REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.6985082
Autor:
Márcio Lopes da Silva1
RESUMO
O artigo analisa a projeção do escalonamento normativo de Kelsen em uma pirâmide, demonstrando a contradição lógica dessa projeção a partir de uma análise lógico-dedutiva ancorada em princípios regentes do direito natural em quanto ciência. No propósito de demonstrar essa contradição é feita uma leitura hermenêutica do cerne da teoria kelsiana, por meio da qual se desconstrói o modelo interpretativo adotado pela doutrina pátria que reiteradamente tem projetado esse modelo escalonado na figura geométrica espacial. Argumentos de ordem lógico-jurídico permitem concluir pela inviabilidade dessa projeção, ao passo que aponta modelos à adequada representação de ideias, realocando o saber jurídico na trilha do modelo científico contemporâneo.
Palavras-chave: Hierarquia das Normas. Hermenêutica. Hans Kelsen. Figura Geométrica.
ABSTRACT
The article analyzes the projection of Kelsen’s normative scaling in a pyramid, demonstrating the logical contradiction of this projection from a logical-deductive analysis anchored in governing principles of natural law as well as science. In order to demonstrate this contradiction, a hermeneutic reading of the core of the Kelsian theory is made, through which the interpretive model adopted by the national doctrine that has repeatedly projected this staggered model in the spatial geometric figure is deconstructed. Arguments of a logical-legal nature allow us to conclude that this projection is unfeasible, while pointing to models for the adequate representation of ideas, reallocating legal knowledge in the path of the contemporary scientific model.
Keywords: Hierarchy of Norms. hermeneutics. Hans Kelsen. Geometric Figure.
1. INTRODUÇÃO
Hans Kelsen, na formulação da sua Teoria Pura do direito, com o escopo de demonstrar o elemento de validade de uma norma, propôs constituir-se o sistema normativo de uma estrutura escalonada em diferentes camadas ou níveis de sobreposição, de maneira que uma norma que encontre validade em outra será sempre inferior a esta (KELSEN, 1998). Nasceu aí o princípio hierárquico normativo que permeia profundamente o saber jurídico-contemporâneo. Na concepção de Kelsen, uma norma sempre encontrará o seu fundamento de validade em outra norma que lhe é superior, assemelhando-se a uma relação de causa e efeito, porém, numa sequência finita arrematada numa última norma que ele chama de norma fundamental hipotética (KELSEN, 1998).
Nos sistemas jurídicos-constitucionais, a exemplo do brasileiro, essa norma fundamental é a própria constituição, que naturalmente ocupa o ápice desse sistema escalonado proposto por Kelsen. Ocorre que grande parte da doutrina costuma ilustrar essa ideia do escalonamento normativo de Kelsen através de uma pirâmide, colocando a Constituição Federal no vértice desta figura geométrica espacial, atribuindo ainda a Hans Kelsen essa formulação, nominando-a de “pirâmide normativa de Kelsen”.
Assim o fizeram diversos doutrinadores brasileiros, em especial os constitucionalistas, a exemplo da disposição afirmativa que diz que “as normas constitucionais, situadas no topo da pirâmide jurídica, constituem o fundamento de validade de todas as outras normas inferiores e, até certo ponto, determinam ou orientam o conteúdo material destas” (MENDES; BRANCO, 2017).
E as que fazem referência direta ao escalonamento normativo de Kelsen, lecionando que “o direito constitucional, conjunto de normas fundamentais instituidoras do Estado e regedoras da sociedade, situa-se no vértice da pirâmide jurídica e é ramo do direito público” (BARROSO, 2010).
Ora, pirâmide é um objeto geometricamente espacial que apresenta diversas espécies classificatórias, porém, para o presente trabalho, adotaremos o modelo regular tradicional que remete às pirâmides do Egito, vez que se trata de apenas um recurso representativo, definida como sendo “um poliedro, com uma base formada por um polígono, geralmente um quadrilátero, e as faces formadas por triângulos, unidas em um vértice a uma certa altura (NOVAES, 2011). Exsurge daí a problemática a ser analisada: sendo a Constituição a base de todo o sistema normativo, não constitui uma contradição lógica projetar o sistema escalonado de Kelsen em uma pirâmide na qual se coloca a norma fundamental no seu vértice e não na sua base?
2. DESENVOLVIMENTO
Pois bem, caso a nossa proposição esteja correta no sentido de que a ideia de Kelsen a respeito da estrutura escalonada normativa não possa ser projetada em uma “pirâmide”, julgamos não ocorrer grande revolução no campo do saber jurídico em uma ordem pragmática, todavia, no contexto da compreensão dos conceitos estruturais da teoria kelsiana, reputamos trazer enorme clareamento cognitivo, de modo a evitar distorções de ordem epistêmicas, coagindo a ciência jurídica à observância do método lógico-dedutivo, ainda que em singelas representações de ideias.
É importante destacar que não se objetiva fazer qualquer correção às ideias de Kelsen a respeito do sistema normativo e sua forma escalonada, mas tão somente apontar um equívoco interpretativo, caso haja, do ponto de vista da lógica e o emprego equivocado da figura geométrica para projetar esse escalonamento.
2.1 Pirâmide Normativa
Deveras, como dito acima, diversos juristas, muitos de elevada envergadura, têm usado a expressão “pirâmide normativa” para ilustrar o modelo normativo hierarquizado caracterizador do juspositivismo moderno formulado por Kelsen na obra “Teoria Pura do Direito”. Dentre tais juristas, além dos suso destacados, o festejado mestre Miguel Reale, para quem “todo “sistema de normas” obedece a uma ordem lógica e coerente, subordinando-se as regras umas às outras, gradativamente, como a estrutura de uma pirâmide”, argumentando ainda o autor que para Kelsen e seus adeptos toda a pirâmide normativa só é válida se se admitir uma norma que não é a expressão de qualquer ato legislativo, aqui e agora, como ato positivo e histórico, mas que representa apenas uma exigência lógica, isto é, o pressuposto lógico segundo o qual “deve ser obedecido o estabelecido pelo Constituinte originário” (REALE, 1972).
Assim, essa projeção tem se tornado quase que um axioma jurídico quando o assunto é a ordem jurídica, especialmente porque se atribui essa projeção ao arquiteto ideológico do escalonamento jurídico normativo, Hans Kelsen. Ocorre que não encontramos na obra de Kelsen, Teoria Pura do Direito, qualquer menção ou referência à figura de uma pirâmide. “Quem usou a imagem da pirâmide como metonímia da hierarquia de um ordenamento jurídico foi um aluno dele, Adolf Merckl, que depois se tornou professor da Faculdade de Jurisprudência da Universidade de Viena […]” (SIMIONI, 2021).
Na verdade, a relação que a todo tempo o autor estabelece é uma relação de norma superior para norma inferior, num processo silogístico de validação da norma em seu fundamento, nos termos que:
A premissa maior é uma norma considerada como objetivamente válida (melhor, a afirmação de uma tal norma), por força da qual devemos obedecer aos comandos de uma determinada pessoa, quer dizer, nós devemos conduzir de harmonia com o sentido subjetivo destes atos de comando; a premissa menor é a afirmação do fato de que essa pessoa ordenou que nós devemos conduzir de determinada maneira; e a conclusão, a afirmação da validade da norma: que nós devemos conduzir de determinada maneira (KELSEN, 1998, p. 142).
Daí se extrai que suas ideias podem de fato exprimir um modelo ou sistema hierarquizado que imprime um juízo de um organograma ilustrativo em um modelo que emana poderes de cima para baixo e obediência de baixo para cima, mas isto não autoriza que tal organograma seja projetado em uma pirâmide, pois naturalmente tal estrutura entrará em choque com a ideia de validação em um fundamento exposta pelo autor, ainda que ele diga, quando busca explicar que a norma fundamental é uma norma pressuposta, que:
“a validade de uma norma não pode ser fundamentada desta maneira, tem de ser posta como premissa maior no topo de um silogismo, sem que ela própria possa ser afirmada como conclusão de um silogismo que fundamente a sua validade” (KELSEN, 1998, p. 142).
O topo a que o autor se refere diz respeito ao limite superior de uma escala hierárquica e não ao vértice de uma pirâmide, pois se assim o fosse seríamos obrigados a concluir que o vértice de uma pirâmide é o seu fundamento, o que contraria obviamente a lei da gravitação universal de Isaac Newton.
Ora, a palavra fundamento nos remete à ideia de base, de alicerce, de sustentáculo, pelo que se conclui que o fundamento de uma casa não pode ser o seu telhado, pois caso seja, e sendo este retirado, todo o resto será destruído, o que a experiência nos mostra que não ocorre.
Do contrário, ouse retirar o alicerce de uma casa e veja que todo o resto tornar-se-á ruínas. O mesmo se diga de uma estrutura piramidal cujo seu fundamento está alocado em seu vértice, de maneira que caso retirado o tal vértice nada ocorrerá com o restante da figura geométrica, decorrendo apenas que não se tratará mais de uma pirâmide.
Nesta linha, caso se projete um sistema normativo em uma pirâmide e se aloque a sua lei fundamental, sustentadora de todo o sistema normativo, no seu vértice, sendo este vértice retirado, nada acontecerá ao resto do sistema, que se manterá inabalado, situação que contrasta fatalmente com a ideia de validade e fundamento de Kelsen, na medida que, na sua concepção, caso retirada a norma fundamental, restará carente de validade todas as demais normas que lhes são inferiores.
Tomemos como exemplo o silogismo proposto por Kelsen do seguinte modo: tem-se uma norma “alfa” como premissa maior; tem-se uma norma “beta” como premissa menor; agora suponhamos que “alfa” determine que obedeçamos a “beta”; neste contexto “beta” determina que não comamos carne de porco aos sábados; a conclusão desse processo silogístico, segundo o pensamento kelsiano, é que não devemos comer carne de porco aos sábados, sendo esta norma “beta” perfeitamente válida, dado que encontra seu fundamento de validade em “alfa”.
Agora imaginemos que “alfa” seja uma norma fundamental, pressuposta e não posta, de um sistema normativo, de modo a ocupar o ápice desse sistema. Projetemos então esse sistema normativo em uma pirâmide de apenas duas camadas, que chamaremos também de camadas “alfa” e “beta”, sendo “alva” a camada superior e “beta” a camada inferior. Ousemos agora retirar a camada “alfa”.
Devemos concordar que nada ocorrerá com “beta”, não é verdade? Agora ousemos retirar “beta” e veremos que “alfa” não se sustentará, a menos que Newton esteja errado, certo? Verificado isto, somos então levados a concluir que “beta” é o fundamento de alfa e não o contrário, pois a existência de “alfa” está claramente condicionada à existência de “beta”, correto?
Eis, portanto, a razão lógica pela qual não se pode projetar o escalonamento normativo de Kelsen em uma pirâmide, a não ser que se aloque a norma fundamental na sua base, isto é, invertendo-se a ordem de disposição dos elementos da pirâmide.
Bem verdade, isto não quer dizer que estejamos contrapondo as ideias de Kelsen quanto ao escalonamento normativo. A nossa contraposição se dirige aos que projetam seu modelo hierárquico escalonado em uma figura geométrica de base poligonal e faces triangulares ligadas a um vértice, de modo a se alocar a norma fundamental neste vértice, pois resulta deste processo uma enorme contradição lógica, como já demonstrado.
2.2 A compreensão da teoria kelsiana
Embora tenhamos que concordar que essa projeção busque tão somente tornar mais didática a compreensão da teoria kelsiana a respeito de um sistema jurídico hierarquizado, argumentamos que um olhar mais aprofundado sobre a questão nos levará a uma grande perturbação cognitiva, ante o conflito conceitual que se estabelece, isto numa ordem epistemológica.
É preciso recordar que na Teoria Pura do Direito Hans Kelsen objeta projetar a ciência jurídica no saber científico metodológico inaugurado por Descartes, e, para tanto, lança mão de uma construção teórica de base puramente racional, em analogia às ciências naturais, buscando a formulação de um método seguro e de caráter universal para explicar o direito, em contraposição às ideias dominantes na época, que buscavam explicar o direito a partir de uma ordem jusnaturalista (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO , 1998, p. 656).
Tanto é verdadeira essa afirmação que Hans Kelsen formulou o princípio da imputação para explicar a relação de uma proposição jurídica com a respectiva sanção (sanção em sentido genérico), em simetria ao princípio da causalidade que, segundo ele próprio, explica a relação de causa e efeito nas ciências naturais.
Pela via da análise do pensamento jurídico pode mostrar-se que, nas proposições jurídicas, isto é, nas proposições através das quais a ciência jurídica descreve o seu objeto, o Direito – quer seja um Direito nacional ou o Direito internacional, é aplicado efetivamente um princípio que, embora análogo ao da causalidade, no entanto, se distingue dele por maneira característica. A analogia reside na circunstância de o princípio em questão ter, nas proposições jurídicas, uma função inteiramente análoga à do princípio da causalidade nas leis naturais, com as quais a ciência da natureza descreve o seu objeto (KELSEN, 1998. p 54).
Assim, também sobre esse prisma, obedecendo a pirâmide à relação causal imposta pelas leis naturais, é de se convir que jamais o seu vértice pode ser considerado o seu fundamento, razão pela qual, ainda que seja apenas uma projeção, a alocação do fundamento de validade do sistema jurídico kelsiano no topo de uma pirâmide fere letalmente seus ideais de aproximar o saber jurídico do conhecimento científico metodológico, vez que este se alicerça numa base puramente racional, ao passo que não há qualquer razão lógica e racional que justifique que o fundamento de uma pirâmide seja o seu vértice, não sob a égide das leis da natureza.
Outrossim, a teoria do escalonamento normativo, segundo Kelsen, visa empreender no direito uma forma dinâmica, imprimida no processo, no movimento, na renovação (Teoria Dinâmica do Direito), em contraposição à forma estática do direito natural (Teoria Estática). Ora, nada mais estático que uma pirâmide, sendo este mais um argumento a não se usar o objeto geométrico para projetar a teoria kelsiana.
Verdadeiramente, essa incompreensão da teoria de Kelsen tem acarretado um grande conflito interpretativo a despeito da alocação das normas jurídicas no sistema hierárquico normativo, de modo que muitos alocam a Constituição no ápice dessa pirâmide, posicionando os tratados internacionais em condição subalterna, ao passo que outros alocam nesse ápice os tratados internacionais de direitos humanos, havendo quem defenda, inclusive, a hierarquia supraconstitucional desses tratados, como fez Felipe Klein Gussoli, em artigo publicado na Revista de Investigações Constitucionais (GUSSOLI, 2019).
Fundamentalmente são quatro as correntes interpretativas do art. 5º, §§1º, 2º e 3º da Constituição sobre a posição ocupada pelos tratados de direitos humanos no Direito brasileiro. Segundo cada qual, os tratados terão hierarquia: legal, equiparada à posição das leis ordinárias; supralegal, isto é, acima das leis e abaixo da Constituição (posição defendida pelo Supremo Tribunal Federal); constitucional, no mesmo patamar que as normas da Lei Fundamental (posição do Supremo Tribunal Federal no que tange aos tratados incorporados sob rito do art. 5º, §3º da Constituição Federal); supraconstitucional, com prevalência sobre qualquer norma interna, inclusive aquelas radicadas na Constituição (GUSSOLI, 2019).
O ponto que se destaca desse conflito hermenêutico é que as correntes teóricas acima apontadas desconsideram por completo o que Kelsen chamou de “a inevitabilidade de uma construção monista” (KELSEN, 1998. p 234), concernente a relação entre o direito internacional e o direito nacional. Em sua construção Kelsen evidencia que tanto é possível agasalhar uma primazia do direito nacional sobre o direito internacional, como a primazia deste em relação aquele, sem, contudo, haver qualquer contradição lógica, porquanto tudo depende do fundamento lógico-jurídico que se decida por escolher para ancorar cada posição.
Outrossim, embora se valam do modelo normativo hierarquizado do autor em questão, a razão jurídica adotada por cada uma das correntes acima apontadas não guarda qualquer relação com a lógica imprimida por Kelsen em suas reflexões teóricas a despeito da interrelação do direito internacional com o direito estadual, consistindo os argumentos invocados por cada corrente em meros arrazoados normativos desprovidos de razão lógica-dedutível, sem agasalho na construção monista proposta por Kelsen.
Com efeito, a título de exemplo, a corrente que aloca os tratados internacionais de direitos humanos como normas supraconstitucionais invoca como argumento, dentre outros, o “paradigma jurídico universalista” e “a relevância das normas de direitos humanos” (GUSSOLI, 2019), sem qualquer aprofundamento na construção “monista” proposta por Kelsen, do que se extrai que os argumentos utilizados por essa corrente teórica se valem muito mais de paradigmas jusnaturalistas que juspositivitas, pois o valor normativo empregado às normas de direitos humanos empresta-lhes caráter transcendente, configuração própria do direito natural, o que nos faz lembrar, mais uma vez, que o escopo principal de Kelsen era sedimentar o direito em uma base positiva, afastando-o do modelo jusnaturalista prevalente até aquele momento. Ora, o sistema hierarquizado normativo é próprio do direito positivo, pelo que não se pode utilizar de paradigma naturalista para justificá-lo.
É preciso se pontuar também que a construção “monista” de Kelsen, por si só não ampara o argumento “universalista” invocado pela corrente que expressa a condição hierarquicamente superior do direito internacional em relação ao direito nacional, pois o que coloca o direito internacional em primazia do direito nacional não é a ideia de maior amplitude do direito internacional, mas a sua fundação no princípio da efetividade do direito internacional:
Que é uma norma do Direito internacional positivo, determina, tanto o fundamento de validade, como o domínio territorial, pessoal e temporal de validade das ordens jurídicas estaduais e estas, por conseguinte, podem ser concebidas como delegadas pelo Direito internacional, como subordinadas a este, portanto, e como ordens jurídicas parciais incluídas nele como numa ordem universal, sendo a coexistência no espaço e a sucessão no tempo de tais ordens parcelares tornadas juridicamente possíveis através do Direito internacional e só através dele (KELSEN, 1998. p 236).
Em síntese, o que Kelsen quis dizer é que na realidade existe uma única ordem jurídica, a qual ele chama de “monismo”, e que esse “monismo” pode ser alcançado por duas vias, sem que haja contradição entre elas, quais sejam: pela primazia do direito nacional em relação ao direito internacional e da primazia do direito internacional em relação ao direito nacional. No primeiro caso, destaca o autor:
Se as normas assim criadas apenas foram consideradas como válidas quando, através do reconhecimento, se tornem parte integrante de uma ordem jurídica estadual, se o seu último fundamento de validade é, por conseguinte, a norma fundamental pressuposta desta ordem jurídica, então a unidade de Direito internacional e Direito interno é obtida – não com base no primado da ordem jurídica internacional, mas com base no primado da ordem jurídica de cada Estado (KELSEN, 1998. p 236).
Para se entender melhor essa equação jurídica, relembremos que conforme regramento estabelecido pela Convenção de Havana, os tratados internacionais não possuem efeito erga omnes, vez que estabelece o art. 5º da citada Convenção que “os tratados não são obrigatórios senão depois de ratificados pelos Estados contratantes, ainda que esta cláusula não conste nos plenos poderes dos negociadores, nem figure no próprio tratado (CONVENÇÃO DE HAVANA, 1928).
Tal normativa também consta na Convenção de Viena – norma geral internacional que regula o direito dos tratados – que dispôs em seu art. 34 que “um tratado não cria obrigações nem direitos para um terceiro Estado sem o seu consentimento”. Isso significa dizer que os tratados apenas possuem força normativa vinculante em face de determinado estado soberano a partir da ratificação do tratado por aquele estado, pois “tais tratados não são obrigatórios senão para os estados que os celebraram” (BRASIL, 2009).
Ademais, apenas estados soberanos e organizações internacionais são partes legítimas para avençar tratados, pois sendo os tratados atos jurídicos internacionais, apenas os estados e organizações internacionais como a ONU e OEA, por exemplo, possuem capacidade jurídica internacional (MAZZUOLI, 2020).
Ocorre, contudo, que a manifestação de vontade de um estado é expressada por meio de interposta pessoa, pois o Estado não possui existência física, mas apenas jurídica, razão pela qual não pode manifestar a sua vontade concretamente, especialmente quando a questão é tratado internacional, dado que apenas a forma escrita é aceita como manifestação de vontade do ente jurídico internacional (MAZZUOLI, 2020).
Neste contexto, a própria constituição – norma constitutiva do estado por excelência – é que determina quais pessoas possuem legitimidade para praticar atos que manifestem a sua vontade, decorrendo daí que qualquer ato praticado por pessoa não autorizada pela constituição carecerá de validade e não passará de um simples fato, sem existência no mundo jurídico, em especial no contexto jurídico internacional. A determinação da autoridade competente para negociar depende do direito constitucional de cada estado, sendo essa mesma autoridade (designada pela constituição) a competente para delegar essa competência negocial a outrem (aos plenipotenciários) (MAZZUOLI, 2020)
Sob este prisma, “os estados são responsáveis em manter, dentro de seu direito interno, um sistema de integração das normas internacionais por eles mesmos subscritas” (MAZZUOLI, 2020. p 431). No Brasil a legitimidade para celebrar tratados internacionais vem regulada pela Constituição em seus artigos 84, VIII, e 49, I. A primeira norma diz que “compete privativamente ao Presidente da República celebrar tratados[…]”, ao passo que a segunda diz ser da “competência exclusiva do Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados” (BRASIL, 1988), pelo que se evidencia restar claramente delimitada a competência interna para celebrar tratados internacionais no Brasil.
Assim, ante a esta constatação e tendo-se como fundamento de validade de um ato que manifeste a vontade estatal ratificador de um tratado internacional a própria constituição deste estado, conclui-se então que o fundamento de validade do conteúdo da norma do direito internacional transformada em direito interno, segundo o pensamento de Kelsen, é a constituição do estado manifestante, consistindo nesse esquema “a primazia do direito estadual” sobre o direito internacional. Por essa via, indiscutivelmente, a constituição estadual ocupa o ápice do sistema normativo, vez que ela é o fundamento último de validade de todo o sistema.
No segundo caso, como já adiantado acima, a primazia do direito internacional em relação ao direito nacional é alcançada com base no princípio da efetividade do direito internacional, conceito já exposto anteriormente.
Aqui a lógica cognitiva é que, conforme o tal princípio, a existência/reconhecimento de um estado está condicionada ao direito internacional, pois
“o nascimento e o desaparecimento do estado, vistos desta posição, apresentam-se como fenômenos jurídicos, tal qual como a constituição e dissolução de uma corporação como pessoa jurídica na moldura do direito estadual interno” (KELSEN, 1998. p 237).
Sob este prisma, o direito internacional se sobrepõe ao direito nacional e ocupa posição superior à constituição de um estado na hierarquia da ordem normativa. Faz-se necessário pontuar, em tempo, que para Kelsen, sob essa ótica, o direito internacional, apesar de ocupar posição superior à constituição do estado, não é o último fundamento de validade da ordem normativa, pois se trata apenas de uma norma posta e não pressuposta. Neste caso, para ele a norma pressuposta, ou seja, o último fundamento de validade da ordem jurídica universal é o costume dos estados, do qual emergiu o direito internacional (KELSEN, 1998).
Assim sendo, a partir desta análise, a depender do sistema adotado, é possível se justificar de forma lógico-jurídica tanto a posição hierárquica superior dos tratados internacionais de direitos humanos em relação à constituição (primazia do direito internacional), como a posição hierárquica superior da constituição em relação aos tratados internacionais de direitos humanos (primazia do direito nacional).
O que não pode ocorrer é a alocação dos tratados interacionais de direitos humanos no ápice do sistema normativo, vez que, como visto acima, os tratados são parte do direito internacional, do qual a norma hipotética fundamental – norma pressuposta – é o costume dos estados gerador do direito internacional, pelo que o ápice do sistema normativo deve ser ocupado por essa norma.
Por essa razão lógica, o equívoco da corrente que defende a supranacionalidade dos tratados internacionais é a não recorrência aos fundamentos adequados para justificar tal posição, assim como a alocação de tais tratados no topo da ordem normativa, incorrendo em erro mais grave ainda quando projeta essa ordem em uma pirâmide.
No que tange às demais correntes, desde que se tome como parâmetro o modelo da primazia do direito nacional em relação ao direito internacional, a posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos e dos demais depende unicamente da decisão tomada pelo legislador constituinte, devendo a interpretação desta alocação ser baseada unicamente no direito interno, razão pela qual entendemos correta a hermenêutica adotada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Habeas corpus 90.172 de São Paulo (BRASIL, 2007) e no Recurso Extraordinário 466.343 de relatoria do Ministro Gilmar Ferreira Mendes (BRASIL, 2008).
3. CONCLUSÃO
A solução para o problema se apresenta bem simples e não demanda grandes esforços, dado que é suficiente a mudança de postura do estudioso para corrigir o equívoco, de modo a se deixar de projetar o sistema normativo kelsiano em uma pirâmide. Caso exista a necessidade de se projetar o sistema normativo kelsiano em uma figura, para que haja melhor compreensão, sugerimos um organograma, que é muito mais apropriado a se demonstrar as formas hierárquicas.
No caso da insistência da projeção em uma pirâmide, aconselhamos seja investida a ordem de escalonamento das normas, de modo a se alocar a normal fundamental na sua base, perfazendo-se uma estrutura não hierárquica, pois esta emana poderes de cima para baixo, mas de sobreposição, a exemplo do que se tem feito com a teoria das necessidades humanas do psicólogo norte-americano Abraham Harold Maslow.
No que concerne a alocação adequada dos tratados internacional na hierarquia do sistema normativo, embora tenha restado claro a possibilidade de alocação dos tratados internacionais em sobreposição às constituições internas, argumentamos que tal alocação só faz sentido no campo teórico, porquanto na prática os sistemas normativos não permitem essa realidade, pois não há instrumento jurídico adequado para se contestar uma norma interna em face do direito internacional.
O famigerado controle de convencionalidade tão defendido atualmente por parte da doutrina na verdade não passa de um controle de constitucionalidade, posto que não há como se admitir um controle de convencionalidade de um tratado que não foi ratificado pelo direito interno.
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1Especialista em Direito Penal e Criminologia pela PUCRS; Delegado de Polícia Civil; Darcinópolis, TO, Brasil; zlopesmarcio@gmail.com