REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202410161354
Rangel Luiz dos Santos1
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo investigar o diálogo constante entre a criação literária voltada ao público infantil e a pedagogia, a partir da figura paterna desenvolvida no livro Fazendo Ana Paz, de Lygia Bojunga. Neste artigo, buscou-se problematizar a noção de literatura pedagogizante, que reduz o universo literário a uma função meramente utilitarista, com a finalidade de moralizar e educar seus leitores. Para tanto, traçamos um paralelo sobre a construção da personagem do pai feita por Lygia Bojunga e a sua necessidade de sempre recorrer à contação de histórias como ferramenta para instrução e formação da personalidade de sua filha. A metodologia adotada foi a revisão literária. O desenvolvimento deste tema, se justifica pelo papel central que a literatura desempenha no ambiente escolar e na formação geral da infância. A partir desta investigação, concluímos que a Literatura Infantil e a Pedagogia têm estabelecido uma relação dialógica desde o princípio, não sendo áreas antagônicas. Assim, a primeira pode enriquecer a segunda, ao mesmo tempo em que a pedagogia pode auxiliar na formação de novos leitores críticos.
Palavras-chave: Literatura Infantil. Pedagogia. Lygia Bojunga.Figura Paterna.
1. INTRODUÇÃO
O problema norteador deste trabalho é: “Até que ponto os livros para criança são didáticos? E até que ponto são necessariamente didáticos?” (HUNT, 2010, p. 57). Essas duas questões levantadas por Hunt (2010) serviram de inspiração para este artigo. Embora essas indagações possam ser ampliadas para qualquer tipo de literatura ou arte, é evidente a relação comumente estabelecida entre a literatura infantil e a função didático-pedagógica que lhe é atribuída.
Para o desenvolvimento deste artigo, foi selecionada a figura do pai, do romance infanto-juvenil Fazendo Ana Paz (2007), como forma de propor uma reflexão a cerca dessa problemática. A opção por essa obra se deu pela importância de Lygia Bojunga no cenário literário nacional, mas, também, por ser um livro repleto de metanarrativas, no qual a figura da narradora descreve seu próprio processo de fazer literário, seu processo criativo e seus diálogos com as personagens. Outra figura igualmente importante na narração dessa história é a própria Ana Paz, que, por vezes, assume uma posição autodiegética, contando sua própria história. Mas então, por que centrar-se na figura do pai, o qual é apresentado pela própria narradora como uma figura “medíocre” (BOJUNGA, 2007, p. 86)?
A escolha pelo pai da protagonista se dá por ser ele um contador de histórias, mais até do que contador, ele é um inventor: “E aí o Pai começou a inventar um monte de histórias pra ir respondendo às perguntas de Ana Paz” (BOJUNGA, 2007, p. 52).
Pois bem, mapeando as histórias “inventadas” pelo pai da protagonista através das pistas deixada pela mesma – uma vez que as histórias contadas por ele não são reproduzidas no livro – procuramos aqui verificar como o ideal utilitário da literatura se apresenta nas histórias criadas pelo pai e as possíveis implicações disso na figura da jovem Ana Paz.
Antes, porém, de adentrar na análise do romance de Lygia Bojunga, este trabalho propõe analisar o aparecimento histórico de uma literatura voltada para o período da infância. É interessante observar como esse momento se deu juntamente com o desenvolvimento da própria Pedagogia e com o surgimento da família burguesa. Esse ponto é extremamente relevante, pois a concepção de criança, próximo do que se tem hoje, foi sendo construída e, certamente, difere muito dos modelos anteriores.
2. HISTÓRIAS PARA ENSINAR
2.1. Aspectos bibliográficos
Lygia Bojunga Nunes nasceu em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 26 de agosto de 1932. Seus primeiros anos foram vividos em uma fazenda na mesma cidade em que nasceu. Aos 8 anos mudou-se com sua família para o Rio de Janeiro.
Antes de se aventurar na literatura, Lygia trabalhou no rádio e no teatro. Em 1951, ingressou Companhia de Teatro Os Artistas Unidos, com a qual viajou para o interior do Brasil. Ao deixar os palcos, Lygia trabalhou como roteirista para o rádio e para a televisão.
Procurando uma vida mais integrada à natureza, a autora mudou-se para o interior do Rio de Janeiro, onde juntamente com seu marido, fundou uma escola rural voltada para crianças carentes chamada Toca, a qual dirigiu por 5 anos.
Sua estreia na literatura foi em 1972, com o livro Os Colegas, recebendo no ano seguinte o Prêmio Jabuti. 10 anos depois, a escritora teve a honra de ser a primeira autora de nacionalidade não europeia ou americana a receber Prêmio Hans Christian Andersen, uma das mais importantes premiações de literatura infantil.
Nesse período, decidiu morar na Inglaterra, vivendo alternadamente no país europeu e no Brasil. No ano de 1988, Lygia retornou ao teatro, escrevendo peças e atuando tanto no Brasil quanto no exterior. Trabalhou, ainda, com produção de edição de livros de forma artesanal. Em 1996, a autora publicou Feito à Mão, uma produção alternativa ao modo de produção literário dominado pela industrialização.
Ao todo, Lygia Bojunga escreveu 23 livros: Os colegas (1972), Angélica (1975), A bolsa amarela (1976), A casa da madrinha (1978), Corda bamba (1979), O sofá estampado (1980), Tchau (1984), O meu amigo pintor (1987), Nós três (1987), Livro, um encontro (1988), Fazendo Ana Paz (1991), Paisagem (1992), Seis vezes Lucas (1995), O abraço (1995), Feito à mão (1996), A cama (1999), O rio e eu (1999), Retratos de Carolina (2002), Aula de inglês (2006), Sapato de salto (2006), Dos vinte 1 (2007), Querida (2009) e Intramuros (2016).
Há que se considerar que Lygia Bojunga trabalha com uma concepção de Literatura voltada para o público de jovens e crianças, sem, contudo, deixar de lado uma abordagem estética, quebrando as perspectivas moralizantes e de concepção meramente didático-pedagógica da Literatura infanto-juvenil. Nas palavras de Edmir Perrotti (1986):
O impacto causado à literatura brasileira para crianças pela obra de Lygia Bojunga Nunes, por exemplo, dificilmente poderá tornar sustentável a defesa do utilitarismo como forma ideal e/ou única de discurso literário dirigido à criança ou ao jovem (PERROTTI, 1986, p.133).
Assim, para Perrotti (1986), tal como Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Elvira Vigna e Marina Colasanti, Lygia Bojunga procura trazer uma nova consciência do papel social que a literatura infantil e juvenil poderia ter, não compartilhando da concepção utilitarista do texto literário, visão predominante até então, e que influenciou diversos autores, como o próprio Monteiro Lobato em algumas de suas obras.
2.2 Entre a pedagogia e a literatura
Em seu artigo para a Revista ACB, Clarice Fortkamp Caldin (2002) afirma que há desde o século XVII, uma disputa entre a arte literária e a pedagogia para tentar estabelecer seus exatos lugares na Literatura Infantil. A própria noção de Literatura Infantil já nasceu com um claro objetivo pedagógico, a partir do surgimento de uma nova compreensão sobre a infância na Idade Moderna.
Segundo José Nicolau Gregorin Filho (2009), antes do século XVIII, as crianças eram percebidas como uma espécie de adulto em miniatura. Àquelas pertencentes às camadas mais altas da sociedade liam os grandes clássicos literários, ao passo que as camadas menos abastadas não recebiam nenhum tipo de instrução para leitura ou escrita. Assim, para o autor, até esse momento, “[…] a literatura veiculada para adultos e crianças era exatamente a mesma já que esses universos não eram distinguidos por faixa etária ou etapa de amadurecimento psicológico […]” (GREGORIN FILHO, 2009, p. 108).
O estabelecimento de uma sociedade mais industrializada, exigiu o desenvolvimento de uma nova visão de mundo. A burguesia emergente descarta parte dos valores antigos e cria outros. Para a introdução desses novos valores no universo da infância, recorre-se à literatura, como instrumento de propagação dos ideais burgueses. Narrativas populares, como os contos de fadas, por exemplo, foram reescritas e adaptadas para propagação entre as crianças desse outro modelo de pensamento.
Em paralelo e em conjunto, nesse mesmo período, novos saberes surgem, como a psicologia e a própria pedagogia. E é com o apoio e supervisão dessa última, que fortalece no campo literário a preocupação em separar e preparar histórias “apropriadas” para a criança. Como afirma Nelly Novaes Coelho (1991):
Dentro desse processo renovador, a criança é descoberta como um ser que precisava de cuidados específicos para a sua formação humanística, cívica, espiritual, ética e intelectual. E os novos conceitos de Vida, Educação e Cultura abrem caminho para os novos e ainda tateantes procedimentos na área pedagógica e na literária. Pode-se dizer que é nesse momento que a criança entra como um valor a ser levado em consideração no processo social e no contexto humano. (…) Nos rastros dessa descoberta da criança, surge também a preocupação com a literatura que lhe serviria para leitura, isto é, para a sua informação sobre os mais diferentes conhecimentos e para a formação de sua mente e personalidade (segundo os objetivos pedagógicos do momento). (COELHO, 1991, p. 139)
Concomitantemente ao aparecimento desses novos valores e concepções, surge também uma outra visão sobre os papéis a serem desenvolvidos dentro da família burguesa. Segundo as palavras de Phillip Ariès, “[…] A criança tornou-se um elemento indispensável da vida cotidiana, e os adultos passaram a se preocupar com sua educação, carreira e futuro” (ARIÈS, 1978, p. 270). De acordo com Regina Zilberman (1985), a “descoberta” da criança fez com que a classe burguesa elaborasse e apresentasse um novo conjunto de valores, sem influência da aristocracia, pautados na ascensão dentro da sociedade, na livre iniciativa e na educação pessoal, sendo que esse último serviu para a promoção do ensino e, em decorrência disso, da leitura.
Desse modo, como afirma Clarice Fortkamp Caldin (2002), é possível afirmar que, a partir desse momento, a criança ganha um texto pensado e produzido para ela, ao qual ela tem acesso sobretudo dentro do ambiente escolar, uma vez que a escolarização passava a ser entendida como etapa obrigatória da formação do infante. Presa à essa ideologia dominante, a literatura infantil deveria transmitir e perpetuar os valores burgueses, transformando-se num instrumento pedagógico.
O modelo burguês de ensino propicia à criança o contato com a literatura infantil recheada de ensinamentos, de normas e de moralismo. Entretanto, a visão de mundo do adulto é passada à criança com alguma condescendência: a inserção de animais e fadas na narrativa ficcional, que servem como disfarce do autoritarismo e valores adultos. Dessa forma, camuflada e temperada com seres que interessam à criança e aguçam sua imaginação, a literatura infantil se constitui como um suporte pedagógico institucionalizado (CALDIN, 2002, p.23).
No tópico seguinte, abordaremos como essa relação entre a visão utilitarista e meramente pedagógica da literatura voltada para crianças aparece na figura do “Pai” no romance de Lygia Bojunga. Procuramos nesse ponto, compreender a dificuldade da narradora em criar esse personagem, justamente por ser ele, um sujeito que inventa histórias com o foco principal de instruir a filha.
2.3. Fazendo Ana Paz e a figura do Pai
Fazendo Ana Paz foi publicado primeiramente no ano de 1991 e conta a história da protagonista, Ana Paz, em três fases. A primeira é a infância da protagonista, a segunda trata-se da mesma personagem com seus dezoito anos e se construindo enquanto mulher, e, por fim, a Ana Paz idosa.
Nessa obra, Bojunga nos apresenta seu fazer literário. A história não se inicia com a apresentação das personagens ou do espaço da narrativa, mas com a própria fala da narradora: “Eu sempre gostei de ler livros de viagens; um dia me deu vontade de escrever um” (BOJUNGA, 2007, p.11). No entanto, segundo ela não foi possível seguir na sua ideia de escrever o tal livro de viagens, pois recebeu um bilhete de uma menina de nome Raquel, que viria a ser a protagonista de outro livro de Lygia Bojunga, A Bolsa Amarela (1976). Essa experiência se dá novamente com a narradora, anos depois, com Ana Paz: “E um dia, aconteceu de novo: ela chegou e sem a mais leve hesitação foi me dizendo: — Eu me chamo Ana Paz; eu tenho oito anos; eu acho o meu nome bonito” (BOJUNGA, 2007, p.14).
A história avança até a morte do pai de Ana Paz perseguido pela ditadura militar:
[…] e a minha mãe veio dizer apavorada, eles tão aí! eles tão aí! e o meu pai saiu correndo, e a sacola ficou pra lá, e a minha mãe gritou, não sai por aí que eles já cercaram a casa! e tome pancada na porta, e voz de homem gritando, e aí eu comecei a ouvir tiro tiro tiro e a minha mãe gemendo chorando (BOJUNGA, 2007, p.16).
Desse ponto em diante, a narradora encontra dificuldade em prosseguir com a história. Tempos depois, surge outra moça num banco de uma praça no Rio de Janeiro, com cerca de dezoito anos, a qual é inicialmente denominada de “Moça-que-se-apaixonou-pelo-Antônio”. Além dela, aparece também a personagem que a narradora chamou de a “Velha”, já com seus 80 anos, e que deseja viajar para o Rio Grande do Sul, mesmo contra a vontade de seu filho. Essa última, informa que gostaria de relembrar sua infância e se encontrar com as outras personagens. Nas palavras da narradora:
A minha vontade era fazer a Velha responder: eu vou me encontrar com duas personagens que andam desgarradas por aí, mas o Filho não ia entender, ele era o tipo do personagem pão-pão-queijo-queijo. Então eu virei a Ana Paz e a Moça-que-se-apaixonou-pelo-Antônio em duas amigas da Velha, e pronto! antes do Filho fazer qualquer outra pergunta eu empurrei a Velha pro chuveiro, tranquei a porta do banheiro, e só depois de botar a Velha no avião e despachar ela pro Rio Grande do Sul é que eu comecei a pensar mesmo que encontro era esse que eu tinha amarrado nas três (BOJUNGA, 2007, p.24).
Um pouco mais à frente, a narradora-escritora irá descobrir que as três personagens são na verdade a mesma Ana Paz em diferentes momentos de sua vida.
É isso! As três são a mesma! Não foi à toa que, quando fiz a moça e a velha, eu não dei nome nem pra uma nem pra outra: lá num fundão escuro da minha cuca eu já devia ter sacado o que eu só agora estou me dando conta. A Ana Paz vai crescer e se apaixonar pelo Antônio (BOJUNGA, 2007, p. 47)
Em paralelo a essa unificação da história dessa personagem tripartite, temos a dificuldade da narradora em construir a história do pai:
Tinha acontecido outra vez. A cena que eu estava fazendo se partia, o Pai me escapava, voltava pra morte dele; e não adiantava eu querer trazer ele pra página em branco: cada vez que eu começava a escrever o Pai ele voltava pra primeira cena do livro. Empaquei. Sentava de manhã pra escrever. Começava a brigar com as palavras. (BOJUNGA, 2007, p.63).
É importante destacar que a figura desse pai está todo o livro em processo de criação. Trata-se de uma personagem em constante reescrita e nunca finalizado. Logo na primeira vez em que ele surge, morre. As pistas deixadas pela autora sugerem um assassinato, como na citação anteriormente apresentada, por crimes ligados por conflitos com os militares na época da ditadura. Acontece, porém, que esse homem, morto quando a protagonista ainda tinha oito anos, deixa profundas marcas nela.
Se se levar em consideração que Ana Paz divide seu protagonismo com a metanarrativa, pode-se inferir que esse pai funciona também como uma outra vertente da criação literária. Como evidência dessa hipótese, basta ver como esse pai utiliza a sua capacidade de inventar histórias para instruir na filha os seus valores.
E aí o Pai começou a inventar um monte de histórias pra ir respondendo às perguntas da Ana Paz. Cada história que o Pai inventava era uma história de propósito pra ir passando pr’Ana Paz tudo que é valor que ele considerava importante. O Pai fez da Carranca uma mulher forte, coerente, que sabia lutar pelos direitos dela. O Pai inventou que a parte peixe que a Carranca tinha era. pra, lá pelas tantas, ela poder viver debaixo d’água, lutando contra os maus espíritos. E o Pai começou a inventar um mau espírito atrás do outro: eles eram os caras que não deixavam o Brasil ser uma terra de fartura pra tudo que é brasileiro. O Pai fez a Carranca se envolver com cada mau espírito de arrepiar. Só pra Ana Paz ir sacando tudo que é força que puxa o Brasil pra trás. O Pai contou pr’Ana Paz que, de tanto amar a liberdade, uma terça-feira de manhã bem cedinho nasceu um par de asas na Carranca (BOJUNGA, 2007, p. 52-53)
Essa característica do pai faz com que a narradora não consiga desenvolvê-lo com facilidade. Inicialmente, ela não consegue captar de onde vem a sua dificuldade, somente depois é que a narradora se dá conta do motivo pelo qual não consegue escrever o Pai.
Um belo dia eu tive um estalo: esse pai é didático! É só ele aparecer no caderno que ele começa logo a querer fazer a cabeça da Ana Paz. Não foi à toa que eu empaquei nele. Desse jeito ele arrisca de virar um chato de galochas […] resolvi então fazer um outro pai. Ele tinha as mesmas idéias do primeiro pai. Só que ele não passava elas pra Ana Paz. Nem pra ninguém (BOJUNGA, 2007, p. 57).
O caráter de didático das histórias criadas pelo pai aparece ainda inúmeras vezes, sempre deixando evidente a intencionalidade formativa dessas narrações.
E embora não fique explícito o conteúdo dessas narrativas, o contexto, somado à algumas pistas, parece demonstrar que através dessas histórias o pai tentava criar na filha uma consciência política em meio a um país governado por meio de uma ditadura:
O único problema é que no princípio a Ana Paz achava a Carranca feia.
— Feia? — e o Pai se escandalizou. Olha pra esse cabelo que ela tem! olha pra essa boca, Ana Paz, isso é boca de mulher que sabe amar. — E aproveitou pra contar pra Ana Paz um monte de histórias dos namorados da Carranca (que sempre acabava se apaixonando por namorado que defendia os bichos, a liberdade, as mulheres, a distribuição de terras…)
— Mas, pai, por que que ela tem pé que parece pata?
Às vezes o Pai inventava que, de tanto amar tudo que é bicho, ela tinha ficado meio bicho também. Mas outras vezes ele contava que o artista que tinha feito a Carranca gostava mais de pata que de pé (BOJUNGA, 2007, p. 57).
Essa figura que tenta ensinar a filha através de histórias se aproxima, de certo modo, daquele ideal de história infantil do século XIX. Peter Hunt lembra que “É lugar-comum dizer que os livros para criança do século XIX tinham um forte peso didático e que se destinavam principalmente a moldar as crianças em termos intelectuais ou políticos” (HUNT, 2010, p. 57). Nesse sentido, na forma como o pai busca ensinar a filha há uma reprodução da perspectiva utilitarista da arte literária. A personagem faz uso da narrativa coma finalidade de moldar a filha.
É através dessas histórias criadas sob uma velha Carranca trazida do Rio São Francisco, que o pai tenta perpetuar seus valores na pequena protagonista. Contudo, o resultado disso, não é uma narrativa desinteressante como se poderia supor, ao contrário, a menina aguarda sempre apreensiva que o pai chegue para lhe contar a história: “E cada história que o Pai contava fazia a Ana Paz gostar mais e mais da Carranca” (BOJUNGA, 2007, p. 53). Essa narrativa permeada de um discurso didático não é, pelo menos para a jovem Ana Paz, desagradável. Ao contrário, a menina participa das histórias, se interessa por elas, questiona a figura estranha da Carranca.
Porém, para a narradora, a figura do pai é enfadonha. E por isso mesmo ela tenta modificar esse personagem, torná-lo menos didático. Primeiramente criando um pai que mantivesse as ideias do anterior, mas não as passasse. Em outra tentativa, ela imagina um pai incoerente ou sonhador; e dentre esses inúmeros pais, surge a tentativa de criar um pai piadista: “Fiz outro pai. Dessa vez suave, boa praça, gostando de contar piada. Este, sim: saiu um chato de galochas” (BOJUNGA, 2007, p. 57).
Na ideia de um pai piadista, mantém-se o pai contador de histórias. Porém nessas não há mais o conteúdo didático, mas meramente a ideia de diversão e humor. Aqui transparece um outro ideal de história para crianças, um posicionamento que reduz a literatura infantil ao divertimento.
Esse outro pai difere, então, do primeiro por não se preocupar em passar ensinamentos à filha através de suas histórias, o resultado é que um e outro são, para a narradora, igualmente chatos. De fato, nesse segundo pai encontramos uma ideia de literatura quase vulgarizada. De literatura por diversão, como se também ela não pudesse ser uma fonte de conhecimento. A figura desse pai não dura mais do que um parágrafo.
Dentro dessas várias tentativas de construir o Pai, é importante tentar buscar o motivo da opinião do narrador diferenciar da visão da menina. Afinal, são opiniões antagônicas sobre a mesma personagem. Ana Paz anseia que o pai chegue para lhe desembaraçar os cabelos e contar histórias; a narradora insiste que o pai é um chato e não consegue criar senão a cena da morte dele.
Sobre isso, um ponto que não se pode negligenciar, e que Hunt (2010) nos chama a atenção, é que quem escreve, seleciona e dita o que é ou não literatura infantil são os adultos. São eles que buscam imprimir na literatura infantil seus próprios interesses e objetivos. Nesse sentido, é interessante como a narradora se inquieta na tentativa de criar um pai perfeito. A insatisfação com o resultado é muito mais dela do que a menina. “Então, ou esse Pai saía um forte, saía um Pai feito eu queria, ou o conflito se acabava, e se acabava a volta da Ana Paz pra Casa, e se acabava uma história chamada Eu me chamo Ana Paz!” (BOJUNGA, 2007, p. 62). O resultado disso é um pai que nasce morto.
Já a criança Ana Paz, distante dessas preocupações em classificar o que é ou não literatura, infância ou qual a função delas, permite-se deliciar com as histórias do pai. Deve-se lembrar que grande parte das mais populares histórias infantis foram mudando conforme a concepção de infância foi sendo modificada. As adaptações de contos populares feitas pelos irmãos Grimm e depois por Charles Perrault — esse último sempre destacando um espaço para a “Moral da história” —, longe de enfadar as crianças, fizeram com que essas histórias se popularizassem e ganhassem o mundo. Dificilmente se encontram crianças que não conheçam ao menos uma adaptação desses clássicos
A partir disso, talvez possa-se deduzir que o problema do didatismo na literatura para crianças é um problema “adulto”. “Os pedagogos me dizem que os livros para criança não devem cair nas mãos dos Departamentos de Literatura; estes desconfiam de pedagogos e bibliotecários que lidam com questões literárias” (HUNT, 2010, p. 49).
Para a pequena Ana Paz, o que importa é a história contada pelo pai. A preocupação em moldar a garota parte dele exclusivamente. É a posição do pai que incomoda a narradora, já que ela mesma está fazendo literatura infantil. O pai reflete, em algum sentido, preocupações da própria narradora, a qual encerra o livro sem se dar por satisfeita.
Fiz Pai, fiz Carranca, fiz Antônio, fiz ponto final na história, fiz reunião com editor pra anunciar que eu tinha acabado um livro que vinha empacando há trezentos anos, fiz a leitura de tudo que eu tinha escrito depois que eu cheguei de viagem. Achei tudo um horror ( BOJUNGA, 2007, p. 84).
Sem resposta a narradora prefere rasgar tudo o que construiu. A personagem luta para sobreviver, indaga por qual motivo não pode ficar como está. O livro termina sem que dali se possa afirmar seguramente se é plausível conciliar uma narrativa “pedagogizante” com a estética literária.
Para esse trabalho, importa mais entender que não há necessariamente oposição entre a visão utilitária da literatura e a arte literária em si.
Ultrapassar o utilitarismo não significa deixar de reconhecer que a obra literária educa, ensina, transmite valores, desanuvia tensões etc. Significa dizer que, se a obra realiza todas essas funções, ela o faz de um modo que determina sua própria natureza. […] em graus variados, quase todos nós reconhecemos que a literatura é útil. (PERROTTI,1986, p. 22).
Desse modo, pode-se compreender que o problema da literatura infantil é, de certo modo, o mesmo da Literatura em geral. Não se trata da presença explícita ou não de um conteúdo formativo ou moralizante, mas sim da qualidade do próprio texto. Muitas das novas adaptações de clássicos, preocupadas se as crianças vão ou não entender a história, ou com o que seria ou não apropriado para a criança, têm simplificado os textos infantis. Mesmo obras clássicas são reescritas e adaptadas para coincidirem com a moral e visão de uma época. E, talvez, nisso sim há um problema, pois a estética de uma obra não deve ceder espaço ao conteúdo didático, sob pena de deixarmos o campo da literatura, o qual é um dos mais ricos dentro do universo da escrita.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nessa pesquisa procuramos mapear a criação do personagem “Pai” em Fazendo Ana Paz, visando destacar o modo como esse se apropria da arte de contar histórias para transmitir seus valores à filha. Observamos que, ao fazer isso, o pai se torna uma figura incômoda à narradora, ainda que bem-quisto pela filha. Nesse sentido, entendemos como o olhar adulto sobre a literatura infantil pode ser arbitrário e dogmático. De todo o processo de confecção de uma história infantil, desde a ideia inicial, passando pela escrita, diagramação, venda, compra e leitura, em geral, apenas a etapa final é feita pela criança.
Assim, não é de se espantar que a narradora ache o pai um “chato”. Afinal, pelo seu olhar, ela enxerga um contador de história pedagogo. A pergunta que não conseguimos responder é: qual o conteúdo literário dessas histórias inventadas pelo pai de Ana Paz? Enquanto o conteúdo didático fica mais ou menos revelado, o estético-literário nos fica completamente oculto e, com base apenas no primeiro, não é possível qualquer análise sobre o valor das histórias criadas, uma vez que partimos pelo entendimento, segundo o qual literatura infantil é ou não boa, não apenas por seu conteúdo pedagógico, mas principalmente pelo seu valor estético.
Desse modo, entendemos que o problema de uma literatura pedagogizante não é real do ponto de vista da criança. É do lado do adulto que o problema aparece. Contudo, sob uma perspectiva, de certo modo, equivocada. A literatura e a pedagogia são saberes que não se excluem. Podendo-se estabelecer entre elas, uma espécie de matrimônio, em que ambas podem se beneficiar, sem que uma precisa estar subordinada à outra.
Há de se ressaltar ainda que não se deve limitar a ideia de conhecimento à de ciência positivista. Ao negar à literatura o direito de problematizar questões atuais, discutir informações e transmitir conhecimento, esquece-se que ela é também um saber. Nesse sentido, discutir ou não um papel didático da literatura não faz sentido, a literatura é também didática e carrega consigo o ideal pedagógico de “conduzir pelas mãos”, senão à sala de aula, a um novo universo de conhecimento.
Por fim, é importante deixar claro que o presente trabalho não pretende de modo algum esgotar as discussões sobre o tema. Ao contrário, deve-se dar continuidade às pesquisas de tema tão relevante sobre a relação da Literatura Infantil e da Pedagogia.
REFERÊNCIAS
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SITES:
https:// http://www.casalygiabojunga.com.br
1Mestrando em Literatura pela Universidade Federal de Uberlândia.