DIGNITY AS A LIMIT TO FREEDOM OF EXPRESSION
LA DIGNIDAD COMO LÍMITE A LA LIBERTAD DE EXPRESIÓN
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12669298
Matheus Teixeira Da Silva1
Resumo
O artigo examina a relação entre dignidade humana e liberdade de expressão, entendendo ambas como princípios fundamentais. Essa interseção levanta questões complexas sobre os limites da liberdade de expressão, especialmente quando se trata de discursos de ódio. O estudo visa encontrar um equilíbrio entre a livre manifestação do pensamento e a proteção da dignidade humana. A pesquisa foca em como discursos de ódio podem ser limitados para proteger a dignidade individual, contribuindo para o debate público e promovendo uma sociedade mais tolerante. O artigo argumenta que a dignidade pode impor limites à liberdade individual e explora a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, permitindo que esses direitos sejam oponíveis também a particulares. Dessa forma, destaca-se a necessidade de regulamentar a liberdade de expressão para proteger a dignidade humana, especialmente no contexto digital, onde a disseminação de discursos de ódio e desinformação é prevalente. A análise inclui uma revisão da doutrina, jurisprudência e estudos de caso, propondo soluções para equilibrar esses direitos em conflito. Conclui-se que a tutela da dignidade deve prevalecer sobre a liberdade de expressão quando esta última for utilizada para incitar ódio e violência, reforçando a importância de construir uma sociedade mais justa e democrática
Palavras–chave: Dignidade. Liberdade de expressão. Discursos de ódio. Direitos fundamentais.
Abstract
The article examines the relationship between human dignity and freedom of expression, understanding both as fundamental principles. This intersection raises complex questions about the limits of freedom of expression, especially regarding hate speech. The study aims to find a balance between the free expression of thought and the protection of human dignity. The research focuses on how hate speech can be limited to protect individual dignity, contributing to public debate and promoting a more tolerant society. The article argues that dignity can impose limits on individual freedom and explores the horizontal effectiveness of fundamental rights, allowing these rights to be enforceable against private parties. Thus, it highlights the need to regulate freedom of expression to protect human dignity, especially in the digital context, where the spread of hate speech and misinformation is prevalent. The analysis includes a review of doctrine, jurisprudence, and case studies, proposing solutions to balance these conflicting rights. It concludes that the protection of dignity should prevail over freedom of expression when the latter is used to incite hatred and violence, reinforcing the importance of building a more just and democratic society.
Keywords: Dignity. Freedom of expression. Hate speeches. Fundamental rights.
Resumen
El artículo examina la relación entre la dignidad humana y la libertad de expresión, entendiendo ambas como principios fundamentales. Esta intersección plantea cuestiones complejas sobre los límites de la libertad de expresión, especialmente en relación con el discurso de odio. El estudio tiene como objetivo encontrar un equilibrio entre la libre manifestación del pensamiento y la protección de la dignidad humana. La investigación se centra en cómo se puede limitar el discurso de odio para proteger la dignidad individual, contribuyendo al debate público y promoviendo una sociedad más tolerante. El artículo argumenta que la dignidad puede imponer límites a la libertad individual y explora la efectividad horizontal de los derechos fundamentales, permitiendo que estos derechos sean oponibles también a particulares. De esta forma, destaca la necesidad de regular la libertad de expresión para proteger la dignidad humana, especialmente en el contexto digital, donde la difusión de discursos de odio y desinformación es prevalente. El análisis incluye una revisión de la doctrina, jurisprudencia y estudios de caso, proponiendo soluciones para equilibrar estos derechos en conflicto. Se concluye que la tutela de la dignidad debe prevalecer sobre la libertad de expresión cuando esta última se utiliza para incitar al odio y la violencia, reforzando la importancia de construir una sociedad más justa y democrática.Palabras clave: Dignidad. La libertad de expresión. Discursos de odio. Derechos fundamentales.
1 INTRODUÇÃO
A dignidade humana, consagrada como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil pela Constituição de 1988, se configura como um valor basilar para a construção de uma sociedade justa e democrática. Nesse contexto, a liberdade de expressão, também garantida como direito fundamental, assume papel crucial na promoção do debate público e na livre circulação de ideias. No entanto, a intersecção entre esses dois princípios fundamentais levanta questionamentos complexos e exige uma análise cuidadosa dos limites que a dignidade impõe à liberdade de expressão.
A relevância dessa temática reside na necessidade de encontrar um equilíbrio entre o direito à livre manifestação do pensamento e a proteção dos direitos da personalidade, como a honra, a imagem e a reputação. Essa busca por equilíbrio se torna ainda mais desafiadora na era digital, onde a proliferação de discursos de ódio, a propagação de desinformação e o cyberbullying se configuram como graves ameaças à dignidade humana e ao ordenamento social.
Este artigo acadêmico se propõe a explorar os meandros da relação entre dignidade humana e liberdade de expressão, buscando contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e harmônica. Através de uma análise crítica da doutrina, da jurisprudência e de estudos de caso, serão examinados os diferentes limites que a dignidade impõe à liberdade de expressão, com especial atenção aos discursos de ódio: até que ponto a liberdade de expressão pode ser utilizada para propagar mensagens que incitam o ódio e a violência contra grupos minoritários ou indivíduos específicos?
Ao abordar essas questões complexas de forma abrangente e crítica, este artigo espera contribuir para o debate público sobre a importância de encontrar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e a proteção da dignidade humana. Ao fazê-lo, espera-se também contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, democrática e tolerante.
Nesse sentido, o presente texto tem por objetivo expor a forma pela qual os direitos fundamentais podem se relacionar, admitindo-se a teoria da eficácia horizontal como forma de viabilizar a oponibilidade dos direitos fundamentais inclusive a particulares, abrindo caminho para a restrição da liberdade de expressão como método de melhor tutelar a dignidade.
2 A EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O tema concernente aos direitos humanos e aos direitos fundamentais é muito rico e suscita o interesse de teóricos das mais variadas áreas do conhecimento, e, de modo especial, daqueles pensadores que se dedicam à filosofia e ao direito constitucional, de modo que se mostra tão desafiadora quanto sedutora a ideia da existência de direitos humanos universais a todos atribuídos e de direitos fundamentais efetivos.
Todavia, deve-se observar que direitos humanos e direitos fundamentais não podem ser tomados como se fossem sinônimos, visto que os conceitos são distintos – ainda que tenham certa relação, obviamente. Deste modo, justamente a respeito da diferenciação existente entre as naturezas destes direitos que emerge a diferenciação de suas possíveis eficácias e vinculações, visto que, como sustentar-se-á adiante.
Com o positivismo jurídico surge a noção de vinculação de direitos aos Estados, de modo a reconhecer-se na lei (direito positivo) o poder normativo do Estado. Como leciona Fábio Comparato ao explicar a dificuldade das displaced persons, a cidadania relaciona-se ao Direito, isto é, a um Estado específico, sem o qual o sujeito não pode usufruir de direitos, como se observa com o caso das pessoas que se encontram na situação de apátridas, isto é, sem nenhum vínculo político algum país, “o que levou Hannah Arendt a reivindicar, em texto famoso, o direito a ter direitos, isto é, o direito a pertencer a uma coletividade política soberana” (Comparato, 2013, p. 61), haja vista que a pessoa em situação apátrida perde o vínculo político com qualquer ente nacional e, portanto, perde seus direitos.
Constatou-se, nesta fase da História, que o juspositivismo apresentava problemáticas e talvez inaceitáveis limitações, visto que o positivismo jurídico se circunscreve à sua própria existência, isto é, tem em si sua própria validade. A respeito, Fábio Comparato (2013) reflete, em análise jusfilosófica (fundamentada na filosofia de Hegel), que o fundamento de algo deve estar sempre fora daquilo que se esteja fundamentando, “como causa transcendente”, de modo que não pode ser confundido com sua própria constituição, logicamente. Deste modo, em uma perspectiva essencialmente juspositivista, não se poderia aceitar a ideia de direitos humanos, como leciona Barzotto, para quem “os direitos humanos não podem ser pensados como direitos subjetivos” (Barzotto, 2010, p. 45).
Ao discorrer sobre a filosofia moral, Rainer Forst (2010) consigna em sua obra a ideia de um “código moral mínimo”, o qual asseguraria a todas as pessoas morais a reivindicação da sua própria inviolabilidade moral, independentemente de um ordenamento jurídico específico, ou seja, algo que atinge todos os humanos aonde quer que estejam e de onde quer que tenham origem.
A tentativa de conceituação é complexa, porém se pode entender a ideia de um “código moral mínimo” como a noção de direitos humanos enquanto “pretensões éticas constitutivamente associadas à importância da liberdade humana” (Sen, 2011, p. 401), na dicção de Amartya Sen, ou, de acordo com Fábio Comparato, “algo que é inerente à própria condição humana, sem ligação com particularidades determinadas de indivíduos ou grupos” (Comparato, 2015, p. 71).
Disto se pode concluir, com coerência, que “a todos os atos que são desumanos porque negam a condição humana, opõem-se direitos humanos para combatê-los” (Barros, 2003, p. 65). Em conformidade à lição de Bidart Campos (1991), “o homem sempre foi, é e será homem, pessoa. E será sempre devido a ele o reconhecimento dos direitos que lhe são inerentes por ser pessoa, por possuir uma natureza humana”. Destarte, afirma-se que é a condição humana que confere o status ao indivíduo, que é digno de ter direitos mínimos.
Com efeito, está-se em um âmbito que é essencialmente moral, o qual não se confunde com os cenários do mundo jurídico ou político. Cuidam-se de “direitos” que não estão associados a uma determinada comunidade política, visto que destes direitos são titulares quaisquer pessoas, “por sua própria natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente” (Herkenhoff, 1994, p. 30), independentemente da comunidade política da qual seja membro integrante – sendo direitos assegurados igualmente às pessoas que figurem na condição de apátridas.
Como se pode constatar, a noção de direitos humanos possui inequívoca e estreita vinculação com a ideia de dignidade humana. Barzotto sustenta, a propósito, que “os direitos humanos explicitam que só a dignidade da pessoa humana é fonte de deveres para a pessoa humana: todos os deveres são correlatos dos direitos humanos, dos direitos derivados da dignidade da pessoa humana” (Barzotto, 2010, p. 47).
Sustenta-se, com efeito, que não existe vinculação necessária dos direitos humanos com a normatividade estatal (jurídico-positiva); o que é objeto da tutela é a pessoa humana, a partir de uma ideia que não guarda vinculação necessária com o direito positivo, como leciona Fábio Comparato, ao reivindicar uma “consciência ética coletiva” (Comparato, 2015, p. 72-73).
Deste modo, verifica-se a relação existente entre direitos morais e direitos humanos, visto que os últimos são estabelecidos por princípios de natureza estritamente moral. Assim, percebe-se a ausência de vinculação entre os direitos humanos e os ordenamentos jurídico-positivos: ocorre que os direitos humanos não dependem de positivação por parte de um Estado, visto que sua natureza moral não se confunde com a natureza positiva dos direitos que são próprios de uma comunidade jurídico-política específica. Desta forma, “é melhor conceber os direitos humanos como um conjunto de pretensões éticas, as quais não devem ser identificadas com direitos legais legislados” (Sen, 2010, p. 295). Com efeito, é possível afirmar que os direitos humanos são necessariamente universais precisamente porque não dependem da sua positivação dentro de uma comunidade política específica.
Conforme exposição de Amartya Sen, “na medida em que os direitos humanos são entendidos como pretensões éticas significativas, a ressalva de que eles não possuem necessariamente força de lei é evidente” (Sen, 2011, p. 397). No mesmo diapasão, Cançado Trindade sustenta que “os direitos humanos são inerentes ao ser humano, e como tais antecedem a todas as formas de organização política” (Trindade, 1997, p. 26), não se ancorando, portanto, na ação jurídico-normativa de um Estado.
A obra de Canotilho (2003), ao debruçar-se sobre o sistema dos direitos fundamentais, traça uma diferenciação preambular entre os “direitos do homem” (aqui chamados de direitos humanos) e os direitos fundamentais. No entendimento de Canotilho, em conformidade àquilo que antes se expôs, os direitos do homem são “válidos para todos os povos e em todos os tempos”, ao passo que os direitos fundamentais são “os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente”, portanto “direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta”.
Ainda que os direitos humanos possam estar eventualmente positivados em determinados ordenamentos jurídicos ou mesmo em tratados internacionais, a validade dos direitos humanos não pressupõe e não exige a sua positivação. Assim, resta afastada a tautologia de Kelsen, a qual, segundo Fábio Comparato, resume-se à noção de que “o direito deve ser observado porque é direito” (Comparato, 2013, p. 53). Isto porque o fundamento de validade das normas morais ocorre no âmbito filosófico, e não no plano jurídico-formal, motivo pelo qual se reconhece a ausência de vinculação necessária entre os direitos humanos e a sua eventual positivação.
Como sustenta Giovani Lunardi, “a reflexão filosófica sobre a fundamentação dos direitos humanos está ancorada inexoravelmente em uma discussão a respeito da justificação ou legitimação desses direitos sujeitos à avaliação moral” (Lunardi, 2011, p. 203).
Reinhold Zippelius indaga, a propósito, quais seriam as consequências jurídicas destes direitos considerados “pré-estaduais”, isto é, os direitos que não dependem de uma ordem jurídica, respondendo o autor, nesse diapasão, que “a validade jurídica depende do Estado e não pode ser pré-estadual” (Zippelius, 1971, p. 170), de modo que a imposição jurídica de uma norma não se aplicaria aos direitos que não são positivados – o que, todavia, não ocorre na hipótese de direitos fundamentais, pois estes são sempre necessariamente positivados.
Ingo Wolfgang Sarlet, a seu turno, sustentando a necessidade de distinção entre os conceitos de direitos humanos e fundamentais, aponta a vinculação ao Estado como elemento distintivo: de acordo com o entendimento de Ingo Sarlet, os direitos fundamentais são “reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado”, ao passo que os direitos humanos dizem respeito “àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal” (Sarlet, 2012, p. 249).
Nythamar de Oliveira (2006) expõe assertivamente que “quando falamos hoje de uma fundamentação filosófica dos direitos humanos, procuramos acima de tudo responder à questão ‘o que são, afinal, os direitos humanos’, e por que e como devemos defendê-los”.
Nesta conjuntura emerge a problemática que diz respeito à fundamentação e à validade do “código moral mínimo” abordado por Rainer Forst, ou dos direitos humanos, aqui tidos como sinônimos. De acordo com Rainer Forst, o fundamento das pretensões morais reside no “desejo por uma vida que esteja livre dessas experiências [de opressão e de injustiça]” (Forst, 2010, p. 209), enquanto o critério de validade destas pretensões morais estaria no fato de não serem suscetíveis de uma rejeição recíproca e universal.
Forst sustenta, a propósito, que estas normas morais são, necessária e inexoravelmente, válidas para todos aqueles que são membros da comunidade humana, obtendo sua validade perante e para cada pessoa, por sua mera condição humana. Em consonância à doutrina jusfilosófica de Barzotto, “para possuir direitos humanos basta pertencer à espécie humana, ter o status de ‘humano’, ou seja, o titular dos direitos humanos é, pura e simplesmente, o ser humano” (Barzotto, 2010, p. 48).
De acordo com Hannah Arendt, estes direitos “não dependem da pluralidade humana e devem permanecer válidos mesmo que um ser humano seja expulso da comunidade humana” (Arendt, 1989, p. 331).
Existe, pois, uma fundamentação moral para os direitos humanos, visto que “a noção de direitos humanos possui uma unidade normativa interna que se funda na dignidade igual de cada ser humano” (Carbonari, 2004). Destarte, o fundamento dos direitos humanos está no próprio ser humano e na sua dignidade intrínseca, como expõe Ingo Sarlet: “A personalidade humana se caracteriza por ter um valor próprio, inato, expresso justamente na ideia de sua dignidade de ser humano, que nasce na qualidade de valor natural, inalienável e incondicionado, como cerne da personalidade do homem” (Sarlet, 2011, p. 38).
Deste modo, indicam-se como titulares dos deveres os mesmos titulares dos direitos, isto é, todos os seres humanos. Amartya Sen leciona que “as pretensões podem ser dirigidas de modo geral a todos os que estiverem em condições de ajudar” (Sen, 2010, p. 296). A propósito, Luis Fernando Barzotto (2010) expõe que a responsabilidade pelo dever é universalizada porque os direitos humanos tocam a todos, sendo, portanto, todas as pessoas titulares de direitos e também de deveres.
O que se pretende com a defesa dos direitos humanos, em suma, é a garantia de que seja sempre e inexoravelmente resguardada a condição humana, independentemente do contexto político, jurídico ou social ao qual se submeta a pessoa. O que não se aceita, portanto, é que seja porventura admitida a hipótese de produção de “não-humanos”, como já ocorrido na História recente.
Contra situações de desrespeito à condição humana, sempre haverá de existir alguma espécie de tutela, seja de um “código moral mínimo”, seja do “direito a ter direitos”, ou do que convencionamos chamar de direitos humanos, visto que “os que foram expulsos da humanidade e da história humana e que, por isso, foram privados da sua condição humana, precisam da solidariedade de todos os homens” (Guimarães, 2013, p. 36).
O propósito dos direitos humanos desdobra-se em dois aspectos: em primeiro lugar, impedir a coisificação do ser humano e, além disso, viabilizar a manutenção da integridade moral das pessoas em quaisquer contextos e sob quaisquer pretextos.
Com efeito, a vinculação aos direitos humanos não pode ocorrer dentro dos estreitos marcos do direito positivo; ao contrário, ocorre em um âmbito de natureza essencialmente moral, motivo pelo qual, mesmo que idealisticamente se afirme que todos são titulares e destinatários dos direitos humanos, a eficácia ou a exigibilidade destes direitos não se verifica em termos jurídicos, o que é restrito aos direitos fundamentais.
Como já afirmado, os direitos humanos não estão vinculados à positivação de ordem estatal; entretanto, os direitos humanos ostentam a virtude de “inspirar a legislação” (Sen, 2011, p. 398), ou seja, exercem grande influência em sentido político para que os Estados possam reconhecer a relevância destes direitos, a fim de que possam, então, inserir em seu ordenamento positivo tais componentes normativos.
Deste modo, tem-se não apenas o aspecto moral, mas igualmente o respaldo de ordem institucional (interno), porquanto os direitos humanos passam então a compor o elenco de direitos fundamentais daquele Estado específico.Assim, verifica-se que os direitos fundamentais caracterizam-se como direitos associados aos fundamentos mais elementares de uma certa estrutura normativa, com o intuito de estabelecer um núcleo normativo de elevada carga axiológica e de importante orientação protetiva.
A respeito, Paulo Otero leciona que “nem tudo pode receber o qualificativo de direito fundamental” (Otero, 2016a, p. 530), visto que a “fundamentalidade” é intrínseca à própria ideia de direitos fundamentais, de modo que não se trata de mero discurso. Entretanto, cada comunidade jurídico-política possui autonomia plena para erigir à categoria de direitos fundamentais os direitos que, de acordo com a realidade histórica e social desta específica sociedade, ostentem maior importância.
Diferentemente do que ocorre quanto aos direitos humanos, que possuem titularidade universal, os direitos fundamentais possuem titularidades que estão limitadas àqueles que se submetem à jurisdição do Estado no qual a estrutura jurídica seja aplicável – mesmo que possa o Estado outorgar direitos fundamentais igualmente a estrangeiros que não sejam residentes. A propósito, a Constituição da República Portuguesa, em seu artigo 12o, estabelece que “todos os cidadãos gozam de direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição”, enquanto a Constituição Federal Brasileira dispõe no caput do artigo 5o sobre a titularidade dos direitos fundamentais, “garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País” tal titularidade.
A respeito do modo como se dá a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, a teoria da eficácia indireta tem como importante motivo garantir a máxima proteção possível à autonomia privada dos agentes, por entender ser a autonomia privada um consectário da necessária tutela da dignidade. Este entendimento se dá porque a dignidade, por ser núcleo duro dos sistemas jurídicos democráticos contemporâneos, assegura a autonomia privada e, assim, esta autonomia privada só pode ser exercida na sua plenitude, para os que se filiam à teoria da eficácia indireta, se for reduzida a possibilidade de ingerência do Estado na esfera de atuação privada.
De outra forma, significa dizer, em síntese, que a defesa da plena autonomia privada (cidadãos e entes privados de modo geral) deveria receber tutela jurídica larga o suficiente para que não pudesse ser facilmente mitigada pelo Estado, evitando, assim, que o ordenamento jurídico reduzisse a liberdade dos agentes privados.
Deste modo, aqueles que se filiam à teoria da eficácia indireta dos direitos fundamentais defendem o argumento de que se estaria a valorizar o importante princípio da segurança jurídica (o qual obviamente existe em todos os sistemas jurídicos), visto que assim se daria maior relevância ao direito privado, o qual mostra-se melhor vocacionado para lidar e regular os elementos próprios das relações negociais da esfera privada (Duque, 2013, p. 199), resguardando, deste modo, a dita “panconstitucionalização” da ordem jurídica existente (Steinmetz, 2004, p. 139).
Nesse sentido, o argumento defendido pelos que são partidários da teoria da eficácia indireta dos direitos fundamentais é no sentido de que “cabe ao legislador a tarefa precípua de determinar o equilíbrio entre o respeito à liberdade individual e a vigência efetiva dos direitos fundamentais” (Duque, 2013, p. 201), motivo pelo qual se faria necessária uma espécie de intermediação do legislador que se pudesse observar os direitos fundamentais, em razão da não-incidência imediata dos direitos fundamentais nas relações existentes entre os agentes privados (Steinmetz, 2004, p. 137). De acordo com a teoria da eficácia mediata (indireta), há uma autonomia, ou mesmo prevalência do direito privado (sobretudo do direito civil e empresarial), que o deixaria “imune” à incidência direta dos direitos fundamentais, mesmo que de nível constitucional.
Também são admitidas pela doutrina outras modalidades de mediação, além daquela realizada pelo legislador. Admite-se, em um segundo plano, em consonância à doutrina de Steinmetz (2004), a mediação judiciária (no sentido originalmente proposto por Dürig). Deste modo, os órgãos judiciários poderiam exercer a função integradora que lhes é concedida para a resolução dos casos que lhes são submetidos para julgamento. Observe-se que aqui não se trata de aplicação direta dos direitos fundamentais aos casos concretos, mas sim de uma diretriz de natureza interpretativa, demarcada pelo direito provado e, de modo especial, pelas cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, como defende Marcelo Duque (2013).
A vinculação mediata (indireta) dos órgãos privados aos direitos fundamentais é “consequência da vinculação direta dos órgãos estatais aos direitos fundamentais” (Duque, 2013, p. 201), como sustenta Duque. O autor, todavia, não explicita qual seja a relação lógica entre os dois fatos, já que, ao que parece, o fato de existir uma necessária vinculação direta (imediata) dos entes públicos aos direitos fundamentais não implica logicamente na pressuposição de que os agentes privados devam se submeter aos direitos fundamentais de modo indireto. As duas formas de submissão aos direitos fundamentais são logicamente admissíveis, de modo que reconhecer a eficácia direta e imediata para os entes públicos não implica logicamente a negação da possibilidade de eficácia direta também aos entes privados, motivo pelo qual entende-se haver um déficit argumentativo no raciocínio do autor.
Também em conformidade com a doutrina de Marcelo Duque , observa-se a ideia de que “da norma civil derivam-se direitos privados subjetivos orientados aos direitos fundamentais” (Duque, 2013, p. 203). Esta afirmação é o cerne do problema, explicitando o ponto em relação ao qual se funda a divergência da doutrina a respeito da eficácia dos direitos fundamentais sobre as relações entre particulares. Isto porque, ao contrário do que afirma o autor, não se pode admitir que o argumento interpretativo se dê da norma infraconstitucional para a norma de nível constitucional, visto que tal entendimento incorre em um erro de ordem metodológica: só se pode admitir que a norma de natureza inferior (infraconstitucional) tenha reverência à norma de natureza hierarquicamente superior (norma constitucional), mas nunca o contrário, como parece defender o autor.
A respeito de tal questão, Canaris (2006) contrapõe sua crítica ao sustentar que a tese “deve ser rejeitada sem rebuço” por “razões de lógica normativa”. Como afirma com sabedoria Steinmetz, “mais perigosa do que a ‘jusfundamentalização’ do direito civil é a ‘civilização’ (‘infraconstitucionalização’) dos direitos fundamentais” (Steinmetz, 2004, p. 156).
Naturalmente é plausível a preocupação dos autores que se filiam à teoria da eficácia indireta (mediata), tendo por objetivo a proteção da autonomia privada, a fim de evitar o que denominam de um “intervencionismo asfixiante” (Duque, 2013, p. 203). Todavia, adotar a teoria contrária (eficácia direta) não significa aceitar-se um intervencionismo asfixiante. A propósito, há uma verdadeira contradição performativa por parte dos que advogam pela teoria da eficácia indireta dos direitos fundamentais: defendem que os direitos fundamentais não podem ostentar eficácia direta nas relações entre particulares visto que as tais relações precisam se pautar pela autonomia privada, mas olvidam que a autonomia provada é justamente decorrência de um direito fundamental que, neste ponto, lhes serve de argumento, contraditoriamente.
Percebe-se, portanto, que parte da doutrina incide em uma verdadeira falácia argumentativa, visto que se articula em torno de um direito fundamental (liberdade/autonomia) justamente para negar a incidência dos direitos fundamentais, de modo simplista, beneficiando apenas um dos possíveis direitos (a liberdade privada) – o que geralmente se associa aos direitos dos que ostentam maior poder político e econômico, o que não deve ser mera coincidência.
Ainda, afigura-se de difícil adequação o condicionamento da eficácia dos direitos fundamentais à intervenção do legislador ordinário, até porque ao se constatar a letargia do legislador sobre pontos politicamente polêmicos, a qual se constitui em “argumento empírico contrário à teoria da eficácia mediata”, como sustenta a doutrina de Steinmetz (2004), ao perceber que muitas vezes direitos fundamentais tornam-se na prática inexequíveis por conta da conduta do legislador ordinário.
Em suma, aqueles que defendem a tese da eficácia indireta dos direitos fundamentais tem um robusto argumento em seu favor (preservar a autonomia dos entes privados), entretanto, mesmo admitindo a hipótese de uma grande diferenciação quanto ao poder ou capacidade dos contratantes, não entende pela aplicação dos direitos fundamentais de modo imediato às relações entre agentes privados, gerando a singular situação de condicionar a aplicação de um direito de alta hierarquia ao desejo da norma infraconstitucional, ao argumento de uma necessária “mediação” por parte do legislador ordinário. Não se pode concordar com esta compreensão, visto que, como pontua Jorge Miranda, “não se compreenderiam uma sociedade e uma ordem jurídica em que o respeito da dignidade e da autonomia da pessoa fosse procurado apenas nas relações com o Estado e deixasse de o ser nas relações das pessoas entre si” (Miranda, 2017, p. 372).
Nesse sentido, a melhor forma de ampla proteção à dignidade humana e à gama de direitos fundamentais melhor se verifica na teoria que defende a eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações travadas entre agentes privados. Com efeito, existe parcela expressiva da doutrina constitucional luso e brasileira que leciona favoravelmente à tese da eficácia imediata dos direitos fundamentais às relações privadas, sem que seja exigível uma mediação pela lei ordinária. Isto porque a independência de mediação legal é o ponto central da divergência entre as duas teorias, de modo que compete à teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais a defesa da noção de que “direitos e obrigações nas relações entre particulares podem e devem ser deduzidos diretamente das normas constitucionais” (Steinmetz, 2004, p. 168) – mesmo que se possa reconhece que a forma pela qual se operam os direitos fundamentais nas relações jurídicas públicas e naqueles eminentemente privadas não seja idêntica, haja vista a notória diferenciação das funções sociais exercidas pelos agentes públicos e privados (Sarlet, 2011, p. 382).
Tem-se esta compreensão visto que se parte do princípio de que a dignidade da pessoa seja o fundamento do sistema normativo, de modo que os direitos fundamentais têm por escopo assegurar a dignidade humana. Por esta razão, a eficácia dos direitos fundamentais não pode ser limitada às relações das quais Estado seja parte; ao contrário, até mesmo nas relações jurídicas nas quais o Estado não seja parte também deve-se assegurar a eficácia dos direitos fundamentais, o que é justificado pela ideia de que os agentes privados também têm potencial lesivo à dignidade humana, como afirma Juan María Ubillos (2010), de modo que este é principal argumento utilizado pelos adeptos da eficácia direta dos direitos fundamentais, conforme Marcelo Duque (2013).
A doutrina de Paulo Otero afirma que “a aplicabilidade directa das normas constitucionais sobre direitos fundamentais, determinando que os direitos fundamentais deixem de ter sua eficácia ‘prisioneira’ da vontade do legislador” (Otero, 2016a, p. 590), engloba dupla dimensão. Importa dizer, em primeiro plano, que as normas de natureza constitucional não precisam de intervenção (ou mediação) por parte do legislador para emanar a eficácia de suas normas, de modo que “todo o aplicador do Direito se encontra vinculado a aplicar as normas constitucionais sobre direitos fundamentais” (Otero, 2016a, p. 591). Outrossim, sustenta Paulo Otero (2016a) que, como as normas de natureza constitucional que tratam de direitos fundamentais possuem aplicabilidade direta, isso torna inconstitucionais todas as normas infraconstitucionais que se mostrem violadoras de direitos fundamentais.
Nesse diapasão também é o entendimento de Carlos Alberto da Mota Pinto, para quem “problemas de direito civil podem encontrar a sua solução numa norma que não é de direito civil, mas de direito constitucional” (Pinto, 2005, p. 73), já que, nos termos do expostos por Mota Pinto, as normas constitucionais, por ostentarem caráter vinculativo (em relação ao legislador, ao magistrado e aos entes privados), não é meramente programática, mesmo entendendo o autor que apenas para casos de exceção a norma constitucional deva ser aplicada de modo direto, quando houver impossibilidade de resolver o caso apenas com a normatividade infraconstitucional.
Realizando-se a defesa da teoria da eficácia imediata dos direitos fundamentais, portanto sem a exigência de uma intervenção do legislador ordinário para que os direitos fundamentais sejam imediatamente aplicados, se reconhece a necessária vinculação dos agentes privados ao complexo normativo proveniente dos direitos fundamentais positivos, visto que, conforme doutrina de Paulo Otero, “o respeito e garantia dos direitos da pessoa humana são hoje uma questão envolvendo também a sociedade civil, não representando um problema apenas do Estado” (Otero, 2016a, p. 592). No mesmo diapasão se mostra a lição de Canaris (2006), segundo o qual os direitos fundamentais têm um “imperativo de tutela”, o que os torna empregáveis igualmente nas relações jurídicas entre entes particulares.
Oportuno referir que a Constituição Federal Brasileira não regula expressamente o modo pelo qual se dá a eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre entidades privadas, apenas dispondo, no parágrafo 1o do artigo 5o, que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Por outro lado, a Constituição da República Portuguesa dispõe com clareza no número 1 do artigo 18o que “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.
Portanto, percebe-se que é muito mais nítido o diploma constitucional português no tocante à aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, ainda que igualmente se possa defender que o direito constitucional brasileiro avance no mesmo sentido, de acordo com o pensamento de Wilson Steinmetz (2004), ao mencionar ao menos seis argumentos para esta compreensão. O autor elenca o princípio da supremacia da Constituição, o postulado da unidade material do ordenamento, os direitos fundamentais como princípios objetivos, o princípio constitucional da dignidade humana, o princípio constitucional da solidariedade e, ainda, o princípio da aplicação imediata dos direitos fundamentais.
Com efeito, deste compreensão tem-se como consequência a chamada “horizontalização” dos direitos fundamentais, a partir da qual se reconhece a irradiação de efeitos dos direitos fundamentais para os particulares, os quais estão em um mesmo nível hierárquico de poder (portanto de modo horizontal), ao contrário do que se verifica nas relações travadas entre o Estado e o cidadão, que se operam de modo verticalizado, haja vista a distinta capacidade hierárquica.
Pode-se objetar com crítica a nomenclatura dada pela doutrina ao fenômeno (“horizontalização”), na medida em que, como reflete a doutrina, mesmo as relações entre agentes provados pode ter uma diferente hierarquia de poder entre contratantes, como se depreende, por exemplo, da legislação voltada à regulação das relações de consumo, na qual se verifica um complexo de normas de natureza protetiva por conta da evidente desigualdade entre os contratantes (motivo pelo qual alguns doutrinadores aludem à “eficácia diagonal”); todavia, entende-se o sentido que a doutrina quer empregar ao utilizar a terminologia da “horizontalização”, a qual tem por objetico afastar o Estado da relação jurídica que é objeto de análise.
A ideia de horizontalização dos direitos fundamentais possui forte respaldo na doutrina constitucional – conforme Ingo Sarlet (2012), por exemplo – sendo utilizada em precedentes constitucionais.
Ainda que a crítica se fundamente ao argumento de que o modelo da eficácia direta não seja compatível com a noção de autonomia dos agentes privados (Duque, 2013, p. 149), tal crítica não merece ser confirmada, visto que não se retira do ente privado sua autonomia negocial, a não ser na medida em que o exercício desta autonomia privada atinja os direitos fundamentais dos demais membros da sociedade, como o outro contratante, por exemplo. Tem-se, aqui, a ideia contratualista a partir da qual compreende-se que a liberdade pode ser exercida pelos contratantes quando também viabilize o exercício da liberdade dos demais, sem atingir, portanto, a esfera jurídica de terceiros (o que inclui a dignidade dos demais). Não há, portanto, liberdade ilimitada.
Em síntese, defende-se a difusão dos direitos fundamentais, em consonância à doutrina de Eduardo Cambi, segundo o qual “a existência de um Estado verdadeiramente Democrático de Direito resulta da generalização dos direitos fundamentais” (Cambi, 2016, p. 692).
Mostra-se nítido que, quando da aplicação dos direitos fundamentais no âmbito dos vínculos entre agentes privados, pode potencialmente surgir um conflito de direitos: por um lado, aquele que almeja o exercício de seu direito sem se importar com o direito alheio, o qual, pode vir a ter sua esfera jurídica atingida pelo outro sujeito.
Deve-se analisar, com efeito, o modo pelo qual este possível confronto deva ser superado nas hipóteses em que de um lado estiver a liberdade de expressão de um agente privado e, de outro lado, a dignidade alheia. Nesse sentido, a superação do conflito de direitos deverá assegurar a supremacia da dignidade.
PROPOSTA DE SOLUÇÃO
Com o propósito de resolver a difícil problemática de contemporizar os direitos em conflito potencial, a doutrina de Juan María Bilbao Ubillos aponta parâmetros que se mostram úteis para orientar a apropriada configuração da eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas.
Ubillos indica, como primeiro critério a ser ponderado, a desigualdade existente na relação estabelecida entre os particulares. Conforme defende Ubillos (2008), afirma-se a propósito que a autonomia dos entes privados pode sofrer limitação proporcionalmente ao nível de desigualdade que for verificada entre os agentes privados, ou seja, quanto mais relevante for a desigualdade existente entre os particulares, maior deve ser a limitação da autonomia privada do contratante que dispõe de maior poder. Nesse sentido, quanto mais equânime for a relação de forças entre os particulares, maior deve ser a liberdade/autonomia destes agentes, restringindo-se, então, a intervenção estatal.
O fundamento, neste ponto, é muito semelhante àquele utilizado pelas leis de proteção ao consumidor, ao disporem que o consumidor, por sua natureza frágil, possua privilégios ante o seu fornecedor, o que se verifica em relação às regras processuais e também quanto ao próprio direito material.
Importa dizer, com efeito, que o “grau de autonomia real das partes” (Ubillos, 2008, p. 236) – e não meramente formal – é um critério útil e válido, conforme Ubillos, para auxiliar na busca de um resultado aos conflitos potenciais, quando se recorre aos direitos fundamentais para solucionar um conflito entre particulares. Observe-se que, em relação aos discursos de ódio, o cenário é exatamente este, visto que há em polos distintos pretensões de particulares que são antagônicas, mas igualmente amparadas em direitos fundamentais.
Ubillos (2008) apresenta, ainda, um segundo critério para a exame da ocorrência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, destacando o autor o elemento dignidade: defende Ubillos que a força da tutela garantida pelos direitos fundamentais deve ser tanto maior quanto mais forte for a investida contra a dignidade. Deste modo, sustenta o autor que todo sistema jurídico tem como núcleo central o respeito supremo à dignidade da pessoa, a qual constitui um “núcleo intangível e indisponível que deve ser preservado de qualquer agressão” (Ubillos, 2008, p. 236), o que legitima, deste modo, que as relações jurídicas travadas entre agentes particulares sejam atingidas pela eficácia imediata dos direitos fundamentais a fim de obstar que das relações privadas surjam prejuízos à dignidade humana, o que não é admitido pelo Direito dos Estados democráticos.
Deste modo, o elemento acertadamente analisado por Ubillos não se reduz à mera discussão a respeito da existência ou não de eficácia dos direitos fundamentais às relações particulares, de modo abstrato; o objeto da observação, mais profunda, é a adequada demarcação da intensidade desta eficácia. E, de acordo com o entendimento exposto por Ubillos, a dignidade humana é um fator decisivo para delinear tais balizas.
Em sentido convergente, Jorge Reis Novais (2016) sustenta que a dignidade desempenha, em um cenário de conflito de direitos materialmente constitucionais, papel relevante para apontar um parâmetro, um critério, que oriente as necessárias ponderações. Destarte, conforme o autor, poderá a dignidade desempenhar um papel contra os direitos fundamentais, o que é relevante na análise dos discursos de ódio, na medida em que o direito que se tenciona limitar (liberdade de expressão) possui inequívoco grau de fundamentalidade. Reconhecendo o fato de que “condutas de particulares, em princípio protegidas por normas de direitos fundamentais, podem ameaçar a dignidade de outras pessoas”, Novais (2016) aponta para a possibilidade da restrição a direitos fundamentais tendo a dignidade como fundamento da restrição (Novais, 2016, p. 103).
Compartilhando a compreensão da possibilidade de restrição de direitos fundamentais pela dignidade humana, Paulo Otero corrobora o entendimento, assim articulando seu convergente pensamento, no sentido de que “o respeito pela dignidade humana pode sempre servir de fonte geradora de deveres fundamentais, justificação de restrições e limitações” (Otero, 2016b, p. 39).
O mesmo ponto vem apresentado na obra de Ingo Sarlet (2011), sustentando o autor, em relação ao princípio da dignidade humana, que este pode justificar “e até mesmo exigir” que eventuais limites e restrições a outros bens jurídicos sejam criados, mesmo que para restringir “normas de cunho jusfundamental”. Bastante interessante a observação de que além de uma possibilidade, a restrição a um direito fundamental possa se configurar como uma exigência: é que se a proteção à dignidade for levada à sério e às últimas consequências, sendo um bem jurídico indisponível, não haverá outra alternativa senão efetivamente reconhecer que haverá uma imposição jurídico-fundamental de elevação da dignidade no eventual conflito, por ser ela a base de todo o ordenamento – inclusive para fins hermenêuticos.
Tem-se que a eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas é inequívoca; o desafio é pontuar, de modo fundamentado e em consonância ao direito positivo, o modo pelo qual esta eficácia deverá operar seus efeitos nas relações concretas. Assim, se é certo que a dignidade pode limitar direitos fundamentais, como acima consignado, acerta Ubillos ao trazer à baila os critérios da desigualdade e da preservação da dignidade como balizadores da intensidade da eficácia dos direitos fundamentais, porquanto deste modo preserva a essência da autonomia individual (liberdade), sem ignorar a necessária proteção constitucional que é dada aos elementos intangíveis e subjacentes à própria existência do Estado, que é a tutela plena da dignidade humana: “a dignidade humana torna-se, neste sentido, o fundamento último da existência e do exercício do Poder político” (Otero, 2016b, p. 39).
Nesse diapasão, percebe-se que as noções que foram expostas anteriormente quanto à conceituação dos discursos de ódio são facilmente verificáveis neste estágio da exposição, em cotejo com os critérios de Ubillos: sustentou-se que a caracterização dos discursos de ódio dá-se pelo ataque a grupos politicamente minoritários e tem por propósito estigmatizar e amesquinhar tais vítimas; são, portanto, características que se amoldam à proposição de Ubillos, visto que ambos os elementos seriam aptos a ensejar maior proteção de acordo com os critérios indicados pelo autor (desigualdade material e proteção da dignidade).
Fundamental, neste ponto, notar que é inerente aos discursos de ódio o ataque à dignidade alheia, sendo relevante a análise doutrinária a respeito das razões pelas quais entende-se que a estigmatização seja antijurídica. A propósito, Jorge Reis Novais (2017) sustenta que há violação da dignidade humana quando a pessoa é humilhada ou estigmatizada como ser pretensamente inferior: a violação da dignidade ocorre “quando o tratamento inigualitário é especialmente desqualificador”.
Se é certo que “o princípio da igualdade é, em última análise, uma concretização do reconhecimento constitucional da igual dignidade das pessoas humanas” (Novais, 2017, p. 133), coerentemente será necessário afirmar que haverá violação da dignidade quando o tratamento discriminatório for baseado nas características do indivíduo.
Percebe-se que o autor introduz a ideia de violação daquilo que o sujeito seja, isto é, há uma preocupação com a tutela do indivíduo e de suas circunstâncias, os traços que lhe conferem sua identidade. Deste modo, exemplifica Novais que a discriminação em função da raça extrapola a violação à igualdade, porquanto atinge também a dignidade do sujeito, a qual acaba por ser violada em decorrência do tratamento desigual.
Novais (2017) aponta distinções quanto às violações à dignidade em decorrência do tratamento desigual por conta de tratamento discriminatório desqualificante motivado por (i) questões a respeito do ser, isto é, os elementos característicos da pessoa que independem de sua vontade e (ii) por questões atinentes às escolhas pessoais de cada um, concernentes ao modo de vida escolhido.
Pode-se reclassificar tais dimensões de atos discriminatórios como constitutivos de ataques à pessoa por conta de elementos identitários eletivos e elementos identitários não-eletivos. Em outras palavras, significa dizer que os elementos identitários eletivos são aqueles que passam a fazer parte da pessoa e de sua identidade por escolha própria, como ocorre com as preferências religiosas, filosóficas, profissionais etc. Já em relação aos elementos identitários não-eletivos, tem-se aqueles aspectos constitutivos da singularidade da pessoa que não são objeto de deliberação reflexiva ou de escolha consciente, como ocorre com o pertencimento a uma etnia, gênero, sexualidade ou características físicas genéticas.
Interessante notar que se poderia cogitar da possibilidade de uma argumentação segundo a qual a liberdade de expressão, por ser fundamentada na dignidade humana, não poderia ser restringida justamente pela dignidade humana, sob pena de incoerência argumentativa. Este raciocínio, todavia, se mostra falacioso. Isto porque, mesmo sendo correto o argumento de qua dignidade dê suporte à liberdade de expressão, não se pode ignorar que evidentemente a dignidade possui um leque amplo de incidências, de modo que, neste caso, é necessário observar-se que o conflito opera em relação a diferentes níveis de tutela da dignidade: o elemento que se busca preservar com a restrição à liberdade de expressão é justamente o núcleo da dignidade humana, pois relacionado à própria identidade do indivíduo (e à forma pela qual insere-se na comunidade política), ao passo que a liberdade de expressão, ainda que sendo um direito fundamental, não se qualifica a ponto de ser elevado à condição de núcleo essencial da dignidade (embora seja desta um desdobramento). Portanto, a identidade individual é núcleo da dignidade, ao passo que a liberdade de expressão é “corolário da especial dignidade da pessoa humana” (Binenbojm, 2020, p. 21).
Oportuna a lição de Paulo Otero (2016b) para os casos em que há pretensões igualmente fundadas na dignidade, porquanto se deverá operar pela solução normativa “melhor conexionada com a dignidade humana”, o que significa dizer que a “prevalência aplicativa” neste caso será da dignidade em sentido estrito, e não da liberdade de expressão. Da mesma forma, pode-se invocar a ideia de “núcleo essencial dos direitos fundamentais” e questionar: qual violação atinge de forma mais direta e imediata o núcleo da dignidade? A ofensa à identidade ou a restrição à liberdade de expressão? Parece claro que, também sob este enfoque, a melhor solução seja a restrição à liberdade de expressão para melhor tutela do núcleo da dignidade, visto que a eventual opção pela tutela da liberdade de expressão – neste caso – resultaria em maior ameaça à dignidade, a qual, como exposto, deve ser sempre o bem jurídico de maior intensidade de tutela.
Com efeito, a limitação do direito de livre manifestação do pensamento odioso encontra aqui dois pontos de apoio juridicamente qualificados: em primeiro lugar, a ideia da tutela da dignidade, como visto acima. Mas há, ainda, em segundo plano, a ideia de que há um “limite absoluto correspondente à finalidade ou ao valor que justifica o direito” (Miranda, 2017, p. 377), isto é, o direito é legítimo de ser exercido se e quando estiver em consonância à razão de ser do próprio direito invocado. Significa dizer, em outras palavras, que o direito será exercido de forma legítima quando o for para dar vida (concretude) à motivação existencial do direito; por consequência, haverá exercício ilegítimo – ou mesmo inexistência de direito – quando este for concretizado para finalidade contrária àquela que legitima a existência do próprio direito posto em causa.
Assim sendo, cabe demonstrar que o exercício do direito de liberdade de expressão, na hipótese dos discursos de ódio, não guarda nenhuma relação de legitimação com as razões que fundamentam a existência do direito à liberdade de expressão. Como visto na seção dedicada à liberdade de expressão, há um amplo rol de razões legítimas e relevantes que dão sustentação à liberdade de expressão, elevando tal direito, necessariamente, a um grau de fundamentalidade sistêmica nos regimes democráticos.
Percebe-se, com efeito, que absolutamente nenhum dos nobres fundamentos legitimadores da liberdade de expressão são condizentes com o uso deste direito para a finalidade de vilipendiar a honra e a dignidade alheias; isto porque a busca da verdade, a livre circulação de ideias, a busca de um melhor governo, a ideia de participação política e da autonomia individual (dentre outros tantos fundamentos) jamais servirão de apoio argumentativo à prática do ódio voltado contra minorias. Gize-se: não há relação possível de sustentação entre os discursos de ódio e os legítimos fundamentos da liberdade de expressão, isto é, os fundamentos da liberdade de expressão não se prestam para a defesa da “liberdade” de ofender.
Por tais motivos, embora sem ignorar as divergências (mormente no cenário estadunidense), sustenta-se que a solução para o conflito de interesses jurídicos contrapostos seja necessariamente o reconhecimento de que “a liberdade de manifestação é limitada por outros direitos e garantias fundamentais” (Fernandes, 2020, p. 485).
Portanto, à luz da ideia de que “os princípios constitucionais podem ter pesos diversos” (Masson, 2020, p. 257) – pois é da natureza dos princípios tal dimensão –, confere-se a necessária tutela à dignidade (maior peso), em detrimento à liberdade de expressão (menor peso) quando o seu exercício for constitutivo de discurso de ódio. A escolha pela concessão de maior peso à identidade/dignidade (e não à liberdade de expressão) não é arbitrária: justifica-se do ponto de vista jurídico-normativo pelo fato de ser a dignidade o vértice central de qualquer ordenamento democrático.
Deste modo, há que se reconhecer que existe uma prevalência prima facie da tutela do núcleo essencial da dignidade do indivíduo, de modo que seus traços identitários não podem ser licitamente atacados odiosamente, de modo que se mostra legítima a atuação do Estado para limitar ou reprimir a conduta ofensiva, que se afigura antijurídica.
Naturalmente que a relevância dos direitos postos em causa (liberdade e dignidade) faz com que este cotejo seja sempre difícil: há que se atentar, nesse sentido, para o fato de que a crítica não pode ser embaraçada ou inibida, visto que legítima e tutelada pelo Direito. Portanto, mesmo a crítica a determinados grupos sociais poderá ser realizada sem incorrer em antijuridicidade, desde que não ultrapasse o propósito da crítica e não incorra em verdadeiro ataque odioso.
Por fim, cumpre consignar que as vicissitudes dos casos concretos tornarão sempre necessária a minudente análise do caso que efetivamente se apresente, de modo que a solução aqui proposta deve ser encarada como uma preponderância apenas prima facie da tutela da identidade em detrimento da liberdade de expressão. Nesse sentido, a eventual alteração desta configuração preferencial da tutela da dignidade ensejará ao postulante à plena liberdade de expressão a assunção da carga do ônus argumentativo necessário para a demonstração da preponderância da liberdade no caso concreto, a fim de eventualmente afastar a compreensão estabelecida em caráter prima facie.
CONCLUSÃO
Explorou-se a evolução da compreensão dos direitos fundamentais, admitindo-se a teoria da eficácia horizontal como mecanismo capaz de assegurar o exercício dos direitos até mesmo em face de outros particulares, de modo que não mais o Estado é o único a dever respeito aos direitos fundamentais, mas todos que compõem a comunidade. Deste modo, uma vez que a todos é dado o direito, mas também o dever, fica nítido que as relações entre liberdades e direitos terá zonas de sobreposição.
Como forma de tentar superar a dificuldade para solucionar o problema dos discursos de ódio, mesmo reconhecendo que a liberdade é decorrente da dignidade, propôs-se a adoção de uma compreensão que confere maior grau de proteção ao núcleo central da dignidade, assim compreendidos os elementos identitários da pessoa.
Significa dizer, destarte, que tutela da liberdade de expressão (mesmo que amparada na dignidade humana) deverá ceder, ao menos prima facie, ante à necessária tutela da identidade pessoal (núcleo da dignidade humana), devendo o ônus argumentativo recair sobre o agente que pretenda a inversão, à luz da prevalência axiológica da identidade da pessoa.
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1Mestre em Filosofia
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS
Porto Alegre – Rio Grande do Sul, Brasil
matheusts@duck.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8331-9425