A CONSTRUÇÃO E PERDIÇÃO DA PERSONAGEM EM “O COMPANHEIRO DO GUARDIÃO” DE JOHN AJVIDE LINDQVIST

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202410102015


Guilherme de Martino Casado1


Resumo: este artigo faz uma análise das construções da personagem protagonista do conto fantástico O Companheiro do Guardião (2017) e de suas transformações ocorridas no processo narrativo. Considerando as vias de construção e desenvolvimento de personagens segundo conceitos formalistas, o artigo faz uma análise de como as consistências de personalidade são dadas à narrativa e como a personagem muda de estatuto no decorrer do conto. De um início dominador e orientador, o protagonista passa a um estado de perturbação mental, finalmente se tornando vítima das articulações que desencadeou. O processo traumático também faz um paralelo ao amadurecimento do jovem protagonista diante de um mundo social instável e traiçoeiro. Também é considerável, porém com maior sutileza, a construção preconceituosa da psiquê do personagem e de como esse amadurecimento pelas vias do erro moral é danoso a todos os implicados, sendo eles agentes ou vítimas no meio social.

Palavras-chave: Conto. Personagem. Narrador.

Abstract: This article does an analysis about the main character construction on the fantastic short tale The Keeper’s Companion (2017) and its transformations occurred on the narrative process. Considering the constructive ways and character development after structuralist concepts, the article does one analyses of how the personality consistencies are given to the narrative and how the character’s status changes throughout the tale. From an advisor and domineering start condition, the character goes through a state of mental disturbance, finally becoming victim himself of the manipulations that he started. The traumatic process also means a parallel to the young protagonist’s maturating facing a treacherous and unstable social world. Is also considerable, but more subtle, the prejudicious construction of the character’s psyche and how that maturating process by the ways of moral error is harmful to all implicated, being them agents or victims on the social environment.

Key words: Short tale. Character. Narrator.

APRESENTAÇÃO – Invariavelmente, temos a presença da personagem literária como condutora de toda narrativa ficcional. Mesmo considerando que no decorrer da história literária aconteceram alternativas formais e experimentos, foram situações de exceção que serviram mais a confirmar regras de construção poética. É através dela, a personagem, que se dá a imersão e o encadeamento sequencial de uma narrativa e a empatia com o leitor. Fernando Segolin em seu estudo (1978) no tema, define a personagem como um “ser funcional” na constituição e transformação de uma narrativa. Segolin cita a Morfologia do Conto (1970) de Vladimir Propp para postular a importância da personagem como condutor (e até legitimador) dos conteúdos narrativos ao destacar que “um dos méritos da teoria de Propp é a tentativa de vincular a noção de personagem à especificidade do discurso narrativo” (SEGOLIN, 1978, p.73). Mais adiante, nesse mesmo texto, acrescenta que “um dos vetores básicos da transformação da narrativa é constituído pelas alterações introduzidas na fisionomia específica deste ser funcional” (SEGOLIN, 1978, p.73).

Em Análise Estrutural da Narrativa, Roland Barthes faz um breve histórico no tema destacando a importância secundária da personagem sob a perspectiva aristotélica ao dizer que, “na poética aristotélica, a noção de personagens é secundária, inteiramente submissa à noção de ação […] mais tarde, a personagem tomou uma consistência psicológica, tornou-se um indivíduo” (BARTHES, 1971, p. 40). A análise de Barthes passa por algumas controvérsias teóricas de formalistas russos (Todorov, Tomachevski) para destacar, quase ao modo de conclusão, que as personagens, mais do que “seres” dotados psicologicamente, são “participantes” das ações descritas. “O principal, é necessário repetir, é definir o personagem pela sua participação em uma esfera de ações” (BARTHES, 1971, p. 42).

Em seu estudo sobre personagem (2002), Beth Braith resume que as estruturas narrativas são determinantes do personagem, concordando com os postulados de Barthes e Propp, vistos acima.

Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens, teremos de encarar frente a frente a construção do texto, a maneira que o autor encontrou para dar forma às suas criaturas, e aí pinçar a independência, a autonomia e a “vida” desses seres de ficção. É somente sob essa perspectiva, tentativa de deslindamento do espaço habitado pelas personagens, que podemos, se útil e se necessário, vasculhar a existência da personagem enquanto representação de uma realidade exterior ao texto” (BRAIT, 2002, p.11).

Sendo assim, o conto de John A. Lindqvist, através de uma cuidadosa construção narrativa e de um personagem que se revela gradualmente e passa por um processo traumático de transformação, nos expõe um mundo bastante sombrio. A opção narrativa do autor é incrivelmente intimista ao escolher a percepção do jovem Albert como centro expositivo do conto, fazendo com que O Companheiro do Guardião seja uma obra que se fundamenta totalmente na construção da personagem central. Albert, o jovem protagonista, ocupa posição de condutor, desencadeador e significante até terminar vivendo as consequências dos eventos encadeados.

Especialmente claustrofóbico, como uma tragédia intimista por confinar o conflito central a dois personagens, o conto tem sua força imersiva garantida no paralelo entre o leitor e o personagem central e seus desajustes sociais. E o que poderia ser visto como uma estratégia simplória em narrativa acaba se tornando uma visão em strito senso de um mundo social fundamentado em mágoas e vinganças.

O conto, incluído na coletânea Antologia Macabra (2020) da editora Darkside, conta a história de Albert, jovem entusiasta de jogos de RPG2 que sente aflorar seu talento em interação social nas reuniões com amigos e na condução dos jogos. Atuando como mestre de cerimônias, atividade habitual nos jogos de personificação, Albert deixa fluir sua natural capacidade de liderança ao reunir amigos de diferentes classes sociais nas partidas que acontecem no porão de sua casa. Mas Albert não é um adolescente exemplar. Como qualquer jovem em início de vida em sociedade e reconhecimento dos semelhantes pela vizinhança em que vive, ele se vê diante de situações de exclusão e menosprezo e não faz muito esforço em atenuá-las, ao contrário, sua posição de mestre, nas sessões de jogos envolvendo magias e encantamentos, o coloca naturalmente como uma espécie de superior social na hierarquia entre os jogadores a ponto dele se considerar moralmente autorizado para o exercício de exclusões e humilhações. Humilhações essas que não se restringem ao exercício dos jogos e se estendem ao convívio com os colegas, em outros momentos.

Em uma das sessões dos jogos, eventos inesperados culminam na conjuração de uma entidade misteriosa que começa a acompanhar Albert e aparecer em diversas ocasiões. A princípio ele julga ter invocado uma espécie de demônio e sente que, por intermédio dele, pode se livrar de qualquer desafeto, qualquer incômodo e qualquer atrito social que o incomode, bastando apenas ordenar à entidade. Finalmente, Albert descobre que o demônio na verdade foi invocado por um dos colegas do grupo de jogos servindo a este como agente da vingança pelas humilhações e descasos que Albert lhe impusera ao longo dos anos. E assim, a personagem que se julgava detentora da superioridade hierárquica sobre as demais passa a vítima de um poder que sequer suspeitou.

EMPATIA TRAIÇOEIRA – Se na poética clássica a personagem era um modelo de idealização, ou um modelo moral a ser seguido, na contemporaneidade, segundo estudos de formalistas, a personagem só se legitima enquanto parte integrante de uma construção narrativa, sendo por ela definido e construído. A personagem “só adquire status de personagem literária quando submetida ao movimento construtivo da “trama” (SEGOLIN, 1978, p. 27). E o que a voz narrativa faz por Albert em O Companheiro do Guardião é colocá-lo em um mundo muito particular compartilhando esse mundo, desde os primeiros anos de vida do protagonista, com o leitor. O primeiro parágrafo coloca Albert como uma personalidade admirável e virtuosa.

Albert nascera para ser um mestre no jogo. Mesmo quando pequeno, era ele quem comandava os amigos nos mundos de fantasia onde caçava tesouros e enfrentava monstros. Tinha autoridade, tinha imaginação. E tinha linguagem. (LINDQVIST, 2020, p. 197)

A proximidade e revelação sobre intimidades e detalhes emocionais distribuídas ao longo do conto criam uma quase cumplicidade entre leitor e personagem, quase como a de uma verdadeira amizade. Reconhecemos manias, vontades, estados de espírito e até os preconceitos de Albert como possivelmente e legitimamente nossos. Albert se torna transparente ao conhecimento de quem lê como só o próprio leitor se conhece, quase como um semelhante, um segundo eu.

A ficção é o único lugar, em termos epistemológicos, em que os seres humanos se tornam transparentes à nossa visão, por se tratar de seres puramente intencionais sem referência a seres autônomos; de seres totalmente projetados por orações. E isso a tal ponto que os grandes autores, levando a ficção ficticiamente às suas últimas consequências, refazem o mistério do ser humano. (ROSENFELD, 2011, p.35)

Antonio Candido (2011) fala também sobre a aproximação empática entre leitor e personagem destacando três elementos básicos de uma construção narrativa, sendo eles, o enredo, as personagens e as ideias (no sentido de significação) para postular sobre a personagem como centro de cognição e identificação com o leitor para a efetivação do discurso narrativo. Candido diz que:

[…] estes três elementos só existem intimamente ligados, inseparáveis, nos romances bem realizados. No meio deles, avulta a personagem, que representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificações, projeção, transferência etc. A personagem vive o enredo e as ideias e os torna vivos. (CANDIDO, 2011, p. 54)

Também é notável que, tendo como protagonistas dois jovens comuns vivendo em um cenário urbano corriqueiro, que remete a qualquer filme B do cinema americano ou das ficções de Stephen King, o autor coloca esses protagonistas como agentes identificadores de um universo bem mais amplo e reconhecível por qualquer leitor como seu próprio.

Porém, a empatia ardilosamente tecida em aproximação ao leitor tem seu lado sombrio. Lindqvist articula o texto de modo a nos fazer cúmplices nas aparentemente inocentes ações de bullying, a achar graça nos apelidos como “almofada de pum” devido à baixa estatura e obesidade de Oswald, colega de estudos e principal alvo dos ataques de Albert. Também é perceptível a presunção crescente do personagem em enunciados que podem parecer mera concorrência entre os jovens estudantes.

Albert se achava importante. Sabia que era mais inteligente que a maioria dos colegas, que tinha capacidade de se expressar e que, com seu intelecto, poderia obter poder sobre os outros. (LINDQVIST, 2020, p. 198)

Por mais passageiras que possam parecer essas inserções, todas têm função no conjunto, assim, é notável como Lindqvist insere essas enunciações na forma de dados aparentemente superficiais, quase desimportantes em uma primeira leitura, mas que estão compondo de modo subliminar, uma teia de significações preconceituosas veladas. Quando Barthes diz que tudo tem função em uma narrativa, refere a importância do detalhe na confecção do conjunto.

Na ordem do discurso, o que se nota é, por definição, notável: mesmo quando um detalhe parece irredutivelmente insignificante, rebelde a qualquer função, ele tem pelo menos a significação de absurdo ou de inútil, […] não há jamais unidade perdida, por mais longo, por mais descuidado, por mais tênue que seja o fio que a liga a um dos níveis da história. (BARTHES, 1971, p. 27)

ARTIFÍCIOS NARRATIVOS – A proximidade entre leitor – o leitor imaginário de que fala Todorov em As Categorias da Narrativa Literária (1971) – e narrador, é considerável no conto de Lidqvist tal é a naturalidade com que o autor narra e insere itens corriqueiros bastante queridos pelos apreciadores da cultura fantástica como videogames, os já citados RPGs, além de autores como Tolkien e Lovecraft. O resultado é um texto de empatia imediata e a redução do espaço que seria de se supor entre a natural erudição de um autor literário (e seu narrador) e o simples interesse de um leitor ávido por entretenimento.

A imagem do narrador não é uma imagem solitária, desde que aparece, desde a primeira página, ela é acompanhada do que se pode chamar “a imagem do leitor”. Evidentemente, essa imagem tem tão poucas relações com um leitor concreto quanto a imagem do narrador, com o autor verdadeiro. Os dois encontram-se em dependência estreita um com o outro, […] a consciência de ler um romance e não um documento leva-nos a fazer o papel deste leitor imaginário e ao mesmo tempo apareceria o narrador, o que nos relata a narrativa, já que a própria narrativa é imaginária. (TODOROV, 1971, p. 248)

Porém, o que haveria de entretenimento corriqueiro, como poderíamos supor em um conto fantástico dirigido à cultura de massa, é subvertido na visão crítica de uma sociedade desigual na qual os mais capacitados intelectualmente e financeiramente se sentem atuantes legítimos de uma estratificação que desqualifica e humilha os que julga inferiores. Assim faz Albert, cuja posição de adolescente comum em brincadeiras e jogos sociais, passa a ser significante de um quadro social mais amplo, desumano e manipulador, porém inadvertido. Para isso, o autor joga com uma voz narrativa que alterna o narrador “por trás”, e o narrador “de fora”, como define Todorov no mesmo texto citado. Na visão chamada por trás: “a narrativa clássica utiliza com mais frequência essa fórmula. Neste caso o narrador sabe mais que seu personagem. […] Seu personagem não tem segredos para ele.” (TODOROV, 1971, p. 239). De forma inversa, na opção pelo narrador chamado de fora: “o narrador sabe menos que qualquer dos personagens. Pode-nos descrever unicamente o que se vê, ouve etc. mas não tem acesso a nenhuma consciência.” (TODOROV, 1971, p. 240). Lindqvist alterna os dois modos narrativos e o resultado lança uma sutil ironia crítica significativa da presunção do protagonista Albert sobre as verdades em curso a ponto de Oswald ter que lhe expor verbalmente a situação, do contrário ele ainda estaria se considerando mandante das ações da entidade invocada por eventos mágicos.

Em As Margens da Ficção (2021), Jacques Ranciere fala de um processo narrativo no qual o conhecimento é a meta. Nessa análise, o conhecimento seria um caminho de busca de saber pelas personagens, e o narrador seria o mecanismo pelo qual esse saber se consolida.

O saber se adquire nele [no romance de conhecimento] de duas maneiras, contraditórias e complementares: como fruto da experiência que dissipa as aparências mentirosas; e como revelação que só o acaso fornece àquele que não a esperava, que não estava tentando saber. (RANCIERE, 2011, p. 39).

Lindqvist sabe exatamente onde colocar seu narrador e insere, ainda que de forma pouco declarada, uma postura de advertência ao fazê-lo oscilar entre os narradores citados (“por trás” e “de fora”) de modo a não dar clareza às percepções de Albert. Assim, a revelação final é um choque emocional que impacta o protagonista na mesma medida em que nos impacta enquanto leitores, especialmente considerando a citada proximidade empática construída entre estes. Albert desencadeia forças que não prevê e não terá como controlar posteriormente. A advertência se confirma claramente, para além da diegese fantástica, pois não trata de forças sobrenaturais e sim de desequilíbrios emocionais e comportamentais que selarão os destinos. O saber chega a Albert como uma revelação sobre si mesmo. Um choque não previsto nos enunciados do narrador que deveria saber tudo sobre os personagens. O “erro narrativo” calculado por Lindqvist abre espaço a uma dúvida perturbadora no leitor, depois de tanto ter acompanhado – e até solidarizado – com as falhas do protagonista e acompanhado seu amadurecimento.

O erro do narrador deve ser o erro de todos aqueles que veem o que se vê habitualmente: a superfície das coisas. Portanto, o herói do romance de aprendizagem não deve apenas preencher as lacunas de seu saber e se livrar das ilusões de juventude. Deve se prestar à operação exemplar da inversão das aparências. Não basta que a verdade lhe seja oferecida atrás de uma janela como uma lacuna preenchida. É preciso que ela lhe seja dada como o contrário do que ele acreditava, como a entrada num mundo onde as aparências que compõem a paisagem habitual de seu universo se invertem. (RANCIERE, 2011, p. 41)

REVIRAVOLTA E TRAGÉDIA – Reconhecendo a estrutura clássica aristotélica, de apresentação, desenvolvimento e conclusão, é notável em Lindqvist a manipulação dessa estrutura na condução narrativa que leva a tragédia de Albert. As sutilezas que constroem a desventura do protagonista são tão bem dosadas pelo autor que constituem uma notável armadilha de enunciação. Aristóteles destaca a necessidade de uma tragédia ser bem tramada: “Muitos enredam bem, mas desenredam mal, cumpre dominar bem uma e outra parte.” (ARISTÓTELES, 2021, p. 39). O andamento e a percepção cambiante de Albert sobre os fatos ao seu redor são tão naturalmente e fluentemente expostos que somos colocados como partícipes de suas emoções mais íntimas. Aristóteles também postulou que a tragédia não deveria ser épica e sim íntima, e a narrativa de Lindqvist se mostra exemplar no cumprimento desse requisito.

É preciso, como dissemos muitas vezes, lembrar-se de não dar à tragédia uma estrutura épica. […] É porém, nas peripécias e nas ações singelas que os poetas acertam admiravelmente no alvo, que é obter a emoção trágica e os sentimentos de humanidade. Isso se dá quando o herói hábil, porém mau, sai logrado. (ARISTÓTELES, 2021, p. 39).

A reviravolta final, que confirma a danação de Albert, apesar de razoavelmente previsível, e até correndo o risco de ser lida como moralista, é bastante cabível na medida que é uma consequência dos atos de Albert, um reflexo por seu descaso e desrespeito ao colega pouco ajustado socialmente. Dessa forma, Albert é vítima de si mesmo em sua inadvertida ação preconceituosa, sendo ao mesmo tempo uma personagem “agente” e “paciente” na dada narrativa, segundo a codificação sugerida por Roland Bourneff e Real Ouellet em O Universo do Romance (1976): “procede uma nova repartição das forças dramáticas – é conhecida a dicotomia inicial dividindo em ‘pacientes’ (apresentados pela narrativa como afetados por processos modificadores ou conservadores) e em ‘agentes’ (apresentados como iniciadores desses processos) as funções fundamentais de qualquer narrativa” (BOURNEFF, OUELLET, 1976, p. 220).

Essa estrutura – de ação, consequência e castigo – que pode até ser lida como simplória, guarda em si mesma uma singeleza que aponta a uma causalidade tão procedente quanto realista conseguindo dar “aparência real a situação imaginária” (ROSENFELD, 2011, p.20), tornando-as “quase reais” como diz Anatol Rosenfeld em seu artigo sobre personagens na essencial coletânea A Personagem de Ficção (2011).

É paradoxalmente essa intensa aparência de realidade que revela a intenção ficcional ou mimética. Graças ao vigor dos detalhes, à “veracidade” de dados insignificantes, à coerência interna, à lógica das motivações, à causalidade dos eventos etc., tende a constituir-se a verossimilhança do mundo imaginário. Mesmo sem alguns destes elementos o texto pode alcançar tamanha força de convicção que até estórias fantásticas se impõem como quase-reais” (ROSENFELD, 2011, p. 20)

Fazendo a construção diegética do conto sobre os dois personagens centrais, Lindqvist cria um universo de confinamento no qual narrativa e personagens se complementam em uma estética coesa. Segolin em seu estudo sobre personagem (1978), concorda com a definição de que a personagem é forte delineadora da estrutura geral do que se narra. No texto de Lindqvist a concepção de personagem é determinante da enunciação narrativa: “outro ponto positivo na tese proppiana, com relação ao objeto que nos ocupa [personagem] é a comprovação do alto valor funcional da personagem no desenrolar da intriga e no próprio processo de construção do enunciado narrativo.” (SEGOLIN, 1978: 73)

CONCLUSÃO – Alternando em seu texto, dados reconhecíveis da vida adolescente em início de convívio social a eventos sobrenaturais, o autor faz de seu conto uma alerta aos processos formativos desvirtuados na vida social que podem comprometer tanto a vida futura de seus integrantes quanto as relações sociais como um todo. A fantasia está indelevelmente inserida na diegese do conto, mas a metáfora é tão clara que a força do conto atinge o leitor de forma plena.

Compondo a primeira parte com as motivações sociais de Albert como equivalentes às nossas próprias, Lindqvist nos envolve de forma natural. O reconhecimento e a identificação são inevitáveis. Em seu texto, Temática (1925), Boris Tomachevski comenta sobre a necessidade do leitor em buscar a veracidade dos fatos narrados, mesmo que em uma narrativa fantástica, sendo que neste último caso de narrativa, a dupla interpretação é empregável.

Exigimos de cada obra uma ilusão elementar: a obra seria tão convencional e artificial, que deveríamos perceber a ação como verossímil. Este sentimento de verossimilhança é extremamente forte no leitor ingênuo e este pode crer na autenticidade do relato, pode ser persuadido de que os personagens existem realmente. (TOMACHEVSKI, 1973, p.186)

Pois se, enquanto leitores, podemos acatar uma dada narrativa como verossímil, no conto de Lindqvist, a exigência realista de que fala Tomachevski nos conduz a assustadora inferência de que as estruturas de convívio social, embasadas em um aprendizado empírico nocivo e excludente, estarão inevitavelmente formando um meio social progressivamente hostil e destrutivo.

É interessante notar que em um meio literário evoluído, os relatos fantásticos oferecem a possibilidade de uma dupla interpretação da fábula, em virtude das exigências da motivação realista: podemos compreendê-los de uma só vez como acontecimentos reais e como acontecimentos fantásticos. (TOMACHEVSKI, 1973, p.189)

O Companheiro do Guardião, parte de uma simples narrativa fantástica embasada em diversas informações da cultura de massa, bastante reconhecíveis pelo leitor contemporâneo, e de problemas comportamentais de prejuízo social, cresce em seu segundo ato envolvendo instabilidade emocional e intelectual. Por fim, termina sua narrativa como um alerta sobre problemas contemporâneos e as bases morais sobre as quais a sociedade moderna está embasada. O reconhecimento desses dados e o significado alcançado na construção e desenvolvimento narrativo é notável em sua excelência em nos fazer concordar com o prejuízo real, porém sugerido por vias irreais.

No entanto, a criação literária repousa sobre esse paradoxo [existe entre a realidade e a ficção], e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. (CANDIDO, 2011, p. 55)

O Companheiro do Guardião ultrapassa sua condição inicial de mero conto fantástico para se posicionar como um alerta sobre desvios sociais que determinam perigosamente a formação do homem contemporâneo.


2Role Playing Game, jogo de personificação onde os integrantes assumem personas ficcionais para o desenvolvimento de uma partida.

Referências

BARTHES, Roland, Introdução à Análise Estrutural da Narrativa. In: Análise Estrutural da Narrativa, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1971

BRAIT, Beth, A Personagem, Editora Ática, São Paulo, SP, 2002

BOURNEUF, Roland, OUELLET, Real, O Universo do Romance, Livraria Almedina, Coimbra, PT, 1976

CANDIDO, Antônio, A Personagem do Romance. In: A Personagem de Ficção, Editora Perspectiva, São Paulo, SP, 2011

LINDQVIST, John Ajvide, O Companheiro do Guardião. In: Antologia Macabra, Editora Darkside, Itapevi, SP, 2020

RANCIERE, Jacques, As Margens da Ficção, Editora 34, São Paulo, SP, 2021

ROSENFELD, Anatol, Literatura e Personagem. In: A Personagem de Ficção, Editora Perspectiva, São Paulo, SP, 2011

SEGOLIN, Fernando, Personagem e Anti-Personagem, Editora Cortez & Moraes, São Paulo, SP, 1978

TODOROV, Tzvetan, As Categorias da Narrativa Literária. In: Análise Estrutural da Narrativa, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1971

TOMACHEVSKI, Boris, Temática. In: Teoria da Literatura, Formalistas Russos, Editora Globo, Porto Alegre, RS, 1971


1Mestrando, 2024, UEL – Universidade Estadual de Londrina
ORCID: 0009-0000-1101-2531