A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA SOLUCIONANDO AS LACUNAS DO DIREITO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7120905


Autores:
Esthevan Lima Almeida1
Acsa Liliane Carvalho Brito Souza2


Resumo

A segunda guerra mundial deu início à fase pós-positivista do direito moderno, o atual período coloca em voga o princípio da dignidade da pessoa humana em todos os ordenamentos jurídicos ao redor do mundo. O uso frequente e displicente deste princípio nas decisões judiciais causa um empobrecimento da farta argumentação que se espera nos julgados da suprema corte brasileira. Realiza-se essa análise através da revisão bibliográfica, apoiada no estudo de casos exemplificativos da problemática exposta. Após, reconhece que o princípio da dignidade humana, já conceituado alicerce da ordem jurídica constitucional, deve figurar como ponto de partida, construindo seu significado e limitando a sua atuação.

Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Empobrecimento da argumentação. Ordem jurídica constitucional. Pós-positivismo.

Abstract

World War II started the post-positivist phase of modern law, the current period puts in vogue the principle of human dignity in all legal systems around the world. The frequent and careless use of this principle in judicial decisions causes an impoverishment of the abundant argumentations that are expected in judgments of the Brazilian Supreme Court. This analysis is carried out through a bibliographic review, supported by the study of exemplary cases of the exposed problem, and later acknowledges that the principle of human dignity, already considered the foundation of the constitutional legal order, must appear as a starting point, building its meaning and limiting its performance.

Keywords: Human Dignity. Argumentation Impoverishment. Constitutional legal order. Postpostivism.

1. Introdução

O presente artigo científico versa sobre a utilização do princípio da dignidade humana como argumento jurídico inviolável e indiscutível aliado à análise jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal e a surpresa causada pela vultosa quantidade de citações nas decisões do mais alto colegiado do poder judiciário brasileiro. Através da revisão bibliográfica, do estudo de dois importantes casos para o ambiente jurídico do Brasil, coleta de informações da base de dados do STF, reunimos noções importantes que reforçam a necessidade da aplicação correta e consciente deste princípio.

2. O Estado x Direito: conceito, interpretação e aplicação

O infinito estudo da relação entre Estado e Direito acompanha todos os desdobramentos da doutrina jurídica desde os primórdios da própria ciência. Para encontrar o conceito, mister decidir a corrente predominante entre ius naturale ou ius positus. Neste, o direito depende da vontade do Estado, naquele o Estado deve legislar conforme os princípios da justiça e de fatores sociais: econômico e político (GUSMÃO, 2009 p. 353).

O Estado é considerado “a organização jurídica do poder civil e militar destinada a proporcionar, em determinado território, ordem, paz social, segurança e desenvolvimento do povo nele fixado” (GUSMÃO, 2009, p. 355). O Direito, por sua vez, é o “conjunto de normas executáveis coercitivamente, reconhecidas ou estabelecidas e aplicadas por órgãos institucionalizados (estatais ou internacionais).” (GUSMÃO, 2009, p. 52).

A partir desta definição, compreende-se o Estado como fonte do direito, pois, através da coerção, garante a eficácia da aplicação das normas. Por exemplo, na esfera criminal, o ente estatal se utiliza de sua competência punitiva exclusiva (ius puniendi) para determinar sanções à conduta tipificada, ainda: “a autoridade […] judiciária competente impõe as consequências jurídicas previstas na norma jurídica a um caso concreto” (GUSMÃO, 2009, p. 221).

Gusmão (2009), ensina que, para efetiva aplicação do Direito, é necessária minudente hermenêutica das normas. Nessa interpretação, o juiz estabelecerá o exato sentido da norma, seu alcance e suas consequências. Ocorre que nem sempre o código ou a lei dá ao juiz a solução jurídica para o caso, é quando diz-se haver lacunas.

2.1 Lacunas e o positivismo

Conceitua Perelman (2005, p. 645): “A lacuna em direito corresponde, num sistema formal, a noção de incompletude.” Dir-se-á que um sistema formal é incompleto quando, a partir dos axiomas e regras de inferência do sistema, for impossível demonstrar uma proposição para solução de demandas.

Apresentado por Gusmão (2009), a doutrina diverge em duas vertentes, primeiramente a que sustenta ser inerente à lei a existência de lacunas, pois é impossível o legislador tudo prever. Neste fulcro, permite-se ao juiz a criação de norma jurídica. Desta forma, o código civil suiço de 1912 admitiu a existência de lacunas na legislação e estabeleceu que o magistrado, “nos casos não previstos, […] decidirá segundo o costume e, na falta deste, conforme as normas que estabeleceria se legislador fosse”. (2009, p. 240).

Doutro giro, a vertente antagonista, protagonizada por Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito) entende que a lei encerra todo o direito e que fora dela não há direito obrigatório do qual o juiz possa se valer. Em oposição a qualquer teoria naturalista, metafísica, sociológica, antropológica etc., a teoria kelseniana busca delinear a Ciência do Direito como alheia às outras áreas de conhecimento conforme lecionam Bittar e Almeida:

Na mesma obra:

o conjunto das normas forma a ordem jurídica, que é um “sistema hierárquico de normas legais”. Toda ordem jurídica requer um regresso ad infinitum por meio das normas, até a norma fundamental (esta é “pressuposição do pensamento jurídico”, e não um dado histórico). Caso contrário, inexistente a norma fundamental, devem-se aceitar pressupostos metafísicos para a fundamentação da ordem Jurídica (Deus, ordem universal, contrato social, Direito Natural etc.). O que se pode reconhecer é que existe um consentimento de todas as pessoas em aceitar a Constituição, e é a partir desse simples dado que deve raciocinar o jurista; esse é o “princípio da eficácia” kelseniano. Kelsen termina por afirmar que a “ciência jurídica não tem espaço para os juízos de justiça”, mas somente para os juízos de Direito (BITTAR; ALMEIDA, 2008, p. 372).

A discussão é ainda mais antiga quando em tela a Revolução Francesa. Na obra “Ética e Direito” de Chaïm Perelman (2005), expõe-se que o juiz deve se ater à interpretação da lei aplicável ao caso, pois, fazendo-o estaria submetido à vontade da nação, ou seja, à vontade do legislador. Mais adiante, o Código de Napoleão “incitava o juiz, obrigado a julgar, a eliminar as antinomias eventuais, a preencher as lacunas da lei […] sua intervenção deveria ser excepcional e não era permitida quando uma única lei clara regia o caso contencioso” (PERELMAN, 2005, p. 562).

Outrossim, conclui-se que o sentido das normas jurídicas é alcançado através da interpretação, simplesmente extraído das possibilidades de sentido de um texto normativo em sua literalidade. Todavia, consoante a Bittar e Almeida (2008), esse impedimento não exclui a possibilidade de o juiz agir aplicando e interpretando, ou seja, produzindo normas individuais. Isso se deve ao fato de que a norma jurídica não possui tão somente um sentido, mas vários possíveis e o juiz, navegando naquilo que está escrito, determinará qual dos sentidos é o mais adequado para o caso concreto.

No Direito Pátrio: “Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Trata-se do Decreto-Lei nº 4657/42, retratado como a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, cuja redação prevê a utilização dos princípios.

2.2 A dignidade da pessoa humana: conceito, surgimento e o pós-positivismo

O conceito de dignidade da pessoa humana vem sendo lapidado ao longo da história e suas ocorrências. Entretanto, devido a sua amplitude e generalidade, não há precisa delimitação de seu alcance ao longo da lei, doutrina ou jurisprudência. A concepção mais aceita para esse princípio é o compilado de qualidades inerentes ao ser humano, expõe Ingo Sarlet que:

temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (SARLET, 1988, p. 62 apud PEDUZZI, 2009 p. 17).

Josialdo Ferreira (2017) aponta que para compreender a dimensão jurídica da dignidade da pessoa humana, é necessário navegar sobre os processos históricos que a antecederam. De forma sucinta, destaca-se a atuação de Immanuel Kant e sua conceitualização de ética e moral, trazendo o respeito ao ser humano como qualidade única e, principalmente, a defesa da liberdade individual inalienável e autônoma. De maneira complementar:

por sua vez, no iluminismo, com Pascal, Pufendorf e, sobretudo, com Kant, desenvolvem-se os contornos do que viria a ser uma concepção, não apenas moderna, mas contemporânea de dignidade humana, através da associação do conceito a uma visão plenamente emancipada, secular, da razão humana e da capacidade de autonomia. Seria já, portanto, uma dignidade não explicada, como até então, através do atributo da criação divina, mas uma dignidade que era agora considerada de forma independente da crença religiosa e baseada essencialmente na capacidade de actuação racional e de autodeterminação e responsabilidade moral da pessoa humana. (NOVAIS, 2015, p. 43 apud Ferreira, 2017 p. 16).

É na “Déclaration des Droit de L’Homme et du Citoyen”, documento francês pós-revolucionário, que se esboça a primeira prescrição de direitos fundamentais e igualitários a todos os homens e cidadãos:

Artigo 1º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum.
[…]
Artigo 4º A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo que não prejudique outrem: assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela Lei. (Tradução livre do autor).

Contudo, a ascensão da dignidade da pessoa humana como alicerce neoconstitucional é determinada pelas barbáries ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). As atrocidades historiografadas deste período nos permitem visualizar a redução da vida humana ao status de objeto descartável. Consoante a Taciana de Carvalho (2008), nota-se que, neste ponto, o estrito positivismo jurídico discriminado alhures encontra seu ponto mais crítico, pois os movimentos nazistas, políticos e militares, se ampararam na legalidade. Este fato será rememorado posteriormente.

Ao encerramento da grande guerra, encontramos a proclamação da “Declaração Universal dos Direitos Humanos” (1948) pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que já em seu preâmbulo menciona:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que mulheres e homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, p. 4).

A partir deste ponto, os países buscam reformular (ou emendar) sua legislação pautados no reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais do homem, seja pela expressa determinação da lei, seja pela adesão dos tratados internacionais referentes à matéria.

2.3 A dignidade da pessoa humana no direito internacional

Norteado por Taciana Carvalho (2008), iniciamos o “giro constitucional” partindo da Alemanha, que em 1949 dispõe em sua “Grundnorm”, mais especificamente nos artigos 1º e 19, a intangibilidade das garantias e direitos fundamentais:

Artigo 1º
1. A dignidade humana é inviolável. É dever de todas as autoridades estatais respeitá-la e protegê-la.
2. O povo alemão possui direitos humanos invioláveis e inalienáveis como base de toda a sociedade, de paz e de justiça no mundo.
3. Os direitos fundamentais vinculam o legislativo, o executivo e o judiciário como lei diretamente aplicável.
[…]
Artigo 19.
1. Na medida em que um direito fundamental, conforme o disposto nesta Constituição, possa ser limitado, a lei deve ser aplicada de forma geral de forma geral e não apenas ao caso individual. Além disso, a lei deve nomear o direito fundamental, declarando o artigo.
2. Em caso algum a essência de um direito fundamental pode ser afetada.[…] (DEUTSCH GRUNDGESETZ, 1949. Tradução livre do autor).

Consoante a vizinha germânica, a constituição federal da Áustria (1945) reconhece a igualdade entre os cidadãos austríacos, além de legitimar tratados internacionais como lei federal:

Bundes-Verfassungsgesetz
[…]
Artikel 7.
1. Todos os cidadãos são iguais perante a lei. Estão vedados os privilégios de hereditariedade, gênero, condição social e crença. Além disso, ninguém pode ser prejudicado por causa da sua deficiência. A República (Governo Federal, Estados e Municípios) está empenhada em assegurar a igualdade de tratamento de pessoas deficientes e não deficientes em todas as áreas da vida cotidiana.
[…]
Artikel 9.
Ficam reconhecidas as leis internacionais como parte integral da lei federal. (REPUBLIK OSTERREICH, 1945, Tradução livre e grifo do autor).

Ainda na Europa, a Constituição Federal Espanhola (1978) certifica a liberdade, a justiça e igualdade como fundamentos do Estado Social e Democrático de Direito Espanhol, vejamos:

Artículo 1.
1. España se constituye en un Estado social y democrático de Derecho, que propugna como valores superiores de su ordenamiento jurídico la libertad, la justicia, la igualdad y el pluralismo político.
[…]
Artículo 10.
1. La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrollo de la personalidad, el respeto a la ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social.
2. Las normas relativas a los derechos fundamentales y a las libertades que la Constitución reconoce se interpretarán de conformidad con la Declaración Universal de Derechos Humanos y los tratados y acuerdos internacionales sobre las mismas materias ratificados por España (ESPAÑA, 1978).

Neste mesmo ínterim, a constituição portuguesa:

Constituição da República Portuguesa Preâmbulo
[…]
A Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português de defender a independência nacional, de garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, de estabelecer os princípios basilares da democracia, de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista, no respeito da vontade do povo português, tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno.
[…]
Artigo 1.º
Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária (REPÚBLICA PORTUGUESA, 2005).

Trazendo o debate às américas:

Nenhuma pessoa será punida por um crime capital, ou outro crime, sem que haja o julgamento de um Grande Júri, exceto em casos ocorridos nas forças militares ou navais quando em efetivo serviço em tempos de guerra ou calamidade pública; além disso nenhuma pessoa será réu pela mesma ofensa; não será compelida a testemunhar contra a si mesmo; não serão privadas da vida, da liberdade, da propriedade ou do devido processo legal; ou ainda, não haverá desapropriação sem a devida indenização (UNITED STATS OF AMERICA, 5th amendment, 1791. Tradução livre do autor).

Aharon Barak (2015) explica que não há previsão expressa da dignidade humana no texto constitucional norte-americano, mas sim o reconhecimento de direitos considerados “direitos mãe”, a título de exemplo: a quinta emenda e a garantia do devido processo legal supracitada.

3. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional brasileiro

Já compreendemos que “a dignidade humana, então, é um valor fundamental que se viu convertido em princípio jurídico de estatura constitucional, seja por sua positivação em norma expressa seja por sua aceitação como um mandamento jurídico extraído do sistema.” (WALDRON, p. 1, 2009 apud BARROSO, p. 11, 2010).

No Brasil, este valor fundamental foi observado com maior veemência após a promulgação da “Constituição Cidadã” de 1988, nascida após o trevoso período do regime militar. A ditadura, amparada na narrativa de “combater o fantasma comunista que assombrava o ocidente” (BECHARA, 2015 p. 589) outorgou uma série de atos institucionais que traziam grande afronta à Ordem Constitucional. De acordo com Bechara e Rodrigues (2015), o AI-5 inicia o período mais rigoroso da ditadura militar, cerceamentos históricos como o fechamento do Congresso Nacional, que teve suas atividades suspensas pelo período de 01 (um) ano e as assombrosas interrupções de garantias e direitos constitucionais, por exemplo a impossibilidade de concessão de habeas corpus. Há de se mencionar que os chefes de estado, à época, se resguardavam à égide da legalidade, contendo no texto de suas normativas verdadeiros atentados aos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

O superprincípio da dignidade da pessoa humana dá forma ao inteiro ordenamento. Previsto logo ao início da Constituição Federal, dita seu artigo inaugural:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.

Mais a frente, o extenso rol do artigo 5º expressa as garantias fundamentais inerentes a todos os cidadãos brasileiros.

3.1 O uso da dignidade humana pela jurisprudência brasileira

Em sua dissertação, Josialdo Aparecido (2017) criticou a discricionariedade da aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana em julgados do Supremo Tribunal Federal à luz da discricionariedade empreendida nas fundamentações das decisões. Expõe ainda que, em pesquisa realizada na base de dados da Corte Constitucional, chegou-se ao quantitativo de 258 (duzentos e cinquenta e oito) acórdãos (560 em 2022) e 2.541 (duas mil quinhentas e quarenta e uma) decisões monocráticas (6.341 atualmente) dos termos “princípio” “dignidade” “pessoa” “humana”.

De maneira comparativa, refizemos os passos do douto pesquisador e reunimos os dados em gráficos para visualizar a elasticidade que encontrou o macroprincípio nos últimos 05 (cinco) anos.

Outro ponto de destaque são os instrumentos utilizados para aplicação desse princípio. Ainda utilizando o sítio oficial do Supremo Tribunal Federal na internet, notamos que os julgados que mais utilizam o termo “Dignidade da Pessoa Humana” são os Habeas Corpus (182), Recurso Extraordinário (108) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (76).

Diante destes dados, é possível compreender que o princípio da dignidade da pessoa humana pode ser utilizado em todas as áreas de abrangência do ordenamento jurídico brasileiro. Segundo Barroso (2010), o crescimento da utilização do superprincípio se dá na aproximação do direito e moral, pois se tornou “um dos maiores exemplos de consenso ético do mundo ocidental” (2010, p. 3).

Paulo Bonavides apud Ferreira (2017) explica que a dignidade da pessoa humana atingiu o mais alto posto da hierarquia jurídica no Brasil pois estabelece um limite à ação estatal perante a liberdade humana, combinado com a expressa previsão constitucional, fez com que a o princípio em estudo figurasse com mais frequência nas decisões e manifestações jurídicas.

Ocorre que, Doutrinadores como Marcelo Neves (2014, p. 201 apud Ferreira, 2017) alertam que a “absolutização” do princípio da dignidade da pessoa humana simplifica a ordem jurisdicional a um único argumento, como traduz Ferreira (2017), cria uma fórmula mágica para as decisões e suprime o principal diferencial das ciências jurídicas que é a sua prática argumentativa.

Nessa esteira, além do empobrecimento na fundamentação dos argumentos e sentenças, é possível vislumbrar o enfraquecimento de outras fontes e instrumentos da jurisdição como o direito comparado. Podendo valer-se da própria norma (ainda que de maneira análoga), satisfaz-se o julgador a pautar sua arguição na dignidade da pessoa humana.

Doutro giro, O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Dr. Luís Roberto Barroso (2010) nos ensina que a “invocação da dignidade da pessoa humana na jurisprudência tem se dado como mero reforço argumentativo de algum outro fundamento ou ornamento retórico” (nosso grifo) tal afirmação se baseia no elevado grau de abrangência e de detalhamento da Constituição brasileira. Roberto Barroso menciona ainda que:

No constitucionalismo brasileiro, seu principal âmbito de incidência se dará em situações de ambiguidade de linguagem – como parâmetro para escolha de uma solução e não de outra, em função da que melhor realize a dignidade –, de lacuna normativa – para integração da ordem jurídica em situações, por exemplo, como a das uniões homoafetivas –, de colisões de normas constitucionais e direitos fundamentais – como, por exemplo, entre liberdade de expressão, de um lado, e direito ao reconhecimento e à não-discriminação, de outro – e nas dedesacordo moral razoável, como elemento argumentativo da construção justa (BARROSO, 2010, p. 31).

Levando o debate para os casos concretos, de forma sucinta, propomos a análise da decisão emanada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 186/DF, proposta pelo Partido Democratas que, em suma, alegou a inconstitucionalidade nas ações da Universidade de Brasília ao destinar cotas étnico-raciais no ingresso à Instituição.

Pela relevância da matéria, o caso repercutiu bastante, tendo figurado diversas organizações ativistas na qualidade de amici curiae. O acórdão pleno da Suprema Corte decidiu que as ações da Universidade não desrespeitaram a ordem constitucional e julgou improcedente a ação.

A crítica tem início na manifestação da Ministra Carmen Lúcia, que, sem preocupação em em definir ou limitar seu conteúdo, alega que a reserva das vagas realizada pela UnB resguarda o princípio, ipsis litteris:

18. O estabelecimento do sistema de reserva de cotas, tal como se deu no caso vertente, assegurou a aplicação dos princípios constitucionais da autonomia universitária, da igualdade, da publicidade, da razoabilidade, da proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADPF n. 186. Nosso grifo).

No mesmo ínterim, o Ministro relator, na conclusão de seu voto, manifestou:

as políticas de ação afirmativa adotadas pela Universidade de Brasília (i) têm como objetivo estabelecer um ambiente acadêmico plural e diversificado, superando distorções sociais historicamente consolidadas, (ii) revelam proporcionalidade e a razoabilidade no concernente aos meios empregados e aos fins perseguidos, (iii) são transitórias e prevêem a revisão periódica de seus resultados, e (iv) empregam métodos seletivos eficazes e compatíveis com o princípio da dignidade humana (grifo nosso), julgo improcedente esta ADPF (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADPF n. 186. Grifo do autor).

Ademais, outro caso de notória repercussão foi a da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 130/DF que tratou da recepção ou não da Lei nº 5.257/67, chamada Lei de Imprensa, na ordem constitucional vigente. Neste episódio, os Membros do Supremo Tribunal Federal seguiram duas correntes, a primeira alegando que a lei fere o direito à liberdade de imprensa, o qual é “fortemente entroncado com a dignidade da pessoa humana” (BRASIL, STF, 2009).

Doutro entendimento, a segunda corrente diz que “a preservação da dignidade da pessoa humana deve ser assegurada como limite possível para o exercício dessa liberdade de imprensa” (BRASIL, STF, 2009). Josialdo Ferreira expõe que

temos um evidente dissenso entre os referidos Ministros sobre o uso do princípio da dignidade da pessoa humana para solução do caso. Para uns, tal princípio é fundamento para a não-recepção da lei, por violar a liberdade de imprensa. Para outros, a dignidade humana é um limitador à liberdade de imprensa, atrelada aos direitos de personalidade, não podendo, desse modo, ser utilizada como fundamento para a não-recepção da Lei impugnada (FERREIRA, 2009, p. 32).

Dos excertos, compreende-se que o princípio da dignidade da pessoa humana encontra uma dilação semântica sem precedentes, porém, sua utilização retórica permite que seu conteúdo preencha as mais diversas lacunas normativas e argumentativas. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, em sua obra de mestrado, disserta que

incomoda o fato de que seu significado alcança as mais diversas interpretações, sem que sejam acompanhadas de uma compreensão mais cuidadosa e trabalhada de seu conteúdo. Normalmente, as decisões apenas apresentam o princípio; não há verdadeiramente uma discussão de seu conteúdo dentro de uma compreensão abrangente do ordenamento jurídico e da perspectiva de mantê-lo consistente. Ao contrário, o que vem ocorrendo é que sua aplicação tem sido acompanhada de uma justificação valorativa e hierárquica, como se o princípio da dignidade da pessoa humana fosse o maior dos princípios jurídicos (2009, p. 85).

Consoante Ferreira (2009), por ser princípio fundamental que alicerça todo o ordenamento jurídico brasileiro, após a promulgação da Constituição Federal Brasileira. Devido a sua relevância na ordem jurídica, exige-se uma atuação responsável na construção de seu significado normativo, a fim de evitar-se seu uso displicente e banalizado.

4. Considerações Finais

Diante do todo exposto, pudemos reunir conceitos e considerações acerca do princípio da dignidade humana e sua usabilidade na atividade jurisdicional brasileira. Iniciando o debate no confronto do direito positivo versus o direito pós-positivista e principiológico, após entender a origem da primazia pela dignidade da raça humana no final da segunda guerra mundial, pudemos visualizar o estado deste importante princípio nas mais diversas constituições ao redor do mundo.

No direito pátrio, após efetuar um apanhado da utilização do princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cientes da existência de ocasiões em que o multicitado princípio é utilizado de forma coerente, conceituada e que agrega à argumentação do caso.

Contudo, verificamos que, caso o superprincípio não for aplicado de forma disciplinada, fundamentada e conceituada, as decisões serão empobrecidas através de uma fórmula mágica que prejudica a prática argumentativa e resolve todas as lacunas presentes no ordenamento jurídico.

Referências Bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteúdos Mínimos e Critérios de Aplicação. Versão provisória para debate público, mimeografado. 2010. Disponível em: <https://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignidade_texto-base_ 11dez2010.pdf> Acesso em 14 mar. 2022

BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008. 681 p. ISBN 978-85-224-5011-4.

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução à Ciência do Direito. 41. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. 646 p. ISBN 978-85-309-2920-6.

PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão.2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 721 p. ISBN 85-336-2223-6.

DÉCLARATION DES DROIT DE L’HOMME ET DU CITOYEN, 1789. Disponível em:<https://www.legifrance.gouv.fr/contenu/menu/droit-national-en-vigueur/constitution/declarat ion-des-droits-de-l-homme-et-du-citoyen-de-1789> Acesso em 12 mar. 2022.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.                                           Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acesso em: 12 mar. 2022.

DEUTSCHLAND.  Grundgesetz,  1949. Disponível em:<https://www.bundestag.de/parlament/aufgaben/rechtsgrundlagen/grundgesetz/gg_01-245122> Acesso em 13 mar. 2022.

FERREIRA, JOSIALDO APARECIDO BATISTA. O Princípio Da Dignidade Da Pessoa Humana Na Jurisprudência Do Supremo Tribunal Federal: Uma Crítica À Discricionariedade Judicial A Partir Da Teoria Do Direito Como Integridade. Orientador: Prof. Dr. Argemiro Cardoso Moreira Martins. 2018. 136 p. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Rio Branco – Acre, 2017. Disponível em:<https://repositorio.unb.br/handle/10482/31105> Acesso em: 14 mar. 2022.

REPUBLIK OSTERREICH. Bundes-Verfassungsgesetz, 1945. Disponível em:<https://www.ris.bka.gv.at/GeltendeFassung.wxe?Abfrage=Bundesnormen&Gesetzesnummer=10000138> Acesso em 13 mar. 2022.

BARAK, Aharon. Human dignity in American constitutional law. In: HUMAN Dignity: The Constitutional Value and the Constitutional Right. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. cap. 11, p.  185-208. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/books/abs/human-dignity/human-dignity-in-american-constitutional-law/CDC589D8665F7C918235FEED7856C412. Acesso em: 13 mar. 2022.

ESPAÑA.  Constitución Espanõla, 1978. Disponível em: <https://boe.es/biblioteca_juridica/codigos/abrir_pdf.php?fich=387_Constitucion_EspanolaConstituicao_Espanhola.pdf> Acesso em 13 mar. 2022.

DUARTE, Taciana Nogueira de Carvalho. A dignidade da pessoa humana e os princípios constitucionais do processo do contraditório e celeridade processual. Rio de Janeiro, 2008. 116 p. Dissertação de Mestrado. Departamento de Direito – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

UNITED STATES OF AMERICA. Constitution: 5th amendment, 1791. Disponível em:<https://constitution.congress.gov/constitution/amendment-5/> Acesso em: 13 mar. 2022.

REPÚBLICA PORTUGUESA. Constituição. 2005. Disponível em:<https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx> Acesso em 14 mar. 2022.

BECHARA, G. N.; RODRIGUES, H. W. DITADURA MILITAR, ATOS INSTITUCIONAIS E PODER JUDICIÁRIO. Revista Justiça do Direito, v. 29, n. 3, p. 587-605, 10 out. 2015. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rjd/article/view/5611. Acesso em 10 jun. 2021.

Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 186. Tribunal Pleno. Acórdão julgado em 26 abr. 2012c. Relator: Min. Ricardo Lewandowski. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 12 set. 2022.

Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental m. 130. Tribunal Pleno. Acórdão julgado em 30 abr. 2009. Relator: Min. Carlos Britto. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 12 set. 2022.

PEDUZZI, Maria Cristina Irigoyen. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA PERSPECTIVA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE. Orientador: Prof. Dr. Alexandre Bernardino Costa. 2009. Dissertação (Mestrado em “Direito, Estado e Constituição”) – Universidade de Brasília, [S. l.], 2009.


1Acadêmico do Curso de Direito. Artigo apresentado à Faculdade Interamericana de Porto Velho-UNIRON, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Direito Porto Velho, 2022.
E-mail: esthevan.li@gmail.com

2Professora Orientadora Mestre. Curso de Direito.
E-mail: acsa.souza@uniron.edu.br