 2012, p. 9).

Sanches e Oliveira (2015) corroboram com a ideia supracitada, ao afirmar que “Macunaíma sofre de uma pulsão erótica que não conhece barreira” (p. 13), refletindo a liberdade sexual e a naturalidade presentes nas representações dos povos indígenas no modernismo brasileiro.

O Romantismo, em particular, expressou um sentimento nacionalista que visava minimizar a influência europeia e promover um processo de abrasileiramento: “O sentimento nacionalista que surgiu com o Romantismo manifestou-se como uma tentativa de minimizar a influência europeia e criar um processo de abrasileiramento” (Oliveira, 2012, p. 3). No que tange à representação do índio na literatura, este foi frequentemente retratado de forma idealizada e estereotipada, sendo uma figura central na construção da identidade nacional. Segundo Candido, “O índio brasileiro, figura central na construção da identidade nacional, foi frequentemente retratado de forma idealizada e estereotipada ao longo da história literária do país” (Candido, 2010, apud Oliveira, 2012, p. 5). Durante o Romantismo, a presença do indígena nas obras literárias muitas vezes serviu como elemento exótico e decorativo, sem explorar a complexidade e a riqueza cultural desses povos:

“A presença do indígena nas obras literárias românticas muitas vezes serviu como elemento exótico e decorativo, sem explorar a complexidade e a riqueza cultural desses povos originários” (Candido, 2010, apud Oliveira, 2012, p. 7).

No entanto, no modernismo, a figura do índio foi ressignificada e apresentada de maneira mais autêntica e próxima da realidade, rompendo com as idealizações do romantismo: “No Modernismo, a figura do índio é ressignificada, sendo apresentada de forma mais autêntica e próxima de sua realidade, rompendo com as idealizações do passado” (Candido, 2010, apud Oliveira, 2012, p. 9). Sanches e Oliveira (2015) destaca que “Macunaíma repete inúmeras vezes o refrão ‘ai que preguiça”‘ (p.14), uma característica que pode ser vista como uma forma de desafio aos valores do trabalho árduo impostos pela sociedade ocidental, refletindo uma idealização de uma vida mais livre e em contato com a natureza. Mário de Andrade, por exemplo, criticava a aculturação dos indígenas que foram convertidos e assimilados à cultura europeia e cristã, referenciando figuras históricas e literárias para ilustrar essa transformação: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o

Brasil tinha descoberto a felicidade. Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz” (Sanches e Oliveira, 2019, p. 3). Ele também idealizava um matriarcado indígena, onde as tradições antigas são substituídas por experiências pessoais renovadoras e libertadoras: “A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama. Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada” (Sanches e Oliveira, 2019, p. 1). Além disso, os autores supracitados observaram que “Macunaíma faz um uso ritualístico dessas coisas, tirando-lhes o caráter civilizado na hora em que se reintegra a seu mundo original” ( p. 17), sugerindo uma idealização da cultura indígena e uma crítica à civilização ocidental.

Além disso, a terminologia utilizada para designar os indígenas foi evoluindo. O termo “índios” começou a ser empregado de forma anacrônica a partir de meados do século para designar os indígenas submetidos, em contraste com o termo “gentio”, que designava os indígenas independentes: “A palavra índios é aqui usada anacronicamente: ela parece começar a ser empregada por meados do século aparentemente para designar os indígenas submetidos (seja aldeados, seja escravizados), por ocasião ao termo mais geral ‘gentio’ que designa os indígenas independentes” (Cunha, 1990, p. 4). Relatos como o de Jean de Léry descreviam os brasileiros de forma exótica, mencionando sua longevidade e modo de vida peculiar: “Até Jean de Léry (1972 (1578): 73) ainda se fala da longevidade dos brasileiros” (Cunha, 1990, p. 4). No século XVI, figurantes na França, incluindo verdadeiros índios, representavam cenas de caça, guerra e amor ao estilo Tupinambá, destacando a curiosidade e exotismo que cercavam as representações europeias dos brasileiros:

“Circunstância, trezentos figurantes, entre verdadeiros índios trazidos à França, marinheiros normandos e prostitutas, todos despidos à moda Tupinambá, representam cenas de caça, de guerra, de amor, e até de abordagem a um navio português” (Cunha, 1990, p. 8).

Existe um paradoxo inerente ao tentar fundar a identidade nacional em um núcleo étnico cuja reivindicação simultaneamente o invalida. A tentativa de “salvar” os indígenas da ignorância e exploração frequentemente os objetificar, tratando-os mais como objetos de preservação do que como sujeitos ativos de sua própria história:

“Visto ao assunto nacional, com base no positivismo indigenista, surge de imediato o imenso paradoxo de se querer fundar a identidade de um povo no núcleo étnico cuja reivindicação ao mesmo tempo o invalida. ‘Salvá-lo’ da ignorância, dos vícios, da exploração, implica – querendo-se ou não – que a própria fonte de nacionalidade é muito mais objeto que sujeito da história” (Polar, 2000, p. 201).

No indigenismo romântico, por exemplo, personagens como Peri eram estereótipos de heróis indígenas que faziam grandes sacrifícios por amor, mas a união entre raças era tratada como ilícita ou nunca explicitamente mostrada: “Peri é este estereótipo do herói indígena. Busca uma onça viva só para agradar Ceci, deixa sua família para servir a de sua amada, atira-se na frente das balas que acertaram sua protegida, busca no abismo, cheio de serpentes, um presente de sua amada e é capaz até mesmo de se envenenar para salvar a todos que sua Ceci ama” (Candido, 2010, p. 111). “Macunaíma subverte as expectativas tradicionais sobre heroísmo e identidade ao apresentar um protagonista que constantemente desafia as normas e valores ocidentais” (Sanches e Oliveira, 2015, p. 20). Os resultados evidenciam a centralidade da literatura na construção da identidade nacional brasileira, especialmente através dos movimentos Romantismo e Modernismo. A literatura foi instrumental para legitimar o conhecimento da realidade local e promover um projeto nacionalista. Andrade (1976), ao falar da antropofagia cultural, onde se absorvem e transformam elementos estrangeiros em algo próprio e significativo, vê esse processo como uma aventura humana e um objetivo essencial na vida: “Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade” (Andrade, 1976, p. 4). Ele também descreve a evolução dos instintos humanos, mostrando a complexidade e a capacidade de sublimação dos impulsos básicos: “De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se” (Andrade, 1976, p. 5).

O papel do índio na literatura brasileira destaca um processo de evolução na representação cultural. Durante o Romantismo, os indígenas eram frequentemente idealizados e estereotipados, servindo mais como elementos exóticos do que como representações autênticas de sua cultura. Esta abordagem começou a mudar no Modernismo, que buscou ressignificar a figura do índio de maneira mais fiel à realidade, rompendo com as idealizações passadas. Andrade (1976) critica a sociedade repressora e organizada segundo os padrões freudianos, contrastando-a com uma utópica realidade indígena matriarcal, livre de complexos e instituições opressivas: “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama” (Andrade, 1976, p. 5). Sanches e Oliveira (2015) reforçam essa visão ao mencionar que “Macunaíma faz um uso ritualístico dessas coisas, tirando-lhes o caráter civilizado na hora em que se reintegra a seu mundo original” (p. 17), sugerindo uma idealização da cultura indígena e uma crítica à civilização ocidental.

A análise revela a complexidade e as contradições envolvidas na construção da identidade nacional brasileira, demonstrando tanto os esforços de valorização cultural quanto as dificuldades em representar autenticamente a diversidade e riqueza das culturas indígenas. Esses aspectos sublinham a importância da literatura não apenas como um reflexo da realidade, mas como um agente ativo na formação e transformação da identidade nacional.

Conclusão

A análise das representações do indígena na literatura brasileira revela que tanto o Romantismo quanto o Modernismo, apesar de suas diferenças em abordagem e contexto histórico, contribuíram para a estereotipação da figura do indígena. No Romantismo, o indígena foi frequentemente retratado de forma idealizada e estereotipada, servindo mais como um elemento exótico e decorativo do que como uma representação autêntica de sua cultura. Conforme mencionado, “A presença do indígena nas obras literárias românticas muitas vezes serviu como elemento exótico e decorativo, sem explorar a complexidade e a riqueza cultural desses povos” (Candido, 2010, apud Oliveira, 2012, p. 7). Essa abordagem refletia uma visão romantizada que buscava criar um herói nacional ideal, alinhando-se ao projeto nacionalista de minimizar a influência europeia e promover um processo de abrasileiramento. “Macunaíma desafia e subverte estereótipos sobre o brasileiro, incluindo elementos indígenas, ao apresentar o protagonista de forma positiva, apesar de suas características caricatas” (Sanches e Oliveira, 2015, p. 13).

Por outro lado, o Modernismo tentou romper com as idealizações do passado, buscando uma representação mais autêntica e próxima da realidade do indígena. No entanto, essa tentativa de ressignificação ainda carregava influências eurocêntricas, pois, embora apresentasse o indígena de forma mais realista, não escapava completamente dos preconceitos e das construções ocidentais de identidade. “No Modernismo, a figura do índio é ressignificada, sendo apresentada de forma mais autêntica e próxima de sua realidade, rompendo com as idealizações do passado” (Candido, 2010, apud Oliveira, 2012, p. 9). A ressignificação modernista, embora mais progressista, ainda estava enraizada em uma visão externa e, muitas vezes, superficial da cultura indígena, refletindo as limitações e os vieses dos próprios autores.

Ambos os movimentos foram fortemente influenciados por ideologias eurocêntricas, que moldaram suas perspectivas sobre o indígena e a identidade nacional. Mesmo com o objetivo de abrasileiramento e valorização da cultura local, os escritores brasileiros estavam, em grande medida, respondendo a conceitos e valores europeus, tentando adaptar e, por vezes, resistir a eles. A literatura do Romantismo procurava estabelecer um herói nacional que fosse comparável aos heróis europeus, enquanto o Modernismo buscava uma identidade cultural que fosse reconhecida e respeitada internacionalmente, mas ainda dentro de um quadro de referência global eurocêntrico. Assim, concluímos que tanto o Romantismo quanto o Modernismo contribuíram para a estereotipação do indígena, cada um à sua maneira, e que ambos os movimentos foram influenciados por ideologias eurocêntricas. Essa influência moldou a construção da identidade nacional brasileira, destacando as dificuldades de representar autenticamente a diversidade e riqueza das culturas indígenas. Apesar dos avanços e das diferenças entre os dois movimentos, a figura do indígena permaneceu, em grande parte, uma construção literária que refletia mais as aspirações e limitações dos autores do que a realidade dos povos originários do Brasil.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. Iracema. Porto Alegre: L&PM, 2011.

ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Martin Claret, 2012.

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Organizadores: Miguel Sanches Neto, Silvana Oliveira. Chapecó: Ed. UFFS, 2019. 203 p. (Coleção Literatura Brasileira: identidades em movimento)

ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: _____. Obras completas VI Do pau Brasil à antropofagia e as utopias: manifestos, teses de concursos e ensaios. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978.

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. São Paulo; Rio de Janeiro: FAPESP: Ouro sobre Azul, 2009.

CÂNDIDO, Weslei Roberto. O indigenismo de Alencar: um diálogo com a literatura andina no século XIX. Revista Iluminart, n. 5, ago. 2010. Disponível em: http://www.ifsp.edu.br/revistailuminart. Acesso em: 01 fev. 2024

CUNHA, Manuela Carneiro da. Imagens de índios do Brasil: O Século XVI. Revista Estudos Avançados, v. 4, n. 9, dez. 1990. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40141990000300005. Acesso em: 01marc. 2024.

NASCIMENTO, Evando. A Semana de Arte Moderna de 1922 e o Modernismo Brasileiro: atualização cultural e “primitivismo” artístico. Gragoatá, Niterói, n. 39, p. 376-391, 2. sem. 2015. Disponível em: http://www.revistagragoata.com.br. Acesso em: 01 jun. 2024.

OLIVEIRA, Rita; FERREIRA, Shirley. Literatura e identidade nacional: desafios do Romantismo e Modernismo brasileiros. Revista Eletrônica Fundação Educacional São José, 9ª Edição, ISSN: 2178-3098, 2010.

POLAR, Antonia Cornejo. Organização Mario J. Valdés. Trad. Ilka Valle de Carvalho O Condor Voa. Literatura e Cultura Latino-Americanas. Belo Horizonte – MG: Editora da UFMG, 2000.

SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

SAMPAIO, R. F., & MANCINI, M. C. (2007). Estudos de revisão sistemática: um guia para síntese criteriosa da evidência científica. Revista Brasileira de Fisioterapia, 11(1), 83-89. https://doi.org/10.1590/S1413-35552007000100015