A EDUCAÇÃO FÍSICA: OS DESAFIOS DA BNCC E O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO.

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10600137


Jaiara Rosa Cruz Scofield Ferreira¹


Resumo

O artigo aborda a utilização da Base Comum Curricular (BNCC) como ferramenta de construção de planejamentos e criação dos instrumentos de atualização pedagógica para as aulas de educação física e o ensino de alguns temas integradores. A condução do processo ensino-aprendizagem dos objetos de conhecimento relacionados a saberes articulada à cultura do movimento que possuem alguma relação com expressões corporais da religiosidade popular podem gerar preconceitos e intolerância no ambiente escolar. Apresentando dificuldades do processo ensino aprendizagem de alguns dos objetos de conhecimento expressos pela BNCC propostos para o componente curricular da educação física e os chamados temas integradores. Por fim, busca-se promover a reflexão sobre o tema do ensino aprendizagem no componente curricular, comunicando-se com outros saberes e com o mundo real na perspectiva da utilização dos conhecimentos adquiridos na escola e utilizados nas situações problemas da vida. Esses não se restringem ao atendimento do mercado de trabalho, mas sim para uma melhoria social.

Palavras-chave: Educação Física; BNCC; Temas integradores; Diálogo inter-religioso.

Abstract

The article addresses the use of the Common Curricular Base (BNCC) as a tool for building planning and creating pedagogical updating instruments for physical education classes and the teaching of some integrative themes. Conducting the teaching-learning process of objects of knowledge related to knowledge linked to movement culture that have some relationship with bodily expressions of popular religiosity can generate prejudice and intolerance in the school environment. Presenting difficulties in the teaching-learning process of some of the objects of knowledge expressed by the BNCC proposed for the curricular component of physical education and the so-called integrative themes. Finally, we seek to promote reflection on the topic of teaching and learning in the curricular component, communicating with other knowledge and with the real world from the perspective of using the knowledge acquired at school and used in life’s problem situations. These are not restricted to serving the job market, but rather for social improvement.

Key words: Physical education; BNCC; Integrative themes; Interfaith dialogue.

Introdução

O Brasil possui uma diversidade religiosa muito grande. Segundo Ribeiro, no ano de 2010, por análise do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), definem 21 categorias religiosas², fora as denominações que se desdobram delas. É preciso entender que a religião e a religiosidade exercida pelos sujeitos que compõem a escola não se limitam às interações ocorridas nas aulas de Ensino Religioso, estas extrapolam e ocorrem em todos os componentes curriculares. Fazendo com que no tempo/espaços das aulas do componente curricular da Educação Física possa aparecer situações conflitosas tendo ligação com a pertença religiosa dos alunos. Todos os objetos de conhecimento ligados à cultura, principalmente as articuladas pela cultura popular, podem apresentar elementos da religião e da religiosidade brasileira. Haja vista que a religião compõe a cultura à qual se manifesta. Isso ocorre com vários objetos de conhecimento da educação física, logo, seu objeto de conhecimento é a cultura corporal de movimento. Levando a uma questão importante a ser discutida nos processos formativos de professores da área. Se a religião é um fenômeno ligado à cultura e aspectos relacionados a ela aparecem em determinadas situações de aula do professor de educação física, não deveríamos entender melhor sobre ela?

Os profissionais que tiveram a sua primeira graduação antes do ano de 2004 não recebiam nenhuma informação, em processos formativos sobre diversidade, ou sobre as relações étnico-raciais, salvo por iniciativa própria. Isso muda com o parecer de 2004, contudo ainda parece deixar muito a desejar. Essa falta de informação proveniente de uma formação inicial desatualizada pode causar no professor uma dificuldade em saber diferenciar  o que é manifestação religiosa daquilo que é uma expressão da cultura popular.  Esses temas e formações devem então ser realizados via formação continuada promovida pelas secretarias de educação locais. Por isso a preocupação com o tema, pois desde o ano de 2023, estou como professora formadora do componente curricular de Educação Física da prefeitura municipal de Vila Velha, no estado do Espírito Santo.

Essas inquietações nasceram do processo de elaboração da trilha formativa para o ano de 2024 para os professores da rede municipal. Outra fragilidade percebida a ser considerada pelas formações continuadas promovidas pelas instituições de ensino é sobre o ensino dos chamados “temas integradores”, presentes na BNCC. Esses temas são conteúdos não formais presentes no dia a dia das crianças que precisam ser trabalhados visando à educação das crianças integralmente. Por isso, a necessidade de um olhar mais criterioso e de um aprofundamento no tema se faz necessário.

Diante do conjunto de temas integradores propostos para os anos iniciais do ensino, dois se destacam neste estudo, o primeiro seria o direito da criança e do adolescente e o segundo a educação das relações étnico-raciais e ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena. Os dois temas envolvem o direito do acesso à cultura e o direito à liberdade religiosa das crianças. Como é impossível separar e compartimentalizar a educação em um patamar que se possa separar totalmente o sujeito religioso do sujeito que estuda, sugerindo o conhecimento e o trabalho com o que chamamos de diálogo inter-religioso nas escolas.

Para aprofundamento destes temas, serão analisados livros e artigos que abordam a temática do diálogo inter-religioso e alguns textos de Bizon e Schlesinger, Rossi e Abumanssur. O artigo subdivide-se em uma breve análise dos marcos legais brasileiros, apresentando como são interpretadas as noções de laicidade. Depois, abordam-se os conhecimentos estruturados e propostos pela BNCC, com o referencial de Silva, Ferreira e Silva, sobre os desafios que surgem para trabalhar temas como danças, lutas e brincadeiras da cultura afro-brasileira no componente curricular. Borges e Belini também repensam a prática da educação física e do profissional que nela atua.

Neste sentido, a produção deste artigo se faz necessária, para que, por meio de uma revisão bibliográfica, seja possível coletar e aprofundar o conhecimento sobre o assunto. Visto que a formação inicial da educação física impossibilitou qualquer informação ou instrução sobre a abordagem do assunto religião nas aulas de educação física. Nesta perspectiva, há uma lacuna a ser preenchida pelas formações continuadas oferecidas aos professores de educação física, possibilitando abordar o tema corretamente a fim de construir uma cultura de paz nos ambientes escolares.

1.  Marcos Legais relevantes para os sistemas educativos públicos e o ensino dos temas integradores.

O primeiro marco legal e de alta relevância é a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Esta legislação inspirou uma série de outras legislações promulgadas no mundo. Dentre elas, a declaração dos direitos da Criança e do Adolescente no Brasil (ECA), em que na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aparece como um dos temas integradores a serem trabalhados durante o ano letivo. Pois fazem parte de um conjunto de conhecimentos informais, mas que precisam ser repassados devido à suma relevância na formação de sujeitos conscientes e reflexivos. Para Piovesan a:

[…] Declaração Universal de direitos humanos de 1948 introduz extraordinária inovação ao conter uma linguagem de direitos até então inédita. Combinando o discurso liberal da cidadania com o discurso social, a Declaração passa a elencar tanto direitos civis e políticos (arts. 3.º a 21), como direitos sociais, econômicos e culturais (arts. 22 a 28), afirmando a concepção contemporânea de Direitos Humanos.³

Essa inovação introduz no mundo uma forma nova de construir leis mantenedoras dos direitos universais dos indivíduos e sua inviolabilidade. De acordo com Piovesan, a Declaração inspira os governos locais a assumirem essa contemporaneidade nas leis4 resultante, por exemplo, no ECA. A autora evidencia que “os grupos religiosos têm o direito de constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, ao ser parte de uma sociedade democrática. Todavia, não têm o direito a pretender hegemonizar a cultura de um Estado constitucionalmente laico”5. No Brasil, desde o ano de 2018, percebemos uma forte polarização da política, fomentando uma preocupação em educadores, como Bracht, em que igrejas e instituições religiosas estejam participando cada vez mais da política brasileira, ameaçando o estado democrático de direito6. É perceptível no cenário brasileiro a manifestação de grupos fundamentalistas, que, para Campos, […] “é possível concluir que o fundamentalismo religioso muitas vezes é fruto de interesses políticos, econômicos ou ideológicos”7. Dias, em sua pesquisa, expõem que a Constituição Federal Brasileira de 1988 não se declara abertamente como laica, mas implicitamente nos artigos 5 e 19 deixa essa característica evidente8. Constituindo assim o Brasil num estado laico, separando o Estado e Igreja, deixando no foro íntimo/particular as questões religiosas, todavia deixando brechas em sua legislação, por ausência de clareza. 

Observa-se que o modelo de laicidade do Brasil segue um rumo próprio. Para Piovesan, “Há o dever do Estado em garantir as condições de igual liberdade religiosa e moral, em um contexto desafiador em que, se de um lado o Estado contemporâneo busca se separar da religião, esta, por sua vez, busca adentrar nos domínios do Estado (ex.: bancadas religiosas no Legislativo)”9. Isto é notório no Brasil, esse protagonismo de agentes políticos, individualizadamente ou não, em nome de suas crenças e dogmas, almejam influenciar as leis de acordo com sua visão religiosa.  Dessarte há uma crescente intolerância religiosa no Brasil e no estado do Espírito Santo.

A intolerância religiosa é combatida, principalmente nas escolas brasileiras, ao ferir diretamente o artigo 5° da Constituição de 1988, com maior ênfase nos incisos I, VI, VIII:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;[…] I – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;[…] VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; […]VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;10

Historicamente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) esboça-se desde a Constituição de 1988 em seu artigo 210. Assim, tivemos outras leis, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 (LDB) e seu artigo 26¹¹, por conseguinte os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) que agrupavam em ciclos os conteúdos a serem ensinados e finalmente a BNCC. Em suma, foi esta a progressão das leis promulgadas que influenciaram a criação da BNCC. Estas legislações cooperaram na elaboração da BNCC, finalizada e divulgada em 2018. Como descreve Piovesan, […] “as violações, as exclusões, as discriminações, as intolerâncias são um construído histórico, a ser urgentemente desconstruído”¹². Para tanto, novas leis devem surgir atendendo essa demanda, propiciando esta desconstrução. A BNCC e suas dez competências gerais objetivam uma educação integral das crianças. Essa educação passa pelo respeito às diferenças, preservação de seu patrimônio cultural com o intuito de desenvolver uma sociedade mais justa e de direitos iguais entre as pessoas.

Na década de 90, acreditava-se que a falha na formação inicial dos professores tendia para o modelo tradicional, todavia, não transmitia os conceitos e os conhecimentos que se ligavam à atualidade¹³, por isso o modelo da pedagogia por competências foi adotado. Ressalta-se que essas mudanças de paradigma apresentam problemáticas como a desvalorização dos saberes referente a cada componente curricular, pois o foco é, na prática, na resolução de problemas do cotidiano. Revela-se uma forte vontade em atrelar o ensino apenas às necessidades do mercado. No entanto, de acordo com Bracht aumentar o grau de escolarização da população tornaria o povo mais ativo no processo democrático, de maneira consciente e autônoma14. Sobremaneira, superaria uma educação tecnicista para atender demandas de mão de obra qualificada, não havendo interesse no fortalecimento da democracia nacional.

2. Fundamentos pedagógicos relacionados a BNCC

No que tange às legislações, a BNCC vem se engendrando há tempos. A necessidade de padronização da oferta dos conhecimentos pelas instituições de ensino através dos órgãos públicos vinculados à Educação se faz extremamente necessária num país de proporções continentais como o Brasil. O estado do Espírito Santo é um estado de grande variedade religiosa, e muito ligado às manifestações da religiosidade popular. De acordo com Silva, a Festa da Penha, realizada no município de Vila Velha, é uma das maiores festas marianas do Brasil e ocorre desde 157115. Este tema pode ser considerado por muitos como irrelevante, pois o Brasil é um país laico. Mas a religiosidade em nosso país é nítida, entender a religião como um produto cultural que permeia as relações sociais é um tema primordial a ser trabalhado nas escolas.

A BNCC preconiza em sua introdução que cabe às instituições de ensino trabalhar com os temas contemporâneos listados na BNCC com esta redação:

Direitos da criança e do adolescente (Lei nº 8.069/199016), educação para o trânsito (Lei nº 9.503/199717), educação ambiental (Lei nº 9.795/1999, Parecer CNE/CP nº 14/2012 e Resolução CNE/CP nº 2/201218), educação alimentar e nutricional (Lei nº 11.947/200919), processo de envelhecimento, respeito e valorização do idoso (Lei nº 10.741/200320), educação em direitos humanos (Decreto nº 7.037/2009, Parecer CNE/CP nº 8/2012 e Resolução CNE/CP nº 1/201221), educação das relações étnico-raciais e ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena (Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, Parecer CNE/CP nº 3/2004 e Resolução CNE/CP nº 1/200422), bem como saúde, vida familiar e social, educação para o consumo, educação financeira e fiscal, trabalho, ciência e tecnologia e diversidade cultural (Parecer CNE/CEB nº 11/2010 e Resolução CNE/CEB nº 7/201023)16

Totalizam oito grandes grupos de temas integradores a serem desenvolvidos com as crianças no ensino fundamental de nove anos. Em uma análise superficial, entendemos que tratar de assuntos como a festa da Penha, faça parte destes temas, conteúdos informais, fazem parte da contemporaneidade da população. Neste tipo de festa, temos várias expressões populares ligadas às culturas locais, como o Congo.

Essas especificidades precisam estar previstas no currículo, atendendo às redes de ensino locais. De acordo com Silva, Ferreira e Silva, “A opção por um determinado conjunto de práticas corporais deve ser produto de uma leitura cuidadosa do entorno social, de uma leitura da realidade local”17. O currículo do Estado do Espírito Santo, cuja prefeitura do município de Vila Velha aderiu, já está conforme a BNCC. Este prevê o ensino dos temas integradores em cada trimestre, através das orientações curriculares fornecidas trimestralmente. No ano de 2023, essas orientações curriculares apregoaram como tema integrador para as turmas dos anos iniciais do ensino fundamental do componente curricular de educação física o “Diálogo intercultural e inter-religioso”.

Situando melhor o local da educação física na BNCC, ressalta-se que ela pertence à área de linguagens, assim como ao currículo do governo do Estado, dando destaque a dois de seus objetivos pela BNCC:

“Planejar e empregar estratégias para resolver desafios e aumentar as possibilidades de aprendizagem das práticas corporais, além de se envolver no processo de ampliação do acervo cultural nesse campo. […] Reconhecer as práticas corporais como elementos constitutivos da identidade cultural dos povos e grupos.”18

Alguns temas integradores parecem ter se desenvolvido melhor ao longo destes anos. Acredito que o diálogo sobre a educação ambiental está mais bem estruturado do que a discussão religiosa nas escolas. Para Campos, o cuidado com a “casa comum” avançou parcialmente. O autor afirma que “Além da preocupação ecológica, tão necessária nos tempos atuais, é preciso pensar na casa comum como princípio que embasa a irmandade e fraternidade entre todas as culturas, etnias, religiões”19. De nada vale desenvolver trabalhos com coletas seletivas e redução de resíduos se as crianças brigam entre si e a violência nas escolas aumenta diuturnamente. Grande parte dessa violência gerada pelas diferenças religiosas e pelos grupos fundamentalistas intensificou-se com as disputas eleitorais após 2018 e permaneceu nas de 2022. Para Santos, pesquisador sobre o tema, afirma: “Neste sentido, estimular o debate sobre esse fenômeno, aprofundando seu viés sócio-político-histórico, apontando particularidades, similaridades e divergências, é essencial”20.

Para Bracht, a educação escolar não conseguiu transformar hábitos corporais forjados ao longo dos anos, dando suporte/fomento a comportamentos de caráter violento e discriminatório²¹. Comprovados com pesquisas como o II Relatório sobre violência no Brasil²². Conforme o relatório, os casos no Brasil em pouco tempo sofreram um aumento no estado do Espírito Santo na ordem de 60%²³. Para desconstruir essa realidade são necessárias algumas atitudes e intervenções. Particularmente este relatório cita ações de intolerância sobre o congo, que é uma manifestação cultural no estado do Espírito Santo24.

Na BNCC, a educação física se divide em 6 grupos temáticos, brincadeiras e jogos, esportes, danças, ginásticas, lutas e práticas corporais de aventura25. O Congo faz parte do objeto de conhecimento Danças e, como preconiza a BNCC, ela deve ser trabalhada nas escolas municipais, garantindo o patrimônio cultural das crianças capixabas. O momento da aula do componente curricular da Educação Física seria uma ocasião para o ensino de temas não formais. Conforme Borges e Belini, pois “A educação física é o momento em que seres dotados de personalidades que o diferenciam como ser humano, manifestam uma singularidade de desejos que é o do entretenimento” 26.

 Esse pensamento sobre o entretenimento é bem claro e observável nos anos iniciais do ensino fundamental, principalmente quando se trabalha com brincadeiras e jogos. A unidade temática de brinquedos e os jogos são conteúdos favoráveis à socialização, e se bem trabalhados, podem promover a aceitação do diferente, do respeito pelas diferenças culturais existentes nos interiores escolares. Associado a este trabalho das unidades temáticas, precisamos abrir espaços de diálogo, propiciando o trabalho com os temas integradores e tendo o objetivo de construir um conhecimento que ultrapasse os muros da escola em que se encontram. 

Os autores citados anteriormente, como Borges, Belini, Silva, Ferreira, falam da importância do ensino sistematizado conforme o recomendado pela BNCC. Todavia, são unânimes quando afirmam que essa educação não se resume a isso, ela pode, sim, ser estendida a outros conhecimentos relacionados aos conteúdos da educação física, e que fazem parte da vida cotidiana e das relações humanas. Para trabalhar este componente curricular, é preciso a abertura do espaço para o diálogo regularmente nas aulas.

3. A necessidade de diálogo

Concordo com a afirmativa de Schlesinger, na afirmativa de que o diálogo é um meio e não o fim. Para o autor, “Embora muito aprazível, não dialogamos pelo prazer de dialogar, visando operar mudanças profundas na sociedade”27. Os problemas e conflitos encontrados na escola não têm origem somente pedagógica, assim como os conhecimentos não conseguem se compartimentalizados, os aspectos humanos também não.  Os conflitos têm origem nas questões educativas e se estendem à política, religião, entre outras.  Porém, é na escola que nós, professores, exercemos nosso protagonismo e podemos desconstruir essas realidades e minimizar os conflitos. As aulas de educação física podem se tornar espaços de reforço de mentiras e preconceitos, quando se decide ignorar situações conflituosas que relacionam os conteúdos da educação física com aspectos religiosos, como a capoeira, o congo, entre outros. Porém, igualitariamente, pode ser um ambiente de melhoria/diminuição da intolerância e do preconceito. Para Borges e Bellini, o professor:

Independente do perfil da escola em que o profissional de educação física esteja atuando, ele deve sempre levar em consideração que o aluno deve absorver como conhecimento, aquilo que o possibilite utilizar além dos muros da escola, de forma que ele seja capaz de transmiti-lo a outros de forma fácil, clara e possível de executar28.

A falta de conhecimento por parte dos professores pode ser um empecilho, por isso a necessidade de alertar os profissionais a procurarem por meios de lidar com estes fenômenos, como as manifestações de intolerância e racismo. Uma possibilidade é o diálogo inter-religioso, acredito que outras formas possam ser utilizadas, mas a conscientização e a educação pelo afeto, na minha óptica, sempre serão ferramentas mais eficazes do que somente a correção e punição por leis. Essa forma de diálogo inter-religioso, como diz o nome, não é exclusiva do componente curricular de Ensino Religioso, portanto pode ser utilizada por outros componentes para promover o diálogo e construir um ambiente democrático respeitando o bem comum. Pois o respeito ao meio ambiente deve ultrapassar a consciência ambiental e se estender sobre as várias culturas e etnias presentes nos nossos espaços.

O diálogo inter-religioso foi denominado assim, pois seria a abertura ao diálogo entre pessoas de crenças diferentes, não só o cristianismo. Seu objetivo é que todas as crenças e a ausência delas sejam respeitadas em ambientes coletivos. Como afirma Faustino, “O diálogo inter-religioso baseia-se na consciência viva do valor da alteridade e da riqueza da diversidade” 29, 4. Abumanssur lembra de que os movimentos chamados de ecumenismo, ou seja, a abertura do diálogo com diferentes religiões começou no Brasil entre os anos 50 e 6030. Schlesinger afirma: “Ao dialogar, entramos em contato com nossos próprios medos, angústias e inseguranças”³¹. Necessitamos sair da nossa zona de conforto e irmos ao encontro do outro, do diferente. Somente com essa prática do diálogo, e principalmente do diálogo que aceita falar sobre a religião ou a ausência dela, poderemos trabalhar com diversos objetos de conhecimento da Educação Física sem esbarrar na problemática da intolerância religiosa e do preconceito.

Conclusão

Deve-se estudar muito sobre o tema do diálogo inter-religioso e, principalmente, discuti-lo nas academias, onde o novo professor é formado. Para a educação ao nível superior, acompanhar a evolução educativa e estar ligada à realidade da escola a quem serve. Sendo assim, há a necessidade alarmante da união das academias e das secretarias de educação. Estimular os professores das redes de ensino, estadual e municipal, à pesquisa e à produção científica que provém de sua atuação pedagógica, para o conhecimento ser partilhado.

Conclui-se que, para toda a análise feita anteriormente, não existe uma solução perfeita ou uma fórmula para a realização de um trabalho sobre o diálogo intercultural e inter-religioso. Outrora, seu próprio nome nos indica o caminho: o “diálogo”.

Abrir espaços de diálogo, independentemente se sobre a diversidade cultural ou religiosa, no ambiente escolar é o caminho para promover uma educação integral dos alunos. Há a necessidade de repassar os conteúdos presentes no BNCC, porém estes conteúdos não devem ser trabalhados sem um processo de reflexão. Ou cairemos na mesma problemática anterior: a realização do movimento pelo movimento de anos passados. A finalidade deste estudo é refletir sobre ferramentas e atitudes que propiciem construir um ambiente escolar de respeito, em que se possa falar sobre cultura e religião sem considerá-la um tabu.  Constituindo as unidades de educação em lugares de acolhimento e respeito às diversidades, para cada criança ser protegida em sua individualidade e se sentir confiante, pois sua religiosidade ou a falta dela não irá se transformar em motivo de agressão e humilhação.  Logo, o componente curricular da educação física possa livremente trabalhar com objetos de conhecimento relacionados à cultura popular, sem manifestações de intolerância religiosa ou preconceitos de qualquer espécie.

Desta forma, vislumbraremos uma mudança de realidade na qual os direitos fundamentais sejam resguardados e possibilitem a construção de uma sociedade mais ética.


³PIOVESAN, Flávia. Declaração Universal de Direitos Humanos: desafios e perspectivas Revista Brasileira de Estudos Jurídicos v. 9, n. 2, jul./dez. 2014. P. 34.
4PIOVESAN, 2014. P. 36.
5PIOVESAN, 2014. P. 42.
6BRACHT, Valter. Diagnósticos de época, (auto) crítica e educação (física) (In) VAGO, Tarcísio Mauro; LARA, Larissa Michelle; NETO, Vicente Molina (org.). Educação Física e Ciências do esporte no tempo presente: desmonte dos processos democráticos, desvalorização da ciência, da educação e ações em defesa da vida. Maringá: Eduem, 2021.p. 128.
7CAMPOS, Breno Martins. Fundamentalismos religiosos em perspectiva: diferentes abordagens das ciências da religião. São Paulo: Editora Pluralidades: 2022. P. 143.
8DIAS, Rosa Mendes. Pluralismo e diálogo inter-religioso nas escolas públicas de Cariacica e de Vila Velha (ES). Vitória: UNIDA / Faculdade Unida de Vitória, 2020. P. 43.
9PIOVESAN, 2014. P. 42.
10BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília. DF. Senado Federal. 1988.P. 14
¹¹BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9396/1996. P. 21
¹²PIOVESAN, 2014. 52.
¹³MAUÉS, Olgaíses. As políticas de formação e a pedagogia das competências. Reunião da ANPED, v. 27, 2004.
14BRACHT, 2021, p.125.
15SILVA, Luciane Freitas da. Da patrimonialização de celebrações católicas no âmbito do IPHAN à construção de memórias orais: o caso da Festa da Penha em Vila Velha/ES. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2020. P. 46
16BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018, P. 19
17SILVA, FERREIRA e SILVA, 2021 P. 24.
18ESPÍRITO SANTO (Estado). Secretaria da Educação. Currículo Básico Escola Estadual. Componentes curriculares – Arte, Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Educação Física. Vitória: SEDU, 2018. P. 180.
19CAMPOS, 2022. P. 136.
20SANTOS, Alliston Fellipe Nascimento dos. Entre o sagrado e o profano: quem é o escolhido de Deus? A participação da direita religiosa na trajetória das eleições presidenciais nos anos de 1989, 2018 e 2022. Anais do IV Seminário Nacional de Sociologia da UFS: Desafios contemporâneos da sociedade brasileira e o futuro da sociologia, 2022.P. 3
²¹BRACHT, 2021. P. 127.
²²DOS SANTOS, Ivanir; DIAS, Bruno Bonsanto; DOS SANTOS, Luan Costa Ivanir. II Relatório sobre intolerância religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, 2023. 
²³DOS SANTOS, 2023. P. 80.
24DOS SANTOS, 2023. P. 80.
25Brasil, 2018, p.219.
26BORGES, Juvenal dos Santos; BELINI, Roberto Carlos da Costa. Repensando a Educação Física escolar. -1ª ed.-Curitiba: Appris, 2020. P. 34.
27SCHLESINGER, 2018. P. 11.
28BORGES, 2020. p. 27.
29TEIXEIRA, Faustino. Diálogo inter-religioso: o desafio da acolhida da diferença. Perspectiva Teológica, v. 34, n. 93, p. 155-177, 2002.p. 157.
30ABUMANSSUR, 2020.p. 12.
³¹SCHLESINGER, Coragem em dialogar. (In) BIZÓN, Cônego José; SCHLESINGER, Rabino Michel. Diálogo Inter-religioso: religiões a caminho da paz. São Paulo: Paulinas, 2018. p. 23

Referências

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  ¹Graduada plena em Educação física pela Universidade Federal do Espírito Santo e Mestra em Ciências das Religiões da Faculdade Unida de Vitória, Espírito Santo. email : jaiararcsferreira@gmail.com